Post on 22-Oct-2021
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
DANIELLE PEREIRA DE ARAUJO
“A COTA PAULISTA É MAIS INTELIGENTE”: O
PROGRAMA DE INCLUSÃO COM MÉRITO NO
ENSINO SUPERIOR PÚBLICO PAULISTA E O
CONFINAMENTO RACIAL DA CLASSE MÉDIA
BRANCA”
Campinas
2019
DANIELLE PEREIRA DE ARAUJO
“A COTA PAULISTA É MAIS INTELIGENTE”: O
PROGRAMA DE INCLUSÃO COM MÉRITO NO
SUPERIOR PÚBLICO PAULISTA E O
CONFINAMENTO RACIAL DA CLASSE MÉDIA
BRANCA”
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas como parte dos requisitos
exigidos para a obtenção do título de Doutora em
Ciência Política.
Supervisor/Orientador: Armando Boito Júnior
ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE
DEFENDIDA PELA ALUNA DANIELLE PEREIRA DE ARAUJO E ORIENTADA
PELO PROF. DR. ARMANDO BOITO JÚNIOR
CAMPINAS, 2019
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272
Araujo, Danielle Pereira de, 1986-
Ar12c Ara"A cota paulista é mais inteligente": o Programa de Inclusão com Mérito no
Ensino Superior Público Paulista (PIMESP) e o confinamento racial da
classe média branca / Danielle Pereira de Araujo. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.
AraOrientador: Armando Boito Júnior.
AraTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.
Ara1. Classe média. 2. Meritocracia. 3. Racismo institucional. 4. Cotas raciais.
I. Boito Júnior, Armando, 1949-. II. Universidade Estadual de Campinas.
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: "São Paulo's cotas is smater": the merit inclusion program in
the paulista public higher education (PIMESP) and the racial confinement of the white
middle class
Palavras-chave em inglês:
Middle class
Meritocracy
Institutional racism
Racial quotas
Área de concentração: Ciência Política
Titulação: Doutora em Ciência Política
Banca examinadora:
Armando Boito Júnior [Orientador]
Antônio Sérgio Alfredo Guimarães
Gislene Aparecida dos Santos
Mário Augusto Medeiros da Silva
Sávio Machado Cavalcante
Data de defesa: 30-09-2019
Programa de Pós-Graduação: Ciência Política
Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)
- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-8821-5369
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/1753947252157460
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos
Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 30 de
setembro de 2019, considerou o(a) candidato(a) Danielle Pereira de Araujo
aprovado(a).
Prof(a) Dr(a) Armando Boito Júnior
Prof(a) Dr(a) Antônio Sergio Alfredo Guimarães
Prof(a) Dr(a) Gislene Aparecida dos Santos
Prof(a) Dr(a) Mário Augusto Medeiros da Silva
Prof(a) Dr(a) Sávio Machado Cavalcante
A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no
SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-
Graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
DEDICATÓRIA
Dedico às mulheres que me guardaram, protegeram,
mas acima de tudo que me ensinaram a lutar:
Vaulice, Gabriela e Mãe Marta (In memoriam).
AGRADECIMENTOS
O caminho até a entrega dessa tese não foi trilhado só por mim, assim como
essa história não é só minha. E por isso agradecer a todas as pessoas que tornaram
esses anos menos dolorosos ou mais esperançosos merecia muito mais que uma ou
algumas páginas. Como não as tenho, registrarei de modo muito breve e com certeza,
injusto, alguns dos muitos “corpos insubmissos” que apareceram nessa caminhada e
me fizeram acreditar que resistir é o único caminho possível.
Em primeiro lugar, registro meu agradecimento ao Professor Armando Boito
Júnior pela paciência e as trocas frutíferas ao longo desses anos.
Aproveito para registrar também meu agradecimento à secretaria da Pós-
graduação em Ciência Política pelo apoio à distância. Meus sinceros agradecimentos à
Pró-Reitoria de Graduação da UNESP e à ADUSP por terem contribuído com a
construção do “inventário do real”.
A terra da luz deu-me também a família de coração. Obrigada Daysi, Larinha,
Lara Borges, Adelaine, Diane, Regiane, Shirley. Ao Pedro e Isabela, minha eterna
gratidão pela coragem e parceria.
Agradeço a todos que conseguiram tornar os dias frios em Campinas em
momentos de aconchego e conforto. Lauren, Paulinha, Luis Julião, Talita, Raulino e
Regi, meu obrigada pela acolhida, pelos cafés, pelos jantares e, como não podia deixar
de ser, pelos risos e sambas que embalaram tantas vezes nossos encontros. Muito
obrigada.
O Rio de Janeiro me presenteou com sambas, sonhos, aprendizados e lutas.
Obrigada Daniela, Tatiana, Linda, Tati Sacilotto, Daniele Lopes, Vikki pelas trocas,
risos e choros. Ludmila, sou eternamente grata a você pelos momentos regados a
muito axé e dança que me lembraram a importância de celebrar a vida com o corpo.
Ao Iderley pelos anos de companheirismo e insistência no diálogo. Obrigada
por ter sido parceiro de tantas horas duras.
E como continuo a desbravar águas dantes não vistas (?), em Portugal, agradeço
à Silvia Maeso pela humildade e pelas trocas que também tornaram essa tese possível.
E às insubmissas por me fazer acreditar que sonho e luta se constroem na coletividade:
Mari, Patrisha, Ana, André, Camila, Danuza, Cíntia, Raquel e Carmen. Obrigada povo!
Ao Flávio, por ter se tornado um abrigo desse lado de cá do Atlântico.
E finalmente, como é preciso retornar às origens para continuar seguindo firme,
agradeço o porto seguro que tem sido minha família (que cresceu!). Manu, Eduardinho,
Joaninha, Gabi, Adriano e ela, a mulher que sempre disse que eu podia: D. Vaulice.
Vocês estão comigo no melhor que há em mim.
O que queria eu dizer, especificamente,
quando falava da perda do meu corpo? E,
se Malcolm estava certo e tínhamos o
dever de preservar a nossa vida, como
podia eu ver essas vidas preciosas como
uma simples mola colectiva, como o
resíduo amorfo da pilhagem? Como podia
eu privilegiar o espectro da energia negra
em detrimento de cada raio de luz
particular? Eram notas sobre como
escrever e, portanto, sobre como pensar.
O Sonho alimenta-se de generalizações,
de restringir o número de questões
possíveis, de privilegiar as respostas
imediatas. O Sonho é o inimigo de toda a
arte, do pensamento corajoso e da escrita
honesta. E tornava-se claro que isto valia
não apenas para os sonhos criados pelos
americanos para se justificarem a si
mesmos, mas também para os sonhos que
eu conjurara para os substituir. Pensara
que tinha de espelhar o mundo exterior,
criar uma cópia a papel químico das
pretensões brancas à civilização.
Começava agora a ocorrer-me questionar
a lógica dessa própria pretensão.
Esquecera o hábito, inculcado pela minha
mãe, de me questionar a mim próprio, ou
antes, ainda não apreendera o seu sentido
mais profundo, o sentido que perdura toda
uma vida. Na altura, mal começara a
aprender a vigiar a minha humanidade, a
minha fúria e mágoa- ainda não percebera
que a bota que te pisa o pescoço tanto
pode deixar-te paranóico como pode
tornar-te mais nobre.
( Entre Mim e o Mundo, Ta-Nehisi
Coates)
RESUMO
A presente tese analisa o processo que culminou na rejeição, pelos docentes das
universidades estaduais paulistas, do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino
Superior Público Paulista (PIMESP) em 2013. Gestado pelos reitores das três
universidades estaduais de São Paulo (Universidade Estadual de Campinas,
Universidade Estadual Júlio de Mesquista, Universidade de São Paulo), em estreita
colaboração com o governo do estado de São Paulo, o PIMESP propunha-se a ser um
programa inclusivo no ensino superior, mas com o grande diferencial de priorizar o
mérito no processo de seleção do público beneficiário. Se, por um lado, o
posicionamento contrário à proposta advindo dos docentes das três universidades
estaduais paulistas expôs as limitações do PIMESP, por outro, o enquadramento dado
ao debate, a partir dos dilemas apresentados pelos docentes como inclusão versus
mérito, raça versus classe, políticas universais versus políticas focalizadas, evidenciam
a estrutura racista e elitista que informa a prática política daquela fração da classe
média branca que ocupa a universidade. Nesse sentido, o principal objetivo na presente
tese é evidenciar que a defesa do mérito aliada ao refutamento de políticas de ação
afirmativa com recorte étnico-racial, se converteram em estratégias discursivas
(re)produzidas pela fração da classe média branca no contexto de avaliação do
Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior público paulista e que cumpriu
uma dupla função: mascarar a hierarquia do trabalho e naturalizar o racismo
institucional. Como objetivo secundário, buscaremos também situar o PIMESP
inserido em uma lógica que orientou outras políticas de “inclusão” propostas pelas três
universidades paulistas entre os anos de 2004 a 2014. A partir das contribuições da
abordagem marxista de classe média e do conceito de racismo institucional
(Carmichael & Hamilton, 1967), a presente tese buscará explorar de que forma a
narrativa da “inclusão” nas universidades estaduas paulistas naturalizam as hierarquias
de classe e raça.
Palavras Chave: classe média, meritocracia, racismo institucional, cotas raciais.
ABSTRACT
This thesis analyzes the process that culminated in the rejection, by professors of São
Paulo state universities, of the São Paulo Public Higher Education Merit Inclusion
Program (PIMESP) in 2013. Gestated by the deans of the three state universities of São
Paulo (State University of Campinas, Julio de Mesquista State University, University of
São Paulo), in close collaboration with the government of the state of São Paulo,
PIMESP proposed to be an inclusive program in higher education, but with the great
differential of prioritizing merit in the process of the selection of the beneficiary public.
If, on the one hand, the teachers' contrary position to the proposal exposed the
limitations of PIMESP, on the other, the framework given to the debate, based on the
dilemmas presented by the teachers as inclusion versus merit, race versus class,
universal policies versus focused policies, they highlight the racist and elitist structure
that informs the political practice of that fraction of the white middle class. In this sense,
the main objective of the present thesis is to show that the defense of merit, together
with the refutation of affirmative action policies with ethnic-racial approach, were
constituted as discursive strategies (re) produced by that fraction of the paulista middle
class in the context of evaluation. of the Merit Inclusion Program of the State of São
Paulo, which fulfilled a dual function: to mask the hierarchy of labor and to naturalize
institutional racism. As a secondary objective, we will also seek to situate PIMESP in a
logic that guided other policies of “inclusion” proposed by the three universities of São
Paulo from 2004 to 2014. From the contributions of the Marxist middle class approach
and the concept of institutional racism (Carmichael & Hamilton, 1967), the present
thesis will seek to explore how the narrative of “inclusion” in São Paulo state
universities naturalizes class and race hierarchies.
Keywords: middle class, meritocracy, institutional racism, racial quotas.
LISTA DE FIGURAS, GRÁFICOS E TABELAS
Figura 1: Disciplinas da Grade Curricular do Profis ......................................................... 214 Figura 2: A redenção de Cam ........................................................................................ 249
Gráfico 1: Brancos e negros com Ensino Superior entre 1988 e 2013 ........................... 30
Gráfico 2: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com
nível de escolaridade Elementar (alfabetizados) .......................................................... 259
Gráfico 3: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com
nível de escolaridade 1º Grau ....................................................................................... 260
Gráfico 4: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com
nível de escolaridade 2º Grau ....................................................................................... 261
Gráfico 5: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com
nível de escolaridade Superior ...................................................................................... 262
Tabela 1: Matriculados 2012 na Usp, Unesp e Unicamp ............................................. 153
Tabela 2: Avaliação Inep x Políticas de ação afirmativa.............................................179
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABE- Associação Brasileira de Educação
ABC- Academia Brasileira de Ciência
ALESP- Assembleia Legislativa de São Paulo
CONSU- Conselho Universitário
CONFENEN- Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino
CRUESP- Conselho de reitores das Universidades Estaduais de São Paulo
EESC- Escola de Engenharia de São Carlos
Etecs- Escolas Técnicas Estaduais
Fatecs- Faculdades de Tecnologia
FUVEST- Fundação Universitária para o Vestibular
GT- Grupo de Trabalho
ICES- Instituto Comunitário de Ensino Superior
Inclusp- Programa de Programa de Inclusão Social da USP
IPEA- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
ONU- Organização das Nações Unidas
PAAIS- Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social
PRG- Pró-Reitoria de Graduação
PROFIS- Programa de Formação Interdisciplinar Superior
PIMESP- Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista
PNAD- Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar
PPIs- Pretos, Pardos e Indígenas
PSDB- Partido da Social Democracia Brasileira
REUNI- Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais
SBPC- Sociedade Brasileira para o Progresso
SDECTI- Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e
Inovação
STF- Superior Tribunal Federal
UNESCO- Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UNESP- Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
UNICAMP- Universidade Estadual de Campinas
UNIVESP- Universidade Virtual do Estado de São Paulo
USP- Universidade de São Paulo
SUMÁRIO
Índice INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 14
CAPÍTULO 1 - INVENTARIANDO O REAL: ESCOLHAS METODOLÓGICAS E
CONCEITUAIS .......................................................................................................................... 27
O trabalho de campo ................................................................................................................... 32
O conceito de classe média ......................................................................................................... 39
O conceito de Racismo Institucional a partir da contribuição do pensamento negro ............... 51
CAPÍTULO 2: AS IMPLICAÇÕES TEÓRICAS E POLÍTICAS DA COMPREENSÃO
EUROCÊNTRICA DE RAÇA E RACISMO NO CONTEXTO BRASILEIRO ....................... 62
O projeto UNESCO e a escola sociológica paulista ...................................................................... 63
As políticas afirmativas sob o olhar do pensamento social brasileiro ...................................... 100
As lutas do movimento negro e as encruzilhadas do direito no sistema capitalista ................ 112
CAPÍTULO 3: O PROGRAMA DE INCLUSÃO COM MÉRITO NO ENSINO SUPERIOR
PÚBLICO PAULISTA (PIMESP) ............................................................................................ 128
A UNESP e a aprovação parcial do PIMESP ............................................................................... 180
A UNICAMP e a rejeição ao PIMESP: a escolha pela bonificação (PAAIS) e pela continuidade do
Programa de Formação Interdisciplinar Superior (PROFIS) ...................................................... 199
A USP e a rejeição ao PIMESP: a reformulação do sistema de bonificação .............................. 225
Considerações gerais ................................................................................................................. 247
CAPÍTULO 4: “A REDENÇÃO DE CAM”: O ESTABELECIMENTO DA EDUCAÇÃO
PÚBLICA NO BRASIL E O MELHORAMENTO DA NAÇÃO ............................................ 249
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 266
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................. 270
14
INTRODUÇÃO1
Políticas afirmativas no ensino superior dizem respeito à institucionalização de
dispositivos que promovam o acesso e a manutenção de estudantes pertencentes a
grupos sociais que historicamente foram privados do acesso à educação superior. Tais
ações remontam ao início dos anos 20002 e para a presente tese, interessa-nos o debate
sobre as modalidades de reserva de vagas e bonificação. O sistema de reserva de vagas
(ou cotas, como ficou popularmente conhecido) é a modalidade de ação afirmativa que
mais tem sido utilizada pelas universidades públicas brasileiras (FERES JR et al, 2013).
Até 2013, nacionalmente, as universidades que aderiram às políticas de ação
afirmativa com reserva de vagas totalizavam 70. Desse total, 44% eram estaduais e 56%
federais3. Segundo levantamento feito por Feres Jr et al (2011), as universidades que
adotaram reservas de vagas somavam 84,3% (59), 32,9% (23) haviam instituído
acréscimo de vagas4 e 18,6% (13) adotaram bonificação.
A adoção de reserva de vagas não implica, necessariamente, a adoção de cotas
étnico-raciais: em 2011, as universidades com reservas de vagas para egressos da escola
pública correspondiam a 87% (61) do total de universidades que utilizavam essa
modalidade de política afirmativa, contra 57% (40) das universidades que tinham cotas
étnico-raciais (FERES JR.et al, 2011).
O estabelecimento de políticas de ação afirmativa no ensino superior público
brasileiro nos anos 2000, por meio da Lei Federal nº 12.711/20125 foi um importante
1 Antes de adentrarmos no texto, válido explicar dois termos que constam no título. Em relação à
expressão “a cota paulista é mais inteligente”, ela faz referência ao título de uma matéria publicada no
portal Portal Aprendiz do grupo UOL e de autoria de Gilberto Dimenstein, jornalista que dentre outros
trabalhos, foi colunista do Jornal Folha de São Paulo por 28 anos, além de ser criador do portal catraca
livre (Cf. DIMENSTEIN, 2012). Em relação ao termo “confinamento racial”, é alusivo ao artigo “O
confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro” do antropólogo José Jorge de Carvalho (Cf.
CARVALHO, J. J., 2006) 2 A Universidade Estadual do Norte Fluminense e a Universidade Estadual do Rio de Janeiro foram as
primeiras universidades públicas a adotar políticas afirmativas, em 2000 e em 2001, respectivamente. No
entanto, o projeto de lei nº 12.711, que tramitava no Congresso Nacional desde 2001, e que previa a
reserva de vagas em universidades públicas para pessoas oriundas de escola públicas, negros e indígenas,
só viria a ser aprovado em 2012. 3 Em 2013 existia um total de 96 universidades públicas estaduais e federais no País (Feres Jr et al, 2013). 4 Em relação ao aumento de vagas, vale ainda salientar que com a criação do Reuni (Programa de Apoio
ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), que entre outras ações expandiu a
quantidade de vagas ofertadas nas universidades públicas, algumas universidades (19 ao total)
aumentaram a quantidade de vagas sem, no entanto adotar políticas inclusivas. 5 Ou Lei de Cotas como popularizou-se, e vez por outra utilizaremos na presente pesquisa.
15
marco político para a história da ampliação do acesso ao ensino superior por negros6 e
indígenas no Brasil.
A presente pesquisa visa analisar o processo político (e os conflitos evidenciados
ao longo dele) que resultou na rejeição do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino
Superior Paulista (PIMESP) e, a manutenção, até 2017, da modalidade de bonificação
em detrimento da reserva de vagas7 nas três universidades públicas estaduais do Estado
de São Paulo.
Importante destacar que, a referida tese, se propõe a oferecer uma análise acerca
dos conflitos na constituição do que estamos a chamar de agenda “inclusiva” no interior
das universidades estaduais paulistas, a partir da apresentação da proposta do PIMESP
em 2013. Nesse sentido nos propomos a analisar a fase de formulação do “problema”,
isto é, a partir do debate gerado pelo PIMESP, buscaremos perceber os principais
elementos discursivos presentes na disputa entre docentes e Estado pelo enquadramento
do “problema” de acesso às universidades e por sua solução. Portanto, a presente
pesquisa não contempla a fundo a fase pós-rejeição do PIMESP, isto é, a reformulação e
a solução do problema, dessa vez encampada pelos movimentos sociais em articulação
com os docentes das próprias universidades.
Os debates realizados, por mais de uma década, quanto à possibilidade de
adoção de políticas de ação afirmativa com a modalidade de reserva de vagas étnico-
raciais pelas universidades públicas do estado de São Paulo – Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Universidade de São Paulo (USP) e
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – foram pautadas por um
posicionamento fortemente contrário à adoção da reserva de vagas étnico-raciais.
As universidades estaduais de São Paulo mantiveram-se por mais de uma década
na contramão da tendência nacional: as universidades estaduais (Rio de Janeiro, Bahia,
6 Optarei pelo uso do termo negro ao longo do texto, sempre que possível, por entender que a
terminologia – preto e pardo – empregada pelo IBGE e utilizada na formulação de algumas políticas
públicas, inclusive no PIMESP, busca, por meio da nomeação dos sujeitos, domesticar os espaços de
enunciação, ofuscando a potência política e o poder aglutinador do termo negro. Mas esse
posicionamento também está embasado em estudos sobre mobilidade social (HASENBALG, 1979;
SILVA, 1978; HENRIQUES, 2001; SOARES, 2000; JACCOUD & BEGHIN, 2002; OSÓRIO, 2003;
RIBEIRO; 2006) e outras pesquisas realizadas pelos institutos de pesquisas demográficas (IBGE, INEP)
no Brasil que demonstram que pretos e pardos compartilham níveis de acesso à educação, moradia, saúde,
trabalho muito próximos. Diante disso, as informações demográficas na presente tese, são extraídas dos
dados oficiais, onde há separação entre as categorias pretos e pardos, mas que na presente pesquisa estão
agrupados em todas as tabelas na categoria negro. 7 Estamos nos referindo à reserva de vagas tal como têm sido adotadas em outras universidades públicas:
com acesso direto à universidade, pós-aprovação no vestibular, sem cursos preparatórios como propunha
o PIMESP, por exemplo.
16
Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul) foram as primeiras universidades no Brasil a
adotarem as cotas étnico-raciais (entre os anos de 2002 e 2003). Foi também no
contexto das universidades estaduais onde mais rapidamente esse tipo de política
afirmativa teve expressiva adesão, antes mesmo da criação da Lei federal em 2012 (Cf.
FERES JÚNIOR, DAFLON & CAMPOS, 2011; FERES JÚNIOR, DAFLON,
CAMPOS, BARBABELA & RAMOS, 2013).
Parcela majoritária dos docentes das universidades estaduais paulistas insistiu na
manutenção do sistema de bonificação (pelo menos até 2017), que consistia no
acréscimo de pontos nas provas do vestibular com foco nos egressos de escolas
públicas. Entretanto, inúmeros estudos já comprovaram que esse tipo de sistema alcança
resultados inexpressivos (Cf. FERES JÚNIOR, DAFLON, CAMPOS, BARBABELA &
RAMOS, 2013), pouco alterando o quadro de disparidades de acesso entre negros,
indígenas e brancos.
No ano de 2012, frente à pressão dos movimentos sociais (e os impactos dessa
mobilização nas eleições daquele ano) e da ampla adoção por parte das universidades
brasileiras do sistema de reserva de vagas, o governador de São Paulo, Geraldo
Alckmin, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), em articulação com os
reitores das três universidades públicas estaduais, os representantes da Universidade
Virtual do Estado de São Paulo8 (UNIVESP) e o Centro Paula Souza9, finalizaram a
proposta do PIMESP, e colocaram para aprovação dos corpos docentes das três
universidades. O cenário de conflitos e tensões gerado durante aquele processo de
avaliação, em nossa análise, orientado por posições e interesses de classe, parece ainda
carecer de estudos que busquem conhecer mais sobre os motivos da resistência à adoção
das cotas no ensino superior público paulista.
Em síntese, o PIMESP propunha atingir o percentual de 50% de alunos oriundos
de escolas públicas e, desse total, seriam reservadas 35% das vagas para o grupo de
8 Criada em 2008 pelo governo de Geraldo Alckimin, a UNIVESP, foi a resposta do governo à falta de
vagas nas universidades. UNIVESP então foi criado para suprir a demanda por mais vagas nas
universidades estaduais paulistas a baixo custo e investimento, oferecendo ensino superior à distância.
Desde a sua criação, a Universidade à distância tem recebido inúmeras críticas, como: a qualidade
duvidosa do ensino ofertado, a qualidade da aprendizagem dos estudantes, beneficiamento da iniciativa
privada do setor de equipamentos e programas de informática, sucateamento do ensino superior público,
desvirtuamento dos fins originais do ensino à distância e uso desse tipo de ensino para legitimar a
exclusão uma vez que os estudantes que cursam Univesp não moram necessariamente em lugares
distantes que os impedissem de acessar os cursos presenciais das universidades públicas estaduais
paulistas. 9 O Centro Paula Souza é uma autarquia do Governo do Estado de São Paulo, vinculada à Secretaria de
Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação (SDECTI). A instituição administra 219
Escolas Técnicas Estaduais (Etecs) e 66 Faculdades de Tecnologia (Fatecs).
17
pretos, pardos e indígenas (PPI). No entanto, ao passar no vestibular, todos os cotistas
teriam que fazer um curso semipresencial, a ser realizado no Instituto Comunitário de
Ensino Superior (ICES), com duração de dois anos e com grade curricular que incluiria
disciplinas como “serviços e administração do tempo”, “gerenciamento de projetos”,
“profissionalização”, “inovação e empreendedorismo”.
O debate realizado pelo corpo docente das três universidades públicas paulistas,
esteve marcado pelo questionamento da viabilidade e/ou da necessidade do sistema de
reserva de vagas, motivado por receio de que: 1) o referido sistema causasse ranhuras ao
sistema meritocrático e, 2) que a presença dos cotistas pusesse em causa a qualidade das
universidades públicas de São Paulo, internacionalmente conhecidas pela excelência na
produção de conhecimento.
A conclusão do processo de avaliação do PIMESP: rechaço por duas
universidades, UNICAMP e USP, e aprovação parcial pela UNESP10. Apenas em 2017,
a partir da forte pressão dos movimentos sociais (movimento negro, movimento
estudantil), os conselhos universitários da UNICAMP e da USP aderiram11 ao sistema
de reserva de vagas para pretos, pardos e indígenas. O cenário de conflitos e tensões,
que acompanharam os debates em relação à adoção de reserva de vagas nas três
universidades paulistas nos últimos anos, parece ainda carecer de estudos que busquem
conhecer mais profundamente os motivos da resistência à adoção das cotas étnico-
raciais. Nesse sentido, a presente pesquisa buscará visibilizar as estratégias discursivas
pelos quais as categorias políticas de raça e racismo estiveram ocultadas ou
minimizadas nos discursos dos docentes das universidades paulistas.
É importante já pincelarmos em linhas gerais a nossa interpretação acerca da
resistência da fração da classe média branca paulista às políticas afirmativas. Em
primeiro lugar, entendemos que tem uma fração da classe média alta e branca que
historicamente, tem resistido a qualquer tipo de política que confronte a meritocracia
porque esse tipo de política estará obviamente questionando o seu lugar privilegiado na
estrutura de classes, arranhando também o igualitarismo jurídico, outro princípio caro à
classe média. Em segundo lugar, e como consequência do primeiro ponto, a fração da
classe média alta e branca poderá vir a fazer algum tipo de concessão no que concerne
10 Pontos extras em cima da nota obtida no vestibular do aluno que vem de escola pública. 11Importante assinalar que, mesmo aprovando o sistema de reserva de vagas, o contingente de vagas
destinadas aos negros e indígenas nas três universidades dar-se-á de modo progressivo até 2021, período
no qual a meta estabelecida pela Lei Federal nº 12.711/2012 deverá ser atingida.
18
à flexibilização da ideologia meritocrática (frente à pressão dos movimentos sociais)
desde que o elemento central que a distingue da classe trabalhadora seja mantido (isto
é, a realização de trabalho não-manual) e nesse sentido outras narrativas serão
mobilizadas por essa classe com a finalidade de reproduzir a sua distinção. E aqui
entra o terceiro ponto relativo à presença da perspectiva integracionista ou
assimilacionista como caminho defendido pela classe média branca à pressão dos
movimentos sociais pela democratização do acesso ao ensino superior público paulista.
Defenderemos nos capítulos seguintes, que o PIMESP foi rejeitado pela fração
da classe média branca abastada não pelo seu caráter racista, mas pelos perigos que
apresentava a manutenção da reprodução dessa classe. Nossa interpretação está
baseada em dois pontos principais. Em primeiro lugar, pela primeira vez o Estado e os
gestores da burocracia educacional paulista estavam a propor cotas para negros,
indígenas e estudantes de escola pública, reservando vagas12 e, portanto, ampliando o
acesso e interferindo na distribuição de vagas. E em segundo lugar porque o desenho
institucional do PIMESP com a criação de um instituto com um currículo voltado a
suprir demandas do mercado de trabalho13, ameaçou borrar a linha distintiva dessa
fração da classe média (branca, abastada e historicamente monopolizadora da
universidade) em relação à classe trabalhadora, além de trazer o perigo da
sobrecertificação (grande quantidade de pessoas diplomadas).
Contra o PIMESP, os docentes mobilizarão um imaginário ligado às idéias de
despreparo, inadaptação, deficiência para se referir aos beneficiários da política de
cotas, questionando a legitimidade daqueles em ocupar o espaço da universidade
pública. Nesse sentido, os docentes se opuseram ao PIMESP e defenderam as políticas
de inclusão já existentes nas três universidades (como a bonificação e a isenção da taxa
de inscrição no vestibular) porque essas políticas, em nosso entendimento são na
realidade rearranjos comésticos que mantem intocadas as estruturas de poder e os
12 Ainda que, pela Proposta, os cotistas não pudessem acessar diretamente a universidade. 13 No capítulo 3 discutiremos mais sobre esse ponto do PIMESP mas para já, o objetivo de capacitação
para o mercado profissional era ponto central da referida proposta, como podemos ver nas palavras de um
dos idealizadores do Programa, Carlos Vogt, para quem “[...]a capacitação é o principal objetivo do ICES
[…] Trata-se de cursos sequenciais de capacitação e formação superior de dois anos com diploma que
habilita o aluno a atuar em áreas que não exigem formação técnica específica, como por exemplo, alguns
cargos em setores de prestação de serviços e alguns cargos públicos” (GRILO, Gabriel. O PIMESP é um
bom método de inclusão? Jornal do Campus/USP, São Paulo, 11 de abril de 2013. Opinião. Disponível
online). Nesse sentido, entendemos que sendo a classe trabalhadora e trabalhadores precarizados (onde
encontra-se grande parcela de negros pobres) os grupos que historicamente tem ocupado os cargos com
menos exigência de formação técnica, a classe média viu-se atemorizada com a possibilidade de diluição
da sua condição distintiva a partir da implantação do ICES.
19
imaginários inferiorizadores acerca dos beneficiários, frutos do temor partilhado pela
classe média branca, ainda que não explicitamente nomeado, acerca do “perigo da
degeneração” da universidade, tanto no sentido racial como no sentido de classe. Na
presente tese, chamaremos a esse tipo de política defendida pela fração da classe média
branca abastada de políticas integracionistas ou assimalacionistas.
Ainda quanto às políticas, que estamos denominando de integracionistas
vigentes nas universidades estaduais paulistas no período analisado, é preciso que
façamos dois apontamentos. O primeiro diz respeito à importância de assinalarmos que
o entendimento que acompanha a presente tese é de que há diferenças entre os
pressupostos que orientam as políticas “inclusivas” vigentes nas universidades
paulistas entre 2004 e 2014 (incluindo a proposta do PIMESP) e as políticas
afirmativas com reserva de vagas étnico-raciais definidas pela Lei de Cotas e
defendidas historicamente pelos militantes negros no Brasil.
A interpretação que orienta a presente tese é a de que tanto as políticas de
“inclusão” vigentes na USP, UNESP e UNICAMP como o PIMESP foram arranjos
institucionais que têm no cerne das suas diretrizes o entendimento de que os grupos
beneficiários desse tipo de política são um problema, invisibilizando e
desresponsabilizando os mecanismos de exclusão da própria estrutura social vigente ao
mesmo tempo em que converte a “vítima” em “culpado” pela sua situação de exclusão
na qual foi impelido a estar. Além disso, as referidas políticas partem do entendimento
de que os beneficiários das políticas afirmativas precisariam da autorização e da gestão
do grupo “majoritário” para serem incluídos em determinados espaços (Cf.
GOLDBERG 1993; HESSE, 2004; ARAÚJO; MAESO, 2013). E é precisamente
nesses dois aspectos que, para nós, reside a diferença entre as políticas inclusivas de
acesso ao ensino superior concebidas pela classe média branca paulista abastada e a
Lei de Cotas, proposta pelo governo federal e respaldada por diversas lideranças
negras no Brasil.
A Lei de cotas prevê reserva de vagas justamente porque reconhece que
existem grupos historicamente desfavorecidos na competição por acesso a recursos e
que, portanto o Estado teria como prioridade mudar esse quadro, submetendo valores
como meritocracia e igualitarismo aquele fim. A reserva de vagas implica que o cotista
não estará submetido a “filtros extras” (meritocráticos) que na realidade funcionam
para impedir o acesso direto à universidade como: exigência de cursos preparatórios
(caso do Profis na Unicamp e do PIMESP) ou ainda atingir determinadas notas nos
20
exames vestibulares para conseguir acesso a bônus, caso do Programa de Programa de
Inclusão Social da USP (INCLUSP) e do Programa de Ação Afirmativa e Inclusão
Social (PAAIS) 14. Nesse sentido, a Lei de cotas ao garantir a reserva de vagas
desestabiliza, em alguma medida, a reprodução da desigualdade e da classe média ao
“secundarizar o critério meritocrático” (CAVALCANTE, 2015).
O segundo ponto diz respeito a própria concepção das políticas afirmativas no
ensino superior. Temos consciência dos limites desse tipo de política no que tange à
sua capacidade em desmontar as estruturas que mantem as opressões e em algumas
passagens da presente tese essa posição será explicitada, mas é importante registrarmos
para já que essa problematização não visa qualquer tipo de desligitimação da existência
delas e muito menos a desaprovação do fato das políticas afirmativas estarem a
décadas na agenda de reivindicação do movimento negro (SANTOS, 2012; DAFLON,
et al 2013; RIOS, 2014).
Nesse sentido não nos identificamos com algumas críticas às políticas de ação
afirmativas que analisam a reivindicação por esse tipo de política como um equívoco
do movimento já que a criação desse tipo de política, na visão daqueles críticos,
amorteceria os conflitos, fragmentaria os grupos e, portanto, obstacularizaria a luta
radical. Entendemos que esse tipo de crítica ignora os desdobramentos das políticas
afirmativas no que tange à confrontação da gramática jurídico burguesa-racista e a
possibilidade de radicalização da luta. Com isso não queremos dizer que as cotas
étnico-raciais rompem com a estrutura capitalista e seu ordenamento jurídico, mas em
alguma medida há a criação de possibilidades reais de democratização da estrutura
burguesa. O fato de a classe média branca ter se debatido e degladiado com o Estado e
a burocracia institucional ao longo de mais de uma década, rejeitando até onde pode a
reserva de vagas étnico-raciais no ensino superior, talvez seja uma evidência de que
esse tipo de política longe de mero mecanismo de domesticação e fragmentação da
luta, pode sim desordenar as “regras do jogo”.
A “presença ausência do racial” (APPLE, 1999; ARAÚJO & MAESO, 2013)
marcará profundamente a narrativa em torno da adoção da reserva de vagas étnico-
raciais entre os docentes das universidades estaduais paulistas. Nesse sentido, analisar o
processo de discussão sobre a adoção da modalidade de reserva de vagas étnico-raciais
permite perceber como a evocação de brechas legais, como autonomia universitária, foi
14 Regras vigente para o período analisado (2004-2014).
21
mobilizado pelos docentes para se contrapor ao PIMESP, mas também à Lei de Cotas
do governo Federal.
É de fundamental importância compreender como se dá o processo que leva à
definição do tipo de ação afirmativa implementada nas universidades estaduais. Esse é,
na verdade um dos aspectos mais importantes das políticas de ação afirmativa, já que
isso definirá o raio de alcance da política em termos inclusivos.
Transcorrida mais de uma década da implementação das primeiras medidas de
ação afirmativa no ensino superior no Brasil15, as pesquisas produzidas em relação ao
tema, parecem ainda não dar a devida atenção às ideias que sustentam os
posicionamentos em torno da política e, além disso, o pertencimento de raça e classe
dos principais sujeitos e grupos envolvidos no debate, principalmente sobre o conflito
que perdurou por tantos anos nas universidades estaduais de São Paulo até a aprovação
das cotas em 2017.
O panorama das análises sobre as Políticas de ação afirmativa no Brasil, apesar
de ser, aparentemente, bastante diverso, é composto por estudos que, em sua maioria,
estão preocupados em avaliar aquela política pública, analisando a sua validade, as
justificativas morais cabíveis para a sua criação, os seus aspectos procedimentais e os
seus impactos. No entanto, e considerando que o processo de implementação das ações
afirmativas no ensino superior suscitou um grande debate nacional16, torna-se
indispensável uma análise que considere como central nesse processo político, a
articulação entre classe e raça e de que forma essa acomodação orientou discursos e
ações, deixando evidente os interesses que orientaram a oposição à adoção às cotas
étnico-raciais no Brasil e que teve em São Paulo seu reduto mais duradouro.
15 A primeira Universidade Pública a adotar cotas étnico-raciais como critério de seleção foi a
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a partir da seleção de 2002/2003. Por meio de lei estadual, foi
estabelecido que 50% das vagas dos cursos de graduação das universidades estaduais seriam destinadas
a alunos oriundos de escolas públicas, aplicada em conjunto com a lei aprovada em 2002, a qual
estabelece que as mesmas universidades destinem 40% de suas vagas a candidatos pretos e pardos
(MOEHLECKE, 2002). 16 Entre 2002 e 2013, ano da criação da Lei 10.558 que estabeleceu o Programa Diversidade na
Universidade, no âmbito do Ministério da Educação, com a finalidade de implementar e avaliar
estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente
desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros, o debate público acerca
das cotas ganhou manchetes de jornais e foi fruto de intenso debate entre diversos cientistas sociais,
intelectuais e professores (CAMPOS, 2012). Em paralelo ao debate, aumentava-se rapidamente o
número de universidades com cotas: em 2013 já eram 70 as universidades a contar com as cotas étnico-
raciais e para egressos advindos do sistema público de ensino. Dessa percentagem, 44% são estaduais e
56% federais, de um total de 96 universidades públicas estaduais e federais existentes no País (FERES
JR et al, 2013).
22
A lei, que estabeleceu a obrigatoriedade da adoção das políticas nas
universidades federais17, não abrange as universidades estaduais, como é o caso das
universidades estaduais paulistas. As políticas de ação afirmativa nas universidades
estaduais resultam de iniciativas de indivíduos e ou/grupos das próprias universidades
ou ainda de legislação estadual, o que confere a tais políticas desenhos institucionais
diversos.
A decisão do Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade da reserva de
vagas nas universidades federais e a sanção da chamada “lei de cotas” (nº 12.711) em
2012, corroboraram a importância da adoção de medidas de acesso de negros e
indígenas às universidades públicas. Nesse contexto, até 2013, 32 das 38 universidades
estaduais existentes no País adotaram modelos de ações afirmativas, incluindo as três
universidades públicas paulistas (FERES JR et al, 2013).
Contrapondo-se à modalidade de ação afirmativa de reserva de vagas para
negros e indígenas, adotada pela maioria das Instituições de Ensino Superior públicas,
as universidades estaduais paulistas aderiram, inicialmente, aos programas de
bonificação. Somente em 2013 a UNESP instituiu a modalidade de reserva de vagas:
apenas 391 vagas para negros e indígenas, de um total de 7.259 vagas disponíveis. A
USP e a UNICAMP seguiram com os sistemas de bonificação até a adoção de reserva
de vagas em 2017.
A bonificação oferecida a alunos Pretos, Pardos ou Indígenas (PPI’s) na USP é
de apenas 5%, em média18. Os dados produzidos pela Fundação Universitária para o
Vestibular (FUVEST) não desmembram as informações dos candidatos PPI’s aprovados
e que ingressam via o Programa de Programa de Inclusão Social da USP (Inclusp),
impossibilitando que saibamos os números reais sobre a inclusão de negros e indígenas
desde a adoção da modalidade de bonificação no vestibular.
Os números divulgados pela USP apenas revelam que entre 2006 e 2012 o índice
de ingressantes na universidade por meio do Inclusp variou entre 24% e 28%. No
entanto, os números não dizem exatamente qual o perfil desses 28%: quantos são
negros? São advindos de que tipo de escola pública? Escolas públicas menos
prestigiadas ou escolas técnicas com qualidade superior às demais escolas públicas? A
17 Em 2008, o Governo Federal instituiu que a destinação de recursos do Programa de Apoio a Planos de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) somente ocorreria se as referidas
instituições aderissem às ações afirmativas. Importante mais uma vez destacar que ainda assim as
universidades estaduais foram as primeiras a criarem ações afirmativas e foi onde as ações afirmativas se
expandiram mais rapidamente (FERES JR et al, 2013). 18 Regimento em vigor para os anos que a presente tese abarca (2004-2014).
23
dubiedade dos números impossibilita uma avaliação da eficiência dessa política de
bonificação para fins de inclusão de grupos excluídos do espaço da universidade.
O sistema de bonificação adotado pela Unicamp oferecia, até 2015, 20 pontos ao
candidato que se autodeclarasse preto, pardo ou indígena e mais 60 pontos para os
candidatos autodeclarados baixa renda. Com a crescente pressão dos movimentos
sociais, para o vestibular de 2016 houve incremento na bonificação: 60 pontos às notas
da primeira fase para candidatos que tivessem cursado integralmente o ensino médio em
escolas públicas e mais 20 pontos para candidatos que se autodeclararem pretos, pardos
ou indígenas e que também tivessem cursado o ensino médio em escola pública.
Além da bonificação na primeira fase, os candidatos selecionados para a
segunda fase e que cursaram integralmente o ensino médio em escolas da rede pública,
teriam uma adição de mais 90 pontos na prova de redação e outros 90 nas provas
dissertativas. Candidatos aprovados na primeira fase, autodeclarados Pretos, Pardos ou
Indígenas (PPI’s) e que também tivessem cursado o ensino médio na rede pública,
passariam a ter 30 pontos adicionados na segunda fase, além dos 90 referentes à
condição de escolaridade.
As mudanças na bonificação na UNICAMP e na USP foram, sem dúvida, um
reconhecimento de que o Programa de Ação Afirmativa para Inclusão Social não estava
impactando no aumento da presença de PPI’s na Universidade. No entanto, a
remodelação da bonificação continuou a não incluir significativamente os PPI’s em
decorrência da média da nota de corte ser alta.
Em suma, a modalidade de bonificação e as cotas sociais -com foco em egressos
da escola pública- não estavam garantindo o acesso de negros e indígenas ao ensino
superior. Os impactos das políticas de bonificação utilizadas pelas universidades
estaduais paulistas continuam envoltos em controvérsias, já que as três universidades
carecem de uma gestão transparente dos dados e análises aprofundadas dos reais efeitos
no que tange ao aumento de PPI’s e até mesmo de egressos da escola pública.
Entretanto, alguns estudos têm apontado para o caráter incipiente da modalidade de
bonificação, uma vez que esse tipo de modalidade de ação afirmativa não corrige
distorções de pontuação entre os cursos: “aqueles mais prestigiosos e disputados são
pouco tocados pelo sistema de bonificação, enquanto aqueles menos competitivos
costumam ser mais impactados por essa modalidade de ação afirmativa” (FERES JR et
al, 2013, p. 9).
24
Diante do exposto, as questões que norteiam a presente pesquisa são as
seguintes:
1. As universidades estaduais de São Paulo estão entre as últimas
universidades públicas brasileiras a introduzirem nos seus processos seletivos, o sistema
de reserva de vagas étnico-raciais, passando-se mais de uma década entre a primeira
universidade a implementar o sistema e a adesão pelas estaduais de São Paulo. E por
quê? Por quais motivos as universidades púbicas do estado de São Paulo, até 2017,
notabilizaram-se pela resistência ao modelo de Políticas de ação afirmativa propostas
pelo Governo Federal, levando seus principais representantes a proporem modelos
alternativos de “inclusão” como o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino
Superior público paulista (PIMESP)?
2. Como se deu o processo político que culminou na reprovação do
Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior público paulista (PIMESP)
proposto pelos reitores das três universidades estaduais de São Paulo, mas rejeitado pela
ampla maioria dos docentes das três universidades? A rejeição dos docentes ao PIMESP
foi pautada por uma posição exclusivamente de classe média?
3. É possível extrair evidências de que, a partir dos argumentos dados pelos
docentes para a rejeição da proposta do PIMESP, as justificativas -como mérito e
autonomia universitária- dissimulam a operacionalização do racismo institucional?
As hipóteses a serem verificadas na presente pesquisa, são:
1- A ideologia meritocrática cumpre uma dupla função: mascarar a
hierarquia do trabalho e naturalizar o racismo institucional e:
2- O PIMESP, assim como outras políticas de inclusão propostas pelas três
universidades paulistas entre 2004 e 2014 tinha como objetivo garantir a hierarquização
do trabalho e silenciamento dos conflitos raciais.
A presente tese está divida em quatro capítulos. No capítulo 1 apresentamos o
percurso metodológico e o aporte teórico que guiou o olhar e a análise do material
gerado pelo trabalho de campo. Buscaremos justificar as escolhas feitas ao longo da tese
quanto ao recorte temporal e as delimitações do objeto de estudo. Além disso, definimos
os conceitos chaves que orientaram a análise- classe média e racismo institucional.
O Capítulo 2 busca compreender dois desdobramentos dos resultados da série de
pesquisas sobre as relações raciais no Brasil, patrocinadas pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) nos anos 50. O primeiro
desdobramento é em relação ao enquadramento da situação do negro brasileiro feito
25
pelos pesquisadores envolvidos no Projeto e pela própria UNESCO nos anos 50 a partir
de concepções essencialistas de raça, racismo e como essas concepções simplificaram as
soluções para o “problema do negro”. E o segundo diz respeito a continuidade daqueles
conceitos e as implicações para o enfrentamento ao racismo nos dias atuais focando em
três âmbitos que consideramos cruciais para a análise: produção do pensamento social
brasileiro (com foco na produção da escola sociológica paulista), atuação do sistema
jurídico e as estratégias de luta do movimento negro por entre as frestas do direito
burguês.
O Capítulo 3 examinará o processo de avaliação do PIMESP, buscando explorar
como a defesa da inclusão com mérito e a da prioridade do perfil econômico em
detrimento do racial pelos docentes das três universidades estaduais do estado de São
Paulo, revela os mecanismos que visam à manutenção da hierarquia do trabalho e
silenciamento das desigualdades com base em raça conectados com a própria história (e
os interesses da fração da classe média branca e abastada) de fundação das
universidades estaduais de São Paulo. A fim de examinarmos de que forma a fundação
das universidades paulistas confunde-se com a própria consolidação da fração da classe
média alta e branca paulista, faremos primeiramente um breve incurso na história e nos
discursos que justificaram a criação e a missão das universidades estaduais públicas do
estado de São Paulo.
Buscaremos também examinar como as políticas inclusivas vigentes entre os
anos de 2004 e 2014 nas três universidades desvelam os objetivos dessas políticas:
controlar a ampliação do acesso às universidades para assegurar a distinção da classe
média branca e abastada. Nesse sentido buscaremos nesse capítulo traçar os pontos de
conexão que orientaram o PIMESP e os programas de inclusão nas universidades
estaduais de São Paulo (2004-2014) e a partir daqueles pontos de conexão situar as
idéias que vem orientando a prática política dos docentes das três universidades no
controle sobre o processo de ampliação de acesso às universidades.
O capítulo 4 é uma tentativa de explorar, primeiramente, como as ideias centrais
que embasaram o PIMESP (e outras “políticas de inclusão” existentes nas universidades
paulistas) encontram suas raízes em uma concepção, com significativa longevidade
histórica, assentada na ideia de que há um tipo de educação pública que tem por missão
civilizar e está destinada aqueles que, na visão das elites, desde os primeiros anos da
República, carecem de serem instruídos e civilizados: negros e pobres. Buscaremos
situar de que forma os negros libertos no pós-abolição foram inseridos na educação
26
pública no contexto da nascente sociedade de classes. E em segundo lugar, buscaremos
a partir da compilação de dados da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad)
referente à taxa de ocupação entre brancos e negros com a mesma escolaridade,
evidenciar que a defesa da escolarização como condição indispensável para galgar
postos de trabalho dissimula os privilégios de origem racial na dinâmica de
hierarquização do trabalho no Brasil e põe em suspensão a idelogia meritocrática.
As discussões suscitadas entre os docentes das universidades estaduais públicas
paulistas entre os anos de 2012 e 2014 em relação à adoção do Programa de Inclusão
por Mérito no Ensino Superior público paulista (PIMESP) tornaram-se uma excelente
oportunidade para compreender o tema das ações afirmativas a partir do aporte teórico
marxista de classes.
Ainda que o conflito em torno das ações afirmativas não esteja diretamente
relacionado às relações de produção, os principais argumentos que embasaram as
decisões quanto à escolha por determinadas modalidades de ação afirmativa nas
universidades paulistas fornecem subsídios suficientes para compreendermos como a
fração da classe média alta e branca lançou mão de mecanismos visando garantir o
espaço de reprodução daquela classe. Além disso, o conflito ofereceu uma
possibilidade de entendermos mais de perto os contornos da operacionalização do
racismo institucional no contexto brasileiro. Tendo isso em consideração, o conflito
assumiu contornos marcadamente elitistas e racistas. Por esse motivo, serão
privilegiadas as perspectivas de classe e raça na presente tese.
27
CAPÍTULO 1 - INVENTARIANDO O REAL: ESCOLHAS
METODOLÓGICAS E CONCEITUAIS
Dar visibilidade aos mecanismos que permitem a (re) produção da organização
racializada da sociedade brasileira implica na tarefa árdua de inventariar a materialidade
da raça. A sociedade moderna ainda que social, política e economicamente estruturada
com base na desumanização, exploração e dominação que opera a partir de
classificações raciais, estabelecendo uma linha entre quem possui “humanidade de
primeira” e “humanidade de segunda classe” (FANON, 1975[1952], p. 138), reproduz,
a um só tempo as condições que permitem a desumanização e os protocolos silenciosos
acerca da existência dos referidos mecanismos. Junto com Fanon (2008), entendemos
que “A humanidade” tem sido definida a partir do referencial do colonizador-branco,
homem, europeu, cristão- que por sua vez define, a partir de hierarquias de
superioridade versus inferioridade, quais pessoas, culturas e povos seriam dignos do
atributo de humanidade, contestando sistematicamente a humanidade de povos não-
brancos e não-europeus e agindo a partir de “um complexo de autoridade e de chefe”
(FANON, 2008, p.94) frente aqueles povos, estabelecendo os pressupostos do que seria
“o sujeito humano”.
Desvelar os contornos da linha de cor (Du Bois, 1999 [1903]), reproduzidas por
práticas cotidianas que se sustentam em um jogo de esconder e dissimular a engrenagem
desumanizadora da sociedade moderna, exige de qualquer pesquisador(a) uma atenção
extra às vírgulas, às adjetivações, as reticências presentes nos enunciados daqueles que
habitam a zona do ser (FANON, 1975). Zona do ser e zona do não-ser são conceitos
fanonianos que buscam tonar inteligíveis a existência da separação entre seres-brancos
(que habitam a zona do ser), que tem a humanidade como um atributo inerente, e seres
despojados da sua humanidade pelo fato de não serem brancos e que são subordinados
às necessidades, demandas e interesses dos que habitam a zona do ser.
Nesse sentido tivemos de fazer escolhas, do ponto de vista metodológico e
conceitual, que pudessem ir além das propriedades do texto ou da conversação do
material advindo do trabalho de campo, permitindo analisar os elementos contextuais
nos quais a enunciação foi produzida. Portanto, as escolhas metodológicas e conceituais
feitas no presente estudo foram orientadas a fim de integrar o texto e o contexto (VAN
DIJK, 2000; 2001).
28
Partimos do pressuposto de que os conceitos só têm validade em determinado
arcabouço teórico e histórico e por isso o exercício de aplicação daquele ou desse
instrumental teórico só adquiri plausibilidade em relação ao contexto histórico que se
pretende analisar (GUIMARÃES, A.S.A., 2003). Nesse sentido, entendemos que a
compreensão do cenário de desigualdades existentes no Brasil não pode prescindir do
exercício cuidadoso de articulação entre os conceitos de classe e raça, de modo que tais
conceitos permitam compreender a desigualdade brasileira sob o prisma que integre a
organização de classes assentada sobre um ordenamento social racializado que por sua
vez se conformam e hierarquizam as relações no Brasil.
O exercício de articular analiticamente os conceitos de classe e raça, para
entender o contexto de desigualdades no Brasil, exige do (a) pesquisador (a) certo
desprendimento de concepções e categorias essencializadoras ou desconectadas do
contexto histórico, para que se possa compreender de que forma o racismo pode ser
entendido como um dos elementos estruturantes do capitalismo brasileiro. Situaremos o
debate sobre as ações afirmativas a partir das contribuições da teoria marxista de classe
média e das contribuições da tradição radical negra, buscando apontar para a
convergência entre as desigualdades raciais e sociais (relação entre classe e raça) e
como esse tipo de análise pode ser estratégica para enriquecer estudos sobre a opressão
racial brasileira sob a perspectiva marxista de classe média.
Alguns dados relativos à situação da população negra podem oferecer um breve
panorama para entendermos como se operacionalizam as desigualdades raciais na
dinâmica social brasileira. A população negra ultrapassa a metade do total de residentes
no Brasil desde 2008, entretanto as desigualdades raciais persistem:
75% da população prisional brasileira é composta por negros19;
das 16,2 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza no País, 70,8%
delas são negras20. Em 1997, 57,7% dos negros brasileiros eram pobres. Dez anos
depois, eram 41,7%. Entre os brancos, o percentual caiu de 28,7% para 19,7% no
mesmo período21;
os salários médios dos negros no Brasil são 2,4 vezes mais baixos que o
dos brancos22;
19 Report of the Special Rapporteur on minority issues on her mission to Brazil. ONU. 2016. Disponível
em: http://ap.ohchr.org/documents/dpage_e.aspx?si=A/HRC/31/56/Add.1. Acesso em 20 mar 2016. 20 Idem 21 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2009. 22 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2009.
29
80% dos analfabetos brasileiros são negros e 64% da população negra
não completa a educação básica23;
no Judiciário, apenas 15,7% dos juízes são negros24;
no Congresso, apenas 8,5% dos deputados são negros25;
no que tange aos números sobre violência: dos 56 mil homicídios no
Brasil por ano, 77% das vítimas eram jovens negros em 200926, entre 2009 e 2011 o
número de negros que morreram como resultados de operações policiais em São Paulo é
três vezes superior do que é registrado entre a população branca27 e em 2019 66% a
mais de mulheres negras brasileiras foram mortas em comparação com às mulheres
brancas28.
A articulação entre meritocracia e mito da democracia racial contribuiu para o
falso argumento de que a marginalização dos afro-brasileiros se daria apenas por conta
de classe social e não pela existência de uma estrutura social racista que (re) produz
(porque se beneficia) as desigualdades. Desse modo, sem dar a devida atenção à
desigualdade pautada pela questão da cor, qualquer análise que busque compreender o
funcionamento do capitalismo no Brasil e como aquele interage com o elemento racial
terá sua capacidade analítica limitada em nosso ponto de vista. Junto com Antônio
Sérgio Guimarães (2002), entendemos que raça “não [é] apenas uma categoria política
necessária para organizar a resistência ao racismo, mas também é categoria analítica
indispensável: a única que revela as discriminações e desigualdades que a noção de
‘cor’ enseja [e que] são efetivamente raciais e não apenas de ‘classe’” (Idem, p. 50).
Os dados sobre o ensino superior apontam para a “presença” do racial na
organização das relações de poder no contexto brasileiro. Segundo consta em Feres Jr.
et al (2013), em 1976, 5% dos brancos tinham ensino superior enquanto apenas 0,7% da
população negra tinha diploma universitário. Após 30 anos (dados do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada referentes ao ano de 2006), a percentagem de brancos
com diploma tinha aumentado para 18% enquanto entre os negros esse percentual não
passou de 5%, isto é, o mesmo patamar que o dos brancos só que 30 anos antes.
23 Idem. 24 Idem. 25 Idem. 26 Idem. 27 Ver: Relatório Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo: Letalidade policial e prisões em
flagrante produzido pelos pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos, Jacqueline Sinhoretto,
Giane Silvestre e Maria Carolina Schlittler. Disponível em: http://www.ufscar.br/gevac/wp-content/uploads/Sum%C3%A1rio-Executivo_FINAL_01.04.2014.pdf. Acesso em 30 jan de 2018. 28 Atlas da Violência 2019.
30
As disparidades de acesso entre negros e brancos ao ensino superior colocam por
terra os argumentos que contribuem para a protelação de possíveis ações com vistas ao
enfrentamento do racismo, como as políticas afirmativas com reserva de vagas para
negros e indígenas. Os números referentes ao quantitativo de brancos e negros com
ensino superior entre 1988 e 2013 apontam para as barreiras enfrentadas pela população
negra:
Gráfico 1: Brancos e negros com Ensino Superior entre 1988 e 2013
Fonte: elaboração própria a partir dos dados da PNAD.
A partir dos dados, vemos que em 1988, entre os jovens com diploma de nível
superior, apenas 4% eram negros e 96% eram brancos. Uma década depois o número
de negros com ensino superior aumentou seis vezes, passando para 24% mas ainda
assim mantendo-se inferior à percentagem de brancos (76%).
A partir de 2007, políticas de expansão do ensino começam a ser instituídas pelo
Governo Federal (à época sob o comando do Partido dos Trabalhadores), como o
Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
(REUNI), que tinha como um dos principais objetivos estimular as universidades
contempladas pelo Programa a criarem “mecanismos de inclusão social a fim de
garantir igualdade de oportunidades de acesso e permanência na universidade pública a
todos os cidadãos” (FERES JR. et al 2013). Assim, ainda em 2008, 53 universidades
aderiram ao Programa e consequentemente às modalidades de Políticas de ação
afirmativa em seus vestibulares (Idem).
0%
20%
40%
60%
80%
100%
120%
19
88
19
89
19
90
19
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13
Brasileiro(a)s por cor/raça com Ensino Superior
População Branca População Negra
31
Em 2013, das 96 universidades públicas estaduais e federais no Brasil, 70
tinham adotado algum tipo de modalidade de política afirmativa, dentre essas 44% eram
estaduais. Mesmo diante desse cenário de ampla adesão às políticas afirmativas, do total
de vagas reservadas nas universidades estaduais, apenas 10% foram destinadas para
negros e indígenas (FERES JÚNIOR et al, 2013, p. 13).
As universidades estaduais de São Paulo estão entre as últimas universidades
públicas brasileiras a introduzirem nos seus processos seletivos, o sistema de reserva de
vagas étnico-raciais, passando-se mais de uma década entre a primeira universidade a
implementar o sistema e a adesão pelas estaduais de São Paulo. E por quê? Mesmo
diante de um quadro gritante de desigualdade racial de acesso à educação superior, por
que, ainda assim, as universidades estaduais de São Paulo negaram-se por tanto tempo a
aderir ao sistema de reserva de vagas?
O quadro atual de pesquisas realizadas sobre o tema das Políticas de ação
afirmativa, ainda que suscitem avaliações enriquecedoras para o debate acerca daquelas
políticas, parecem ainda não dar a devida atenção às disputas e conflitos que aquelas
políticas têm suscitado historicamente e principalmente de que forma o pertencimento
de classe e raça informam os posicionamentos nessa disputa.
A produção de estudos sobre a problemática do acesso ao ensino superior parece
ainda estar “aprisionada” na camisa de força binarista eurocêntrica, de forma a criar
perspectivas falsamente dicotômicas sobre o tema: de um lado, temos os estudos que
atrelam a exclusão do ensino superior exclusivamente à questão da pobreza -classe- e de
outro, estudos que veem que é o determinante racial que explica por si só a desigualdade
de acesso ao ensino superior. Válido explicar, ainda que brevemente, porque
consideramos que essa camisa de força é eurocêntrica. Defendemos na presente tese que
as ciências sociais de modo geral e em particular, os investigadores que tem se detido
sobre a problemática da desigualdade de acesso ao ensino superior, ainda orientam suas
análises sob uma perspectiva que desconsidera ou não problematiza o suficiente como
as percepções de Ocidente, modernidade, Europa. Como afirmam as investigadoras
Marta Araújo e Silvia Maeso (2013):
“[…] na contemporaneidade dos regimes políticos democráticos e defensores
dos direitos humanos, a eficaz reprodução de relações de poder com base na
“raça” resulta de um jogo de in/visibilização – ancorado no Eurocentrismo –
que, por um lado, ativa imaginários e práticas excludentes, e, por outro,
naturaliza as configurações de poder que as sustentam” (idem, p. 147).
32
Nesse sentido, as escolhas metodológicas e conceituais na presente tese foram
feitas a fim de evidenciar os contornos das narrativas eurocêntricas que por
desconsiderar a própria colonialidade do saber acabam por desconsiderar a relação entre
colonialismo, capitalismo e racismo, tornando-se incapazes de dimensionar
adequadamente, em nosso entendimento, a simbiose entre classe e raça que tem
direcionado os rumos da disputa por acesso à universidade pública. Longe de se
converter em um obstáculo epistemológico, a articulação entre essas duas matrizes de
opressão complexifica o entendimento dos conflitos sociais no Brasil.
O trabalho de campo
Tornar evidente o não-dito, o ocultado, o dissimulado não é tarefa das mais
fáceis. Analisar o debate gerado a partir da possibilidade de implementação de políticas
de inclusão com recorte étnico-racial nas universidades estaduais de São Paulo implicou
em trazer para o primeiro plano as relações de poder e estruturas socias desiguais que
atravessaram aquele debate, mas que são constantemente negadas, silenciadas,
dissimuladas em meio à repetição de argumentos autoproclamados “técnicos”,
“imparciais”, “neutros”. Nesse sentido encontrar meios de gerar informações sólidas
para a presente pesquisa colocou desafios metodológicos que acredito que valha o
esforço descrevê-los na presente seção para que possamos compreender as escolhas
metodológicas quanto ao tratamento do tema.
Primeiramente defrontei-me com o desafio de realizar o trabalho de campo
enquanto o processo de avaliação do PIMESP estava a decorrer, tendo em vista a
presente pesquisa ter sido iniciada em 2013, ano em que o PIMESP foi apresentado aos
docentes das três universidades e que abriu uma nova página, em nosso entendimento,
na história do debate sobre raça, racismo e ensino superior nas universidades paulistas.
Entre os anos de 2012 e 2014 ocorreu uma sucessão de acontecimentos políticos
no nível nacional e no estado de São Paulo, como a votação pela constitucionalidade das
cotas étnico-raciais no Superior Tribunal Federal (STF), a criação da Frente Pró-Cotas
Raciais do Estado de São Paulo, a apresentação do Programa de Inclusão com Mérito no
Ensino Superior público paulista (primeiro programa de democratização do acesso do
ensino superior das estaduais paulistas que tinha como público alvo, negros e indígenas)
e a recusa total do referido Programa pela USP e UNICAMP e aceitação parcial pela
UNESP, o rearranjo das políticas inclusivas vigentes nas três universidades, as eleições
33
de novos reitores e novos direcionamentos no debate estadual sobre as Políticas de ação
afirmativa.
Os fatos mencionados acima imprimiram uma dinâmica própria de produção de
informações que em dado momento foi difícil acompanhar, situar, criar linhas de
conexão entre os discursos, linhas essas necessárias a uma análise madura e
responsável. E diante desse dinamismo próprio, característico de qualquer estudo que
tenha por objetivo cartografar o tempo histórico vivido, deparei-me com a necessidade
em fazer a primeira escolha metodológica: o “objeto” da pesquisa.
O conflito gerado a partir do PIMESP envolveu vários sujeitos políticos, como o
movimento estudantil e o movimento negro, que exerceram um papel decisivo na
inclusão da discussão sobre cotas étnico-raciais na agenda política paulista.
Primeiramente em 2012, com a criação da Frente Pró-cotas raciais do estado de São
Paulo reunindo mais de 40 organizações populares (tendo mobilizado mais de 150
lideranças do movimento negro e unificando uma agenda reivindicativa de cotas no
ensino superior público estadual de São Paulo) que foi decisivo para que naquele
mesmo ano o Conselho de reitores das Universidades Estaduais de São Paulo
(CRUESP) e executivo estadual elaborassem o Programa de Inclusão com Mérito.
Mesmo reconhecendo a decisiva atuação do movimento negro e do movimento
estudantil, poder aproveitar a chance trazida com o debate sobre o PIMESP para pôr
uma lupa sobre o que os docentes estavam a pensar sobre aquele processo que
começava a descortinar-se, pareceu-nos uma valiosa oportunidade.
A escolha pelo foco exclusivo no debate entre os docentes é baseada no interesse
em evidenciar os contornos da natureza da participação política da fração da classe
média alta e branca, mais abastada e historicamente o segmento que tem na
universidade pública seu principal meio de reprodução da sua condição de classe. As
análises sobre esse tipo de conflito, onde geralmente os pesquisadores tendem a voltar
suas preocupações para os movimentos sociais envolvidos ou nos sujeitos que definem
uma posição mais explícita por esse ou por aquele lado, acabam por passar ao lado da
atuação daquela fração da classe média. Longe de uma superdimensionamento da
participação dessa fração da classe média e de conferir a ela, equivocadamente, toda a
responsabilidade na condução do processo de rejeição ao PIMESP, a escolha pelo foco é
uma tentativa de avançar na caracterização da situação de classe e raça dos docentes das
universidades estaduais paulistas. E, nesse sentido, centralizar a atenção apenas no
debate dos docentes, mesmo tendo consciência da importância política dos demais
34
sujeitos, nos pareceu necessário para o devido dimensionamento da ação política
daquela fração da classe média.
Escolhido o “objeto”, era preciso definir o método de aproximação junto a ele e
a segunda dificuldade metodológica surgiu. Defrontei-me em ter de escolher entre ser
Narradora-personagem ou Narradora-observadora, isto é, como seguir analisando o
conflito que estava a decorrer sem atuar diretamente na Frente Pró-cotas da
UNICAMP29. Dizemos dificuldade metodológica apenas de um ponto de vista de uma
concepção de ciência que estabelece uma cisão entre sujeito político e sujeito que
produz ciência. Assim, em alguns momentos deparei-me com esse “dilema” ao longo do
doutoramento.
E por que essa questão apresentou-se para mim como desafio metodológico?
Porque a minha condição de mulher negra empobrecida e, portanto diretamente
interessada, afetada e a favor das políticas de cotas étnico-raciais, gerou em diversos
momentos um desconforto e certa descrença no “necessário distanciamento” em relação
ao objeto, impelindo-me muitas vezes a considerar a possibilidade de assumir
inteiramente a posição de narradora-personagem, mas dadas as condições materiais
objetivas da minha vida (trabalhando em período integral na cidade do Rio de Janeiro),
percebi que isso não seria possível e que dentro do viável, seguir com a escrita da tese,
mantendo a posição de narradora-observadora seria a melhor contribuição que eu
poderia dar aos que me antecederam, aos homens negros e mulheres negras que lutaram
e seguem lutando pelo direito à educação.
Tomada a decisão (que sofreu diversos abalos ao longo do caminho, ora pelo
contexto político, ora pela descrença ou consciência dos limites estratégicos do fazer-
saber científico) de seguir com a escrita, tive de pensar então como construir uma
narrativa daquilo que via e dei-me conta que eu estava a inverter a “ordem das coisas”
ou em outras palavras: em minha pesquisa os outros pesquisados não são os negros, os
pobres (como por longas décadas foi o mais corrente na produção das ciências sociais).
Em minha pesquisa, eu, mulher negra, coloco-me na posição que sempre fora daqueles
outros, os grandes pensadores brancos que pesquisavam sobre mim, sobre negros, sobre
nós, “os outros”.
29 Frente que surgiu em 2012 e reuniu representantes do movimento estudantil, professores, estudantes
negros com o objetivo de articular uma ampla frente a favor da implementação das cotas na UNICAMP
(cf. INADA, A. K. Quando a UNICAMP falou sobre cotas trajetória de militância do Núcleo de
Consciência Negra e Frente Pró-Cotas da UNICAMP. 2018. Dissertação de Mestrado- Programa de Pós-
Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo).
35
O “desordenamento dos lugares” implicou na tarefa de repensar caminhos para a
pesquisa. A experiência de ser uma mulher-negra em um mundo racista é toda ela
marcada por experiências que estão relacionadas ao fato de eu não poder esconder
aquele atributo fenotípico carregado de certo imaginário que, à partida, já me coloca em
determinados lugares. E tendo em conta a possibilidade dessa “marca visível” gerar
algum tipo de obstáculo, no caso de realização de entrevistas face to face, optamos por
não realizar entrevistas diretamente com os docentes. Nesse sentido, ao mesmo tempo
em que essa escolha metodológica poderia afastar a possibilidade de gerar informações
mais apuradas ou ainda de não conseguir gerar material suficientemente sólido para
embasar minha tese, fui surpreendida- positivamente e negativamente, com o material
documental que fui coletando ao longo desses anos de pesquisa.
Quando digo que fui surpreendida negativamente refiro-me a deparar-me com
todo o vigor e naturalidade com que se (re) produz a desumanização da população negra
nesse país, no interior das universidades brasileiras mais renomadas, para mim,
enquanto mulher negra, nascida mais de 130 anos após a abolição da escravatura foi
desalentador encontrar discursos embrenhados de uma lógica racista e reproduzidos sem
nenhum pudor. Por outro lado, o material que fui coletando surpreendeu-me
positivamente. Enquanto pesquisadora, ávida por encontrar evidências que embasassem
nossas “desconfianças” iniciais, os documentos encontrados ao longo do caminho,
apesar de não falarem por si mesmos, carregam todas as contradições de classe e raça
que atravessam a fração da classe média abastada e branca, permitindo compreender os
contornos do imaginário-burguês-eurocêntrico, vigente nas universidades. Assim, o
banco de dados para a pesquisa foi gerado basicamente por análise documental: atas,
manifestações e ofícios emitidos pelas Congregações (departamentos, institutos) das
Universidades Estaduais Paulistas assim como entrevistas publicadas em periódicos de
circulação nacional, entrevistas disponíveis em redes de televisão e plataformas online e
ainda de entidades coletivas ligadas às universidades.
A geração de dados se deu: 1) pela recolha de documentos oficiais que foram
produzidos pelas universidades e pelos atores institucionais envolvidos direta ou
indiretamente no debate e; 2) pela recolha de notícias como pronunciamentos,
manifestações públicas e entrevistas disponíveis na mídia sobre o debate.
A análise documental permitiu que a pesquisa se aproximasse, por um lado, dos
elementos centrais que vigoraram nos documentos oficiais quando da realização da
consulta acerca do PIMESP nas três universidades em 2013, e por outro lado, permitiu
36
compreender a retroalimentação entre o debate no interior das universidades e o debate
público fomentado pelos meios de comunicação.
Podemos identificar três tipos de grupos que compuseram a pesquisa
documental, sendo os dois primeiros onde focamos nossa análise e o último tipo apenas
como fonte complementar para fazer alguns contrapontos aos discursos oficiais da
fração da classe média branca. A seguir os grupos:
a) Atores institucionais: Representantes políticos, altos funcionários da
burocracia educacional; representantes de associações de profissionais das
universidades; instâncias de representação docentes (sindicatos, conselhos,
congregações) e representantes do governo estadual paulista;
b) Indivíduos: acadêmicos, políticos; peritos legais e docentes e;
c) Movimentos sociais: representantes de organizações do movimento negro;
representantes de associações de estudantes do ensino superior.
Um ponto importante sobre os documentos consultados, diz respeito à condução
do processo na UNICAMP. Tanto na UNESP quanto na USP os docentes produziram
manifestações e encaminharam os seus posicionamentos aos Conselhos Universitários.
Entretanto, a UNICAMP seguiu outro percurso, que detalharemos a seguir.
Diferentemente da USP e da UNESP, onde as congregações discutiram de modo
ampliado o PIMESP e tiveram que emitir posicionamentos oficiais ainda no ano de
2013, a UNICAMP instituiu um Grupo de Trabalho (GT) para avaliar o PIMESP e
outras possibilidades de Políticas de ação afirmativa. O referido GT só viria a concluir
os trabalhos em maio de 2014. Com isso não houve um cronograma oficial para
discussão nas Congregações e unidades de ensino na UNICAMP em relação ao
PIMESP, impedindo a produção de documentos sobre o tema30.
Constatada a não produção de documentos com as manifestações formais dos
docentes quanto ao posicionamento em relação ao PIMESP, cogitei ter ocorrido algum
tipo de discussão mais informal nos departamentos, tendo em vista o fato de o PIMESP
ter gerado a realização de um debate histórico no estado de São Paulo, de extrema
importância para os rumos da democratização do acesso às universidades estaduais
paulistas, com grande visibilidade nacional.
30 Com exceção do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) que se reuniu em março de 2013 para discutir sobre o assunto que foi registrado em ata (cf. UNICAMP, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Ata da Congregação do IFCH, UNICAMP, Ata 191a, Campinas, São Paulo, 2013).
37
No ano de 2015 estive no Pró-Reitoria de Graduação (PRG) da Unicamp a fim
de consultar o material produzido no âmbito das unidades de ensino, tal como fiz para
acessar os documentos da UNESP e da USP, mas para minha surpresa (e alguma
surpresa das funcionárias frente à minha surpresa) não existia nenhum documento sobre
os debates realizados pelos docentes, para além do documento produzido pelo Grupo de
Trabalho. Fui orientada então a realizar uma consulta direta às congregações e unidades
de ensino e assim o fiz na certeza de que encontraria algum material.
Em 2015 realizei uma consulta, via e-mail, às 24 Unidades de Ensino da
UNICAMP para verificar a existência de documentos produzidos a partir das discussões
realizadas pelos docentes. E novamente uma surpresa: nem documentos, nem discussão.
Dentre as Unidades consultadas, 12 retornaram o contato e dentre essas nenhuma tinha
se reunido para discutir e se posicionar oficialmente em relação ao PIMESP. Duas
unidades mencionaram ter discutido estratégias de melhoria do PAAIS, mas sem
posicionamento oficial, ou seja, sem produção de documentos oficiais sobre isso. Com
isso não queremos dizer que, de todo, não existiu discussão em uma ou outra
Congregação (como foi o caso da Congregação do Instituto de Filosofia e Ciência
Humanas) que tenha se debruçado sobre a proposta do PIMESP e mesmo tecido críticas
documentadas quanto ao processo de condução pela reitoria da UNICAMP. Entretanto,
essa foi a exceção para comprovar a regra e formalmente não se registrou nenhum
manifesto dos docentes na condução do processo pela Reitoria.
Assim, o corpus de análise para o debate na UNICAMP é o conjunto de
pronunciamentos dos docentes na mídia e o relatório produzido pelo Grupo de Trabalho
Inclusão que, depois de um ano reunido (2013-2014), chegou à conclusão (ou já partira
da premissa?) que dentre as possibilidades de ação afirmativa, a melhor era o sistema de
bonificação já existente na UNICAMP: o PAAIS. Sugeriram apenas ‘melhorias’ nesse
sistema como o aumento do bônus e bonificação nas duas fases do vestibular. Válido
dizer novamente que aquelas melhorias foram tomadas com base nas avaliações e
simulações feitas pela Comissão do vestibular (Comvest) da UNICAMP que “previu”,
em seus testes estatísticos, que seria possível cumprir as metas da inclusão com o
PAAIS, bastando apenas fazer as referidas adequações.
Intrigada com a forma de condução do processo de avaliação na UNICAMP,
resolvi ampliar o corpus de análise, o que acarretou o resgate de documentos sobre as
políticas de inclusão que vinham sendo implementadas naquela Universidade. O resgate
de documentos relativos às outras políticas de “inclusão” possibilitou compreender
38
(como veremos no capítulo 3) que essa condução “silenciosa” da consulta do PIMESP
na UNICAMP, parecia não ser uma “mera escolha técnica”, mas sim uma estratégia
política com vistas a gerar um resultado: manter os programas de “ações afirmativas” já
existentes na UNICAMP.
A UNICAMP, no ano de consulta do PIMESP, contava com a bonificação
(PAAIS) e o Programa de Formação Interdisciplinar Superior (PROFIS), que inclusive
serviu de inspiração à proposta do Instituto Comunitário de Ensino Superior presente na
proposta do PIMESP. O programa, estabelecido em 2010, vigora até os dias de hoje,
mostrando uma aceitação por parte dos docentes desse tipo de política (o que talvez
justifique, em alguma medida, o “silêncio” dos docentes quando da realização da
consulta do PIMESP).
Mapear o “arquivo das políticas de inclusão” na UNICAMP sinalizou para a
necessidade de compreender o percurso histórico das políticas inclusivas nas outras
duas universidades estaduais e assim realizei o mesmo procedimento para UNESP e
USP.
A especificidade do processo na UNICAMP acabou por ter outra implicação: a
ampliação do recorte temporal. Apesar das idas e vindas em torno da definição de
“começo” e “fim”, cheguei à conclusão de que a construção de uma linha temporal
consistente com a tese defendida no presente trabalho teria de levar em conta tanto o
desdobramento do debate levantado com o PIMESP, que se estendeu até o ano de 2014
como também teríamos de voltar um pouco antes de 2012 se quisesse compreender se o
Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior público paulista foi um “ponto
fora da curva” ou se os pressupostos gerais que embasaram o desenho do referido
programa guardaria alguma conexão com outros “programas de inclusão” vigentes nas
universidades estaduais paulistas.
Nesse sentido, o material final com o qual trabalhamos na presente tese
compreende o período de 2004 a 2014. Em 2004 ocorreu a criação e instituição do
PAAIS, primeiro programa de ação afirmativa de uma universidade estadual no estado
São Paulo (e que acabou por influenciar a agenda política das outras duas universidades
em relação às políticas inclusivas). Os princípios que embasaram a sua criação estão
presentes nas justificativas que culminaram na rejeição do PIMESP entre 2013 e 2014.
Nesse sentido a ampliação do escopo temporal, mas sem perder de vista o foco no
debate gerado pelo PIMESP, mostrou-se uma estratégia muito potente para percebermos
a continuidade de certa narrativa que longe de encerrar-se ao contexto de avaliação do
39
Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior público paulista, estava inscrita
em uma produção ideológica com bagagem histórica, desvelando pontos vitais de
conexão entre a narrativa empregada pelos docentes nos anos de 2013 e 2014 e as ideias
que justificaram: a criação do PAAIS (2004), do INCLUSP (2006), do PROFIS (2010),
do PASUSP (2011) e a negação, por mais de uma década, no caso da UNESP, em
adotar qualquer programa afirmativo.
Acreditamos que a análise empreendida a partir do material gerado sinaliza que
o PIMESP e as linhas discursivas presentes no debate acerca daquele Programa não
pretende ser uma explicação para um momento isolado, mas uma interpretação que
busca inscrever a resistência da fração da classe média abastada e branca paulista em
um processo histórico de disputa por manutenção do seu espaço de reprodução e que
frente a pressão dos movimentos sociais entre os anos de 2004 e 2014, viu-se impelida a
assumir mais ativamente seu posicionamento de classe e raça frente aos avanços
inclusivos nas universidades públicas. Nesse sentido, acreditamos que a sistematização
do material de campo da presente pesquisa contribui para evidenciar as trincheiras da
luta antirracista nas universidades públicas atravessadas por relações de poder (baseadas
em classe e raça) que desembocam em (des) entendimentos sobre políticas de inclusão e
que longe de consolidadas, como nos mostrou o debate acerca do PIMESP, são objetos
de disputa que por sua vez desorganizam o ordenamento vigente das relações de classe e
raça no Brasil.
O conceito de classe média
De modo geral, a classe média agrupa todos os trabalhadores, assalariados ou
não que além de desempenharem algum trabalho indiretamente produtivo (isto é, não
gerador diretamente de mais-valia), se intitulam como trabalhadores não manuais, e
procuram distinguir-se, apresentando-se como superiores aos trabalhadores manuais na
estrutura de classes (SAES, 2005). Entretanto, no contexto da presente tese, é preciso
que estejamos atentos a complexidade de frações que compõem a classe média tendo
em conta que essa complexidade implicará em interesses e estratégias de disputas nem
sempre convergentes.
A análise das conexões entre a ideologia profissional e ideologia de classe no
debate em torno do PIMESP, nos permite considerar que certa fração da classe média,
40
branca, com renda mensal superior a 10 salários mínimos31 e que tem na universidade o
principal meio de reprodução da sua condição de classe, tem sido um dos principais
agentes políticos, exercendo um papel fundamental, no debate sobre a reserva de vagas
étnico-raciais nas universidades públicas paulistas.
Faz-se importante caracterizar essa fração da classe média porque reconhecemos
a existência de negros na classe média, compondo uma fração muito menos abastada e
historicamente minoritária no espaço da universidade pública e que se constituiu, em
nossa análise, como a principal força política opositora ao PIMESP e ao
conservadorismo da fração da classe média branca, foco do nosso estudo. E por que é
importante fazer essa distinção? Porque entendemos que a ideologia meritocrática será
mobilizada de modo diferenciado por aqueles dois grupos. Enquanto a classe média
branca tem correntemente mobilizado o conceito de meritocracia e enfatizado a questão
da pobreza em detrimento da discussão sobre desigualdades com base na raça, a classe
média negra ainda que não tenha rompido totalmente com a ideologia do mérito, tem
questionado a legitimidade desse valor em contextos onde o racismo e demais opressões
tem mantido disparidades brutais de representatividade, como é o caso do acesso às
universidades públicas.
As orientações e as práticas políticas dos setores médios brasileiros devem ser
entendidas como um fenômeno complexo, pautadas por um instrumental ideológico que
se articula a outros discursos. No conflito que envolve o processo de implementação das
Políticas de ação afirmativa nas universidades públicas do estado de São Paulo desde a
aprovação da lei federal de cotas, a fração da classe média branca abastada viu-se
impelida a fazer ajustes na defesa absoluta da ideologia meritocrática.
Primeiramente atrelando-a ao mito da democracia racial para contrapor-se a
qualquer tipo de política de discriminação positiva que pudesse desmascarar a falácia da
igualdade racial no Brasil. Em um segundo momento, frente as denúncias da existência
do racismo estrutural e a visibilidade da agenda do movimento negro no governo federal
no início dos anos 2000, as políticas de inclusão voltadas para egressos de escola
pública passaram a ser “consideradas” como as melhores ações possíveis por aquela
fração da classe média. “Ações de inclusão possíveis” muito menos pelo
31 Cálculo com base no salário de 2019 (R$998,00) e a média do salário inicial dos professores doutores
em início de carreira com regime de dedicação exclusiva nas três universidades estaduais paulistas. Fonte:
http://www.dgrh.unicamp.br/documentos/tabelas-de-vencimentos/magisterio-superior;
https://www.glassdoor.com.br/Pagamento-mensal/Universidade-Estadual-Paulista-UNESP-Professor-
Pagamento-mensal-E2482802_D_KO37,46.htm; http://www.usp.br/drh/wp-content/uploads/Tabela-
Vencimentos-Docentes-05-2019.pdf. Acesso em: 30 de janeiro de 2019.
41
reconhecimento de que sim, existem desigualdades sociais no Brasil que afetam o
acesso à universidade e muito mais como estratégia para impedir o avanço da
democratização do acesso para negros.
Os problemas relativos à definição mais precisa acerca dos sujeitos da minha
pesquisa levou-me por diversas vezes a confrontar-me com as tensões em torno do que
estou denominando fração de classe média alta e branca. Nesse sentido, essa seção
busca delimitar esse grupo e a categoria analítica de classe média, a fim de oferecer
elementos que possam qualificar e ao mesmo tempo justificar a minha escolha em
classificar os sujeitos da minha pesquisa como pertencentes à camada da classe média
branca abastada e que está ligada às universidades públicas. A fim de cumprir o objetivo
dessa seção, apresentarei uma breve incursão histórica sobre o conceito de classe média.
Os problemas em torno da definição precisa do que estamos chamando de classe
média adquiriram nos últimos tempos excepcional relevância e importância para o
marxismo, o que nos impulsiona a fazer uma tentativa de dar contornos mais precisos
em torno da definição dos sujeitos da presente tese, pois entendemos que, sem essa
tentativa, a proposta da presente investigação fica condicionada ao entendimento vago e
pouco preciso do que estamos chamando de classe média, podendo vir a comprometer a
base conceitual que sustenta a pesquisa. Nesse sentido, o presente tópico, longe de dar
por encerrado e resolvido os conflitos e disputas que atravessam a conceituação de
classe média, buscará apresentar as linhas gerais que acompanham o debate para que o
leitor possa compreender ao fim, os motivos que levaram a escolha pelo uso da
categoria classe média e no interior dela, fração de classe para analisar a resistência dos
docentes em torno das Políticas de ação afirmativa com recorte étnico-racial nas
universidades estaduais paulistas.
A teoria de classes e o conceito de classe média na perspectiva marxista
oferecem um grande contributo para pensar a organização social e econômica das
sociedades capitalistas. A partir das contribuições da perspectiva marxista, buscaremos
apresentar o conceito de classe média e fração de classe. Nesse sentido, é preciso que
façamos uma incursão bibliográfica para compreendermos os aspectos centrais à análise
dos setores, e médios e, principalmente, para que possamos situá-los no contexto do
conflito32 entre classes no Brasil.
32 Cabe assinalar a razão que motivou na presente pesquisa a utilização do termo conflito, em detrimento
do conceito de luta. Compactuando das hipóteses e achados de pesquisa de Boito Jr et al (2013),
entendemos que ocorre no Brasil um conflito de caráter distributivo, isto é, não existe no Brasil uma luta
42
O conceito de classe, no campo marxista, é derivado da compreensão de que no
modo de produção capitalista o poder advém do controle dos recursos materiais de
produção. Com isso, o conceito de classe assume uma estrutura pluridimensional na
perspectiva marxista, na medida em que a dimensão econômica (forças produtivas) e
política (relações de produção) se articulam na vinculação entre “mundo material e
política” (MIGUEL, 2012, p. 101).
Buscando fornecer ferramentas metodológicas e aportes teóricos válidos para
compreensão do desenvolvimento das forças produtivas no modo de produção
capitalista, vários estudos no campo não marxista e marxista buscaram compreender a
complexificação e diversificação dos grupos sociais, principalmente os grupos médios.
Os estudos de Mills (1951) e Lockwood (1962) impulsionaram estudiosos
marxistas a desenvolverem novas perspectivas sobre a classe média e que não se
restringisse à caracterização daquela classe pela busca por status como principal
elemento que definisse sua atuação. Em Poder político e classes sociais (1970), Nicos
Poulantzas complexifica a análise não apenas sobre a nova classe média, mas no modo
de analisar classes sociais, posicionando-as a partir das relações de produção sob o
ponto de vista da superestrutura ideológica e com foco na prática social daquela classe.
No sistema conceitual de Poulantzas (1970), há uma relação de
complementaridade entre os conceitos de “conjuntura” e “força social”, situados no
nível das práticas sociais, e o conceito de classe social localizado no nível do modo de
produção. Assim, é possível articular a relação entre o conceito de classe social - sem
que ele implique mecanicamente as práticas econômicas, políticas e ideológica
homogêneas de classe– e a delimitação das classes em uma determinada formação
social. Poulantzas procura sistematizar outros conceitos, como os de “frações de classe”,
“categoria social” e “camada social”, que assumem um papel de “conceitos auxiliares”
mais próximos das práticas sociais, cuja função é a de construir uma ponte entre estas e
o conceito de classe (GUTIERREZ, 2007).
Localizamos a presente tese no entendimento conferido por Poulantzas à
importância em compreender as práticas sociais na medida em que essas permitem que
analisemos a história não como processo linear, fadado a estar absolutamente
condicionado a uma estrutura fixa. A análise das práticas sociais nos permite visualizar
polarizada em decorrência de projetos antagônicos de organização social -capitalismo versus socialismo,
por exemplo, mas sim uma disputa pela distribuição de riquezas produzidas.
43
a história a partir de “possibilidades estruturais” – marcadas pela indeterminação da
conjuntura (POULANTZAS, 1977, p. 94).
Analisar de que forma a classe composta por assalariados não-manuais
mobilizam os interesses ideológicos (individualismo pequeno-burguês, a ideologia da
ascensão social, a meritocracia e o mito do Estado protetor) pode fornecer pistas que
indiquem o quanto as práticas sociais da fração da classe média abastada e branca nas
universidades estaduais, são informadas por aqueles valores e de que forma os mobiliza
em uma estrutura social racializada em contextos de conflito pelo controle do sistema
educacional. Nesse sentido, as contribuições dos sociólogos franceses Pierre Bourdieu e
Jean-Claude Passeron foram fundamentais para a produção marxista com a publicação
da obra A reprodução nos anos 70. A referida obra tornou-se fundamental para os
estudos marxistas no campo de análise dos processos educacionais no capitalismo por
apresentar teses consistentes sobre a ideologia docente.
Em síntese, Bourdieu & Passeron (1992) analisam como o sistema educacional,
dominado pelo que eles chamam de “fração intelectualizada da classe dominante” (e
que nós estamos entendendo que no caso brasileiro trata-se daquela fração da classe
média branca), orienta as práticas dentro do sistema educacional a partir de duas
funções: conduzir as classes dominadas a reconhecerem a cultura dominante como
única cultura legítima e ao mesmo tempo impedir que elas tenham acesso à referida
cultura. Os docentes participariam da dupla tarefa de desenvolver e legitimar a cultura
dominante e marginalizar culturalmente a classe pobre.
No Brasil, o conceito de classe média e a relação dessa classe com os processos
educacionais no sistema capitalista foram amplamente esmiuçados, e em nossa opinião,
complexificados, pelo estudioso Décio Saes (1975; 1985; 2005).
A partir das contribuições de Décio Saes (1977), estou a definir a classe média
como, antes de tudo, uma noção prática e que, portanto requer do (a) investigador (a) a
tarefa de evidenciar os contornos dessa classe a partir das suas práticas políticas. Além
disso, a classe média, diferentemente da pequena burguesia de camponeses e artesãos,
não pode ser caracterizada unicamente pelo nível econômico. Nesse sentido, é que
podemos afirmar que a classe média é antes de qualquer coisa uma noção “prática”:
“[...] Não se pode determinar, num plano puramente teórico, quem é a classe
média, e proceder desde logo a uma descrição exaustiva de todas as
categorias profissionais que a compõem, para depois se passar ao estudo da
prática política dessas categorias em diferentes sociedades capitalistas. Ao
contrário, é antes a análise das práticas políticas dos diferentes setores do
trabalho assalariado improdutivo numa sociedade capitalista determinada que
44
pode definir quais dentre eles se submetem à ideologia dominante na
“hierarquização do trabalho [...]” (idem, p. 99-100)
O pesquisador Décio Saes (1978), inspirado pelos trabalhos de Bourdieu e
Passeron (1970) sobre a ideologia meritocrática, refuta o conceito de nova pequena
burguesia, cunhado por Poulantzas (1974) para definir os trabalhadores não-manuais.
Diferentemente de Poulantzas, Saes entende que há uma unidade ideológica que é
própria dos assalariados não manuais e que os distanciaria da pequena burguesia, a
saber: a ideologia meritocrática. Essa impossibilidade, na concepção de Saes (idem), em
agrupar pequenos burgueses e assalariados não-manuais na mesma classe, provém para
o autor do fato de a classe média historicamente rejeitar o trabalho manual e isso
marcaria a sua singularidade ideológica diante da pequena burguesia tradicional.
Como salienta Saes (2005), sendo definida como a classe que desempenha
principalmente o trabalho não-manual (intelectual, mental), a classe média apenas
assume seus contornos enquanto classe por meio da partilha de entendimento da
atribuição que faz à educação escolar como condição fundamental da manutenção de
sua situação econômica e social (SAES, 2005).
A distinção entre trabalho manual e trabalho não-manual aparece para a classe
média como uma hierarquia baseada nos méritos pessoais. Nesse sentido, a ideologia da
meritocracia serve tanto para criar a falsa distinção entre trabalhadores manuais e não
manuais em relação à exploração da força de trabalho, como também para legitimar as
contradições no interior da sociedade capitalista, convergindo para a concepção liberal
de cidadania, onde as desigualdades sociais seriam resultantes de diferenças de
capacidades, talentos, dons, vontades, esforços dos indivíduos (SAES, 2005).
Analisando os desdobramentos da ideologia da classe média no contexto da
estrutura de classes no Brasil, Décio Saes entende que as práticas da classe média
brasileira são informadas pelo Mito da Escola Única (SAES, 2005). O referido Mito
consiste na defesa de que a existência de escolas públicas com qualidade no ensino
básico seria suficiente para resolver o problema da desigualdade, já que colocaria todos
nas mesmas condições para competir (inclusive por vagas nas universidades públicas).
Como aponta Saes (2005), é consenso em todas as classes a importância do acesso à
educação universal, no entanto tal consenso constitui-se como uma das maiores falácias
da sociedade capitalista e serve tão somente à reprodução da divisão de classes, onde a
classe média tem se servido das implicações desse mito e por isso, o reproduzido de
modo mais ativo.
45
O Mito da Escola Única é definido como mito na medida em que o cerne da sua
construção narrativa - reivindicação da escola pública – constrói uma narrativa
falseadora da realidade e a sua reprodução é sustentada pela classe média, pois
desemboca na valorização econômica e social dessa classe. Essa é a classe que se define
pelo desempenho no trabalho predominantemente não-manual ou intelectual e, portanto,
precisa difundir que o que determina o acesso desse grupo a postos de trabalho não-
manuais é unicamente a escolarização. Assim “[...] nessa perspectiva a classe média se
define como conjunto dos efeitos políticos reais produzidos sobre certos setores de
trabalho assalariado pela ideologia dominante, que apresenta a hierarquia do trabalho
de como expressão de uma pirâmide natural de dons e méritos [...]” (SAES, 1977, p.99).
Nesse sentido, é que entendemos que ao estarem no grupo historicamente
caracterizado por desempenhar atividades não-manuais e tendo na defesa da
meritocracia um dos principais norteadores da sua prática política, os docentes das
universidades estaduais públicas podem ser caracterizados como uma fração pertencente
à classe média.
Definido o que estamos chamando de classe média, é preciso circunscrever o
grupo ao qual analisaremos dentro daquela classe tendo em vista que é preciso
reconhecer a existência de grupos relativamente diversos e mesmo a existência de
divergências internas no interior da classe média branca (como por exemplo, grupos
mais identificados com o marxismo ou com a esquerda de modo geral). Nesse sentido,
nos limitaremos no presente estudo a analisar a prática política da fração da classe
média abastada e branca que tem na universidade seu espaço de reprodução e que
partilha com a classe média dois tipos de ideologias centrais (SAES, 2007, p. 109):
ideologia jurídica igualitária (princípio da cidadania) e a meritocracia (princípio da
competência).
Igualitarismo e meritocracia foram mobilizados pelos docentes das três
universidades não apenas para rejeitar o PIMESP (que previa pela primeira vez no
estado de São Paulo, a modalidade de reserva de vagas étnico-raciais ainda que de modo
abertamente racista), mas também para rejeitar a lei federal de cotas. Nesse ponto é
importante assinalar que assim como a meritocracia, o igualitarismo passa a ser
flexibilizado pela classe média branca para defender a manutenção dos programas
“inclusivos” (discriminando positivamente jovens advindos da escola pública) já
vigentes nas três universidades, evidenciando que a classe média ao mesmo tempo em
que mobilizava aqueles dois princípios para afastar a possibilidade de adoção de reserva
46
étnico-raciais, já vinha aceitando flexibilizá-los (frente a grande pressão dos
movimentos sociais) para contemplar jovens oriundos de escolas públicas em seus
programas “inclusivos”.
Ainda que julguemos adequado analisar o debate em torno do PIMESP a partir
da abordagem marxista de classe média, é preciso extrapolar essa chave analítica se
quisermos contemplar o antirracialismo (como negação da existência da racialização da
sociedade), que consideramos um desdobramento do igualitarismo e que ganha uma
dimensão inegável nos discursos dos docentes.
A fim de contextualizar a necessidade de ampliação do aparato marxista de
classe média, frente aos achados no material de campo acerca da negação da raça como
categoria que organiza as relações sociais no Brasil, vejamos o que disseram alguns
docentes na altura na qual o PIMESP foi apresentado:
“[o PIMESP] não reflete a experiência das ações afirmativas consolidadas nas
universidades federais [porém concluiu manifestando-se favoravelmente] ao
aprimoramento e extensão [do Inclusp e do Pasusp] ressaltando que os
critérios para ingresso no ensino superior devem ser embasados em mérito
acadêmico e não em qualquer critério que beneficie uma ou outra classe
étnica [sic]” (ESCOLA DE ENGENHARIA, 2013).
“[...] Uma questão que deve ser vista é como será identificada a raça do
candidato. A autodefinição leva a situações, que já foi comprovado, não ser
uma alternativa justa. 2) Por outro lado, dois candidatos de mesma escola,
comunidade e situação socioeconômica, sendo um de raça preto ou pardo ou
indígena e outro de outra raça (branco, amarelo ou outra). Da forma como
esta apresentado a proposta de inclusão não faz sentido, pois se está
promovendo a preferência do primeiro candidato mas a situação de exclusão
é a mesma para os dois candidatos. Isso será um racismo institucionalizado e
legalizado. Dessa maneira pergunto: É isso que queremos? Veja que o curso
preparatório como apresentado pelo PIMESP é importante e válido para o
nivelamento mas independente de raça. 3) Nas demais questões, há um
avanço das universidades paulistas sobre o assunto, conforme descreve o
colunista Gilberto Dimenstein no texto intitulado; A cota paulista é a mais
inteligente [...]" (Campus Experimental- Dracena/UNESP. Cf. SÃO PAULO,
2013a).
“[…] Autores não favoráveis às cotas raciais afirmam que a sua adoção nas
universidades públicas seria uma maneira de privilegiar uma determinada
raça, havendo uma distinção entre pessoas em razão da sua cor, o que violaria
o artigo 5º da Constituição Federal, ao afirmar que "Todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza [ ... ] ," (Brasil, 1988) Um outro
discurso que se coloca contra as cotas raciais é o de que essa política é uma
forma de privilégio, pois traria vantagens para um grupo em detrimento de
outro. Também afirmam que o sistema de cotas retira o mérito individual,
permitindo assim a inferiorização daqueles que dela se beneficiam pois
seriam tidos como menos capazes (RAISBERG & WATSON, 2010) […] A
questão da mestiçagem no Brasil, que impede uma definição exata de quem é
negro [sic] ou afrodescendente também é tomada como ponto de discussão
para os que são contrários às cotas. Por não existir um critério científico que
indique ou certifique quem é negro em nosso país, a cota poderia ser aplicada
a indivíduos que não se enquadrariam dentro dessa política. Nesse caso os
defensores das cotas raciais não consideram que essas situações seriam
47
suficientes para invalidar sua aplicação. Ainda, no Brasil, verifica-se que os
níveis de escolaridade se diferenciam entre os jovens que se autodeclararam
pertencentes à população branca ou não branca (ANDRADE, 2012) […]”
(UNICAMP, 2014)
Apesar de podermos reconhecer nos trechos acima a centralidade da ideologia
igualitarista e a meritocrática, a referência à raça não pode ser considerada como
residual na conformação da ideologia da classe média no contexto brasileiro. A
compreensão do funcionamento das sociedades capitalistas neoliberais, erigidas sobre a
ossatura social da escravidão negra, demanda análises que possam interconectar a
estrutura de classes e a estrutura racializada a fim de caracterizar a natureza das relações
entre essas estruturas. Gostaríamos de extrapolar a reflexão de Décio Saes (1975)
quanto à importância de atentarmos quanto às dinâmicas que influenciam as relações de
classe:
“[...] Se, nas sociedades modernas, uma situação de classe está sempre na
origem dos sistemas de estratificação social (no sentido de que a feição que
assume a hierarquia social numa sociedade determinada depende da maneira
pela qual aí nasceu e se desenvolveu um certo modo de produção,
necessariamente acompanhado de uma ossatura social específica), é
imperativo reconhecer que tais sistemas, uma vez criados, ganham
autonomia, deixando de ser meros epifenômenos; por um lado, adquirem
dinâmica própria com a criação de mecanismos de auto-sustentação e, por
outro, passam a influenciar as próprias relações entre as classes” (idem, p. 24)
Entendemos que nas sociedade modernas há uma situação de retroalimentação
entre a estrutura racial e a estrutura de classe em contextos onde a escravidão negra
existiu enquanto sistema de organização econômico e político. Se raça deixou de ser
definida em termos biológicos, a raça como classificação social ganhou novos contornos
no pós-holocausto e imprimiu uma dinâmica particular as relações de classe. Nesse
sentido, longe de serem residuais, há mecanismos que mantêm lógicas de
hierarquização informadas pela categoria política de raça funcionando de modo a
sustentar essa divisão no interior da dinâmica de classe.
Nesse sentido, retomando os discursos dos docentes anteriormente mencionados,
a tentativa de apagar a opressão com base em critérios de classificação racial, ao mesmo
tempo em que revela a vigência da lógica racial na estrutura de classes, também
informam como a fração da classe média branca abastada questiona a existência da raça
enquanto categoria política e como um problema das sociedades democráticas,
apagando as conexões entre racismo, liberalismo e colonialismo (HESSE, 2004;
SAYYID, 2003; ARAÚJO & MAESO, 2013). Mas essa postura antirracialista pautada
na ideia do racismo como excepcional, isto é, fora do horizonte político do mundo pós-
48
sistema colonial não é uma peculariadade da classe média brasileira, apesar de que
como veremos essa classe tem interesse e beneficia-se diretamente da reprodução desse
discurso. O antirracialismo é uma das ideias que funda o mundo moderno e a ideia de
modernidade, como nos explica Barnor Hesse (2004):
“[...] So how is the coloniality of racismo both continued and denied in
Western democracies? Firstly, following formal decolonisation, racial
relations of coloniality continued, though often signified in culturally
diferente ways and new political instances, and so thoroughly westernised as
to be considered unremarkable (e.g.: ideas os racial harmony or good and bad
race-relations, see Hesse, 2000). Secondly there was a socially develop
process f colonial displacement and denial (i.s.: colonialism is seen as
affecting the past not the present); marked unmistakably by ‘collective
amnesia about and systematic disavowal of empire (Hall, 2000), leaving the
culture of coloniality influential in social design (e.g.: immigation
regulations) but silenced in social representation. Thirdly [...] The European
nation became an imagined community with an ever presente nationalist
history and an ever distant colonial past” (idem, p. 144).
É preciso historicizar o racismo e situá-lo na emergência das sociedades
modernas e com elas a construção de uma narrativa eurocêntrica sobre o estado de
direito, os sistemas democráticos e sobre a própria imagem que o Ocidente criou sobre
si no período pós-independência das colônias nas Américas, no Caribe, nas Antilhas, na
Ásia e na África.
A presente tese dialoga também com os contributos dos estudos decoloniais33
que consideram que o fim do sistema colonial não implicou exatamente no fim de certa
lógica colonial que organiza ideologias, práticas e a estrutura da modernidade ocidental.
Modernidade construída a partir da colonização das Américas no século XV, entendida
como o projeto geo-político estruturado a partir da colonialidade de saber
(intelectualidade), poder (acesso a recursos) e ser (a constituição subjetiva) (QUIJANO,
1993), baseados nas concepções de raça e racismo como organizadores que estruturam
as relações de classe no mundo capitalista.
Refletir em torno do colonialismo, nessa perspectiva, é pensar para além de
“legados” de um passado distante, mas buscar compreender os mecanismos que
atualizam, no sistema capitalista, a inferiorização, a desumanização, a subalternização
de determinados grupos humanos. Desde início do século XX ‘inventariar’ esses
mecanismos tem sido objeto de reflexão de diversos pensadores sociais como W.E. B.
33 As publicações no Brasil acerca dos estudos pós coloniais ainda são tímidos mas para um panorama
geral e atualizado acerca desse assunto, sugerimos o livro Para alem do pos(-)colonial (2018), organizado
por Michel Cahen e Ruy Braga e que reúne uma série de textos acerca dos os dilemas dessa abordagem a
partir de uma perspectiva histórica ampla.
49
Du Bois (com o conceito de linha de cor) e Frantz Fanon (com o conceito de zona do ser
e zona do não ser), apenas para citar alguns autores fundacionais dessa abordagem que
articula colonialismo, capitalismo e racismo. Na esteira desses pensadores, seguem as
contribuições de Immanuel Wallerstein (sistema-mundo e a crítica à crença nas
unidades territoriais), de Rodolfo Kusch (filosofia do pensamento coletivo), de Enrique
Dussel (transmodernidade e pluriversalismo transmoderno), de Lyotar (pós-
modernidade), de Sylvia Wynter (ethnoclass), de Walter Mignolo (mundo
moderno/colonial), de Ramon Grosfoguel (diversalidade anticapitalista descolonial
universal radical), Nelson Maldonado-Torres (linha ontológica moderno-colonial),
Boaventura de Souza Santos (linha abissal) e Catherine Walsh (pedagogia decolonial),
para referir alguns.
Para aqueles autores a colonialidade é uma nova configuração constitutiva das
democracias liberais e que organiza as relações de poder-saber-ser, tendo na
classificação racial um dos elementos que hierarquizam o mundo moderno, entretanto,
diferentemente do período colonial, abertamente racialista e racista, o mundo pós-
colonial mantém a dominação econômica-política-ocidental tendo a Europa como
referência e o “esquecimento da colonialidade” (MALDONADO-TORRES, 2004)
como mecanismo que ao mesmo tempo em que abertamente nega a racialização do
mundo moderno, assegura a continuidade de mecanismos de opressão informado por
uma lógica de hierarquização com base em raça.
Reconhecemos os limites da abordagem34 mas entendemos que as reflexões
geradas a partir dela podem gerar insumos para refletirmos acerca da relação entre a
formação da ideologia meritocrática e o imaginário das relações raciais no Brasil.
A negação pelos docentes da existência de desigualdades a partir de categorias
raciais, portanto, deve ser entendida como recurso que funciona: a) de modo a definir
qual seria o ‘verdadeiro’ problema de acesso ao ensino superior público (que não passa
34 Na América Latina, a perspectiva decolonial tem sofrido algumas críticas como: as tendências
culturalistas, a falta de mais estudos de casos que permitam afirmar categoricamente que raça é
estruturante logo no aparecimento do capitalismo como sistema-mundo, foco excessivo na crítica
epistemológica deixando escapar a força de uma crítica mais concisa das relações de poder,
essencialização de alternativas frente ao sistema-mundo (Cahen & Braga, 2018). Algumas dessas
críticas, em nosso entendimento, são frutos do modo hegemônico de conceber o sistema capitalista,
Estado-nação e o próprio entendimento de raça e racismo, mas gostaríamos de destacar a crítica quanto à
falta de estudos suficientes que forneçam subsídios que embasem como raça foi e segue sendo
estruturante do capitalismo mesmo em países fora das Américas. Há uma série de estudos, inclusive fora
da América e do Caribe, que tem informado acerca de que como raça estruturou e estrutura as relações
como: Van Dijk 1993; Sayyid, 2004; Goldberg 2009; Vale de Almeida, 2006; Araújo, 2013; Araújo &
Maeso, 2016; Maeso 2016; 2018.
50
pelo racismo) e, b) como justificativa para definir os objetivos das políticas de inclusão
(incluir pobres e egressos de ensino público). Mas como os docentes dissimulam para si
e para os outros o racismo estrutural que condiciona suas práticas? Ou nas palavras de
Saes (2007): “[...] Que ideologia se desenvolve no seio da categoria docente em função
da necessidade objetiva de os professores ocultarem deles próprios e da sociedade a
verdadeira natureza de sua tarefa pedagógica- a saber, a de legitimar a cultura
dominante e marginalizar [desumanizar] as demais culturas” (idem, p. 109)? Deixemos
que os próprios docentes respondam:
“[Tadeu Jorge, à época vice-reitor e coordenador do Grupo de Trabalho
encarregado de elaborar a proposta do PAAIS comenta que] Desde o início,
porém, ficou claro que o sistema de cotas, baseado na simples reserva de
vagas por algum critério, não atendia a alguns princípios importantes da
Universidade e o que mais incomodava era a possibilidade de perder
qualidade na seleção dos alunos […]. A proposta apresentada [PAAIS], base
para a decisão do Consu, permite resultados concretos e significativos de
inclusão, preservando o valor acadêmico e demonstrando na prática, mais
uma vez, o exercício da autonomia universitária […]” (cf. LEVY, 2004).
“[…] A política de cotas proposta é discriminatória, segregatória e de forma
muito sutil produz um mecanismo indolente em seus receptores, com a
crença de que “eu mereço” [...]. Isso é histórico como estratégia política de
manobra de massas e o que é surpreendente é que a Universidade agora é o
palco da validação dessas estratégias, o que fere sua autonomia e potencial de
regulação política” (Cf. SÃO PAULO, 2013a).
Ainda que, como veremos no capítulo 3, a autonomia universitária tenha sido
um importante instrumento legal utilizado para questionar a legitimidade da proposta do
PIMESP e que resultou em sua rejeição, afastando a instituição de uma política que
fazia uso aberto da discriminação negativa, a autonomia universitária será um princípio
constantemente reivindicado no debate realizado nas estaduais paulistas em torno das
Políticas de ação afirmativa com a possibilidade de instituição da reserva de cotas
étnico-raciais que acabará por converter-se em um mecanismo- em nossa leitura,
tomado de modo autoritário- para regular o acesso às universidades públicas paulistas
pelos docentes.
Em nosso entendimento, além de converter-se em mecanismo que assegura a
manutenção do lugar da fração da classe média abastada e branca, permitindo sua
reprodução na hierarquia do trabalho, a reivindicação da autonomia para barrar políticas
de acesso aos negros e indígenas, evidencia como o funciona o racismo institucional.
Sendo assim, é preciso qualificar o discurso da autonomia universitária e complexificá-
lo frente à estrutura racializada para que consigamos captar os usos e os sentidos
51
atribuídos aquele mecanismo nos discursos dos docentes nas três universidades e a
relação da reivindicação da autonomia e a reprodução do racimo.
Compartilhando do entendimento de Poulantzas (1977) quanto à importância de
diferenciar estruturas de práticas, o emprego do termo racismo institucional longe de
referir à presença ou ausência do racismo em determinadas instituições, é antes um
conceito para evidenciar à estrutura colonial que suporta a expansão européia (TURE &
HAMILTON, 1992 [1967]) e a partir da qual o mundo moderno se erigiu. Nesse
sentido, o igualitarismo e a meritocracia, como elementos fundamentais da ideologia da
classe média são informados, em nossa leitura, pelas estruturas sedimentadas pelo
racismo institucional. Em face da necessidade de caracterizar melhor o que entendemos
na presente tese como racismo institucional para evitarmos qualquer confusão entre
instituições, estruturas ou classes sociais passemos a um resgaste35 das contribuições da
definição de racismo institucional definido por Kawme Ture [Stokely Carmichael]36 na
década de 60.
O conceito de Racismo Institucional a partir da contribuição do pensamento
negro
A presente subseção é uma tentativa de retomar os contributos dos pensadores
negros estadunidenses Kawme Ture e Charles Hamilton no entendimento das relações
raciais no capitalismo no que concerne a contribuição daqueles em trazer à tona a
impossibilidade real de desvinculação das relações de classes das relações raciais. Nesse
sentido, partilhamos com os referidos pensadores que a luta racial não pode ser
desvinculada da luta de classe, dado ser formas do mesmo processo social de
classificação e separação dos seres humanos na organização capitalista.
A presente seção buscará circunscrever as diferenças entre as concepções de
racismo individual e institucional e as implicações dessas abordagens no enfrentamento
do racismo. No que tange “as soluções para o problema do negro”, buscaremos também
definir de que forma a negação do racismo institucional pela fração da classe média alta
branca tem como uma de suas principais implicações a concepção de políticas
35 Agradeço as reflexões suscitadas pela investigadora Marta Araújo no Curso de Formação Avançada
Repensar a legislação e as políticas públicas através do (anti)racismo realizado pelo Centro de Estudos
Sociais em Lisboa no ano de 2018. Na ocasião, a referida investigadora chamava atenção para a
importância de resgatarmos as propostas originais de Kwame Ture & Charles Hamilton sobre o termo
racismo institucional. 36 Mudou-se definitivamente para Guiné em 1978 e trocou seu nome- Stokely, para Kwame Ture, em
homenagem aos líderes africanos Kwame Nkrumah e Touré.
52
integracionistas, como o PIMESP que acabam por esvaziar o conteúdo original
(reformador) das políticas afirmativas em prol de políticas que acabam por recolocar os
sujeitos beneficiários das referidas políticas como “pessoas-problema” (WEST, 1994, p.
18).
Válido ainda um adendo em relação ao que estamos chamando de “esvaziamento
do conteúdo reformador das políticas inclusivas”. Com isso queremos dizer que mesmo
situadas no âmbito de melhorias dos mecanismos de efetivação do direito burguês, as
políticas afirmativas oferecem a possibilidade de debatermos sobre práticas (como a
existência dos exames de seleção, a problematização dos currículos eurocentrados nas
universidades) e ideologias (como a flexibilização da meritocracia) que sustentam o
racismo institucional.
O racismo institucional como conceito analítico foi originalmente desenvolvido
no livro Black Power: the politics of liberation in America de autoria dos então ativistas
do Partido Panteras Negras Kawme Ture e Charles V. Hamilton, em 1967, apesar de ter
ganhado alguma notoriedade nos estudos sociológicos com a obra Internal Colonialism
and Ghetto Revolt37 (1969) de Robert Blauner.
O racismo institucional, segundo aquele entendimento, opera a partir de
mecanismos rotineiros, assegurando a dominação e a inferiorização do negro sem
explicitação ou publicização, pelo contrário, o racismo institucional opera de modo
velado e se origina na operação de forças estabelecidas e respeitadas na sociedade (indo
no sentido contrário do entendimento hegemônico do racismo como aberração ou
residual) e, portanto, recebe muito menos condenação pública do que o racismo
individual:
“[...] Não existe “Dillema Americano” porque os negros deste país formam
uma colônia, e não é do interesse do poder colonial libertá-los. Os negros são
cidadãos legais dos Estados Unidos, com a maior parte dos direitos legais dos
outros cidadãos. No entanto, eles permanecem como sujeitos coloniais em
relação à sociedade branca. Assim, o racismo institucional tem outro nome:
colonialismo. Obviamente, a analogia não é perfeita. Normalmente associa-se
uma colônia com uma terra e pessoas submetidas e fisicamente separadas, a
37Sobre a influência do conceito de racismo institucional de Ture e Hamilton em suas sanálises, Blauner
escreve uma nota no referido artigo: “This is a revised version of a paper delivered at the University of
California Centennial Program, "Studies in Violence," Los Angeles, June 1, 1968. For criticisms and
ideas that have improved an earlier draft, I am indebted to Robert Wood, Lincoln Bergman, and Gary
Marx. As a good colonialist I have probably restated (read: stolen) more ideas from the writings of
Kenneth Clark, Stokely Carmichael, Frantz Fanon, and especially such contributors to the Black Panther
Party (Oakland) news- paper as Huey Newton, Bobby Seale, El- dridge Cleaver, and Kathleen Cleaver
than I have appropriately credited or generated myself. In self-defense I should state that I began working
somewhat independently on a colonial analysis of American race relations in the fall of 1965; see my
“White wash Over Watts”: The failure of the McCone Report”, Transáction, 3 (March-April, 1966), pp.
3-9, 54.” (BLAUNER, 1969, p. 393).
53
“pátria mãe”. Este não é sempre o caso, no entanto; na África do Sul e na
Rodésia, negros e brancos habitam a mesma terra - com negros subordinados
aos brancos, assim como nas colônias inglesas, francesas, italianas,
portuguesas e espanholas. É a relação objetiva que conta, não retórica (como
constituições que articulam direitos iguais) ou geografia38” (TURE &
HAMILTON, 1992, p. 5-6).
A referência ao “dilema americano” é uma alusão crítica à obra “An American
dilemma" (1944) de Gunnar Myrdal. A obra é considerada um marco porque
institucionalizou certa narrativa acerca do “problema do negro”. Produzido no entre-
guerras, no livro o autor coloca um ponto de inflexão no imaginário racial-feliz dos
brancos nos Estados Unidos que se viam aterrorizados com o crescente poder dos
movimentos antirracistas e anticoloniais. O autor define o racismo como um dilema
moral resultante das crenças residuais como a cristã, onde o negro é visto como
problema que precisa integrar-se. Essa obra é um divisor de águas na produção das
ciências sociais sobre a situação do negro porque insere uma narrativa histórico-política
nas Américas, que aparta raça e racismo do liberalismo e democracia e torna o racismo
algo esdrúxulo e desconectado com aquelas formas econômicas e políticas.
A obra “An American dilemma" (1944) contribuiu para a disseminação da
narrativa acerca do racismo conectado à idéias pseudociêntificas e como problema
moral e individual, isto é, como um problema de atitudes e crenças raciais de alguns
indivíduos, onde sua solução residiria na reforma moral de patologias dos “indivíduos
racistas”, omitindo os condicionantes sociais que o produzem (ARAÚJO & MAESO,
2016). Nossa preocupação reside em compreender as implicações da abordagem moral
do racismo na elaboração de políticas públicas, como no caso da educação e mais
específico das políticas de inclusão propostas pelas universidades estaduais paulistas
entre 2004 e 2014.
Ao focar em atitudes, e não como algo instituído nas práticas e no
funcionamento ordinário das instituições, a análise presente na obra “An American
dilemma" limitou-se a pensar em soluções para o racismo em torno da concepção de
38 Versão original: “There is no “American Dillema” because black people in this country form a colony,
and it is not in the interest of the colonial power to liberate them. Black people are legal citizens of the
United States with, for the most part, the same legal rights as other citizens. Yet they stand as colonial
subjects in relation to the White society. Thus institutional racism has another name: colonialismo.
Obviously, the analogy is not perfect. One normally associates a colony with a land and people subjected
to, and physically separated form, the “Mother Country”. This is not Always the case, however; in South
Africa and Rhodesia, black and White inhabit the same land- with blacks subordinated to whites just as in
the English, French, Italian, portuguese and Spanish colonies. It is the objective relationship which
counts, not rethoric (such as constituitions articulating equal rights) or geography” (p.5-6).
54
integração (leia-se assimilação) dos negros, reproduzindo idéias como despreparo,
adaptação, deficiência:
“[…] privilegia-se uma concepção do racismo […] como a derivação de
uma deficiente integração das comunidades imigrantes e das minorias
étnicas. O seu próprio âmbito de atuação pode ser visto como uma espécie
de movimento pendular entre a necessidade do conhecimento do “Outro” da
parte da sociedade maioritária e de favorecer uma ativa integração na
sociedade “autóctone”, principalmente na esfera económica e na cultural.
Neste quadro, uma abordagem antirracista não é considerada prioritária. É a
integração bem-sucedida (geralmente lida como assimilação) das
comunidades imigrantes e das minorias – consideradas mais vulneráveis
perante a discriminação racial– que é tida como o antídoto natural contra o
racismo […] Neste quadro, o racismo acaba por ser naturalizado como uma
reação à diferença […] e como uma consequência da ignorância de certos
grupos sociais” (ARAÚJO & MAESO, 2013, p. 152).
O racismo acaba por ser entendido como sendo um problema de correção ou
melhoramento de mecanismos para capacitar os inaptos, deslocada das relações de
poder que o instituíram historicamente e na qual se sustenta atualmente. E quais são as
implicações desse tipo de entendimento? São vários, mas gostaríamos de destacar dois
relativos ao espaço da universidade brasileira. Se o racismo não é concebido como
vigente, institucional e ordenador da hierarquização das classes no capitalismo ao invés
de repensarmos as formas de acesso ao ensino superior, por exemplo, oferecemos
formação técnica para os negros (mantendo-os fora da universidade), no lugar de
políticas de permanência para estudantes cotistas nas universidades, oferecemos uma
política rigorosa de avaliação de suas notas ao longo do curso. Como apontou
Hasenbalg (1996) "a legitimação e mesmo a cooptação (por parte do Estado) da cultura
negra e seus símbolos não é acompanhada de uma mudança significativa na posição
relativa dos segmentos negro e mestiço da população na estrutura social do Brasil"
(idem, p. 243).
O racismo institucional desconstrói a narrativa hegemônica da incompatibilidade
entre democracia e racismo e nesse sentido, empregar o referido conceito na presente
tese evidencia os contornos da democracia e do direito burguês inseridos em uma ordem
na qual raça continua informando sobre posições de poder, dominação e exploração. A
narrativa do racismo como aberração, impossível de existir no interior das instituições
cidadãs e fora das práticas republicano-democráticas, invisibiliza a conformação entre
raça e classe como força motriz que sustenta a organização social no sistema capitalista.
Racismo como prática cotidiana velada vigente nas instituições, nos permite
compreender a longevidade e as características estruturais do racismo moderno,
ocidental, capitalista e democrático. No tocante à “construção de um passado místico”
55
que aparta capitalismo, escravidão e racismo, Frank Füredi (1992) analisando os
discursos nos meios políticos e acadêmicos na Alemanha, Japão, EUA e Reino Unido
na primeira metade do século XX acerca das responsabilidades pelos crimes militares e
coloniais, conclui que aqueles países passavam por uma crise ideológica e política que
reorientaria os rumos da agenda racial no mundo moderno (idem, p. 22).
O resultado dessa reorientação é a criação da engrenagem que converteria o
antirracismo em antirracialismo (GOLDBERG, 2008; ARAÚJO & MAESO, 2013),
estabelecendo as bases de funcionamento do “Estado racial” (GOLDBERG, 2002) e
das novas lógicas implícitas do “colorblind” ou como nomeou o próprio historiador
David Theo Goldberg (2002; 2008), racismo sem raça (raceless racism):
“Expressly committed to race-blindness, that is, to a standard of justice
protective of individual rights and not group results, raceless racism
informally identifies racial groups so long as the recognition in question is no
longer state formulated or fashioned. The possibility of racelessness publicly,
and by extension of racial reference privately trades exactly on na implicit
and informal invocation of the sorts of massaged historical referents now
denied in the public sphere. This in turn makes possible the devaluation of
any individuals considered not white, or white-like, the trashing or trampling
of their rights and possibilities, for the sake of preserving the right to private
‘rational discrimination’ of whites” (2002, p. 228).
O “racismo sem raça” dá condições para a reprodução da “presença-ausência do
racial” (APPLE, 1999), construindo as lógicas, subjetividades e políticas na
modernidade. E o que exatamente significa essa nova forma de inscrever o racimo nas
sociedades modernas? Como chama atenção Michel Apple (1999):
“[…] Further, racial dynamics can operate in subtle and powerful ways even
when they are not overtly on the minds of the actors involved. We can make
a distinction between intentional and functional explanations here. Intentional
explanations are those self-conscious aims that guide our policies and
practices. Functional explanations, on the other hand, are concerned with the
latent effects of policies and practices […]In my mind, the latter are more
powerful than the former” (idem, p. 10).
Nesse sentido o conceito de racismo institucional definido por Kwame Ture e
Charles V. Hamilton confronta o discurso moderno da presença-ausência da raça e
racismo, assim como põe em evidência os efeitos desse entendimento na reprodução do
racismo cotidiano.
O racismo institucional atua social, politica e economicamente, reproduzindo a
estrutura de classes e opera por meio de mecanismos que garantem a manutenção da
divisão do poder, naturalizando ao mesmo tempo em que justifica a hierarquia racial,
impondo limites aos horizontes de democratização das instituições, que reproduzindo o
poder branco:
56
“[...] É por isso que a sociedade não faz nada de significativo sobre o racismo
institucional: porque a comunidade negra foi criada e dominada por uma
combinação de forças opressoras e interesses especiais na comunidade
branca. Os grupos que têm acesso aos recursos necessários e a capacidade de
efetuar mudanças beneficiam-se política e economicamente do status
subordinado continuado da comunidade negra39” (TURE & HAMILTON,
1992, p.22)
Kwame Ture e Charles V. Hamilton inauguram uma perspectiva radical acerca
do racismo, se quisermos compreender como o racismo faz parte do funcionamento
ordinário das instituições, das sociedades pós-coloniais, e conforma as relações entre
classes de modo a manter a dinâmica que reproduz práticas-silenciosas- que oferecem
aos negros o status de subcidadania. Nesse sentido, Black Power expôs um princípio
primordial do funcionamento e dos efeitos do racismo nas sociedades pós-coloniais, a
saber, a sua essência dissimulatória:
“[...] em face de tais realidades, torna-se absurdo condenar as pessoas ‘por
não mostrarem mais iniciativa’. Os negros não estão deprimidos por causa de
algum defeito em seu caráter. A estrutura de poder colonial prendeu uma bota
de opressão no pescoço dos negros e, ironicamente, disse "eles não estão
prontos para a liberdade". Deixados unicamente para a boa vontade do
opressor, os oprimidos nunca estariam prontos. A operação do colonialismo
político e econômico nesse país teve repercussões sociais que remontam à
escravidão, mas não terminaram com a Proclamação da Emancipação. Talvez
o resultado mais cruel do colonialismo - na África e neste país - tenha sido
que, intencionalmente, maliciosamente e com abandono imprudente, relegou
o homem negro a um status subordinado e inferior na sociedade40”(p. 23).
Os autores trazem para o centro do debate o paradoxo a ser enfrentado pelo
movimento negro no contexto da gramática de direitos humanos no sistema capitalista e
mais especificamente no que tange o direito à educação. Se de um lado, o fim da
escravidão e a instituição do regime democrático de direitos legitimam as demandas por
reformas no acesso aos serviços que de fato atendam à população negra, como é o caso
39 Na versão original: This is why the society does nothing meaningful about institutional racism:
because the black community has been the creation of, and dominated by, a combination of oppressive
forces and special interests in the White community. The groups which have access to the necessary
resources and the ability to effect change benefit politically and economically from the continued
subordinate status of the black community” (p. 22).
40Na versão original: “[...] in the face of such realities, it becomes ludicrous to condemn black people for
‘not showing more initiative’. Black people are not in a depressed condition because of some defect in
their character. The colonial power structure clamped a boot of oppression on the neck of the black
people and then, ironically, said ‘they are not ready for freedom’. Left solely to the good will of the
oppressor, the oppressed would never be ready. The operation of political and economic colonialism in
this country has had social repercussions which date back to slavery but did not by any means end with
the Emancipation Proclamation. Perhaps the most vicious result of colonialism- in Africa and this
country- was that it purposefully, maliciously and with reckless abandon relegated the black man to a
subordinated, inferior status in the society.” (p. 23)
57
da educação pública, por outro, essas demandas esbarram na resistência conservadora
das classes dominantes e médias brancas que se organizaram para frear a potencialidade
democratizante e contestatória daquelas reivindicações. Nesse contexto de embates e
disputas, temos visto consolidar-se, principalmente, a partir da metade do século XX,
uma agenda política internacional pautada em “soluções integracionistas” para o
“problema das minorias” (MAESO & CAVIA, 2014). E nesse sentido, gostaríamos de
explorar a gramática integracionista, expressa na disseminação do discurso da inclusão
da diversidade desejável, onde, em nossa leitura, situamos o PIMESP e as políticas de
inclusão existentes nas universidades paulistas entre 2004 e 2014.
A discussão sobre racismo tem sido incorporada como uma luta pela integração
das “minorias étnicas”, sendo essas tratadas como objetos que se há de intervir. Nesse
sentido, os esforços do Estado, legitimados pelos intelectuais “pensadores de políticas
públicas”, a partir dos anos de 1940 têm sido direcionados para: 1) o esforço de
apagamento da terminologia ligada à raça (FÜREDI, 1992; GOLDEBERG, 2009) e sua
substituição pela gramática da etnicidade e cultura, evadindo-se do debate sobre racismo
(ARAÚJO & MAESO, 2013); 2) a negação do racismo como lógica que continua a
orientar a organização das vantagens e desigualdades na sociedade de classes
(HASENBALG, 1977); 3) para a tentativa de erodir as conexões históricas entre
escravidão, colonialismo e capitalismo (GORENDER, 1990; MOURA, 1992, 1994;
WEST, 1994) e; 4) a construção de políticas que “incluam”, sem historicizar raça e
racismo e suas formas contemporâneas, silenciando o nexo entre colonialidade, racismo
e democracia e sem questionamento do poder branco (MAESO e CAVIA, 2014).
O escopo das políticas orientadas com objetivo da inclusão, fruto da reorientação
da agenda racial no século XX, ao mesmo tempo em que tem oferecido a possibilidade
real de democratização das instituições republicanas, tem também omitido o racismo
como atrelado a tecnologias de governança (HESSE, 2002). O processo de inclusão é
acompanhado pela institucionalização de tecnologias de fiscalização, vigilância e que
por isso mesmo a narrativa inclusiva, do ponto de vista da integração/assimilação é em
si reprodutora de distanciamentos entre uma suposta maioria- não marcada racialmente,
e uma minoria-racializada (MAESO e CAVIA, 2014).
O paradoxo enfrentado pelo movimento negro consiste justamente em lhe dar
com o paradigma da integração, reconhecendo a possibilidade de movimentá-lo para
exigir reformas (como é o caso das cotas étnico- raciais), mas ao mesmo tempo
reconhecendo que, em alguma medida, as políticas orientadas por esse paradigma
58
sedimentam o imaginário capitalista da “superação” do “problema do negro” via a
possibilidade de mobilidade social, negando qualquer hierarquia do trabalho com base
em classe e em raça ao mesmo em que disseminam o imaginário de sociedades
acolhedoras- baseadas em uma naturalização da ideia de sociedade branca
essencialmente democrática (HESSE, 2004).
A reordenação do debate acerca da (não) existência do racismo no século XX,
em nossa leitura, rechaça o negro-mercadoria, mas consolida o negro-problema, ou nas
palavras de Cornel West (1994), os negros são encarados como “pessoas-problema”:
“[…] Quase um século mais tarde, restringimos as discussões sobre a questão
racial nos Estados Unidos aos “problemas” que os negros representam para
os brancos, em vez de ponderar a respeito do que esse modo de ver os negros
revela sobre nós enquanto nação. Essa estrutura imobilizadora incentiva os
liberais a aliviar sua consciência culpada apoiando os fundos públicos
destinados aos “problemas”; porém, ao mesmo tempo, relutantes em dirigir
críticas fundamentadas aos negros, os liberais negam a eles a liberdade de
errar. Analogamente, os conservadores atribuem os “problemas” aos próprios
negros- e com isso tornam sua miséria social invisível ou indigna da atenção
pública. Em consequência, para os liberais, os negros devem ser “incluídos” e
“integrados” em “nossa” sociedade e cultura, ao passo que, para os
conservadores, eles devem ser “bem comportados” e “dignos de aceitação”
“por nosso” modo de vida. Em ambos os casos, não se percebe que a
presença e as dificuldades dos negros não são adições nem deserções na vida
norte-americana, e sim elementos constituintes dessa sociedade [grifo do
autor]” (idem, p. 18).
A partir dos anos de 1990, a narrativa da “inclusão das minorias” vem ganhando
força e relevância na agenda de diversos governos no Brasil 41, orientando diretivas,
legislações e políticas (incluindo as educacionais). Entretanto, como situar
analiticamente a emergência dessa narrativa, pretensamente democrática e horizontal
entre os povos, e a permanência do racismo institucional, evidente nas estatísticas sobre
as condições dos negros no Brasil?
Se por um lado, a demanda por inclusão é fruto da luta de diversos povos por
reconhecimento da sua humanidade e da sua cultura frente à colonialidade do poder, do
ser e do saber, por outro, a mudança (lenta, gradual e muitas vezes apenas retórica) de
postura de governos e frações da classe burguesa acerca da legitimidade daquela
demanda parece também estar relacionado aos:
“[…] desenhos globais de poder, capital e mercado [e nesse sentido há] usos
múltiplos da interculturalidade [nesse sentido é preciso] fazer a distinção
entre uma interculturalidade que é funcional ao sistema dominante, e [a
41 Em nosso entendimento o marco que sinaliza a inclusão desse tema na agenda dos governos foi à
assinatura do Decreto que cria o Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra
em 20 de novembro de 1995, seguido da realização do Seminário Internacional "Multiculturalismo e
Racismo: o papel da ação afirmativa nos estados democráticos contemporâneos" em julho de 1996.
59
interculturalidade] concebida como um projeto político, social, epistêmico e
ético de transformação e descolonialidade” (WALSH, 2012, p. 61).
Em nossa análise, e tentaremos explorar essa leitura no capítulo 3, a proposta do
PIMESP (e das políticas de inclusão implementadas até 2014 nas estaduais paulistas),
estão em estreito diálogo com a primeira concepção de interculturalidade que por sua
vez estaria, em nosso entendimento, em diálogo com uma concepção
integracionista/assimilacionista acerca das estratégias para o enfrentamento do racismo.
A ênfase no mercado (limitando a potencialidade reformista acerca do
significado de políticas inclusivas) parece ter informado, desde a sua institucionalização
na agenda do estado brasileiro, as bases que orientaram o debate sobre as políticas
“inclusivas” entre a alta classe média branca paulista ligada à universidade, desaguando
na oposição à reserva de vagas étnico-raciais no ensino superior e na elaboração de
políticas “inclusivas” voltadas, ora para a “preparação para o mercado de trabalho”
(como veremos, o caso do PIMESP e do PROFIS), ora para a “seleção de talentos”
conforme os discursos que culminaram na aprovação das cotas em 2017, mas já
presentes no período analisado na presente tese. Entretanto, essas linhas discursivas já
vinham sendo disseminadas pelas elites e fica evidente no pronunciamento do então
presidente da República, Fernando Henrique Cardoso na criação do Grupo de Trabalho
Interministerial para Valorização da População Negra em 20 de novembro de 1995:
“[...] Também sabemos, todos, que o caminho para, efetivamente, alargar-se
o caudal democrático passa pela igualdade de oportunidades [...] É preciso
dar oportunidades mais igualitárias aos mais pobres. A verdade é que entre
os mais pobres sempre estão as populações negras. [...] Acredito que
devamos discutir as várias fórmulas existentes para assegurar igualdade de
oportunidades. Existem experiências nos Estados Unidos - algumas delas
estão sendo revistas - que devem ser analisadas aqui [...] Os brasileiros, lá
fora, muitas vezes, dizem, afirmativamente, que nós somos de várias raças e
que nós temos orgulho disso. Isso é uma riqueza. Essa diversidade cultural,
essa diversidade racial, é hoje um patrimônio do Brasil [...] Deve ser uma
preocupação constante também a questão das empresas, tanto pelo estímulo
àqueles empresários com maior consciência democrática e, portanto, que se
esmeram para que não haja discriminação - nem de sexo, nem de raça na
escala salarial e na própria escala de ascensão profissional -, como pela
fiscalização mais efetiva para aqueles que não tendo essa compreensão, às
vezes até por inconsciência, praticam, ou deixam que se constituam, situações
que cristalizam desigualdades [..]” (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA,
199842, p. 1-3).
42 O referido documento é composto por vários pronunciamentos oficiais de Fernando Henrique Cardoso
entre os anos de 1995 e 1998. Gostaríamos, a título de ilustrar as conexões profundas entre paternalismo,
racismo e intelectualidade brasileira, de transcrever um trecho extraído de uma entrevista do então
presidente feita por Roberto Pompeu de Toledo e que consta no documento e que viria a compor o livro O
Presidente segundo o sociólogo (Companhia das Letras, 1998). Vejamos o trecho: “Entrevistador: Nunca
houve apartheid [no Brasil], mas há o elevador de serviço. Resposta [Fernando Henrique Cardozo] – É,
até hoje. Que não é só para os negros, é para branco também, da classe chamada inferior [...] E o pessoal
acha que é normal. É um absurdo [...] Acho isso muito chato, muito constrangedor. Na minha casa, dos
60
As políticas interculturais são apropriadas pelo capitalismo em sua fase
neoliberal a fim de neutralizar conflitos e disputas, domesticando as potencialidades de
políticas reformistas (como é o caso das políticas afirmativas), ao mesmo tempo em que
mantêm sua base de exploração e dominação sustentada na essencialização e
hierarquização entre os povos:
“[...] a nova lógica multicultural do capitalismo global, uma lógica que
reconhece a diferença, sustentando sua produção e administração dentro da
ordem nacional, neutralizando-a e esvaziando-o de seu significado efetivo, e
tornando-o funcional para este ordem e, ao mesmo tempo, a expansão do
neoliberalismo e os ditames do sistema-mundo. Nesse sentido, o
reconhecimento e respeito pela diversidade cultural tornam-se uma nova
estratégia de dominação, que visa não a criação sociedades mais eqüitativas e
igualitárias, mas ao controle de conflitos étnicos e a preservação da
estabilidade social, a fim de impulsionar os imperativos econômicos do
modelo (neoliberalizado) de acumulação capitalista, agora fazendo "incluir"
grupos historicamente excluídos dentro. [...] De fato, essa lógica tem suas
raízes no multiculturalismo (neoliberal) Americano como no [...]
"interculturalismo europeu". Enquanto o primeiro tem suas raízes na
democracia liberal e na liberdade de mercado - o que garante liberdade à
diferença - e aponta a tolerância da diferença mas também a sua
comercialização, o segundo aponta para um novo humanismo dos diversos:
humanizar o neoliberalismo e a globalização [...]”(WALSH, 2012, p. 64)
A perspectiva intercultural constituiu-se como agenda internacional no
capitalismo global e assume (com o papel decisivo de organismos internacionais como
UNESCO, FMI, CEPAL, BID) duas faces que dialogam entre si: de um lado, a
capitalização da “diversidade” e de outro, forja uma coesão social artificial a fim de
minimizar, quando não, silenciar os conflitos de classe e raça. E nesse contexto e
diferentemente da concepção moral do racismo (centrado nos indivíduos), a categoria
política de racismo institucional fornece possibilidades reais de compreender como
aquela agenda (e os conflitos e tensões que o perpassam) fomenta a reprodução do
racismo por meio de práticas e discursos. Assim, o racismo institucional transcende “o
meus avós e de meu pai, havia uma senhora, Alzira, filha de uma escrava de um bisavô meu, que era
muito próxima da família. Ela comia na mesa o que naquele tempo era absolutamente inaceitável. Hoje já
há muita gente que tem uma relação mais correta com as empregadas. Nossa relação é profundamente
hierárquica e, por isso informal – ‘Cada macaco no seu galho’. Quando os macacos saem do galho e
deixam de saber o seu lugar, as coisas complicam. É o que está acontecendo agora, o que é bom. Mas a
mentalidade da classe dominante no Brasil - e não só a tradicional, porque a nova incorpora esses valores
- não é democrática. É hipócrita. Até permite uma aparência de proximidade porque, na verdade, há uma
enorme distância” (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1998, p. 14). Adocicar as relações escravocratas
não é algo que seja novo entre os intelectuais, que o diga Gilberto Freyre, mas impressiona a naturalidade
com que um intelectual (que já foi presidente de uma das nações mais negras no mundo diaspórico)
equipara a inconformação dos negros frente à condição que lhes foi relegada à “macacos que saem do
galho”.
61
âmbito da ação individual” e está intimamente relacionado às dinâmicas de poder que
mantêm a ordem social (ALMEIDA, S., 2019).
A análise de Kawme Ture e Charles V. Hamilton em Black Power contribui para
situarmos o racismo numa perspectiva que está para além de julgamentos morais sobre
comportamento ditos racistas e o inseri no funcionamento das instituições e das práticas
cotidianas (ARAÚJO, 2018). Nesse sentido, como aponta ALMEIDA, S. (2019):
“[…] A desigualdade racial é uma característica da sociedade não apenas por
causa da ação isolada de grupos ou de indivíduos racistas, mas
fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas por
determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para
impor seus interesses políticos e econômicos” (idem, p. 40)
Nesse sentido é preciso inserir a ideologia meritocrática, a defesa do
igualitarismo (jurídico) e racismo que orienta prática da fração da classe média alta e
branca, docente nas estaduais de São Paulo, a partir do entendimento de que a estrutura
capitalista por meio de mecanismos que naturalizam as desigualdades e silenciam as
estruturas, mantém o racismo. Mas como se conforma essa estrutura a nível
internacional e quais seriam os desdobramentos para o contexto brasileiro? Qual a
relação entre o entendimento de raça e racismo que orienta a atuação dos estados, dos
organismos internacionais e a ideologia meritocrática no Brasil? Quais são as
implicações dessa conformação entre ideologia, práticas, classes e a formulação de
políticas públicas voltadas para enfrentamento da desigualdade racial no Brasil? No
próximo capítulo procuraremos situar essa discussão no contexto brasileiro.
62
CAPÍTULO 2: AS IMPLICAÇÕES TEÓRICAS E POLÍTICAS DA
COMPREENSÃO EUROCÊNTRICA DE RAÇA E RACISMO NO
CONTEXTO BRASILEIRO
O presente capítulo busca explorar os desdobramentos dos resultados do
“projeto Unesco de relações raciais” (MAIO, 1999) realizado no Brasil nos anos 50. O
primeiro objetivo é compreender como as concepções de raça, racismo e as soluções
hoje para o “problema do negro”, defendidas pela fração da classe média branca alta
ligada à universidade, possui uma significativa longevidade histórica e que buscaremos
demonstrar que suas bases interpretativas acerca do negro na sociedade brasileira foram
construídas a partir do projeto financiado pela Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) nos anos 50. O segundo objetivo é
compreender a força e continuidade daqueles conceitos e quais são as implicações no
contexto de enfrentamento ao racismo em três âmbitos: produção do pensamento social
brasileiro a partir das contribuições de intelectuais ligados à “escola sociológica
paulista”, atuação do sistema jurídico.
No presente capítulo nos propomos a retomar os resultados do estudo da
UNESCO porque entendemos que essa retomada permitirá perceber que ao definir a
população negra enquanto minoria e como um problema que precisa da
autorização/gestão do grupo “majoritário” para ser incluído em determinados espaços
(GOLDBERG, 1993; HESSE, 2004; ARAÚJO & MAESO, 2013), a fração da classe
média branca alta está reproduzindo certa narrativa que tem uma bagagem histórica e
que encontra no projeto UNESCO suas origens.
O presente capítulo pretende tornar explícito como o debate gerado pelo projeto
Unesco teve e tem implicações que vão desde a construção do pensamento social (nesse
caso, circunscrito à produção da escola sociológica paulista) sobre raça e racismo,
passando pelo direito e chegando a influenciar os próprios termos da luta antirracista.
Partimos da hipótese de que o racismo, enquanto estrutura de dominação, encontra na
fração da classe média branca alta ligada à universidade, um dos principais agentes
colaboradores na construção de determinada gramática racista que: minimiza os efeitos
do racismo sobre as relações sociais (ao mesmo tempo em que invisibiliza a existência
de privilégios), domestica a luta antirracista no campo jurídico e reproduz o aparato
epistemológico (ocidental, capitalista, racista) necessário a continuidade do mundo
63
capitalista racializado. Assim, buscaremos evidenciar como o projeto UNESCO lança as
bases da narrativa da integração (reproduzida pelos docentes paulistas) com a
contribuição decisiva da fração da classe média branca alta ligada ao aparelho
educacional.
O projeto UNESCO e a escola sociológica paulista
Entendemos que não há como proceder a uma análise acerca do debate em torno
das políticas de ação afirmativa com reserva de vagas étnico-raciais no ensino superior
estadual paulista sem situar historicamente os pressupostos nos quais a retórica política
para justificar a oposição à reserva de vagas está assentada por entendermos que as
justificativas que se encontram na base de argumentação dos opositores (pertencentes à
fração da classe média alta branca) às referidas políticas, possuem um acúmulo histórico
e que data desde os anos 50.
Interessa-nos compreender os desdobramentos de certa narrativa produzida pela
escola sociológica paulista acerca da presença do negro e do racismo no Brasil a partir
do Projeto UNESCO e a reprodução de ideias como despreparo, adaptação, deficiência
(paradigma integracionista) e a negação do racismo como elemento estruturante das
relações sociais no Brasil mesmo pós-abolição. Para tal, examinaremos nessa seção de
que forma a articulação ocorrida entre a UNESCO e a produção gerada pela escola
sociológica paulista a partir dos anos 50 não apenas consolidou a agenda das ciências
sociais no Brasil (MAIO, 1999; 2000), mas, em nossa concepção, as bases para o
entendimento das relações raciais e de soluções para o enfrentamento do racismo,
orientadas pelo paradigma da integração.
Antes de seguirmos com a análise a qual nos propomos, gostaríamos de
explicitar o que estamos chamando de escola sociológica paulista e o motivo dessa
escolha. A escolha pelo uso da nomenclatura “escola sociológica paulista” longe de
pretender abarcar toda a produção paulista da Escola Livre de Sociologia e Política
(fundada em 1933) e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
(criada em 1934) sobre a modernização brasileira e seus dilemas, nosso intuito é uma
tentativa de delimitar o escopo da análise aos intelectuais que contribuíram para a
consolidação da sociologia paulista e que tiveram, ao mesmo tempo, papéis de destaque
na pesquisa UNESCO. A delimitação tem como objetivo evitarmos generalizações
acerca do pensamento social brasileiro daquela época.
64
Em segundo lugar, reconhecemos que em nossa análise estamos
desconsiderando os intelectuais vinculados à Escola Livre de Sociologia e Política que
produziram as primeiras análises acerca do processo de modernização no Brasil,
contribuindo de forma crucial para institucionalização das ciências sociais brasileiras
(LIMONGI, 1989; MICELI, 1989; JACKSON, 2004, 2007). Entretanto, nos interessa as
produções analíticas resultantes do projeto UNESCO, a saber, Wagley et al (1952),
Azevedo (1953), Costa Pinto (1953), Bastide & Fernandes (1959 [1955]), Nogueira
(1955) e Ribeiro (1956). Circunscrito nosso recorte analítico, retornemos ao contexto do
projeto UNESCO no Brasil.
As lutas de libertação em África e o holocausto judeu imprimaram uma mudança
de perspectiva crucial acerca do lugar da raça nas sociedades modernas. A raça como
elemento organizador das sociedades ocidentais passa a ser negada, assim como a
hierarquização das nações a partir de critérios raciais. No lugar da narrativa aberta
acerca da hierarquia entre povos a partir da raça, assistimos ao processo de redefinição
do lugar da diversidade de culturas/etnias que passam a ser celebradas e aceitas, fruto
da instabilidade mundial gerada pelas guerras anticoloniais (FÜREDI, 1993).
Os debates acadêmicos não ficaram à margem dessa mudança e a partir da
primeira metade do século XX, as pesquisas voltaram-se, em sua maioria, para
desacreditar da existência da raça (em termos científicos) e reduzir o racismo ao campo
da atitude individual anacrônica (HESSE, 2004; GOLDBERG, 2009) forjando uma
cisão entre “formação do capitalismo e dos estados-nação do colonialismo e da ideia de
“Europa” (ARAÚJO & MAESO, 2013, p. 151).
A dissimulação do racismo via propagação do entendimento de que seria algo da
esfera de atitudes individuais (o indivíduo é racista e não a sociedade), anacrônico (o
racismo é incompatível com as democracias modernas) e derivante da ineficácia de
políticas integracionistas (basta que sejam implementadas políticas de inclusão eficazes,
sem o questionamento da constituição histórica das relações de poder que atravessam a
sociedade e as instituições) encontra suas raízes no contexto das guerras de libertação
nos países africanos e no período entre guerras.
As duas grandes guerras mundiais e a expansão dos movimentos anticoloniais
estremeceram as bases onde estavam assentadas as justificativas para a dominação, a
saber, na hierarquização das raças (FUREDI, 1998), colocando em suspensão a
65
“capacidade do homem branco de manter sua supremacia e […] um temor à vingança
dos outros colonizados” (MAESO & CAVIA, 2014, p. 156, tradução nossa).
O momento pós-Segunda Guerra será marcado pela criação da engrenagem que
contribuirá para consolidação da construção da narrativa do racismo como algo
excepcional – incompatível com os regimes democráticos. Diversos organismos (ex.:
ONU), muitos pactos e diretrizes internacionais assim como financiamentos de projetos
de investigação são então criados para garantir a manutenção da paz e supostamente
afastar qualquer possibilidade de reedição de um novo holocausto. Entretanto, como
analisou Füredi (1998), o que está por trás da criação daquela “maquinaria da paz” nada
mais é do que o estabelecimento do “protocolo silencioso” das relações raciais.
Tomando o holocausto judeu como referência e pressionados com o avanço da
descolonização nos países africanos, os países saídos vitoriosos da Segunda Guerra
Mundial levam a cabo uma tentativa de domesticação das relações raciais, disseminando
a narrativa de que os regimes ditos “totalitários” vividos em países como União
Soviética e Alemanha Nazista seriam antidemocráticos e, portanto, necessariamente
racistas já que o antirracismo, enquanto razão pública estaria apenas nas bases dos
sistemas ditos democráticos (FÜREDI, 1993; GOLDBERG, 1993; HESSE, 2004;
ARAÚJO & MAESO, 2013).
O debate acerca do entendimento do que é racismo, é tomado por uma ampla
gama de discursos acadêmicos e instituições internacionais que redimensionam o
racismo como uma dimensão exclusiva dos regimes fascista e nazista, e portanto como
aberrações antidemocráticas e antiliberais (GOLDBERG, 2009). A construção desse
mito lança as bases para criação do imaginário que aparta a origem do racismo nas
sociedades modernas do processo colonial. Como afirmou Wallerstein (2000):
“Por que foi, então, que toda a gente se sentiu tão abalada pelo nazismo, pelo
menos depois de 1945? A resposta salta à vista: por causa da Endlösung. Se
bem que até 1945 quase toda a gente no mundo pan-europeu fosse aberta e
alegremente racista e antissemita, a verdade é que quase ninguém desejava
que isso redundasse na Endlösung. A solução final de Hitler traduzia, de
facto, uma total incompreensão da razão de ser do racismo no contexto da
economia-mundo capitalista. O objectivo do racismo não consiste em excluir
pessoas, e muito menos em exterminá-las. O objectivo do racismo consiste
em manter as pessoas dentro do sistema, mas com o estatuto de
Untermenschen, seres inferiores passíveis de ser explorados economicamente
e usados como bodes- expiatórios políticos. O que aconteceu com o nazismo
foi aquilo a que os Franceses chamam uma dérapage- quer dizer, uma
asneira, um deslize, um descontrolo. Ou talvez fosse o génio que saiu da
lâmpada. […] Mas no plano colectivo, o mundo pan-europeu ia ter também
que enfrentar o problema do gênio que fugira da lâmpada. E fê-lo através de
um processo que passou pelo banimento do uso público do racismo […]”
(idem, p. 13).
66
Os esforços empreendidos resultaram na construção de um novo imaginário
forjado no e pelo Ocidente a fim de expressar a superação do racismo no mundo
moderno: o antirracialismo. O Antirracialismo rege práticas, discursos e políticas
públicas nas sociedades pós-segunda guerra e consiste na crítica ao racismo científico e
na desmobilização política do conceito de raça enquanto categoria social. O problema
dessa nova ideologia é que ela nega a permanência dos mecanismos que atualizam a
configuração racista nas sociedades democráticas (mesmo sem a existência do racismo
científico) e resume o antirracismo ao antirracialismo (GOLDBERG, 2009).
A nova gramática para narrar as relações raciais, forjada no pós-segunda guerra,
por um lado nega o racismo enquanto elemento estruturante das relações nas
democracias liberais capitalistas atuais- persistindo enquanto forma de dominação- e por
outro lado passa a fomentar a ideologia da crença nas instituições democráticas e em
particular na educação como redentora de qualquer resíduo de crenças individuais na
inferioridade de “outras raças” - não brancas. Em outras palavras, o racismo passa a ser
entendido como um problema moral e individual que residiria na mente das pessoas
(GOLDBERG, 1993, 2002; HESSE, 2004).
Um dos principais desdobramentos da crença no racismo como um problema de
cunho moral e incompatível com regimes democráticos foi a criação de organismos
internacionais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e
Cultura (UNESCO), criada em 1945 e cujo objetivo era “estabelecer a solidariedade
intelectual e moral da humanidade”, focada em, supostamente, combater por meio da
prevenção (leia-se educação) as razões que levaram o mundo a duas guerras mundiais.
No documento de sua criação, a Instituição assim circunscreve o objeto que será foco da
sua atuação:
“[…] desde que as guerras começam nas mentes dos homens, é nas mentes
dos homens que as defesas da paz devem ser construídas; que a ignorância
dos modos e vidas de cada um tem sido uma causa comum, ao longo da
história da humanidade, daquela desconfiança e desconfiança entre os povos
do mundo através dos quais suas diferenças muitas vezes entraram em
guerra” (Conferência para o estabelecimento da Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura 43. Cf. UNESCO, 1945).
43Importante pontuar que o texto e as propostas contidas no documento de fundação da UNESCO foram
sugeridos pelo Governo francês que à época tinha sob seu domínio mais de 20 colônias em diversas
partes do mundo (África, América, Caribe), o que para nós corrobora a tese de Furedi (1993) acerca do
“medo da vingança racial” via “erosão das certezas raciais” que sustentavam a dominação colonial.
67
Partindo da falácia de que o racismo é um problema das mentes dos indivíduos
ignorantes e de sociedade não democráticas, a UNESCO assim viria a definir a solução
para esse “dilema”:
“[…] Considerando que a guerra mundial […] tornou-se possível pelo
abandono das ideias democráticas e pela promulgação de doutrinas que […]
proclamavam a desigualdade das raças, e que se tornou dever das Nações
Unidas assegurar o triunfo em todo o mundo dos princípios de liberdade,
igualdade e fraternidade […]; Considerando que as relações entre os povos
têm sido constantemente envenenadas pelo preconceito e pela falta de
compreensão; e considerando que é necessário, através de um amplo
intercâmbio de pessoas e através da livre circulação de ideias [...];
Considerando que a dignidade do homem está inseparavelmente ligada ao
desenvolvimento da cultura e é impossível criar as condições para o
verdadeiro progresso sem elevar a humanidade a um padrão moral e
intelectual mais elevado” (UNESCO, 1945, p. 5, tradução nossa).
Se o problema está nas mentes das pessoas, é preciso, portanto mudar essas
mentes por meio da circulação de ideias originais que elevem os padrões morais dos
indivíduos e é nesse contexto que surge no fim dos anos 40 a proposta44 da UNESCO de
financiar estudos sobre as relações raciais no Brasil e entender como funcionava a-
internacionalmente famosa “democracia racial” a fim de que essa pudesse inspirar as
relações raciais harmoniosas no mundo pós-guerra.
O estudo financiado pela UNESCO sobre as relações raciais no Brasil45 em
1951 e 1952 marcará profundamente a ciência social brasileira que naquela altura estava
à procura de consolidar-se como ciência e como referência nacional no campo de
análises propositivas acerca dos dilemas colocados pela rápida urbanização e
44 Sobre a escolha do Brasil como “laboratório de civilização”, ver Maio (1999; 2000), mas, em síntese,
além da imagem internacional de país harmonioso, a existência de contato prévio com a UNESCO e
com as lideranças daquela instituição pode explicar a escolha. Alguns intelectuais que já tinham
realizado estudos no Brasil como: Ruy Coelho, ex-aluno de Roger Batisde e assistente de Alfred
Métraux, diretor do Setor de Relações Raciais do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO e
coordenador dos estudos no Brasil; Charles Wagley, antropólogo norte-americano e colaborador na
UNESCO; Otto Klineberg, um dos fundadores do departamento de psicologia da USP, muito
influenciado pelo antropólogo Franz Boas (que também foi professor do Gilberto Freyre) e que esteve
envolvido na busca por soluções para os conflitos raciais nos Estados Unidos tendo colaborado na
pesquisa An American Dilemma de Gunnar Myrdal; o sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto, um dos
participantes do debate sobre conceito de raça na UNESCO em 1950, e Roger Bastide que já conhecia
Alfred Métraux com quem partilhava ideias e projetos de investigação. Essa rede de contatos também
aponta como a circularidade das novas idéias acerca de raça e racismo facilmente chegou ao meio
intelectual brasileiro. 45 Acerca do tema há extensa produção, mas gostaríamos de destacar o contributo do pesquisador Marcos
Chor Maio (1996; 1997; 1998; 1999; 2000). Apesar de discordamos dos pressupostos- pouca
problematização acerca do projeto universalista da UNESCO- e das suas conclusões, principalmente no
que tange a pouca ênfase dada à relação entre raça, conhecimento e poder e os conflitos daí resultantes
(não é mera coincidência que o referido intelectual esteve presente na lista dos intelectuais que assinaram
as duas manifestações contrárias ao “Projeto de Lei das Cotas” nos anos de 2006 e 2008), seus estudos
contêm detalhes preciosos acerca do processo de construção e desenvolvimento da pesquisa UNESCO no
Brasil.
68
industrialização do País. Nesse contexto, o estudo realizado em São Paulo (mais
especificamente na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas com
significativa colaboração do curso de psicologia da USP) ganhou grande relevo não
apenas por ser liderado por intelectuais reconhecidos nacional e internacionalmente
como Roger Batisde e Florestan Fernandes, mas também porque São Paulo “era um
estado em rápido processo de industrialização e urbanização que estaria indicando sinais
claros de tensões raciais” (MAIO, 1999, p. 149).
O impacto do Projeto UNESCO para a institucionalização das ciências sociais
no Brasil é incontestável. Como afirmou o sociólogo Otavio Ianni, em 1966, sobre
estreita relação entre a consolidação do pensamento social brasileiro e os estudos
financiados pela UNESCO:
“[…] as iniciativas da UNESCO e outras instituições estrangeiras
colaboraram no desenvolvimento das investigações sobre o assunto. Note-se
que foram as preocupações humanitárias [grifo nosso] da Unesco que a
levaram a iniciar essas pesquisas, pois que se havia difundido também no
exterior que no Brasil reinava a ‘democracia biológica’. Recordemos,
entretanto, que, antes das iniciativas da Universidade de Chicago e da
UNESCO, já se realizavam no país investigações científicas a respeito das
relações raciais em geral, desde alguns aspectos da integração sócio-cultural
dos indígenas, ou as técnicas de infiltração social dos mulatos, até a análise
dos produtos marginais da assimilação dos alemães” (apud MAIO, 2000, p.
117)
É preciso ainda pontuar que falamos em consolidação e não fundação do
pensamento social brasileiro, pois como reconhece o próprio Ianni (idem), já existia
pesquisa no País focada em compreender as relações raciais, mas será a ênfase na
relação entre a condição do negro e o passado escravocrata e a preocupação em como
incluir “determinados segmentos sociais à modernidade” (MAIO, 1999, p. 142) que
distinguirá os achados do projeto UNESCO do que vinha sendo feito produzido pela
academia. E é no tocante a essa virada no modo de olhar para o “o problema do negro”
que gostaríamos de aprofundar dois pontos que consideramos cruciais para
compreensão da relação entre classe, raça, poder e conhecimento no Brasil.
O primeiro ponto diz respeito à grande influência do Projeto UNESCO na
concepção de raça e racismo na escola sociológica paulista, tenha sido para confirmar a
democracia racial (mesmo reconhecendo as desigualdades que assolavam o País) ou
para questionar a sua real existência, fato é que pela primeira vez se estava a realizar
pesquisas no Brasil tendo como foco a relação entre raça, modernidade e as dinâmicas
de poder no contexto brasileiro.
69
Em nosso entendimento, mesmo os estudos que viriam a ratificar a existência da
democracia racial, como Wagley et al (1952), Azevedo (1953) e Ribeiro (1956) com
base na evocação da idéia da miscigenação como valor intrínseco à sociedade brasileira
(e como possibilidade de ascensão dos negros) ou ainda da valorização da facilidade de
contato e mobilidade entre grupos raciais diversos, de modo geral os resultados dos
estudos revelaram as contradições, as ambiguadades e os conflitos da sociedade
brasileira em torno da sociedade multirracial de classes brasileira.46
Na linha de estudos que confirmavam a existência da democracia racial,
podemos situar as análises de Wagley et al no livro Race and classe in rural Brazil
(1952), para quem o “Brasil permaneceria como uma lição de democracia racial para o
resto do mundo” (Wagley et al, 1952, prefácio à segunda edição):
“[…] the highly personalized relations between people of different social
classes and different "social races" in north Brazil continue to be maintained,
while in the south life is more impersonal. But racial origin has not become a
serious point of conflict in Brazilian society. Brazilians can still call their
society a racial democracy [...] Brazil remains as a lesson in racial democracy
for the rest of the world […] Brazil indeed is a country of striking social
contrast […] Nor will Brazilian who are aware of the social in their country
that race prejudice is entirely lacking, or that a mild form of racial
discrimination exists and is growing in certain areas. There are well-known
stereotypes and attitudes, traditional in Brazil, which indicate dispraise of the
Negro and of mulatto […] Yet most Brazilians are proud of their tradition of
racial equality and of the racial heterogeneity of their people. They feel that
Brazil has a great advantage over most western nations in the essentially
peaceful relations which exist between the people of various racial groups in
their country. Industrial, technological and even educational backwardness
may be overcome more easily than in areas of the world where racial
cleavages divide the populations” (idem, p. 2-8).
Ao mesmo tempo em que reconhece que existem desigualdades raciais, o autor
recorre às “atitudes tradicionais” para explicar a existência do racismo, circunscrevendo
a situação de desigualdades no Brasil na abordagem do racismo individual que como já
discutimos não é suficiente para explicar a pertinência do racismo do ponto de vista
institucional. Além disso, a recorrência ao imaginário, quase ontológico, da sociedade
brasileira como necessariamente dada a coexistência pacífica de várias raças, evidencia
que os autores tomavam como referência o que seria racismo a partir das experiências
norte-americanas (NOGUEIRA, 1954) ao mesmo tempo em que evocavam o caráter
benéfico da miscigenação (GUIMARÃES, A.S.A., 1996) deixando escapar formas de
46 Terminologia empregada por Donald Pierson (1942) para evocar a harmonia das relações raciais no
Brasil.
70
racismo menos explícitas que aquelas observadas nos países de origem dos
investigadores (caso de Charles Wagley e Roger Batisde).
Em relação à segunda linha (questionamento da existência da democracia racial),
podemos situar as contribuições de Costa Pinto (1953), Bastide e Fernandes (1955) e
Nogueira (1955). As referidas análises viriam a constituir uma virada nas interpretações
sociológicas sobre a condição do negro no Brasil por evidenciar a existência do “estado
de conflito” racial e por denunciar a existência dos “obstáculos sociais” que mantinham
a degradação da população negra (BASTIDE & FERNANDES, 1959):
“Os resultados da interpretação desenvolvida nos animam a admitir que a
transição da ordem social senhoreal para a ordem social capitalista se
processou em São Paulo sem que se fizesse necessário introduzir inovações
na esfera de ajustamentos sociais entre brancos, negros e seus descendentes
mestiços. Diversas condições estruturais contribuíram para isso […] as
atividades e as ocupações em que a mão de obra negra encontrava aplicação
corrente, em parte devido à concorrência com os imigrantes europeus […]
essas condições, associadas à dissolução do antigo sistema de trabalho e com
os processos patológicos que afetaram a população negra da cidade,
contribuíram para dificultar a "classificação" dos negros e dos mulatos na
nova estrutura social em emergência […] de outro, porque os padrões de
decôro da incipiente classe média e da recente burguesia urbana restringiam o
contacto com indivíduos de nível social ‘baixo’, em especial com as ‘pessoas
de côr’” (idem, p 142).
Os resultados dos estudos da segunda linha de pesquisadores colocaram em
xeque a real existência da democracia racial, desapontando – apenas em parte, em nossa
opinião – as expectativas da UNESCO, pois se, por um lado, Roger Batisde47, Florestan
Fernandes e os demais investigadores do Projeto UNESCO48 puseram por terra o mito
da democracia racial (uma das principais razões pelas quais o Brasil tinha sido
escolhido para a realização do estudo), por outro, suas análises e conclusões acerca da
situação do negro no Brasil no período da grande expansão urbana e industrial, em
nossa análise, sofisticaram os mecanismos de ocultamento do racismo institucional no
Brasil moderno.
Dizemos que os resultados apenas frustram em parte a missão da UNESCO
porque se um dos objetivos do estudo era encontrar uma “espécie de anti-Alemanha
47 Sobre a obra do sociólogo francês, ver Pereira de Queiroz (1977; 1978; 1983), Nogueira (1978), Dauty
(1985), Peirano (1991), Peixoto (2000), Braga (1944; 2000). 48 Gostaríamos de destacar esses dois pesquisadores tanto porque tiveram maior visibilidade se
comparados com os demais estudiosos envolvidos no Projeto UNESCO. Dito isto, o projeto foi
desenvolvido na Bahia (que era o foco inicial por ser considerado por alguns pesquisadores o exemplo
da boa convivência entre diferentes povos), São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco (sob a tutela do
Instituto Joaquim Nabuco, órgão criado por Gilberto Freyre que se colocou disponível junto a UNESCO
para colaborar com o estudo). Os resultados do estudo em São Paulo destacaram-se e impactaram
profundamente as análises sobre relações raciais dentro e fora da Academia brasileira e que por isso
constituem objeto de análise central na presente seção.
71
nazista, localizada na periferia do mundo capitalista, uma sociedade com reduzida taxa
de tensões étnico-raciais, com a perspectiva de tornar universal o que se acreditava ser
particular” (MAIO, 1999, p. 142), a crença no sistema capitalista como necessariamente
antirracista foi expressamente defendida nos resultados da Pesquisa:
“[…] Em semelhantes condições estruturais, a transferência de
representações sociais ou de expectativas e padrões de comportamento
aplicáveis às relações entre brancos e negros haveria de sofrer uma
orientação adversa a estes [sic] últimos. Ê [sic] verdade que na nova ordem
social em emergência, a cor deixara automaticamente [sic] de ter a antiga
significação. Os patrões, os empregados e os operários não se distinguiriam
como os senhores, os escravos e os libertos, mediante a combinação de
posição social à côr [sic] da pele ou à ascendência racial; ao inverso do que
sucedia no passado, em que "nenhum branco poderia ser escravo", agora
"qualquer branco pode ser empregado, operário ou patrão". Assim, na
ordem social capitalista, quebra-se a tendência ao desenvolvimento paralelo
da estrutura social e da estratificação racial. A incapacidade de ajustamento
econômico dos negros impediu [grifo nosso] que êles [sic] se localizassem
coletivamente nas posições sociais conspícuas, o que acarretou uma situação
muito parecida à que existia na ordem senhoreal [sic], nas relações entre os
negros e mestiços libertos com os brancos. Daí a seleção e a perpetuação
de representações sociais e de expectativas ou padrões de comportamento
cuja sobrevivência parece incompatível com a nova condição civil dos
indivíduos de côr [sic] e com a organização da sociedade de classes em
emergência [grifo nosso]” (BASTIDE & FERNANDES, 1959, p. 142-143).
A crença nas instituições da nova ordem competitiva (capitalista) como
asseguradoras da igualdade terá uma implicação crucial para a compreensão do racismo
e da situação do negro pela escola sociológica paulista. Ora, se as instituições
capitalistas são necessariamente abertas a todos, a condição do negro no pós-abolição só
poderá ser um problema de “desajuste” daquele em relação à nova ordem. Assim, forja-
se o tal “problema do negro” e enquadra-se a solução do “dilema do negro” a partir da
perspectiva da integração na qual o negro é lido como objeto que se há que intervir a
fim de resolver o “problema da inaptabilidade”, o que acaba por ocultar qualquer
questionamento da ordem estabelecida e das relações de poder que a estruturam
(ARAÚJO, 2013; MAESO & ARAÚJO, 2014; MAESO & CAVIA, 2014).
As conclusões do estudo, apesar de terem contribuído definitivamente para
problematizar a democracia racial – problematizando o modo de interpretar as relações
raciais no Brasil a partir do prisma da boa convivência entre as raças –, seu alcance
ficou comprometido, em nossa análise por: limitar-se a refletir acerca da situação do
negro apenas de um ponto de vista de inserção daquele na nascente sociedade de classes
brasileira e pela abordagem focada nas “modalidades de manifestação do preconceito e
da discriminação com base na côr” (Bastide & Fernandes, 1959, p. 269).
72
Sobre a inserção na sociedade de classes, os autores Bastide & Fernandes
(1959), acreditam que a inserção via infiltração é a via da (desejada) ascensão dos
negros:
“Apenas nessas condições, a ascensão não pode tomar outra forma senão a de
uma infiltração. Uma gôta negra após outra a passar lentamente através do
filtro nas mãos do branco […] O nosso inquérito permitiu-nos ver, na
mobilidade profissional do negro, muitas vêzes um desejo de subir. Mas a
subida é fácil só até um certo degrau. Meninos que começaram como
engraxates ou porta-marmitas aprendem um ofício, tornam-se aprendizes de
marceneiro, de alfaiate ou de eletricista. Acabam profissionais. Depois disso,
a infiltração tornase mais difícil, é preciso ter uma certa instrução, diploma
[…] O nosso inquérito revelou também as variações dos ideais dos pretos, as
flutuações da sua busca profissional. É assim que, se dantes o seu sonho era
tornar-se funcionário público, sendo que os mais instruídos tiravam diploma
de contador, hoje perceberam que o funcionário. É mal pago e, quando é de
côr, tem problemas particulares, e viram que um contador dificilmente
arranja emprêgo, que é barrado em muitas organizações e que lhe é difícil
encaixar-se na sociedade branca (idem, p. 266-267)
Apesar de reconhecerem que “a infiltração” apresenta limites (no que diz
respeito a divisão social do trabalho), os pesquisadores concluem que o movimento de
infiltração foi capaz de formar “um proletariado de côr composto de operários semi-
especializados; acima dêles [sic], uma pequena classe média e, finalmente, uma elite
negra” (Ibidem). Entretanto, como observou Gorender (2000), apesar de não ser
indispensável ao capitalismo, a dominação e exploração baseada em aspectos raciais
foi apropriada pelo capitalismo como forma de “aumentar a exploração e as
possibilidades de exploração da força de trabalho” (Idem, p.70). Nesse sentido, nos
parece que os autores não estavam atentos à relação entre capitalismo e racismo e em
alguma medida estavam comprometidos em salvaguadar as possibilidades de melhoria
da condição do negro na ordem capitalista (ainda que limitadoras, como eles próprios
reconhecem).
A abordagem acerca do “problema do negro” com ênfase na sua inserção (na
condição de ser inadaptado) na sociedade de classes e nos efeitos das atitudes
preconceituosas forneceu as bases para a produção da escola sociológica paulista sobre
raça e racismo no Brasil moderno. Mesmo vozes dissonantes frente às conclusões do
projeto UNESCO como Guerreiro Ramos49, sociólogo e militante do Teatro
Experimental do Negro, pareceram também não dar a devida ênfase aos limites do
mobilidade racial na ordem capitalista.
49 Guerreiro Ramos tinha fortes críticas à produção desenvolvida por boa parte dos pesquisadores
envolvidos nos estudos da UNESCO por entender que aquelas análises viam o negro como objeto de
estudo e como problema.
73
Ao referir-se à UNESCO, Guerreiro Ramos afirmou que esta estava a cumprir
uma função de grande importância na “integração das minorias raciais nos vários países
onde elas se encontram mais ou menos discriminadas” (Cf. GUERREIRA RAMOS,
1982, p. 237, apud MAIO, 1999). Ainda que o referido pesquisador tenha reconhecido
que modernidade e racialização podem caminhar juntas e que o racismo não está restrito
ao passado escravocrata, a ênfase de sua análise e da sua militância política esteve
restrita à integração do negro na sociedade de classes, culminando na defesa da
transformação “da luta de classe num processo de cooperação, [...] num fator de
equilíbrio e de compreensão social [...]" (GUERREIRO RAMOS, 1950d, pp. 23-24,
apud MAIO, 1997).
Outra voz dissonante dos “achados UNESCO” foi o pesquisador Costa Pinto,
responsável pela pesquisa na cidade do Rio de Janeiro, mas que também endossava o
enquadramento assimilacionista e moralizador do racismo (no espectro das “atitudes”).
Costa Pinto, chega mesmo a reduzir o racismo a uma questão de “preconceito” (isto
implica dizer, no campo de atitudes individuais) e a reação do povo negro à existência
do “preconceito” deveria se dar, segundo ele, pela organização coletiva por meio da
classe, esvaziando de sentido toda contestação baseada na racialização da sociedade:
“[…] o centro do interesse estava localizado na assimilação do africano ao
Novo Mundo, ou, mais particularmente, nos produtos desses processos sobre
diversos setores da vida brasileira: religião, língua, culinária, vestuário,
música. O negro brasileiro, ou melhor, o brasileiro negro e o processo de sua
integração nos quadros da sociedade brasileira- da condição de escravo à de
proletário e da condição de proletário à de negro de classe média, jamais
despertou o interesse sério dos estudiosos do negro no Brasil […]” E como o
preconceito não se apresenta numa frente única e unida, apoiado pela lei e
cristalizado numa doutrina, consistindo antes num sistema de atitudes e
estereótipos […], moralmente batido pela ciência e pela história, o negro-
massa encara-o sempre face a face […] pensando, sentindo e agindo menos
como raça, mais como massa, cada vez mais como classe” (COSTA PINTO,
1953, p 26; 337-338, apud MAIO, 2013).
Vale ainda chamar a atenção para o “lapso” cometido pelo autor ao corrigir
“negro brasileiro” para “brasileiro negro”. Nessa “correção” está implícita certa
perspectiva que minimiza as implicações de ser uma pessoa racializada no Brasil em
nome da evocação, essa sim importante, da imagem do “povo brasileiro” pertencente
acima de tudo a uma nação onde a cor é secundarizada em nome de um imaginário de
nação multirracial.
Importante ainda chamar atenção para a relação entre escravidão e capitalismo e
os impactos para a formação social brasileira como atenta Costa Pinto. Entretanto, longe
de tomar raça por classe e vice-versa, entendemos junto com IANNI (1988) que “as
74
contradições étnicas, raciais, culturais e regionais são muito importantes para
compreendermos o movimento da sociedade tanto na luta pela conquista da cidadania,
como na luta para transformar a sociedade, pela raiz, no sentido do socialismo” (IANNI,
idem, p. 189). Nesse sentido, entendemos que “a raça e a classe são constituídas
simultânea e reciprocamente na dinâmica das relações sociais, nos jogos das forças
sociais. Essa é a fábrica da dominação e alienação” (IANNI, 2004, p. 147).
O racismo, deslocado do capitalismo e da história da escravidão, passa a ser
entendido como um problema moral e individual que residiria na mente das pessoas
(GOLDBERG 1993, 2002; HESSE, 2004) e, portanto, para mudar essas mentes é
preciso fazer circular ideias, estimular o contato entre as diversas culturas que elevem os
padrões morais dos indivíduos. Isso implica dizer que o entendimento moral do racismo
ao focar nas atitudes e no caminho pela via da reeducação insiste em “flutuar sobre uma
fraseologia moralista inconsequente”, limitando-se a olhar o racismo a partir de
“aspectos comportamentais” (ALMEIDA, S. 2019, p. 37).
As contradições inerentes ao modo de produção capitalista, ao sistema
democrático e as continuidades dos mecanismos de hierarquização que persistem na
desumanização das pessoas negras quando não minimizadas, são silenciadas nas
narrativas produzidas a partir dos estudos da UNESCO que passam a reiterar a crença
no projeto de integração:
“[…] As investigações recentes, porém, indicam que existe um abismo entre
as ideologias e utopias raciais dominantes, construídas no passado por elites
brancas e escravistas, e a realidade social. A afirmação é verdadeira com
referência a todas as minorias nacionais, étnicas ou raciais, pelo menos
durante o período em que elas não conseguem responder às pressões
assimilacionistas da sociedade nacional e aos critérios de avaliação
socioeconômica dos círculos dominantes das classes altas” (FERNANDES,
2007, p. 65)
O “problema do negro” passa a ser lido como um problema de ideologias
residuais do passado e que só teimam em existir porque os negros ainda não
conseguiram assimilar-se, responsabilizando os negros como únicos agentes da
transformação da própria situação no qual se encontram:
“[…] Seria preciso mudar a estrutura da distribuição de renda, do prestígio
social e do poder [entretanto] a persistência ou eliminação gradual dessas
desigualdades passam a depender do modo pelo qual as demais categorias
sociais reagem, coletivamente, às deformações que assim se introduzem no
padrão de integração […] da ordem social competitiva […] é do próprio
negro que deveria partir a resposta inicial ao desafio imposto pelo dilema
racial brasileiro […] assim ele despertaria os brancos dos diferentes níveis
sociais […]” (FERNANDES, 2007, p. 129)
75
O “problema do negro” passa a ser lido como um problema passível de correção
via distribuição de renda (reduzindo a questão a um problema de classe), de reeducação
dos brancos e da responsabilização dos negros.
Apenas situando a produção da escola sociológica paulista e a sua relação
histórica com as narrativas produzidas no pós-segunda guerra é que podemos
compreender a razão do “problema do negro” permanecer sendo enquadrado como um
problema de integração/assimilação à sociedade de classes (como veremos no Capítulo
3). A “miopia” gera a negação do racismo nas democracias capitalistas e a disseminação
da crença de que as instituições democráticas civilizam os grupos racializados via
integração/assimilação, como fica explícito na análise de Florestan (1978):
“[…] Penetramos, aqui, na área de incentivos e motivações sociais. Ao se
reeducar para o sistema de trabalho livre, o “negro” repudia sua herança
cultural rústica e o ônus que ela envolvia. Vence hábitos, avaliações e
comprometimentos pré ou anticapitalistas. E descobre uma posição, que o
nivela, material e socialmente, ao “branco”. (FERNANDES, 1978, p.154).
O paradigma da integração descola a construção do Estado-Nação moderno da
bagagem colonialista que orienta suas ações, reificando valores da modernidade como
assimilação dos sujeitos racializados considerados pré-modernos, vulneráveis. Esse
projeto reproduz distanciamentos entre uma suposta maioria não marcada racialmente e
uma minoria racializada, objetificando pessoas negras (visto apenas como receptoras de
políticas públicas) e tem como consequência a produção de politicas na naturalização
dos lugares de dominação, opressão e desigualdades (MAESO & CAVIA, 2014;
ARAÚJO & MAESO, 2016).
O Projeto UNESCO é um marco histórico que nos ajuda a perceber a
consolidação de certa narrativa partilhada pelos “intérpretes do Brasil” nos anos 50 e
que em nosso entendimento lançou as bases acerca do enquadramento do “problema do
negro” assim como as suas soluções, desarticulando-o da organização capitalista.
Em nosso entendimento, mesmo com as contribuições cruciais de Jacob
Gorender (2011 [1970], Clóvis Moura (1959), Octavio Ianni (1960, 1962, 1978) acerca
da relação entre formações sociais escravistas e capitalismo, boa parte dos pensadores
marxistas no Brasil, entre os anos 40 e 70, também não se detiveram à situação do negro
na formação nacional, diluindo os negros apenas como “pobres, explorados e sem
usufruírem plenamente seus direitos, tal como todos os trabalhadores sob o capitalismo
imperialista” (GUIMARÃES, A.S.A., 2016, p. 172).
76
As análises que recorreram ao aparato teórico e metodológico marxista para
interpretar a formação do Brasil e a constituição do Estado nacional nas décadas
referidas estiveram preocupados: a) hora com a massificação cultural frente ao
desenvolvimento do capitalismo no Brasil (SODRÉ, 1970); b) com a questão indígena
frente à dinâmica do capital; (RIBEIRO, 1978); c) com a situação do campesinato e a
persistência do latifúndio (GUIMARÃES, AP, 1963); d) com a formação da classe
operária urbana (RODRIGUES, LM, 1966; RODRIGUES, JA, 1968; SIMÃO, 1966;
PINHEIRO, 1977) ou da classe média (SAES, 1975); e) com desenvolvimento da
burguesia nacional (PRADO Jr., 1942; SANTOS, 1962), f) ou ainda com o
desenvolvimento do capitalismo autônomo (MARINI, 1965).
Esse rápido e incompleto balanço geral sobre análises produzidas pelos
pesquisadores marxistas que buscaram refletir sobre o desenvolvimento do modo
capitalista de produção e e a formação nacional brasileira, longe de esgotar as reflexões
em torno da contribuição daqueles pensadores, visa apenas indicar que o pensamento
marxista também parece ter se consolidado no Brasil sob “modos de cognição de
sociabilidade, que requerem e reproduzem a exclusão negra” (VARGAS, 2017, p. 85).
Com isso queremos dizer que boa parte da produção marxista também não dimensionou
com a merecida importância a presença negra (e suas especificidades) na conformação
de classes no Brasil.
Com Vargas (2017), entendemos que a “incapacidade” de tornar legível a
condição do negro por boa parte da academia brasileira, é um reflexo do racismo
antinegro, pois:
“[…] ao passo que a exploração e a alienação são categorias legíveis pelo
estado-império […] Isso quer dizer que, ao contrário das relações de conflito
que existem entre trabalhadores e o estado-império, ou entre mulheres e o
estado – relações que podem ser mediadas, negociadas, relações legíveis cuja
gramática é entendida por diversos atores sociais, desde os poderosos até os
despossuídos – para as pessoas negras, trata-se de uma relação sem solução
[…] Analisar a antinegritude implica reconhecer a constituição antinegra de
nossa sociabilidade. Implica reconhecer que a degradação e morte negras não
são acidentais, mas estruturais. Implica reconhecer que, quando há a
aparência de um escândalo coletivo causado pelo sofrimento negro (quando
um adolescente é preso a um poste pelo pescoço; quando uma jovem negra é
morta em frente de sua casa), trata-se de fato passageiro, fato que não
demanda nem análise nem ação específicas. Fosse a morte negra de fato um
escândalo, não teríamos hoje um contexto no qual a taxa de homicídios para
pessoas negras tem aumentado, apesar de a taxa de homicídios no Brasil estar
diminuindo. A morte negra não causa escândalo. (Idem, p. 97-101)
A “incapacidade” em tornar legível ainda persiste em algumas análises atuais
sobre a condição do negro. Dentre elas, gostaríamos de abrir um grande parêntese para
77
refletir sobre uma obra recente que tem ganhado espaço na academia e principalmente
entre a esquerda brasileira, a saber, a obra A elite do atraso: da escravidão à lava jato
(2017) do sociólogo Jessé Souza e que parece evidenciar a persistência da
“incapacidade” da elite intelectual em analisar seriamente a complexidade da condição
do negro no Brasil. Vejamos a análise do autor quanto à condição do negro na sociedade
brasileira:
“[...] Em países como o nosso, não há como separar-a não ser analiticamente
para separar o joio do trigo e evitar as armadilhas das políticas identitárias
falsamente emancipadoras muito bem-vindas pelo capital financeiro- o
preconceito de classe e o preconceito de raça. É que as classes excluídas em
países como o nosso [...] são uma forma de continuar a escravidão e seus
padrões de ataque covarde contra populações indefesas, fragilizadas e
superexploradas [...] como houve continuidade sem quebra temporal entre
escravidão, que destrói a alma por dentro e humilha e rebaixa o sujeito,
tornando-o cúmplice da própria dominação, e a produção de uma ralé de
inadaptados [grifo nosso] ao mundo moderno, nossos excluídos herdaram,
sem solução de continuidade, todo o ódio e o desprezo covarde pelos mais
frágeis e com menos capacidade de se defender [grifo nosso]” (idem, p. 82-
83).
A abordagem acima apresenta uma série de problemas, em nossa leitura.
Primeiro quanto ao que o autor denomina de “políticas identitárias” e seu suposto
conteúdo emancipatório. Se por um lado, é verdade que as políticas ditas identitárias
não são em si emancipatórias, de outro, o movimento negro no Brasil tem defendido
esse tipo de política pelos instrumentais que oferece para os caminhos à emancipação.
Nesse sentido, as políticas afirmativas no ensino superior, por exemplo, são medidas
tangenciais mas nem por isso menos importantes em termos de estratégia para a luta
negra e da própria urgência em reverter o escandaloso abismo educacional entre negros
e não-negros que assola esse país.
Ainda sobre políticas ditas identitárias, também gostaríamos de problematizar as
soluções universalistas abstratas que orientam algumas análises sobre a condição do
negro. As políticas afirmativas têm sido alvo de críticas por “fragmentar a luta” ou
ainda por seu cunho “reformista”, entretanto gostaríamos de nos perguntar em que
medida reivindicações por melhores salários, melhores condições de trabalho, condições
dignas de aposentadoria não podem ser também circunscritas em políticas reformistas
ou mesmo não-universalistas já que estamos a falar de reivindicações de um segmento
populacional que não inclui a grande mão de obra precarizada que não está integrada
formalmente ao mercado de trabalho, como é o caso da população negra? Ainda assim,
essas reivindicações (que não são emancipatórias, são limitadas e correspondem aos
78
anseios de apenas uma parte da população), em nossa análise, não têm sido alvo de
críticas tão ferranhas quanto às políticas ditas identitárias como são as cotas.
O outro ponto em relação à análise de Jessé Souza é no que diz respeito à
equiparação do “preconceito de classe” ao “preconceito de raça”, ignorando toda a
produção bibliográfica acerca da condição do negro na história moderna, do racismo
institucional que não se resume ao preconceito, esse sim, um termo liberal que visa
atenuar as condições desumanizadoras sob as quais vive a população negra no mundo
moderno.
Outro aspecto a ser destacado da análise de Jessé Souza é a violência que reside
nos termos desumanizadores empregados pelo autor para referir-se à população negra
(como “inadaptada”, “indefesa”, “menos capaz”), interpretando essa população como
desprovida de agência política, ignorando toda a luta e mobilização política dos negros
desde a Colônia. Se não em uma sociedade anti-negra, em qual outra configuração seria
possível que um cientista social em pleno século XXI, se sentiria autorizado a nomear
pessoas de um modo quase animalesco, patologizante e ainda assim seu livro estaria
entre os mais vendidos, vindo a ser referência em diversos cursos em universidades de
referência nacional?
Com Fanon (2015 [1961]), gostaríamos de chamar atenção para a lógica
desumanizadora que orienta ainda nos dias de hoje o olhar sobre o negro onde:
“[…] O mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não basta ao colono
delimitar fisicamente, isto é, com a ajuda da sua polícia e dos seus soldados,
o espaço do colonizado. Como que para ilustrar o caráter totalitário da
exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de quinta-
essência do mal. […] Por vezes, esse maniqueísmo chega ao extremo da sua
lógica e desumaniza o colonizado. Para falar claramente, animaliza-o. E, de
facto, a linguagem do colono, quando fala do colonizado, é uma linguagem
zoológica. Faz-se alusão aos movimentos de reptação do amarelo, às
emanações da cidade indígena, às hordas, ao fedor, à pululação e às
gesticulações […] refere-se constantemente ao bestiário […]. Essa
demografia galopante, essas massas histéricas, esses rostos de onde
desapareceu toda a humanidade, esses corpos obesos que já não se
assemelham a nada, essa coorte sem cabeça nem cauda, essas crianças que
parecem não pertencer a ninguém, essa preguiça exposta ao sol, esse ritmo
vegetal, tudo isso faz parte do vocabulário colonial” (idem, p. 45-47).
A interpretação da condição do negro por Jessé Souza escancara o tom de
tutelagem e paternalismo e evidencia a continuidade da perspectiva integracionista que
transfere para o negro a responsabilidade (decorrente de sua inadaptabilidade) pela
condição na qual se encontra. E mais que isso: em nossa leitura, a fração da classe
média abastada e branca que está na universidade produzindo conhecimento tem um
79
papel importante na reordenação do imaginário e das narrativas acerca das relações
raciais, contribuindo na (re) produção dos discursos e imaginários sobre raça e racismo
empregnados de visões essencializadoras e desumanizadoras.
Retornando a perspectiva marxista acerca da formação de classes no Brasil e a
condição negra, mencionamos anteriormente que há produção analítica (ainda que não
seja majoritária) na qual as condições materiais da inserção do negro na sociedade de
classes e o protesto negro empreendido ao longo da formação do Estado-nação
brasileiro foram esmiuçados com o devido rigor por autores como Octávio Ianni (1962,
1978); Jacob Gorender (1978), Clóvis Moura (1959), Florestan Fernandes (2017
[1989]).
Gostaríamos de destacar a contribuição singular das últimas análises, pós-
UNESCO, de Florestan Fernandes no que tange a sua tentativa de trazer o negro para o
centro da análise nas suas últimas obras. Importante dizer que as últimas análises
sociológicas50 de Florestan Fernandes acerca do “problema do negro” divergem (em
alguma medida) dos achados do projeto UNESCO principalmente pela incorporação da
dialética marxista, evidenciando os limites do direito burguês.
Florestan Fernandes foi capaz de avançar, diferentemente de boa parte dos
intelectuais da sua geração, no sentido de denunciar os limites da crença na capacidade
do capitalismo em eliminar o racismo, realizando uma crítica mais substancial ao direito
burguês, à estrutura partidária e às representações políticas de modo geral
(FERNANDES, [1989] 2017). Entretanto, em nossa leitura, mesmo em suas últimas
análises, o autor parece não ter conseguido superar dois pontos cruciais.
O primeiro ponto em relação a análise que deposita no passado toda a
responsabilidade pela situação do negro nas sociedades capitalistas:
“[…] A nossa situação racial foi elaborada ao longo do desenvolvimento do
modo de produção escravista e da sociedade senhorial. Atentei logo o quanto
o passado moldara o presente […] escrevi um ensaio sobre o peso do
passado. É preciso extipar esse passado para que nos livremos dele […]”
(FERNANDES, [1989] 2017 p. 25)
A evocação do passado, em nossa concepção, ao mesmo tempo em que
estabelece o nexo histórico necessário para compreendermos a longevidade e
complexidade do racismo, a evocação de que é preciso “extipar esse passado” parece
minimizar como o capitalismo mantém atualmente a reprodução do racismo antinegro.
Como chamou atenção Ianni (1988):
50 Como o livro Significado do Protesto Negro de 1989.
80
“[...] é evidente que algumas situações cruciais passadas influíram de forma
decisiva na maneira de organização sócio-cultural das relações e ideologias
raciais. Mas todas as condições históricoculturais mais significativas
reaparecem nas situações concretas presentes. Podem ser reencontradas nos
riots, na atuação de partidos políticos de base racial, na violência guerrilheira.
São as relações político-econômicas, no entanto que, em última instância,
podem explicar a persistência e as transformações das situações de
antagonismo e conflito que se repetem em um e muitos países” (idem, p.
166).
A ênfase no passado pode acaba por desresponsabilizar a classe burguesa (e a
classe média) pela situação atual na qual se encontram os negros, pois:
“[…] No limite, a questão racial, em todas as suas implicações sociais,
políticas, econômicas, culturais e ideológicas, pode ser vista como uma
expressão e desenvolvimento fundamentais do que tem sido a dialética
escravo e senhor no curso da história do mundo moderno. Constitui um
ângulo particularmente crucial e fecundo do que têm sido os diferentes
desenvolvimentos da sociedade moderna, burguesa, capitalista; visto o
capitalismo como um modo de produção e processo civilizatório […]”
(IANNI, 2004, p. 26).
E o segundo ponto problemático diz respeito a não formulação por parte de
Florestan Fernandes de uma crítica radical à própria forma como o negro é concebido
por boa parte do pensamento social brasileiro, ora como “menos capaz”, ora como único
“redentor” dos males no qual se encontra, estando essa última abordagem presente nos
últimos escritos de Florestan.
Gostaríamos de problematizar um pouco sobre essa ênfase (na expectativa) do
protagonismo negro e como ela pode ser lida também como uma abordagem que beira a
certo tipo de paternalismo em relação ao negro e de certa essencialização daquele
enquanto único responsável por pautar o debate político sobre racismo na esfera
pública. Vejamos um trecho do livro O significado do protesto negro (2017 [1989]):
“[...] A raça se configura como pólvora no paiol [...] os intelectuais e os
militantes negros mais radicais já possuem a intuição desse fato provável. Por
isso, não retomaram os objetivos e os valores dos antigos movimentos negros
[...] na verdade, o chamado problema do negro [grifo do autor] vem a ser o
problema da viabilidade do Brasil como Nação [...] e, por isso, somente o
negro compreende a natureza do problema e tem condições psicológicas
para enfrentá-lo sem mistificações e de lutar por sua solução integral [grifo
nosso]. Penso que no momento, o que se configura com tarefa política central
do movimento negro diz respeito ao combate à ditadura e, por consequência,
ao caminho que esta escolheu para perpertuar-se indefinidamente, a
“abertura” que se autoproclama democrática mas fecha todos os espaços para
as igualdades elementares e para os direitos fundamentais dos cidadãos [...]
Goste ou não, queira ou não, o negro constitui uma das forças vitais da
revolução democrática e nacional. Ele está envolvido no processo universal
de combate a essa ditadura, á contrarrevolução que a levou ao poder e a
mantém nele; é preciso que se veja de modo claro no centro mesmo da
vanguarda que deve transformar o Brasil numa sociedade democrática. Se se
avança até essa posição [...] a nova temática do protesto negro se delineia
com firmeza. […] O que quer dizer que, por aí, várias tarefas políticas
81
fundamentais convergem para a capacidade de autoafirmação coletiva do
negro e do mulato. Se esta capacidade não se converte em dinamismo real a
sociedade brasileira se manterá bloqueada às transformações mais
profundas, construtivas e promissoras! [grifo nosso] Em seus flancos
aparecem outras duas questões candentes, que dizem respeito à herança
cultural e ao uso flexível da imaginação criadora” (p. 63-67).
O protagonismo como expectativa acerca do “outro” vira um fardo para o
homem negro. Como disse Fanon (1975 [1952]), não há “problema do negro” e se
existe, os brancos nele estão implicados (p. 43). Existe uma estrutura racializada no
mundo moderno que não foi inventada pelos negros e que é mantida para subalternizá-
lo com a legitimação de toda a sociedade. Em outras palavras, projetar a transformação
das forças materiais sobre única e exclusivamente responsabilidade dos negros, em
primeiro lugar, parece desresponsabilizar a branquidade sobre a condição subalternizada
sob a qual o negro se encontra (e é sobre esse aspecto que essa tese trata) e em segundo
lugar parece não dimensionar adequadamente o peso da estrutura capitalista.
A postura de grande parcela dos intelectuais que se propõe a pensar as relações
sociais, mesmo os mais progressistas, parece ainda fortemente atravessada por um tipo
de tutelagem dos movimentos negros onde, como afirmou a advogada e ativista negra,
Ana Flauzina “[...] cada passo dado na realidade por aqueles que buscam alternativas é
caricaturado como equivoco ingênuo ou irresponsável, nunca como o produto falho e
limitado de quem se dispõe ao enfrentamento” (cf. FREITAS, 2018, n.p.).
A produção da escola sociológica paulista acerca das relações sociais nos anos
50 produziu, em nossa análise, mais que uma virada na interpretação das relações
raciais no Brasil (MAIO, 1999; IANNI, 1966), lançou também as bases para a agenda
de pesquisas acerca do “problema do negro”. Nesse sentido, interessa-nos compreender
se há continuidades entre as ideias que circularam na década de 50 e as narrativas atuais
acerca da condição do negro. Por exemplo, ainda é possível encontrar a disseminação da
crença na democracia racial, na interpretação do negro como “problema” e na solução
pela via da assimilação? Há desdobramentos da narrativa da integração, no meio da
fração da classe média alta e branca brasileira? É possível encontrar evidências de que
aquelas ideias acomodaram-se no interior do pensamento social atual? Em processos
políticos como a adoção de cotas étnico- raciais, que tipo de imaginários, narrativas e
ideologias são acionados para defender ou opor-se aquele tipo de política? Nesse
sentido gostaríamos de fazer um primeiro exercício de análise das três primeiras
manifestações coletivas formais contrárias às políticas de ação afirmativa para com
reserva de vagas étnico-raciais nos anos de 2006, 2008 e 2012 para percebemos
82
continuidades (ou não) da narrativa nos anos 50 e os discursos da fração da classe média
abastada e branca acerca do negro.
Entre 2006 e 2012 foram apresentadas formalmente cinco Manifestações
dirigidas ao Congresso Nacional e ao STF referente às Políticas de ação afirmativa:
quatro referentes ao Estatuto da Igualdade Racial51 que faziam menção ao Projeto de
Lei PLC 180/2008 que dispunha sobre a reserva de 50% das vagas para estudantes da
rede pública de ensino no ingresso às Universidades Federais e nas Instituições Federais
de Ensino Técnico de nível médio e que incluía dentro dessa porcentagem, vagas
destinadas aos negros e indígenas e uma manifestação de 201252 especificamente sobre
a votação que ocorreria naquele ano quanto à inconstitucionalidade das cotas no STF.
Dentre essas cinco, três manifestações contrárias às políticas de ação afirmativa
com reserva de vagas étnico-raciais foram dirigidas ao Congresso e ao STF, antes das
decisões que: aprovaram o Estatuto da Igualdade Racial (2010), consideraram
constitucional em 2012 o Programa Universidade para Todos (PROUNI) assim como as
cotas étnico-raciais no ensino superior.
Os motivos apresentados pelos manifestantes e que os teria levado a elaboração
das três manifestações nos leva a uma primeira inquietação. Apesar de afirmarem nos
manifestos de 2006 e 2008 que aquelas cartas eram posicionamentos contrários “às leis
raciais” que incluiria, portanto, não apenas a Lei de Cotas, mas também ao Estatuto da
Igualdade Racial, ambas não chegam a discutir profundamente sobre os artigos do
Estatuto como, por exemplo, a obrigação das escolas de ensino fundamental e médio,
(públicas e privadas) a ensinar história geral da África e da população negra no Brasil
51 Aprovado em 2010, o Estatuto da Igualdade Racial tem 65 artigos que abrangem medidas para
combater a desigualdade racial em diversas áreas como cultura, esporte, saúde, acesso a moradia,
liberdade religiosa e educação. O Estatuto conferiu legitimidade a Secretaria de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial (SEPPIR) e institui o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir),
que permitiu organizar e articular ações de combate ao preconceito, racismo e discriminação em
conjunto com os estados e municípios. 52 Proposta em 21 de outubro de 2004 pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino–
(CONFENEN), a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), tinha “por objeto a Medida Provisória nº
213, de 10 de setembro de 2004, que instituiu o Programa Universidade para Todos –PROUNI, programa
do governo federal que concede bolsas de estudos em universidades privadas a alunos egressos do ensino
médio da rede pública ou como bolsistas de escolas particulares”. A CONFENEN afirmava que a Medida
Provisória estabelecia discriminação entre os cidadãos brasileiros, violava a Constituição Federal mas o
ponto principal questionado era a isenção de impostos como contrapartida às instituições de ensino que
aderissem ao Programa, pois segundo a Confederação, o PROUNI “[...] compromete, também, a livre
iniciativa no âmbito das atividades de ensino, assegurada no art. 209 da CF [Constituição Federal] e, na
medida em que dá prioridade na distribuição dos recursos disponíveis do Financiamento ao Estudante do
Ensino Superior- FIES, às instituições que aderirem ao PROUNI, dispensa tratamento desigual a
instituições e alunos de quem retira o direito de obter financiamento oficial se pretender ingressar em
entidade que não tiver aderido ao Programa” (ADI nº 3330/DF, STF, 2005).
83
ou ainda sobre o estabelecimento de que os remanescentes de quilombolas teriam
direito ao reconhecimento de posse de terras. As duas manifestações detêm-se, na
maior parte dos documentos, a questionar a legitimidade das cotas étnico-raciais no
ensino superior e em menor medida as cotas nas políticas de acesso a cargos de
trabalho. Avancemos com a avaliação dos documentos.
O primeiro manifesto intitulava-se “Todos têm direitos iguais na República
Democrática” de 2006, já o segundo intitulava-se “Manifesto: Cento e treze cidadãos
anti-racistas contra as leis raciais” em 2008 e o terceiro “Manifestação conjunta ABC
[Academia Brasileira de Ciência] e SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência] sobre o PLC 180/2008 que obriga a adoção de quotas para ingresso em
universidades públicas e proíbe a realização de exames vestibulares” de 2012.
Nos três manifestos encontraremos o mesmo perfil dos manifestantes:
intelectuais e trabalhadores não-manuais, principalmente professores das universidades
públicas. O Manifesto “Todos têm direitos iguais na República Democrática”53 foi
entregue ao Congresso Nacional em junho de 2006. Contava com 114 pessoas
assinantes, dentre as quais, 97 eram trabalhadores não-manuais (jornalistas, poetas,
consultores de fundações de pesquisa e professores). Dentre os professores, 31 eram de
universidades federais, 25 de universidades estaduais e dentre esses, 12 eram
professores das universidades estaduais paulistas. Em relação à área de formação, das
pessoas manifestantes, 71 tinham concluído o ensino superior nas áreas de ciências
humanas como antropologia, ciências sociais, história e ciências sociais aplicadas como
economia54.
O “Manifesto: Cento e treze cidadãos antirracistas contra as leis raciais”, foi
elaborado e apresentado em 2008 ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, à época
Ministro Gilmar Mendes. No segundo parágrafo do Manifesto, encontramos a seguinte
afirmação:
“[...] Nós, intelectuais da sociedade civil, sindicalistas, empresários e ativistas
dos movimentos negros e outros movimentos sociais, dirigimo-nos
respeitosamente aos Juízes da corte mais alta, que recebeu do povo
constituinte a prerrogativa de guardiã da Constituição, para oferecer
argumentos contrários à admissão de cotas raciais na ordem política e jurídica
53 Vale dizer que o Manifesto também esteve (e está) disponível em alguns sites auto proclamados de
esquerda, como no site da Esquerda marxista- Corrente Marxista Internacional
(https://www.marxismo.org.br/content/todos-tem-direitos-iguais-na-republica-democratica/). 54 Para efeitos de classificação, optamos por seguir a classificação da Tabela das Áreas de Conhecimento
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superio (CAPES). Disponível em:
http://fisio.icb.usp.br:4882/posgraduacao/bolsas/capesproex_bolsas/tabela_areas.html. Acesso em 16 de
novembro de 2018.
84
da República [...]” (Manifesto: Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as
leis raciais, Brasília, 30 de abril de 2008)
Apesar da referência aos “empresários e ativistas dos movimentos negros e
outros movimentos sociais”, tal como no Manifesto de 2006, o perfil majoritário do
Manifesto de 2008 é o mesmo: dos 113 assinantes da Carta, 81 eram professores e
pesquisadores e dentre os professores, 37 pertenciam ao quadro docente de
universidades federais e 18 às estaduais, sendo 16 professores das estaduais de São
Paulo. Dentre os professores, 41 pertenciam à área de ciências humanas como
antropologia, sociologia e história.
A Academia Brasileira de Ciência em 2012 contava com representantes de todas
as regiões55 do Brasil, totalizando 25 membros afiliados eleitos56. Já a Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência está organizada em 31 órgãos57 oficiais em
âmbito nacional, totalizando 58 representantes de várias regiões do Brasil distribuídos
entre esses órgãos representativos.
O olhar atento ao perfil profissional do grupo (trabalhadores não-manuais) que
organiza os três manifestos contrários à reserva de vagas étnico-raciais oferece a
primeira oportunidade para começarmos a perceber à inserção desse grupo na divisão
capitalista do trabalho e os motivos pelos quais levaram a produção de três manifestos
contrários às cotas étnico-raciais. Mas por quais razões a fração da classe média
55 Segundo a classificação da própria ABC as regiões estão divididas em: Região Norte, Região Nordeste
& Espírito Santo, Região Minas Gerais & Centro-Oeste, Região Rio de Janeiro, Região São Paulo e
Região Sul. 56 Os membros dividem-se em: Membros Titulares (categorias vitalícias para cientistas radicados no
Brasil com destacada atuação científica), Membros Correspondentes (cientistas, de reconhecido mérito
científico, radicados no exterior há mais de 10 (dez) anos e que tenham prestado relevante colaboração ao
desenvolvimento da ciência no Brasil), Membros Afiliados (jovens pesquisadores de excelência, com
menos de 40 anos, que fazem parte dos quadros da ABC por um período de 5 anos, não renováveis e que
elegem até 5 Membros Afiliados para cada uma das regionais da ABC), Membros Colaboradores
(personalidades que tenham prestado relevantes serviços à ABC ou ao desenvolvimento científico
nacional) e Membros Institucionais (organizações interessadas no desenvolvimento da ciência e da
tecnologia, que se disponham a contribuir financeiramente). 57 Os órgãos são: Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, Comissão Nacional de
Biodiversidade, Comissão Nacional do Programa Cerrado Sustentável, Comitê Assessor da Política
Nacional de Educação Ambiental, Comitê Científico do Programa Amazon, Comitê de Popularização da
Ciência e Tecnologia, Comitê Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, Comitê Nacional de Zonas
úmidas, Comitê Orientador do Fundo Amazônia, Conselho Consultivo da Financiadora de Estudos e
Projetos, Conselho de Administração do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, Conselho de
Administração do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, Conselho de Administração do
Museu da Amazônia, Conselho de Gestão de Florestas Públicas, Conselho de Gestão do Patrimônio
Genético, Conselho Deliberativo do Fundo Nacional de Meio Ambiente, Conselho Diretor da Rede
Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais, Conselho Nacional de Controle de
Experimentação Animal, Conselho Nacional de Imigração, Conselho Nacional do Meio Ambiente,
Conselho Nacional de Política Cultural, Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas e Conselho
Nacional de Saúde.
85
abastada e intelectualizada estaria tão envolvida no debate nacional em torno das
políticas de ação afirmativa que começava a ganhar contornos já no início dos anos
2000?
Além do perfil dos assinantes, os três manifestos já apontavam para os principais
elementos discursivos que viriam mais tarde a serem insistentemente defendidos pelo
corpo docente das estaduais de São Paulo e que fornecem as primeiras evidências da
unidade ideológica que caracterizaria a atuação política da fração da classe média alta e
branca no debate sobre o PIMESP.
Agrupamos em três os argumentos principais presentes nos três manifestos: 1)
priorização de políticas universalistas, mas com foco no recorte de renda nas políticas
de democratização do acesso ao ensino superior com base no argumento de que não
existiriam desigualdades com base em raça (crença na democracia racial); 2) “receio” da
racialização das relações sociais (postura antirracialista) e; 3) crítica ao caráter
autoritário do processo que levou a elaboração da lei (defesa da autonomia
universitária).
O primeiro argumento diz respeito à crença na democracia racial expressa na
defesa de políticas ditas universalistas. Os três manifestos reconhecem que há
desigualdades sociais, mas no Manifesto de 2006 encontramos o reconhecimento de que
existem:
“privilégios odiosos que limitam o alcance do princípio republicano da
igualdade política e jurídica”, entretanto o caminho para alcançar a igualdade
de fato é a continuidade das políticas universalistas, pois “[...] a verdade
amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à
exclusão social é a construção de serviços públicos universais de qualidade
nos setores de educação, saúde e previdência, em especial a criação de
empregos [...]” (Manifesto “Todos têm direitos iguais na República
Democrática, Brasília, 29/6/2006).
A “verdade” defendida pelos manifestantes de que o principal caminho para
resolver a exclusão dos negros da universidade (porque é disso que se tratava a PL em
tramitação) seria a “construção de serviços públicos universais” parece simplesmente
ignorar uma série de indicadores sociais e pesquisas que atestam a condição subalterna
dos negros, evidenciando como os mecanismos e políticas universais não tem
respondido a essa questão ao longo da história do Brasil. Tomemos como exemplo os
indicadores de trabalho e mais especificamente aqueles relativos às diferenças salariais
para o período no qual o Manifesto foi produzido e que apontam para a existência de
uma linha de cor entre o valor da hora-trabalho dos empregados.
86
Os dados sobre trabalho em 2005, por exemplo, indicam que mesmo com a
mesma quantidade de anos de estudos que os brancos, o rendimento-hora da população
negra ocupada era menor em todas as faixas de escolaridade, chegando a maior
diferença na faixa da população com ensino superior: enquanto brancos com ensino
superior tinha um rendimento-hora no valor de R$13, 70, o rendimento-hora dos negros
ocupados, com os mesmos anos de estudos era de R$10,30 (Síntese dos Indicadores
Sociais, PNAD, 2005).
A defesa das “supostas” políticas universalistas mantém-se no Manifesto de
2008, reafirmando que a “[...] pobreza no Brasil tem todas as cores [...], são diferenças
de renda, com tudo que vem associado a elas, e não de cor, que limitam o acesso ao
ensino superior [...]” (Manifesto: Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis
raciais, 2008). Entretanto, ao propor soluções para o problema da pobreza (que não teria
cor), os manifestantes apontam para necessidade de melhorar o ensino público,
principalmente nas periferias e favelas, pois “[...] o direcionamento prioritário de novos
recursos para esses espaços de pobreza beneficiaria jovens de baixa renda de todos os
tons de pele - e, certamente, uma grande parcela daqueles que se declaram ‘pardos’ e
‘pretos’” (Idem).
A negação do racismo como estruturante das desigualdades e a recorrência a
melhorias universais para capacitar os “jovens de baixa renda” parece remeter às
soluções assimilacionistas que ocultam como a própria estrutura capitalista hierarquiza
o acesso à bens e riquezas informado pela lógica racial.
Curioso também notar que a própria concepção de política universalista presente
nos manifestos (principalmente o que foi entregue em 2008), relaciona a ideia de
universal à pobreza como se conceber políticas destinadas aos pobres ou com recorte de
renda não fosse em si uma medida que elege determinados beneficiários em detrimento
de outros que, por sua vez, não se enquadrariam no perfil dos destinatários eleitos pela
política como público-alvo.
Em relação ao argumento da “pobreza que não teria cor”, novamente os
indicadores sociais para aquele ano alertavam na direção contrária à dos assinantes do
Manifesto. Os dados da Pnad de 2008 contradizem a crença reivindicada como dado da
realidade pelos manifestantes, apontando para um processo que culmina no que
chamamos de “depuração racial” da frequência escolar que resultam na “[...]
desigualdade no acesso ao ensino superior entre brancos e negros: 20,5% dos jovens
87
brancos estão na universidade, enquanto a taxa para a população negra é de 7,7% [...]”
(IPEA, 2009, p. 18).
Estamos a chamar de “depuração racial” o processo que culmina na eliminação
da possibilidade real de acesso de negros ao ensino médio e superior onde:
“[…] 61,0% dos adolescentes brancos frequentam escola, taxa que na
população negra é de 42,2% [e quando se analisa renda e raça na
oportunidade de acesso ao ensino médio] dos jovens de cor negra, sejam do
1º quinto58 ou do 5º quinto, [eles] estão em desvantagem em relação aos
brancos” (ibidem).
Em outras palavras, mesmo entre os pobres, os negros, segundo os dados oficiais
das instituições de produção de dados sóciodemográficos do Estado, são mais afetados
pelos entraves no fluxo escolar do ensino fundamental e médio, resultando em altas
taxas de evasão e baixas taxas esperadas de conclusão, impedindo-os de acessar o
ensino superior.
A reinvindicação de que o foco das políticas de acesso aos serviços
principalmente ao ensino superior público deveria ser universalista esteve atrelada ao
enfoque na priorização de investimentos na melhoria do ensino básico, pois:
“[...] as cotas raciais proporcionam privilégios a uma ínfima minoria de
estudantes de classe média e conservam intacta, atrás de seu manto
falsamente inclusivo, uma estrutura de ensino público arruinada. Há um
programa inteiro de restauração da educação pública a se realizar, que exige
políticas adequadas e vultosos investimentos. É preciso elevar o padrão
geral do ensino [...] A meta nacional deveria ser proporcionar a todos um
ensino básico de qualidade e oportunidades verdadeiras de acesso à
universidade” (Manifesto: Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis
raciais, Brasília, 30/4/2008, p. 4).
Recorrer à melhoria do ensino básico como justificativa para negar ou colocar
como não prioridade a adoção de políticas de ação afirmativa com reserva de vagas
mascara a real função da escola pública no capitalismo. O ideal da escola única como
ideal propagado no fim do século XIX serviu na realidade para estabilizar as relações na
sociedade capitalista. O mito de uma Escola que fornecesse educação igual e de boa
qualidade para todas as classes sociais é mito porque ao criar a Escola Pública:
“[…] o Estado capitalista [...] tem de zelar para que o seu funcionamento
preencha as tarefas necessárias à reprodução da divisão capitalista do
trabalho: a) encaminhar uma minoria de alunos para os postos dirigentes
dentro dessa divisão [...]; b) encaminhar a maioria dos alunos para os postos
subalternos dentro dessa divisão [...]” (SAES, 2008, p. 169).
58 Os quintos correspondem ao rendimento mensal familiar per capita. O processo corresponde a “[...]
perfilar a população na faixa etária em foco, do mais pobre para o mais rico, de forma crescente, de
acordo com renda. Em seguida, reparte‐se a população em pedaços iguais – usualmente, utiliza‐se a
divisão em cinco partes que podem ser comparadas. O primeiro quinto é o mais pobre e o último quinto o
mais rico [...]” (Cf. IPEA, 2009, p.4).
88
Os manifestantes, a partir da caracterização do perfil que fizemos anteriormente,
fazem parte de uma minoria que na divisão capitalista do trabalho, desempenham
funções não-manuais e que, portanto como aponta Saes (2008) é essa classe que tinha
interesse:
“[na] construção de uma instituição educacional que articulasse
eficientemente ação diferenciadora e ideologia igualitária – niveladora como
um meio de melhorar a sua posição relativa dentro da estrutura social
capitalista [a classe média] Tal grupo social não poderia, porém, apostar que
a sua valorização econômica e social ocorreria de modo automático, pelo
simples fato de o trabalho no aparelho de serviços estar aparentemente mais
próximo do trabalho intelectual que do trabalho braçal. Foi por isso que ele se
envolveu concretamente na construção de uma instituição educacional que
deveria preencher simultaneamente duas funções. A primeira função seria a
de recompensar, em todos os níveis da atividade pedagógica, a superioridade
cultural dos alunos de classe média diante dos alunos proletários. A segunda
função seria a de apresentar o desempenho escolar superior dos alunos de
classe média, não como decorrência de sua superioridade cultural
(relacionada, em última instância, com a sua superioridade econômica), e sim
como a pura expressão do seu mérito pessoal. Não foi, portanto, a burguesia,
supostamente movida por um hipotético interesse em qualificar minimamente
o trabalhador manual, que moldou a Escola Pública. A montagem da Escola
Pública como uma instituição educacional articuladora de uma ação
diferenciadora e de uma ideologia igualitária-niveladora foi dirigida pelos
agentes ideológicos e políticos da classe média, como a burocracia estatal e
os partidos de orientação reformista” (SAES, 2008, p. 170).
Nesse sentido, a reivindicação dos manifestantes reforça a essência do Estado
capitalista como representante dos interesses de todas as classes e no caso da política
educacional, os manifestantes reforçam a narrativa do ensino público como garantia da
igualdade de oportunidades a todos, independente de classe e raça. Assim, o apego dos
manifestantes à defesa da escola pública de qualidade está interligado ao fato de a
escola pública ser “uma das únicas instituições da sociedade capitalista que pode ser
apresentada de modo convincente às classes populares como instrumento privilegiado
da construção da ‘sociedade aberta’, onde todos terão chances de chegar ao topo, desde
que se mostrem capazes” (SAES, 2008, p.170), beneficiando a manutenção do lugar da
classe média na divisão social do trabalho.
O segundo argumento diz respeito à defesa do apagamento de qualquer
referencial da terminologia de raça e racismo, reduzindo o antirracismo ao
antirracialismo expressa no “receio” dos manifestantes de que as cotas iriam dar vazão à
“[...] fabricação de ‘raças oficiais’ e a distribuição seletiva de privilégios segundo
rótulos de raça inocula na circulação sanguínea da sociedade o veneno do racismo, com
89
seu cortejo de rancores e ódios” (Manifesto: Cento e treze cidadãos antirracistas contra
as leis raciais, Brasília, 30/4/2008).
A justificativa de que as políticas de ação afirmativa com reserva de vagas para
negros e indígenas viriam a criar cisões na “harmônica sociedade brasileira” esteve nas
justificativas que embasaram as manifestações de 2006 e 2008:
“[...] O chamado Estatuto da Igualdade Racial implanta uma classificação
racial oficial dos cidadãos brasileiros [...] Se forem aprovados, a nação
brasileira passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da
sua pele, pela "raça". A história já condenou dolorosamente estas tentativas
[...] cotas raciais [...] Transformam classificações estatísticas gerais (como as
do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o preceito da igualdade
de todos perante a lei. A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e
regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos "raciais" estanques em
nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir
o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o
acirramento do conflito e da intolerância [...] A invenção de raças oficiais tem
tudo para semear esse perigoso tipo de racismo, como demonstram exemplos
históricos e contemporâneos” (Manifesto “Todos têm direitos iguais na
República Democrática”, Brasília, 29/6/2006).
“[...] As cotas raciais embutidas no interior de cotas para candidatos de
escolas públicas, como aplicadas, entre outras, pela Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ), separam os alunos proveniente de famílias com faixas
de renda semelhantes em dois grupos “raciais” polares, gerando uma
desigualdade “natural” num meio caracterizado pela igualdade social [...] As
leis de cotas raciais [...] apenas selecionam “vencedores” e “perdedores”,
com base num critério altamente subjetivo e intrinsecamente injusto, abrindo
cicatrizes profundas na personalidade dos jovens [...] O que nos mobiliza [é]
a manipulação dessa doutrina com o propósito de racializar a vida social no
país [...] a definição e delimitação de grupos raciais pelo Estado é um
empreendimento político que tem como ponto de partida a negação daquilo
que nos explicam os cientistas. Raças humanas não existem (Manifesto:
Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais, Brasília, 30/4/2008,
p.2).
Abdias do Nascimento (2017 [1978]), ao analisar o pensamento social brasileiro
da década de 70 e o papel dos centros de estudos africanos e intelectuais brasileiros na
disseminação do mito da democracia racial, já apontava para a postura antirracialista da
intelectualidade brasileira e o seu “jogo artificial de palavras”:
“Contudo, Mourão59 omite, na sua alegação sobre “integração plural”, a
realidade histórica de onde as culturas africanas se “impuseram” foi na
conquista do lugar, dentro do contexto brasileiro, de cultura perseguida de
um povo marginalizado. Além desse preconceito inicial, a mais evidente
característica do trabalho de Mourão é sua consistente a angustiosa fuga da
questão racial. Tenta confirmar a persistência no Brasil de traços culturais
pertencentes à África, os quais “vieram a se destacar aparte de qualquer
característica racial” (p. 14). Noutras palavras, esta cultura foi trazida para o
Brasil não pelos negros africanos, mas por um ser abstrato, talvez aquele
59 Fernando A. A. Mourão, vice-diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo na
década de 70. A crítica de Abdias do Nascimento é referente ao artigo “The cultural Presence of Africa
and the Dinamics of the sociocultural Process in Brazil” publicado por Mourão e apresentado no
Colóquio do Festac 77.
90
desraçado da metarraça inventada por Gilberto Freyre [...] no intuito de
evitar mencionar a raça ou “linha de cor”, todo o processo é levado a um
nível tão abstrato e intangível a ponto de perder qualquer relação com a vida
real dos afro-brasileiros [...] situa-se nessa persistente evasão, como se raça
fosse um tabu, da questão das relações humanas entre pretos e brancos, entre
africanos e europeus, o aparente objetivo de tais centros impropriamente
chamados de estudos africanos. A construção intelectual elaborada tanto no
centro da Bahia quanto no de São Paulo [...] não passa de autoglorificadas
evasões dos problemas reais e imediatos de cerca de sessenta milhões de
afro-brasileiros. Enquanto tais centros não oferecem justificação objetiva para
qualquer alegação de que as relações de raça no Brasil são as ideais [...], eles
estão apenas mantendo um jogo artificial de raciocínio e de palavras na
tentativa frustrada de obnubilar o dilema racial do país, dirigindo a atenção de
estudantes e estudiosos para outras questões mais esotéricas e menos
controversas (idem, p. 120-121)
A ideologia da classe média é marcada profundamente pelo entendimento do
antirracialismo como substituto da luta antirracista e o conflito em torno das políticas de
ação afirmativa evidenciou esse entendimento. O Manifesto de 2008 demora-se
longamente com o artigo “Receita para uma humanidade desracializada” (Ciência Hoje
Online, setembro de 2006) do geneticista Sérgio Pena (um dos intelectuais que também
assinou a Carta de 2008) enfatizando a falácia em torno da raça em termos biológicos. A
ênfase na perspectiva biológica dissimula a existência da estrutura social racista. No
Manifesto há uma longa incursão quanto à relação entre raça e racismo, mas para no fim
concluir que apenas outros países como “África do Sul, Quênia, Ruanda, Estados
Unidos” de fato implantaram uma organização social e jurídica com base na ideia de
raça:
“[...] O “racismo científico” do século XIX acompanhou a expansão imperial
européia na África e na Ásia, erguendo um pilar “científico” de sustentação
da ideologia da “missão civilizatória” dos europeus, que foi expressa
celebremente como o “fardo do homem branco”. Os poderes coloniais, para
separar na lei os colonizadores dos nativos, distinguiram também os nativos
entre si e inscreveram essas distinções nos censos. A distribuição de
privilégios segundo critérios etno-raciais inculcou a raça nas consciências e
na vida política, semeando tensões e gestando conflitos que ainda perduram.
Na África do Sul, o sistema do apartheid separou os brancos dos demais e foi
adiante, na sua lógica implacável, fragmentando todos os “não-brancos” em
grupos étnicos cuidadosamente delimitados. Em Ruanda, no Quênia e em
tantos outros lugares, os africanos foram submetidos a meticulosas
classificações étnicas, que determinaram acessos diferenciados aos serviços e
empregos públicos. A produção política da raça é um ato político que não
demanda diferenças de cor da pele. O racismo contamina profundamente as
sociedades quando a lei sinaliza às pessoas que elas pertencem a determinado
grupo racial - e que seus direitos são afetados por esse critério de pertinência
de raça. Nos Estados Unidos, modelo por excelência das políticas de cotas
raciais, a abolição da escravidão foi seguida pela produção de leis raciais
baseadas na regra da “gota de sangue única”. Essa regra, que é a negação da
mestiçagem biológica e cultural, propiciou a divisão da sociedade em guetos
legais, sociais, culturais e espaciais. De acordo com ela, as pessoas são,
irrevogavelmente, “brancas” ou “negras”. Eis aí a inspiração das leis de cotas
91
raciais no Brasil” (Manifesto: Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as
leis raciais, Brasília, 30/4/2008, p.2-3)
O discurso oficial que atravessa todas as manifestações está perpassado por um
imaginário civilizatório eurocêntrico pautado em uma crença de que a consciência
moderna ocidental é liberal, antidogmática e afeita ao pluralismo religioso como faz
alusão o Manifesto de 2008 ao defender que “[...] Queremos um Brasil onde seus
cidadãos possam celebrar suas múltiplas origens, que se plasmam na criação de uma
cultura nacional aberta e tolerante, no lugar de sermos obrigados a escolher e valorizar
uma única ancestralidade em detrimento das outras” (idem, p.2).
O Brasil essencialmente harmonioso e aberto a todos os credos vem sendo
denunciado como falacioso no meio acadêmico pelo menos desde a década de 70,
quando no livro O genocídio do negro brasileiro de 1978, Abdias do Nascimento
analisava acerca da “perseguida persistência da cultura africana no Brasil” que “[...] tem
sido perigosamente manipulada por estudiosos para servir como ‘demonstração’ da
essência não racista e ‘harmoniosa da civilização brasileira [...]” quando na realidade,
não fosse a capacidade de ‘infiltrar-se’, de continuar existindo na marginalidade e
resistindo mesmo sob o controle da polícia (no caso dos terreiros de candomblé que até
os anos 70 tinham de ser registrados na polícia) e das autoridades locais (os terreiros
tinham de pagar taxas de licença para o funcionamento), as manifestações de matriz
africana não teriam conseguido sobreviver (NASCIMENTO, 2016, p. 129), o que para
nós deixa evidente que:
[...] O conceito da benevolente cultura branco-europeia ‘aceitando sem
distinção’ as ‘infiltrações’ africanas está historicamente falando de uma
construção extremamente artificial. A sociedade dominante no Brasil
praticamente destruiu as populações indígenas […] essa mesma sociedade
está às vésperas de completar o esmagamento dos descendentes de africanos.
As técnicas usadas têm sido diversas, conforme as circunstâncias, variando
desde o mero uso das armas, às manipulações indiretas e sutis que uma hora
se chama assimilação, outra hora aculturação ou miscigenação; outras vezes é
o apelo à unidade nacional, à ação civilizadora, e assim por diante […]. Com
todo esse cortejo genocida aos olhos de quem quiser ver, ainda há quem se
intitule de cientista social e passe à sociedade brasileira atestados de
‘tolerância’, ‘benevolência’, ‘democracia racial’ […]”(idem, p. 131).
É desalentador constatar a atualidade de um livro, escrito nos anos 70, que
analisava a relação entre a condição do negro e a narrativa (silenciadora frente aquela
condição) dos intelectuais brasileiros e defrontar-se com sua atualidade dada a presença
e a força da ideia de uma nação “porosa a todas as influências”, isto é, não-racista que
continua vigorosa entre uma fração da classe média abastada e intelectualizada. A
92
persistência dessa postura negacionista em relação a existência do racimo contra o negro
deve ser entendida como condizente com a consciência da Modernidade ocidental pós-
holocausto (refletida na missão de diversos organismos criados no período entre guerras
como vimos no caso da UNESCO) concebendo-se a si mesma como naturalmente
secular, racional e tolerante frente à diversidade (principalmente a religiosa) onde a
razão e liberdade de pensamento imperariam segundo a própria imagem que criaram
sobre si (MALDONADO-TORRES, 2016).
O receio, ainda que não explicitamente nomeado do “perigo da degeneração” da
universidade trazido com a possibilidade de ingressos de negros e indígenas também
esteve presente no Manifesto de 2012. Para a ABC e a SBPC o “acesso dos brasileiros à
educação superior é tão importante quanto o grau de excelência desta educação” (Cf.,
ABC e SBPC, 2012).
A preocupação dos manifestantes residia da proposta da lei inicial prever que os
cotistas seriam selecionados “tendo como base o Coeficiente de Rendimento (CR),
obtido por meio de média aritmética das notas ou menções obtidas no período,
considerando-se o currículo comum a ser estabelecido pelo Ministério da Educação”
(BRASIL, 2012). Apesar da PL fazer menção à manutenção da meritocracia, vide a
existência de um critério seletivo, baseado no CR dos cotistas, os manifestantes viram-
se pertubados com a possibilidade do “consagrado vestibular” deixar de ser o único
mecanismo de seleção para a entrada na universidade. Em nossa leitura essa
“pertubação” confirma não apenas a defesa da meritocracia, mas a imaculação de
determinados métodos de seleção pela classe média, métodos que devem ser
controlados diretamente pela fração de classe média ligada às universidades.
O terceiro argumento, o relativo à autonomia universitária, ganha grande
destaque nesse último Manifesto:
“[…] Consideramos que ao mesmo tempo em que o Brasil precisa criar
condições mais inclusivas para o acesso à universidade, o País também
precisa aumentar a qualidade dos cursos de ensino superior oferecidos em
instituições públicas e privadas […] Um dos mais importantes instrumentos
para se atingir estes objetivos no ensino superior é a ‘autonomia didático-
científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial universitária’,
garantida pelo Artigo 207 da Carta Magna brasileira […] A atitude das
instituições de ensino superior públicas brasileiras quanto às ações
afirmativas tem demonstrado o enorme interesse e a criatividade destas
organizações no tratamento do importante desafio da inclusão. Diferentes
propostas de ações afirmativas, adequadas a cada cultura institucional e
regional têm sido adotadas e é nosso entender que não se deve ceifar este
movimento com uma obrigação uniforme e atentatória à autonomia
universitária” (ABC e SBPC, 2012).
93
Dado a grande polêmica gerada pela Manifestação de 2012, em 27 de julho a
SBPC- dessa vez, desacompanhada da ABC, lança uma nota intitulada “Nota de
Esclarecimento – SBPC” onde reitera sua posição de que as ações afirmativas não
devem estar acima da autonomia das universidades e de que o motivo da Manifestação
diz respeito apenas a preocupação com a qualidade da educação e o respeito à
autonomia universitária:
“A SBPC sempre foi favorável a programas de ação afirmativa, e lembra que
as instituições públicas de ensino superior do país já vêm adotando essas
ações por meio de diferentes modelos adequados à realidade de cada uma
delas. Não procede, portanto, a afirmação de que a SBPC é contra as cotas
nas universidades públicas. O que nos preocupa é o Projeto de Lei nº
180/2008, que está para ser votado no Senado Federal, e que fere autonomia
universitária. O referido PL determina a reserva de metade das vagas nas
instituições de ensino superior públicas para estudantes oriundos do ensino
médio em escolas públicas. Além disso, em seu artigo 2º, proíbe a realização
de exames vestibulares ou o uso do Enem, obrigando que o processo seletivo
adote exclusivamente a média das notas obtidas pelos candidatos nas
disciplinas cursadas no ensino médio. Dessa maneira, o ingresso no ensino
superior deixa de ser responsabilidade da universidade e passa a ser
subordinado aos critérios de cada escola, o que pode levar à queda na
qualidade da educação superior no Brasil. A universidade deixa de opinar
sobre o perfil do seu estudante [...]” (SBPC, 2012).
Além de ignoraram o trecho do projeto que afirmava que “considerando-se o
currículo comum a ser estabelecido pelo Ministério da Educação” (BRASIL, 2012),
onde as referidas instituições poderiam aportar considerações acerca do referido
currículo, convertendo-se numa excelente oportunidade para as instituições, intervirem
na educação básica pública, propondo, por exemplo, um currículo mais adequado,
segundo os critérios que lhes parecessem mais apropriados, fato é que na primeira
Manifestação a menção ao artigo 2º (que trata da forma de ingresso) do Projeto de Lei
(PL) é acompanhado da menção ao Artigo 3º da PL que dizia respeito à determinação de
que:
“[...] essas vagas, em cada curso e turno, sejam destinadas a candidatos
autodeclarados pretos, pardos e indígenas, no mínimo igual à proporção de
pretos, pardos e indígenas, na população da Unidade da Federação onde está
instalada a instituição [...]” (ABC e SBPC, 2012).
Em nosso entendimento o fato dos dois artigos terem aparecidos juntos na
Manifestação e terem sido alvos de crítica em conjunto, significava que os
manifestantes estavam a opor-se também à reserva de vagas étnico-raciais. Importante
dizer que em agosto de 2012 o Governo Federal recuou e vetou o artigo 2º.
O recuo do governo quanto à tentativa de repensar outras formas de entrada dos
estudantes nas universidades públicas, sinaliza o papel ativo da fração da classe média
94
branca e abastada no conflito em torno das cotas e a força da narrativa meritocrática
nesse conflito. Entretanto, válido dizer que, ainda que o Governo Federal tenha optado
por não fazer o enfrentamento nesse ponto, outras ações do governo buscaram fomentar
a adoção da política de cotas por meio de incentivos institucionais, como bolsas de
pesquisa e auxílio financeiro, recursos extras para as universidades implementadoras da
Política de cotas assim como apoio a projetos de lei que regulamentassem a Lei de
Cotas nos estados (FERES JÚNIOR, DAFLON, CAMPOS, 2011; LIMA, 2010).
A rapidez no processo da adoção da modalidade das cotas pelas universidades
federais brasileiras revela, por um lado, a existência de alguma heterogeneidade de
posicionamentos no interior da classe média (o que não significa rompimento total com
a ideologia que confere unidade a essa classe) quanto às Políticas de ação afirmativa, e
por outro lado o peso dos estímulos institucionais nos processos de implementação de
políticas públicas. Isso porque diferentemente do que ocorreu nas universidades
estaduais, as universidades federais tiveram que aderir às cotas étnico-raciais, por
determinação da Lei Federal nº 12.711/2012, porém mais que isso: o Governo Federal
(à época comandado pelo Partido dos Trabalhadores), condicionou a destinação de
recursos do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais (Reuni) para as instituições federais à adesão daquelas às ações
afirmativas (FERES JÚNIOR et al, 2013).
Os estímulos do Governo Federal podem explicar porque mesmo diante da
presença significativa de professores de universidades federais nos três Manifestos,
ocorreu certa rapidez na implementação da modalidade de reserva de vagas nos
vestibulares das universidades federais mesmo quando a Lei de Cotas determinava que
as universidades federais tivessem até quatro anos para atingir os 50% do total de vagas.
Na esteira da argumentação contrária às cotas étnico-raciais e ao vestibular,
avancemos para o argumento central levantado pela ABC e pela SBPC que ao se
posicionarem contra a Lei de Cotas federal, referiam que aquela atentava contra a
autonomia universitária:
“[...] Um dos mais importantes instrumentos para se atingir estes objetivos no
ensino superior é a “autonomia didático-científica, administrativa e de gestão
financeira e patrimonial universitária [...] Faz parte da autonomia didático-
científica a definição pela universidade da sistemática para a seleção dos
estudantes ingressantes [...] A atitude das instituições de ensino superior
públicas brasileiras quanto às ações afirmativas tem demonstrado o enorme
interesse e a criatividade destas organizações no tratamento do importante
desafio da inclusão. Diferentes propostas de ações afirmativas, adequadas a
cada cultura institucional e regional têm sido adotadas e é nosso entender que
95
não se deve ceifar este movimento com uma obrigação uniforme e atentatória
à autonomia universitária” (ABC e SBPC, 2012).
Diferentemente dos outros dois primeiros manifestos, onde a autonomia
universitária não foi referida, nesse último a reivindicação pela autonomia confunde-se
com certo interesse pela gestão e controle da diversidade- negra e indígena- que irá
adentrar nas universidades com o estabelecimento da Lei de Cotas. Ou seja, a posição
dos docentes parece sair do rechaço total das políticas afirmativas a uma adesão
condicionada ao controle dos docentes no desenho da política. Podemos especular que
essa mudança na linha discursiva foi resultado da constatação da fração da classe média
branca de que não se poderia mais conter a grande mobilização do movimento negro
que pressionava gestores das universidades e câmaras estaduais a adotarem políticas de
ação afirmativa (FERES Jr. et al 2013a; GUIMARÃES A.S.A., 2007; PAIVA &
ALMEIDA, 2010) e talvez por essa razão tenha resolvido recorrer a justificativa da
autonomia universitária como modo de fazer valer seus interesses.
Nesse contexto a autonomia universitária, em nosso entendimento, acabou por
ser mobilizada pela fração da classe média branca de forma autoritária ao longo do
conflito, vindo a tornar evidente como funciona o racismo institucional onde:
“[…] decisions are handed down directly or through a process of “indirect
rule.” Politically, decisions which affect black lives have always been made
by white people—the “white power structure.” […] When faced with
demands from black people, the multi-faction whites unite and present a
common front […] Again, the white groups tend to view their interests in a
particularly united, solidified way when confronted with blacks making
demands which are seen as threatening to vested interests. The whites react
in a united group to protect interests they perceive to be theirs—interests
possessed to the exclusion of those who, for varying reasons, are outside the
group. […] In much the same way, present-day vested political, economic
and social privileges and rights tend to be rationalized and defended by
persons and groups who hold such prerogatives” (TURE & HAMILTON,
1992, [1967], p. 21-22).
Frente às desmistificações que o movimento negro realizou ao longo do processo
na articulação com assembleias legislativas junto com a colaboração de pesquisadores
na área de políticas de ação afirmativa, apresentando dados da realidade tanto em
relação às experiências de programas de ação afirmativa como em relação aos dados das
desigualdades no Brasil, recorrer a autonomia pareceu ser a última estratégia,
empregada no contexto em que já não existia mais argumentos para se opor à
necessidade da adoção da modalidade de ação afirmativa com reserva de vagas,
restando apenas apelar à afirmação de que a Lei de Cotas “não olha os princípios da
autonomia universitária de decidir, individualmente, seu próprio modelo de cotas. Os
96
estados brasileiros são diversos, há especificidades que não são contempladas no
projeto”, segundo o ex-presidente da Associação Nacional dos Dirigentes de
Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Carlos Maneschy (cf. CAZES, L. &
AVELLAR, S., 2012).
Na mesma entrevista o ex-presidente da Andifes não cita quais seriam
exatamente as especificidades, mas os dados relativos à proporção entre o perfil racial
das pessoas com nível superior em 2012 e os segmentos populacionais em cada estado
apontavam para a subrepresentação de negros e indígenas, inclusive na Universidade
Federal do Pará (UFPA), onde o ex-presidente era reitor. As cotas com reserva de vagas
para indígenas na UFPA foram implementadas como fruto da luta que os povos
indígenas vinham travando com a burocracia educacional da referida na universidade
desde 2008, tendo conseguido implementá-las apenas em 2010 (BRITO FILHO &
MAUÉS, 2013).
O fim que justifica a “preocupação” com princípio da autonomia universitária
nesse contexto de conflito, isto é, a “preocupação” com a garantia da excelência que por
sua vez, é colocada apenas como possível a partir da existência do vestibular, dissimula,
em primeiro lugar a proteção dos privilégios pela naturalização dos processos de seleção
correntes nas universidades e em segundo lugar nega ou pelo menos questiona as
potencialidades e capacidades dos beneficiários das políticas de ação afirmativa.
Para além da descolonização do saber, isto é, de uma “disputa acadêmica em
torno do entendimento de ciência e de política” (GOSS, 2009, p. 114) e do “[…]
controle da produção de conhecimento sobre os negros ou da questão racial no Brasil
[com vistas à] descolonização intelectual” (SALES, 2008, p.497), a análise dos três
manifestos com assinantes de todo o Brasil que partilham de um perfil e, portanto,
permite agrupá-los como pertencentes a uma fração da classe média intelectualizada,
possibilita vislumbrar que os motivos pelos quais a classe média no estado de São Paulo
viria mais tarde a debater-se em torno da possibilidade de adoção das cotas não seria um
posicionamento isolado, mas um posicionamento circunscrito na ação política da fração
da classe média abastada e branca brasileira.
As três manifestações apresentadas formalmente às instâncias jurídicas
representantivas do País só pode ser entendida como uma ação política da classe média
na medida em que frente à iminência da instituição das Políticas de ação afirmativa, a
classe média avistou a possibilidade de que aquelas políticas causariam fissuras na base
97
de sustentação ideológica- igualitarismo abstrato e da meritocracia, que naturaliza ao
mesmo tempo em que garante a reprodução daquela fração da classe média.
O Estatuto da Igualdade Racial e a Lei de Cotas foram finalmente aprovados entre
2010 e 2012 mesmo em meio às manifestações contrárias. Entretanto, a aprovação do
texto final de ambos, além de escancarar os dilemas enfrentados pelo movimento negro
acerca dos limites do alinhamento com determinados organismos de cooperação (como
a UNESCO) e dos limites dos avanços da luta antirracista no sistema capitalista, revela
os contornos da persistência do entendimento do racismo circunscrito em certa
narrativa que toma o holocausto e o regime nazista como marco referencial do que
seria de fato racismo, limitando a gramática antirracista e as próprias soluções para o
enfrentamento ao mundo anti-negro. Com mundo anti-negro, estamos nos referindo à
díade negro/não-negro que é a base na qual entendemos que o mundo moderno está
assentada e:
[…] que fundamenta o conceito da antinegritude, [e que] é mais precisa que
a díade tradicional branco/não branco. De acordo com a díade branco/não-
branco, ser branco (e ocidental, cisnormativo homem, heteropatriarcal e de
posse) é a encarnação paradigmática da Humanidade. Essa díade condensa
os princípios da supremacia branca – a hierarquização da espécie humana na
qual o ser branco (e homem) é a referência máxima de poder, inteligência,
moralidade, e estética. Nessa hierarquia, o ser negro é o ser menor”
(VARGAS , 2017, p. 85).
A forma como foi aprovada a Lei de cotas e do Estatuto foi alvo de intensas
críticas por parcela do Movimento Negro que viram no texto final aprovado o
esvaziamento da radicalidade presente na proposta original. Em relação ao Estatuto,
diversas modificações foram feitas como a retirada dos termos “reparação” e
“compensação” (apesar do verbo ‘reparar’ ter se mantido), a ênfase no uso da
“inclusão” e a retirada do termo “valorização da diversidade racial” para inclusão do
termo “valorização da igualdade étnica”:
“[...] Art. 1o Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a
garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a
defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à
discriminação e às demais formas de intolerância étnica [...] V - eliminação
dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a
representação da diversidade étnica nas esferas pública e privada [...] VII -
implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento
das desigualdades étnicas [...] Parágrafo único. Os programas de ação
afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as
distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias
adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação
social do País [...]CAPÍTULO V: DO TRABALHO [...] Art. 42. O Poder
Executivo federal poderá implementar critérios para provimento de cargos
em comissão e funções de confiança destinados a ampliar a participação de
98
negros, buscando reproduzir a estrutura da distribuição étnica nacional ou,
quando for o caso, estadual, observados os dados demográficos oficiais [...]
Art. 47. É instituído o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial
(Sinapir) como forma de organização e de articulação voltadas à
implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as
desigualdades étnicas existentes no País, prestados pelo poder público
federal” (cf. BRASIL, 2012b).
A substituição de termos como “raça” pelo termo “etnia”, e “diferenças raciais”
por “diferenças étnicas” no artigo que tratava de educação em alguns pontos do
documento revelam como o recurso à terminologia étnico, por exemplo, além de evadir-
se do debate sobre raça, também acaba por retomar uma categorização de indivíduos
que são divididos entre os nacionais que estão acima da etnicidade e os não-nacionais
(incluídos na categoria étnico), relegando a esses últimos uma condição na qual sua
existência nacional ou sua existência na ordem moderno-ocidental é constantemente
questionada, marcada, sinalizada (MALDONADO-TORRES, 2016).
A retirada do termo “desigualdades raciais” para a inclusão em seu lugar do
termo “desigualdades sociais” nos informa acerca da reprodução das narrativas oficiais
que não reconhecem a existência da estrutura racista que organiza as relações de poder
(OLIVEIRA S.P., 2013). A reprodução da narrativa da negação da existência do
racismo nos revela ainda a relação entre a compreensão do Estado brasileiro e a
concepção eurocêntrica de racismo, como analisa Hesse (2004):
“[...] In relation to the idea of human rights racism has long been defined
primarily in Eurocentric terms. This is so not only where colonialism and
liberalism are seen as no longer central to shaping the experience of racism in
the West, but also because whatever passes for racism has been traditionally
depicted as a codified ideology rather than a routine social practice. The
Eurocentric concept of racism universalizes the particularity of a distinctive
western liberal concern with racialized fascism and obscures the cultural
relation between liberalism, colonialism and racism. Its Eurocentrism, in
forming the basis of hegemonic template [...] has led in the direction of
combating and researching racism in terms of ideology and exceptionalism
[...] The later variously includes the pseudo-scientific ideas of race, racial
discrimination, racial segregation, extremist nationalist ideology and racial
state, all of which are generally associated with illiberalism, especially
fascism [...] that is to say, outside the legitimacy of western hegemony” (p.
138).
A troca dos termos, longe de uma mera negociação linguística, é antes de
qualquer coisa uma estratégia para afastar da legislação e das políticas públicas o
fantasma da raça e do racismo- apenas possíveis em regimes excepcionais, ao mesmo
tempo em que reduz a luta antirracista ao antirracialismo (GOLDBERG, 2004, p. 211).
É como se o apagamento da palavra raça das legislações e políticas fosse em si capaz de
dar cabo do racismo.
99
O foco no “combate à intolerância” dá o tom geral do documento e parece
evidenciar o entendimento de antirracismo que perpassa o Estatuto- e o Estado
brasileiro. O enfrentamento ao racismo fundamentado na ideia de tolerância é
contraditório na medida em que o próprio significado de tolerância60 e a apropriação
política do termo sinalizam a interelação entre a posição do Estado e a legitimação
institucional do silenciamento acerca do racismo e da narrativa da preocupação com a
unidade mesmo com a presença dos toleráveis na nação brasileira.
O uso do conceito de tolerância como discurso oficial revela a reprodução da
manutenção dos lugares de poder na medida em que contribui para manter a narrativa da
hierarquia entre as ditas “maiorias” e “minorias”, criando e regulando a hierarquia em
torno de quem tolera e quem é passível de ser tolerado a partir da concepção ocidental
de universalidade (BROWN, 2014). Nesse sentido, a tolerância é um instrumento dos
governos ocidentais e um discurso de poder que legitima a supremacia branca ocidental
e a violência do Estado, já que a contínua reprodução do antirracismo como um
“problema de tolerância” repoduz a naturalização da divisão social entre dominantes (os
que toleram) e dominados (os que são tolerados).
O texto final do Estatuto da Igualdade Racial, além de nos informar sobre os
processos de dispustas pela enunciação do “problema do negro” e sua solução,
evidenciam com todo o processo de substituição de termos e inclusão de termos
genéricos, os entraves da luta antirracista na arena estatal. E nesse ponto nos
defrontamos novamente com o embate entre movimento negro e Estado: de um lado a
denúncia da existência do racismo enquanto estruturante das relações e de outro a
obstinação pela “desracialização” que chega ao limite de uma esquizofrenia fomentada
no e pelo Estado brasileiro, mesmo quando tivemos governos mais “sensíveis” às
demandas do movimento negro, como foi o período no qual o Estatuto foi aprovado.
Em relação à Lei de Cotas, o texto aprovado regulamentou que as cotas étnico-
raciais estariam dentro das vagas das cotas para estudantes de escola pública e a
porcentagem a ser reservada dependeria da proporção de autodeclarados pretos, pardos
e indígenas na proporção da unidade da federação onde está instalada a instituição (Lei
60 Segundo o dicionário Aurélio (2014), tolerência é qualidade do que é tolerante. Ato ou efeito de tolerar.
Tolerante adj. Que tolera. Dotado de tolerância. Indulgente. Que desculpa certas faltas ou erros. Que
admitte ou respeita opiniões contrárias a sua. (Lat. tolerans) tolerantismo. Opinião dos que defendem a
tolerância religiosa. Sistema dos que entendem que se devem tolerar num Estado todas as espécies de
religiões. (De tolerante) tolerar v. t. Ser indulgente para com. Consentir tacitamente. Supportar. (Lat.
tolerare) tolerável adj. Que se pode tolerar; sofrível. Que não tem grandes defeitos. Merecedor de
indulgência. (Do lat. tolerabilis).
100
12. 711 de 2012). Embora a proposta final da Lei tenha ido ao sentido contrário do que
estava a ocorrer nas universidades federais e estaduais (em 2011, eram 39 universidades
públicas com sistema de cotas raciais, isto é, sem dependência entre autodeclarados
pretos e pardos e egressos de escola pública), o condicionamento entre escola pública
(classe) e autodeclarados pretos e pardos (raça) pode indicar que o Estado estava atento
à potencialidade da articulação entre classe e raça em relação a alcance da política.
O debate até aqui buscou situar as justificativas empregadas nos manifestos
contrários à implementação das políticas de ação afirmativa, em estreito diálogo com
uma extensa produção, principalmente advinda das ciências sociais dos anos 50 e em
estreita articulação com o projeto UNESCO. Nesse sentido, interessa-nos analisar, de
modo um pouco mais ampliado, a produção analítica sobre as políticas de ação
afirmativa e de que forma a disputa política que alavancava o debate no início dos anos
2000 esteve (ou não) contemplada naquelas análises.
As políticas afirmativas sob o olhar do pensamento social brasileiro
De modo geral as análises sobre as políticas de ação afirmativa no contexto
nacional ainda permanecem muito pautadas por certa crença no aparato jurídico-
burguês, por certa ausência de crítica mais consolidada sobre a própria concepção de
ação afirmativa no contexto capitalista, mas principalmente no inadequado
dimensionamento da relação entre classe e raça e as disputas resultantes desse encontro.
Dito isto, para fins de visão geral, resolvemos agrupar as obras de referência no assunto
por afinidades argumentativas e referenciais teóricos compartilhados. Situar a discussão
em torno do tema das ações afirmativas é fundamental para entendermos a produção das
ciências sociais acerca desse debate que, como veremos, de modo geral, ainda não
reconhece a potencialidade analítica da articulação entre classe e raça para compreender
a dinâmica que reitera a desigualdade racial no Brasil.
A despeito das divergências entre as explicações e das nuances argumentativas
das obras analisadas no presente tópico, acreditamos que elas não impedem que
façamos um exercício analítico de categorizá-las em eixos principais. Assim,
entendemos que atualmente as linhas argumentativas do debate sobre cotas étnico-
raciais podem ser agrupadas em três tendências analíticas principais: natureza e a
evolução da cidadania no capitalismo; multiculturalismo e comunitarismo; e, por fim, o
enfoque de classe debatido no interior do pensamento marxista.
101
Reconhecemos que a sistematização proposta no presente estudo é, obviamente,
reducionista (e em alguma medida arbitrária) considerando que alguns aspectos teóricos
são partilhados por autores que por ora classificamos em eixos distintos. Acreditamos,
no entanto, que a categorização poderá contribuir para situar a produção bibliográfica,
fornecendo elementos que apontam para a necessidade de ampliação do debate. Além
disso, o agrupamento que sugerimos nos pareceu válido por se distanciar das
classificações bastante recorrentes em pesquisas sobre Políticas de ação afirmativa, a
saber, o agrupamento dos estudos a partir do eixo a favor ou contra as ações
afirmativas.
É válido ressalvar que a preocupação central na presente seção é compreender,
para além dos posicionamentos favoráveis ou contrários às ações afirmativas, quais são
os argumentos, justificações morais e fundamentações teóricas movimentadas para
defender essa ou aquela posição61 sobre políticas de ação afirmativa.
Levando em conta esses aspectos, apresentaremos brevemente o conjunto das
matrizes teóricas supracitadas, buscando, por um lado, compreender os fundamentos
teóricos que sustentam essas teorias e, por outro, problematizar de que forma a maioria
dessas fundamentações apresentam, além de incoerências internas, lacunas que
evidenciam a indiferença do pensamento social brasileiro a importantes aspectos
presentes no conflito em torno das cotas étnico-raciais no ensino superior,
principalmente no que tange à ausência de uma abordagem dialética para compreender
que ambas as relações – pautadas por classe e por raça - além de estarem vinculadas
são, permanentemente, renovadas e reorganizadas pelo capitalismo e atravessam o
referido conflito.
O primeiro conjunto de argumentações engloba os estudos que tratam das
percepções e expectativas em torno da análise do direito no capitalismo. Nesse
agrupamento reunimos os referenciais bibliográficos que têm tratado dos problemas em
torno da implementação das ações afirmativas a partir da perspectiva do igualitarismo
jurídico e de concepções liberais capitalistas em torno do direito e da democracia.
A maioria dos estudos que buscam compreender as políticas de ação afirmativa à
luz da evolução do direito no capitalismo tem focado em aspectos jurídico-normativos
que, por sua vez, possibilitariam ou atravancariam a adoção de tais políticas. A
61 E, por essa razão, alguns estudos que tinham como objetivo principal (e por vezes, único) realizar um
levantamento do referencial bibliográfico acerca das políticas afirmativas ( tais como MOEHLECKE,
2002; GUARNIERI et al, 2007) não estão contemplados nessa seção.
102
produção de análises preocupadas com os princípios da justiça distributiva (FERES JR.,
2005; PENA, 2009; PINHEIRO, R. G. 2013), da controvérsia acerca dos princípios
meritocráticos, da autonomia universitária frente à adoção de Políticas de ação
afirmativa (GOMES, 2001; RIOS, R. R. 2008; OLIVEIRA JR, 2008; HAAS &
LINHARES, 2012; SILVA, 2014) ou ainda da relação entre políticas de ação afirmativa
e transformações nos modelos de desenvolvimento sócioeconômico (TOMEI, 2004;
SANT’ANNA, 2006; JACCOUD, 2009) têm sido alvo recorrente nesse eixo de
análises.
Estudos como os de Clève (2003), Feres Jr. (2005), Moehlecke (2004),
Piovesan, (2008) e Pinheiro (2013) pautam as análises em defesa das ações afirmativas
a partir do pressuposto de que para alcançar a igualdade democrática é necessário
admitir que direitos e recursos sejam e (serão) escassos e custosos e a partir disso
operacionalizar os princípios da igualdade de oportunidades. Em linhas gerais, os
estudos supracitados tendem a conceber as políticas de ação afirmativa como políticas
que facilitariam o acesso a determinados bens fundamentais e escassos, no caso a
educação, para a concretização da igualdade de oportunidades, sendo, por isso,
classificadas como políticas distributivas.
Além disso, as análises que justificam as políticas de ação afirmativa pela via da
justiça distributiva, ao embasar a argumentação em torno da importância da igualdade
de oportunidades, constrói uma base sólida de legitimação para a implementação das
referidas políticas, diferenciando-se das justificativas para ações afirmativas baseadas na
concepção de reparação ou ainda de promoção da diversidade, envoltas em
controvérsias que as enfraquecem enquanto recurso teórico-analítico capaz de,
isoladamente, justificar as Políticas de ação afirmativa (FERES JR., 2005). Como
sinalizou João Feres Jr. (idem) acerca das mudanças pelos quais vem passando as
justificativas utilizadas para a instituição de programas de ação afirmativa, o problema
da justificativa pelas vias da reparação e da diversidade é que:
“[...] Enquanto que a reparação olha mormente para o passado e a justiça
social foca a desigualdade presente, a diversidade tem um registro temporal
incerto, às vezes sugerindo a produção de um tempo futuro onde as
diferenças possam se expressar em todas instâncias da sociedade. A
diversidade também trabalha, em parte, contra o argumento de justiça social,
pois a questão da desigualdade e da discriminação presente se dilui em uma
valorização geral da diferença, que por seu turno é definida em termos de
cultura e etnia – conceitos mais vagos que “desigualdade”, e, portanto de
operacionalização mais difícil” (Idem, p. 10).
103
Entretanto, as análises supracitadas contêm em seus pressupostos limitações que
ofuscam outras questões presentes no debate acerca das politicas afirmativas.
O primeiro ponto crítico é em relação à própria base na qual está fundamentada
a concepção de justiça daquelas análises: as Teorias da Escolha Racional62. A partir das
contribuições de algumas leituras feministas (FRASER, 2003; ZERILLI, 2009),
podemos fazer pelo menos três problematizações sobre aquela formulação de justiça:
a) recorrendo ao indivíduo como unidade social básica, os autores eliminam a
possibilidade de conceber os sujeitos como pertencentes a grupos oprimidos (mulheres,
negros, lésbicas, gays, por exemplo);
b) o componente histórico torna-se mera construção abstrata para ordenar jogos
de barganha e;
c) o excesso de abstração presente na concepção de Teoria de Justiça para
aqueles autores resulta na formulação de princípios da justiça apartados dos problemas
concretos que afetam grupos historicamente excluídos de acesso aos bens primários.
Outro ponto crítico diz respeito ao seu caráter reformista em relação às
instituições políticas, econômicas e sociais63. Ao mesmo tempo em que rejeita a crença
defendida pelos neoliberais de que o mercado é capaz de autorregular-se e de
autoestabilizar-se e, consequentemente, de estabilizar a sociedade (DANNER, 2011,
p.145), tais análises evocam a crença na igualdade de oportunidades e enfatizam a
ascensão individual, garantidos pelo direito burguês, minimizando as relações de
produção no modo capitalista e a monopolização dos meios de produção (NAVES,
2009).
Os princípios de justiça equitativa em alguma medida reforçam a crença que o
fim último das lutas emancipatórias é a reforma das instituições democráticas,
subdimensionando a força do mercado e da propriedade privada, desconsiderando os
conflitos de classes e de que forma esses conflitos ocorrem na disputa pela alocação de
bens e recursos, impactando, inclusive, na adoção de políticas distributivas.
Ao centrar o foco da análise nos ajustes necessários que as instituições sociais
têm de fazer para contrabalancear os efeitos perversos do modo capitalista de produção,
62 A Teoria da Escolha Racional oferece um arcabouço teórico-metodológico que assume que o comportamento
humano deve ser entendido a partir do pressuposto da racionalidade e que em situações de múltipla escolha, os
indivíduos optam por estratégias que maximizam os resultados a favor de seus interesses. A partir da segunda metade
do século XX, essa perspectiva teórica passou a ser utilizada em estudos da ciência política nos países anglo-saxões
(até então era utilizada apenas nas ciências econômicas). Uma das primeiras análises nas ciências políticas utilizando
essa perspectiva foi a obra de Anthony Downs Uma teoria econômica da Democracia, publicado em 1957
(MEIRELES, 2012). 63 Compõem o que Rawls denomina de estrutura básica da sociedade que por sua vez influem na formação da
personalidade e na sociabilidade, sendo por isso o objeto da justiça política (DANNER, 2011).
104
as análises supracitadas estão apenas a reiterar os pilares que ordenam a democracia
capitalista na medida em que as suas análises não refletem de modo crítico sobre
questões centrais que fundamentam as desigualdades raciais, como a produção de mais
valia, a monopolização dos meios de produção ou ainda a economia de
mercado (WOLFF, 1977).
A linha de abordagem sobre políticas de ação afirmativa no eixo direito e
capitalismo abarca os estudos que têm como foco a busca da legalidade daquelas
políticas frente a alguns princípios do ordenamento jurídico capitalista. Por um lado, as
análises com esse viés buscam encontrar respaldos jurídicos para a implementação das
políticas de ação afirmativa e, por outro, defender a posição de que aquelas políticas
podem ser adotadas desde que respeitando alguns valores como a meritocracia e a
autonomia universitária (GOMES, 2001; RIOS, R. R. 2008; OLIVEIRA JR, 2008; C. A.
SILVA 2009; HAAS & LINHARES, 2012; SILVA, 2014).
Os estudos supracitados buscam demonstrar a constitucionalidade das ações
afirmativas, com base na Constituição de 1988, com enfoque especial nos princípios da
liberdade e igualdade. Se por um lado, é consenso entre os referidos autores alguma
flexibilização dos princípios de liberdade e igualdade, concebendo as políticas de ação
afirmativa como instrumentos para que alguns grupos possam alcançar a igualdade de
oportunidades, por outro lado há divergências entre eles quanto aos desdobramentos da
adoção daquelas políticas frente a valores consagrados pela ordem liberal: a
meritocracia e a autonomia universitária (OLIVEIRA JR., 2008; SILVA, 2009; HAAS
& LINHARES, 2012).
A abordagem sobre adoção de Políticas de ação afirmativa na perspectiva
supracitada apresenta uma contradição no interior do seu argumento: na medida em que
apoia a adoção de Políticas de ação afirmativa recorrendo aos princípios jurídicos
presentes na Constituição de 198864, alguns estudos nessa abordagem defendem a
subordinação da busca pela igualdade de oportunidades em defesa de valores que
contribuem para a manutenção das desigualdades como a defesa da autonomia
universitária.
64 A Constituição de 1988 faz uma distinção entre igualdade formal e igualdade material, instituindo a
possibilidade de ações estatais para a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais. Reconhece que
dada as condições de desigualdade faz- se urgente uma medida mais efetiva e rápida, o que legitimaria
as ações afirmativas (Cf. OLIVEIRA JR., 2008).
105
A defesa do princípio da autonomia universitária encontra grande respaldo no
meio acadêmico65, principalmente quanto à discussão sobre a modalidade de ação
afirmativa com reserva de vagas raciais, como fica evidente na linha argumentativa
adotada por Haas & Linhares (2012) ao analisarem a implementação de ações
afirmativas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e da Universidade de Brasília:
“[…] A postura do governo do Estado do Rio de Janeiro de não ouvir as
sugestões das próprias instituições envolvidas, acarretando violação à
autonomia das universidades, levou centenas de alunos e as próprias
entidades sindicais que representam as escolas particulares do Rio de Janeiro
a questionarem a legalidade da implantação do sistema de cotas, mediante
ações junto ao Poder Judiciário. A universidade, por sua autonomia,
configura-se no espaço privilegiado de interlocução para proposições de
reformas educacionais que possam proporcionar desde o início da educação
básica, indistintamente, a igualdade de acesso à cultura e ao conhecimento
[...] Dentro dos limites dessa autonomia, a universidade tem o poder de
agrupar educadores, profissionais da educação e políticos visando à criação
daquilo que poderia ser chamado um pacto pela melhoria da educação
brasileira, isto porque iniciativas colocadas de maneira isolada, embora
legítimas, podem prejudicar o debate sobre a efetividade dessas medidas de
ações afirmativas” (idem, p. 851).
O argumento da ‘imposição’ das políticas de ação afirmativa está atrelado a
uma suposta preocupação advinda principalmente dos docentes das universidades para
quem as ações afirmativas, quando não planejadas e amplamente discutidas no meio
acadêmico, ameaçariam a qualidade das Instituições de Ensino Superior (IES). A
qualidade estaria ameaçada pela falta de planejamento com foco no suporte necessário
para a permanência dos cotistas na universidade. Sobre essa perspectiva, os autores
afirmam que quando ocorre a implementação das políticas sem o devido planejamento
pelo próprio corpo docente da IES, “[...] teria a universidade que admitir o
considerável risco de evasão desse grupo de beneficiados por falta de condições
sociais, econômicas e intelectuais” (idem, p. 853).
Consideramos que a defesa da autonomia universitária tem sido um mecanismo
eficaz na manutenção da fração da classe média alta e branca e na (re) produção do
racismo institucional. A defesa da autonomia tem dificultando “as mudanças nas regras
do jogo” e mantida intactas as estruturas de poder que asseguram a distinção da classe
média das outras classes. A autonomia universitária converteu-se em mecanismo de
reprodução da ordem ao longo do processo de adoção de políticas de ação afirmativa
65 Basta observar algumas matérias com pronunciamento de docentes utilizando tal argumento: “Reitores
e SBPC criticam lei de cotas por ferir autonomia de universidades federais” (O Globo, 2012), Críticas à
lei de cotas por ferir autonomia de universidades federais (Jornal da Ciência, 2012), Cotas para alunos
de escolas públicas dividem comunidade universitária brasileira (DW, 2012), Cotas para alunos de
escolas públicas divide comunidade universitária (O povo, 2012), Contradições e polêmicas das cotas nas
universidades públicas (IG, 2012).
106
com reserva de vagas, sendo utilizado como recurso estratégico da fração da classe
média abastada e branca no conflito deflagrado contra as cotas étnico-raciais no ensino
superior.
A argumentação em torno da manutenção do princípio meritocrático é outro
ponto controverso dentro da perspectiva daqueles estudos. Basicamente o foco da
análise se dá na argumentação da suposta ameaça à qualidade do ensino, caso
mecanismos supostamente meritocráticos de seleção, como é o caso do vestibular,
fossem totalmente rechaçados ou flexibilizados.
A preocupação com a manutenção da meritocracia tem sido recorrente no
posicionamento contrário à adoção de Políticas de ação afirmativa com reserva de vagas
raciais, principalmente nas universidades estaduais públicas paulistas e o seu emprego,
como veremos nos capítulos a seguir, se constituiu como um recurso ideológico
fundamental da fração superior da classe média.
O isolamento entre trabalho manual, de um lado, e trabalho não-manual, de
outro, é concebido e ao mesmo tempo reproduzido pela classe média como resultado da
hierarquia decorrente dos méritos individuais. Assim, a vaga em uma universidade
pública, disputada no vestibular, seria resultado apenas do esforço e da dedicação
pessoal, logo, a vaga é concedida a quem merece, a quem se esforçou para alcançá-la.
É possível afirmar que um vestibulando que trabalha 40 horas por semana para
contribuir para a renda familiar está concorrendo nas mesmas condições que um
vestibulando que não trabalha e que se dedica integralmente a estudar para a prova do
vestibular? A argumentação do merecimento simplesmente ignora o funcionamento do
sistema capitalista: a exploração de determinadas classes para produção de mais-valia
que implica na subordinação dos despossuídos dos meios de produção e na dominação
daqueles pelos donos dos meios de produção. É nesse sentido que recorrer ao discurso
do mérito serve para reproduzir a falácia defendida pelo direito no modo capitalista de
produção: cidadãos com direitos individuais e iguais perante a lei (apenas
abstratamente).
O argumento em favor da meritocracia, no contexto da adoção de ações
afirmativas, tem sido empregado para justificar, por meio do suposto esforço ou
qualidades individuais, a manutenção da fração de classe média abastada e branca no
seu nicho de reprodução material e diferenciação em relação aos trabalhadores manuais:
a universidade.
107
Outro agrupamento de pesquisas sobre cotas têm dado enfoque às ações
afirmativas e aos modelos de desenvolvimento político econômico, enfatizando os
impactos de tais políticas para o mercado de trabalho (TOMEI, 2004; SANT’ANNA,
2006) e para a relação entre a implementação e/ou ampliação de políticas sociais no
processo de transformações no modelo de desenvolvimento vigente na fase atual do
capitalismo (JACCOUD, 2009).
Os estudos de Tomei (2004), Sant’anna (2006) e Jaccoud (2009) têm como
preocupação central compreender os impactos políticos, econômicos, sociais e
educacionais das transformações decorrentes da adoção de Políticas de ação afirmativa,
com especial atenção ao caso brasileiro. O Estado-Nação é o referencial analítico
central para aqueles estudos que acreditam que é no âmbito nacional, por meio de
políticas nacionais, que o Estado poderá amortecer o impacto das contradições do
sistema capitalista adotando políticas que busquem ‘harmonizar’ mercado e direito.
Como afirma Tomei (2004):
“[...] A globalização e as democracias baseadas no livre mercado colocaram
sérios desafios para as sociedades multiétnicas dominadas por certos grupos,
em geral de origem estrangeira. A privatização e a abertura econômica
aumentaram a riqueza desses grupos étnicos dominantes e alargaram as
distâncias que os separam dos grupos relegados da população. Ao mesmo
tempo, a democracia abriu novos canais para que os grupos despossuídos
expressassem sua insatisfação. O efeito combinado dessas duas tendências
tem, às vezes, levado a violentas revoltas e turbulências sociais, revelando a
necessidade de paradigmas de desenvolvimento mais inclusivos em termos
raciais” (idem, p.6).
Os referidos estudos têm contribuído principalmente para entendermos o
processo de renovação do ordenamento jurídico para a produção do direito no modo de
produção capitalista. No entanto, ao privilegiar ou dar maior ênfase às mudanças no
âmbito do Estado-Nação que possibilitariam a adoção de políticas de ação afirmativa,
relegam para o segundo plano as mudanças a nível internacional que também
influenciam o cenário nacional, interferindo no encaminhamento das resoluções das
desigualdades raciais. A centralidade conferida ao papel do Estado e dos conflitos
internos acaba por minimizar os impactos das contradições do sistema capitalista a nível
global:
“[...] Este debate [das Políticas de ação afirmativa] foi apresentado à
sociedade brasileira pelo movimento negro [...] Tais demandas provocaram a
ampliação do reconhecimento da relevância do tema do racismo e da
discriminação racial como fenômenos sociais ativos na sociedade brasileira,
diante do qual, entretanto, levantaram-se resistências e oposições. Este novo
contexto foi marcado por progressiva afirmação do objetivo da promoção da
igualdade racial como meta política e tema organizador de políticas públicas
[...]” (JACCOUD, 2009, p. 11).
108
Gostaríamos de chamar atenção que estamos em absoluta concordância com os
supracitados autores quanto à importância do movimento negro na luta pela
reivindicação das políticas afirmativas, entretanto gostaríamos de chamar a atenção
para: 1) o perigo do super dimensionamento desse papel e; 2) a minimização dos limites
impostos pelo capitalismo a nível internacional. Para citarmos um acontecimento a nível
internacional que foi um divisor de águas nas ações voltadas ao combate ao racismo no
Brasil. basta lembrarmos as consequências para o Estado brasileiro da III Conferência
Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância
Correlata, de 2001, em Durban, na África do Sul, que desembocou na criação (dentre
outros fatores, também graças a atuação do movimento negro brasileiro) de um decreto
presidencial em que o governo brasileiro lançou o Programa Nacional de Ações
Afirmativas sob a coordenação da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do
Ministério da Justiça em 2002. A partir desse programa foram aprovadas políticas de
ação afirmativa para a população negra a nível federal. Um feito inédito na história de
combate às desigualdades raciais.
Válido frisar que a relação entre o âmbito nacional e internacional não ocorre de
maneira mecânica, de ação e reação, e por isso as análises sobre aquela relação
necessitam que problematizemos de que forma a complexa dinâmica do poder global do
sistema capitalista atrelada às relações econômicas e políticas entre os Estados incide
sobre as estratégias de luta dos movimentos sociais e nas próprias ações dos Estados no
âmbito nacional. As perguntas centrais que os referidos estudos não fazem são: em que
medida a dinâmica do sistema capitalista mundial, em seus diferentes momentos de
acumulação, aprofunda ou ameniza as desigualdades raciais? E ainda, de que forma
aquela dinâmica se relaciona com a esfera nacional? E como os movimentos sociais se
situam nessas conjunturas?
À medida que não realizam críticas contundentes ao problema da concentração
dos meios de produção e da riqueza, a defesa de ações afirmativas como mecanismos
importantes para políticas de desenvolvimento do Estado se constitui como outro ponto
problemático dessa linha argumentativa. Ao não problematizar a frágil conciliação entre
desenvolvimento econômico e inclusão social, os estudiosos dessa abordagem ignoram
que os grupos economicamente hegemônicos existem em decorrência do modo como
está organizado o sistema capitalista (DANNER, 2011). Portanto, as ações de inclusão
dentro do modo capitalista de produção são limitadas e mantidas apenas quando não
109
confrontam a estrutura de classes. Reconhecemos, obviamente, o poder desorganizador
desse tipo de política, mas é preciso que as análises deem conta também de outro
processo que ocorre sempre que há a possibilidade de fissura da ordem capitalista
orientada pela “lógica do equilíbrio” (FANON, 2015, p. 325). Ou seja, é preciso estar
atento à dinâmica própria do capitalismo que rapidamente transforma o que era
movimento dialético em equilíbrio para manter a ordem estabelecida.
O segundo conjunto de argumentações abrange os estudos que analisam as ações
afirmativas a partir de uma perspectiva multicultaralista e/ou comunitarista. Essas
perspectivas têm inspirado boa parte da produção bibliográfica sobre ações afirmativas
no Brasil. Nessa abordagem, a maioria dos estudos tem como premissa a ideia de que a
ação afirmativa está fundada em ideais de reconhecimento e valorização das diferenças
culturais de alguns grupos, no caso das ações afirmativas no ensino superior brasileiro,
os negros e indígenas (CAMPOS et al, 2014).
A preocupação que orienta as análises nessa abordagem é verificar as
possibilidades das ações afirmativas instituirem direitos grupais acarretando com isso a
normatização de identidades baseadas em diferenças culturais.
De um lado da controvérsia presente na abordagem multiculturalista estão os
críticos que acreditam que as ações afirmativas gerariam diferenciações raciais e,
portanto, racializariam a sociedade brasileira, estimulando o racismo com a consequente
divisão do povo brasileiro e destruição da identidade nacional. Exemplos desse tipo de
interpretação podem ser encontrados em Souza J. (1997), Grin (2004), Maggie & Fry
(2004), Kaufmann (2007) e Magnoli (2009). E, do outro lado, há os que defendem tais
ações porque elas encorajariam o reconhecimento de identidades pautadas por
concepções étnicas e culturais de grupos não brancos oprimidos por uma supremacia
branca. A cerca dessa interpretação podemos situar as análises de Bernardino (2002),
Queiroz & Santos (2007), Macedo (2006) e Medeiros (2007).
Evidenciadas por Campos & Feres Jr. (2014), as confusões de cunho teórico e
histórico no interior da abordagem dos autores supracitados se deve principalmente à
ligação necessária que esses críticos fazem entre ação afirmativa racial e direito à
diferença cultural. Campos & Feres Jr. (Idem) argumentam que ainda que as Políticas de
ação afirmativa façam uso da discriminação positiva de determinados grupos, tais
políticas não têm como objetivo principal fomentar a normatização de identidades, mas
apenas equalizar “oportunidades sociais e a consequente assimilação de grupos
subalternos aos estratos superiores da sociedade” (Idem, p.116).
110
A hipótese sugerida por Campos & Feres Jr. (2014) para a confusão feita pelos
autores que concebem as politicas afirmativas como políticas de fomento à formação de
identidades culturais estariam relacionadas ao fato do multiculturalismo, como ideal
normativo de convivência entre diferentes grupos culturais, e as ações afirmativas,
terem emergido quase simultaneamente na década de 70 (o primeiro na Inglaterra e o
segundo nos Estados Unidos). Tal fato implicou em um movimento de certa forma
articulado entre a produção acadêmica inglesa sobre o multiculturalismo e a produção
de análises estadunidenses sobre Políticas de ação afirmativa (Idem).
A pergunta que os estudiosos da corrente multiculturalista parecem não querer
fazer e que é essencial para o entendimento da questão das ações afirmativas é a
seguinte: tendo as políticas de ação afirmativa uma dimensão redistributiva de
oportunização de acesso aos negros ao ensino superior público, quais seriam as
implicações geradas pelas políticas de ação afirmativa para o processo de manutenção e
reprodução de poder das classes? Como a classe média alta e branca se posiciona frente
aos efeitos gerados pelas Políticas de ação afirmativa nas universidades públicas?
A análise das primeiras manifestações contrárias às cotas étnico-raciais não
deixam restar dúvidas quanto à necessidade de olharmos mais profundamente sobre os
contornos que assume o conflito gerado pelas cotas. Ainda assim, grande parte das
análises sobre as políticas de ação afirmativa parecem permanecer indiferentes à
potencialidade da articulação analítica entre raça e classe. Como desdobramento, há
certa reprodução de um lugar comum em boa parte da literatura sobre políticas
afirmativas, desafiando pouco ou timidamente o entendimento burguês de direito, o que
acaba por ocultar do debate a dimensão do conflito político informado por classe e raça.
Por fim agrupamos alguns estudos que têm analisado o debate sobre cotas
étnico-raciais sob o aparato do referencial teórico marxista com ênfase na classe. A
discussão sobre a relação entre classes, frações de classe, raça e políticas de ação
afirmativa, em nosso entendimento, ainda carece de articulação orgânica entre essas
categorias e a proposição de um arcabouço que inclua as especificidades que a luta de
classes vem assumindo no Brasil. Isso porque o debate atual que tem sido feito por
alguns autores marxistas ainda se encontra limitado a apenas polarizar entre
desigualdade social e desigualdade racial.
Alguns pesquisadores marxistas como Domingues (2005), Silva J. B. (2010,
2013a, 2013b), Arcary (2007), Buonicore (2005), Marcom (2012), têm tentando
enfrentar a difícil equação entre raça e classe diante do debate sobre ações afirmativas.
111
A perspectiva daqueles autores é a de que é fundamental, no contexto de formação do
capitalismo no Brasil, articular opressão racial e questões de classe para compreender
como a ideia de raça produziu a distribuição racista do trabalho no capitalismo.
Para os referidos autores, a formação da classe trabalhadora brasileira tem fortes
traços das ideias racistas que privilegiaram, no pós-abolição, a força de trabalho
imigrante em detrimento da força de trabalho dos negros livres nos núcleos urbanos em
processo de industrialização. Nesse sentido, as marcas raciais, além de servirem como
classificação básica da população, compõem os aspectos sociais que culminam na
distribuição dos postos de trabalho.
Outros pensadores marxistas que têm tratado sobre o tema, o têm feito de modo
a insistir na centralidade da classe. Pensadores como Siss (2003), Lessa (2007), Maestri
(2007) e Penna (2014) são enfáticos em tratar o racismo como menos importante ou até
mesmo como inexistente frente às desigualdades causadas pela posição de classe, pois
admitir as desigualdades raciais seria incorrer no perigo de “desarme ideológico das
forças revolucionárias” (LESSA, 2007, p. 104), criando cisões entre os trabalhadores e,
consequentemente, fissuras na unidade necessária para a luta revolucionária.
Se os referidos pensadores assumem que raça não é um fator que estrutura as
desigualdades no Brasil, é de supor que eles pactuam com o mito da democracia racial.
Nesse sentido, o tratamento dispensado pelos pensadores marxistas ao referido mito
parece indicar certa proximidade com a produção não marxista no sentido de tomarem
tal mito como uma descrição fidedigna da realidade brasileira para validar a
homogeneidade existente na classe trabalhadora brasileira (PAIXÃO, 2013). A
apropriação acrítica do mito da democracia racial pelos pensadores marxistas tem
levado essa corrente a defender cegamente a absoluta priorização da luta dos
trabalhadores, tratando de maneira apriorística as lutas do movimento negro como lutas
residuais ou como identitárias e, portanto, restritas.
Importante assinalar que reconhecemos que as políticas de ação afirmativa se
inserem num campo de avanços relacionados à ampliação do alcance nos limites do
direito burguês, entretanto, tal constatação não implica na afirmação de que a população
negra, diferentemente da população branca, deva esperar por condições históricas outras
para que tenham acesso a condições de vida mais dignas. Negar a urgência da
necessidade de avançarmos no enfrentamento ao racismo é ser leniente com as
atrocidades que o racismo-enquanto mecanismo de opressão do capitalismo- tem
causado a 53% da população brasileira.
112
Além disso, os avanços da luta negra em relação ao direito a acessar espaços
(universidades, ocupações não-manuais) não destinados aos negros tem implicado no
questionamento dos pilares que sustentam a estrutura capitalista, pilares que por sua vez
alimentam o processo de acumulação do capital. Com isso, o que queremos dizer é que
as políticas de ação afirmativa apesar de carregarem nos seus pressupostos fundantes a
gramática burguesa do direito, os processos de tensionamento que elas têm gerado no
Mundo Moderno não podem ser menosprezados.
Em outras palavras, as políticas de discriminação positiva, como é o caso das
Políticas de ação afirmativa, estão embasadas e amparadas no direito burguês,
entretanto o processo de luta (disputas e tensionamentos) que acompanha historicamente
a implementação dessas políticas tem mostrado que o campo do direito é um campo em
disputa e que o movimento negro tem utilizado das “frestas”, das fissuras para explorar
as contradições inerentes ao direito burguês. Nesse sentido gostaríamos de explorar o
insejo da crítica marxista aos limites do aparato legal dos direitos humanos mas
distendendo aquela abordagem tomando como exemplo as disputas travadas pelo
movimento negro no âmbito do direito, incluindo as cotas no ensino superior público e
como esse terreno, longe de ser dado como um campo fechado e coeso, tem sido lugar
de disputa de significados reivindicados pelo movimento negro66.
As lutas do movimento negro e as encruzilhadas do direito no sistema
capitalista
A aprovação das cotas no contexto brasileiro foi um raro momento, equiparável
em nossa análise apenas à Assembleia Nacional Constituinte e ao Centenário da
66 Válido dizer que, ainda que estejamos a chamar de “Movimento Negro”, no singular, não estamos a
negar ou mesmo ignorar a multiplicidade de organizações que compõem a luta negra no Brasil, mas
chamando atenção para o fato de que mesmo essa multiplicidade partilha entre si uma agenda comum de
reivindicações como foi o caso da II Marcha contra o Racismo, Pela Igualdade e a Vida, realizada em
Brasília no dia 22 de novembro de 2005 que, em seu Manifesto assinado por 13 organizações nacionais e
representantes de 21 estados de todo o Brasil apresentava-se como “[...] Uma marcha que além de fazer
um balanço das conquistas e avanço obtidos ao longo desses dez anos, tem como objetivos exigir do
Estado Brasileiro o reconhecimento do conceito de reparação como eixo principal para implementação de
políticas de combate ao racismo e de promoção da igualdade racial, acompanhamento as orientações da
Declaração e do Programa de Ação da III Conferencia Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Correlatas. Uma marcha que vai exigir do Governo Lula e do Congresso
Nacional, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e do Projeto de Cotas nas Universidades,
agilização da titulação e regularização das terras quilombolas.” (Manifesto da Marcha Zumbi +10,
Brasília, 22/11/2005). Disponível em: https://democraciasocialista.org.br/ii-marcha-contra-o-racismo-
pela-igualdade-e-a-vida/. Acesso em: 30 mar. 2016.
113
Abolição. O enfrentamento feito desde dentro das instituições representativas, pelo
movimento negro frente à mobilização pela aprovação das políticas de ação afirmativa
com reserva de vagas étnico-raciais conseguiu, dentre outros feitos: 1) problematizar a
persistência da crença do mito da democracia racial na sociedade brasileira e nas
instituições do Estado, como é o caso das universidades públicas e; 2) secundarizar a
ideologia meritocrática.
Os desafios enfrentados pelo movimento negro no processo de mobilização
jurisprudencial encontram-se principalmente na tarefa de “explorar os limites e
possibilidades do discurso dos direitos humanos” (PIRES, 2018) frente ao peso da
narrativa, que orienta também a atuação do judiciário, quanto à “herança de um
passado escravocrata” como chave explicativa para situação dos negros no pós-
abolição e a crença absoluta no alcance do arcabouço normativo dos direitos humanos
desarticulada das formas de atualização da estrutura racista no estado democrático.
Peguemos como exemplo ilustrativo o voto de dois dos ministros do STF quando da
votação pela constitucionalidade das cotas étnico-raciais no ensino superior em 2012:
“[…] A construção de uma sociedade justa e solidária impõe a toda coletividade a
reparação de danos pretéritos perpetrados por nossos antepassados adimplindo
obrigações jurídicas […]” (Voto do ministro Luiz Fux. Cf. BRASIL, 2012a).
“[…] Se a raça foi utilizada para construir hierarquias, deverá também ser
usada para desconstruí-las" […] O que não se admite é a desigualdade no
ponto de partida. O modelo constitucional brasileiro contempla a justiça
compensatória […] Não basta não discriminar. É preciso viabilizar. A
neutralidade estatal ao longo dos anos mostrou-se um fracasso […]” (Voto
do ministro e relator Ricardo Lewandowski, Cf. BRASIL, 2012a).
A jurisprudência brasileira, a depender do campo sob o qual atua, condiciona
legitimidade reivindicativa às demandas advindas do movimento negro a partir da
narrativa do legado do passado escravocrata, o que de um lado é estratégico por reforçar
o legado do passado no presente, mas por outro lado, ao apelar para o argumento da
neutralidade, dar a entender nas entrelinhas que há um entendimento compartilhado
entre os operadores de justiça de que a jurisprudência no estado de direito não é
compatível com a existência de uma estrutura racista que segue vigorosa nos estados
modernos e democráticos.
Ao afirmar no seu voto pela constitucionalidade das cotas que “[…] a
neutralidade estatal ao longo dos anos mostrou-se um fracasso”, o então ministro e
relator do caso quanto a constitucionalidade das cotas no ensino superior, Ricardo
114
Lewandowski, parece ter um entendimento de racismo institucional como empregado
pelo juiz britânico William Macpherson:
“[…] the collective failure [grifo nosso] of an organization to provide an
appropriate and professional service to people because of their color, culture
or ethnic origin”. It is seen in “processes, attitudes and behavior which
amount to discrimination through unwitting prejudice, ignorance,
thoughtlessness and racist stereotyping which disadvantages minority ethnic
people” (MACPHERSON, 1999, para 6:34).
Como vem chamando atenção Araújo (2018), a definição de racismo
institucional, que ficou internacionalmente conhecida, exposta no relatório do juiz
Macpherson a partir do caso assassinato do adolescente negro Stephen Lawrence pela
polícia britânica em 1999, contribui para o esvaziamento histórico e desvinculação da
própria concepção original do termo, cunhado por Kwame Ture e Charles Hamilton em
1967, que não deixam restar dúvidas quanto ao entendimento do caráter ordinário do
racismo e da relação entre racismo a violência institucionalizada nas mãos do Estado–
ou seja, do estado de direito.
O voto do então ministro e relator Ricardo Lewandowski sintetiza o
entendimento do poder judiciário sobre a possibilidade da existência do racismo
praticado pelo aparato estatal: a de que a “neutralidade” do estado de direito é apenas
“uma falha” (por ser considerada uma não tomada de posição) e que nesse sentido não é
entendida como inserida numa série de práticas (institucionalizadas, no sentido que
Kwame Ture e Charles Hamilton cunharam) legitimadas pelo Estado que culminam na
negação sumária de direitos aos negros.
O argumento dado pelo então ministro sobre a “neutralidade” do Estado frente à
situação dos negros no Brasil, é debitado na conta de um passado (escravocrata) no qual
ali, sim, a “raça foi utilizada para construir hierarquias”, reiterando o imaginário que
incompatibiliza estado de direito burguês e racismo.
O argumento da “neutralidade” inclusive é recorrente nas instâncias jurídicas e
condizente com o modo de funcionamento da sociedade brasileira na medida em que a
neutralidade produz e reproduz os mecanismos racistas, ao mesmo tempo, abertos e
velados (TURE & HAMILTON, 1992) que colocam entraves para o desmascaramento
do racismo como estruturante das relações sociais. Assim, tanto o juiz William
Macpherson como o ministro Ricardo Lewandowski, convergem para a ideia de racismo
como aberração e dos estados modernos democráticos em oposição ao fascismo- esse
sim, um sistema que é compatível com racismo. Nesse sentido, como aponta Hesse
(2004) “[…] the failure to examine their conceptual and social implications [of the
115
racism] conceals the governmental dimensions and colonial inheritances of western
racism” (Idem, p. 132).
Voltemos para a votação em 2012. A percepção dos ministros quanto à
justificativa para votar pela constitucionalidade das cotas não foi uníssona e a
justificativa com base na justiça distributiva foi também invocada na votação:
“[…] Se os negros não chegam à universidade, por óbvio não compartilham
com igualdade das mesmas chances dos brancos”, afirmou. “Não parece
razoável reduzir a desigualdade social brasileira ao critério econômico […] ”
(Voto da ministra Rosa Weber. Cf. BRASILa, 2012).
“[…] A discriminação está tão enraizada na sociedade brasileira que as
pessoas nem percebem. Ela se torna normal [é natural que as cotas] atraiam
resistência da parte daqueles que historicamente se beneficiam da
discriminação de que são vítimas os grupos minoritários […]” (Voto do
ministro Joaquim Barbosa, Cf. BRASILa, 2012).
“[…] O mérito é um critério justo apenas entre candidatos que tiveram
oportunidades idênticas ou assemelhadas[…]” (Voto do ministro Cezar
Peluso, Cf. BRASILa, 2012).
O reconhecimento dos limites da igualdade abstrata e reconhecimento da
legitimidade constitucional das cotas pode ser considerado, em nossa análise, um
segundo grande momento histórico para o movimento negro no período pós-
redemocratização. O primeiro, como apontou Rios F. (2014), ocorreu com “a
mobilização durante a redemocratização que culminou na Assembleia Nacional
Constituinte e no Centenário da Abolição, que foram momomento cruciais de
legitimação da agenda de reivindicações do movimento negro na esfera pública. Mais
do que isso: o tema da injustiça racial inseriu-se na agenda nacional” (Idem, p.168),
reconhecendo os negros como sujeitos de direitos.
O segundo momento, para nós, advindo com a aprovação das cotas, confirma
que a agenda reivindicativa desses sujeitos de direitos ganhou legitimidade frente ao
Estado brasileiro. Em outras palavras, a constitucionalidade das cotas fortaleceu a
agenda antirracista reivindicada pelo movimento negro, aumentando o espaço para as
reivindicações do movimento e a problematização no debate público sobre os limites
das políticas universalistas com foco na pobreza (dinâmica que até então não tinha sido
questionada pela jurisprudência).
Entretanto se de um lado, há o reconhecimento dos limites da igualdade abstrata,
por outro a crença na neutralidade estatal (e jurídica) frente ao racismo e no mito da
democracia racial ainda orienta a prática jurídica de modo geral.
116
Ao nos depararmos com o fato de que a lei que criminaliza o racismo no Brasil
existe desde 1989, mas há apenas um67 único julgamento que resultou na acusação de
racismo pelo Superior Tribunal Federal nos defrontamos com os limites do Sistema de
Justiça e da produção normativa do Estado de direito num mundo anti-negro. Nesse
sentido gostaríamos de refletir sobre alguns entraves e potencialidades da gramática dos
direitos humanos frente às reivindicações do movimento negro.
As encruzilhadas do direito no sistema capitalista colocam-se como desafio ao
movimento negro que tem no aparato jurídico a possibilidade de agir nas brechas da
gramática dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que esse mesmo aparato também
tem sido um de seus algozes. Se por um lado, a estratégia do movimento negro em
aproveitar as brechas do direito capitalista para reivindicar a efetivação do acesso à
educação superior previstos na lei culminou na aprovação das cotas pelo STF, por outro
lado os limites do aparato legal têm frustrado as tentativas de mobilização do
movimento negro na ampliação da gramática jurídica antirracista quanto ao
enquadramento do crime de racismo68 (e mais recentemente injúria racial), do racismo
institucional e do genocídio negro.
67 O Caso foi a julgamento no STF em 2003 e envolvia acusações de racismo e anti-semitismo. Siegfried
Ellwanger foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) em 1991 pelo
cometimento de crime de racismo com a publicação e venda de livros de temática anti-semita. Mas há,
ainda que pouquíssimos casos julgados em outras instâncias. O primeiro caso de racismo julgado de
acordo com a Lei Afonso Arinos aconteceu no Rio de Janeiro em 1955, onde um aluno negro foi expulso
de uma escola de elite carioca frente à pressão dos pais “incomodados” com a presença da única criança
negra na mais recente escola da elite carioca onde estudavam filhos da elite ‘dos bacharéis’ como Van
Lammeren, Malcon Morris, Von Bertrand. Os diretores foram condenados a pagar multa. E alguns
raríssimos casos julgados como tal nas instâncias estaduais de justiça, como foi o caso do procurador
federal condenado por racismo no Distrito Federal em sob a acusação de ter feito ofensas primeiramente
contra judeus que depois se estenderam a negros e nordestinos. As ofensas ocorreram em 2007, mas o réu
foi apenas condenado em 2014 pela 3ª Vara Criminal de Brasília (Cf. RODRIGUES M., 2014). 68 Após uma bailarina negra norte-americana, Katherine Dunhan, ter sido impedida de se hospedar num
hotel luxuoso paulistano por ser negra em 1951, maculando a imagem da democracia brasileira no cenário
internacional, o jurista e deputado federal Afonso Arinos de Melo Franco propôs a primeira lei contra a
discriminação racial no Brasil, sendo aprovada em 1951. A lei não considerava o racismo como crime,
caracterizando-o apenas como contravenção penal, ficando o infrator sujeito a penas muito brandas, como
o pagamento de multas. Mas não previa prisão. O “tom cosmético” da lei foi problematizado por certa
parte do movimento negro a partir dos anos 70 e 80, e em 1989, o racismo passou a ser crime inafiançável
e diz respeito a toda conduta discriminatória dirigida a determinado grupo ou coletividade. Interessante
ainda analisar o posicionameto da impressa brasileira frente ao caso da bailarina negra nos anos 50 e que
contribuiu para a aprovação da Lei. Em uma análise bastante instigadora acerca da “Discriminação racial
e imprensa no início dos anos 1950: um retrato da Lei Afonso Arinos em sua concepção e nascimento”,
Walter de Oliveira Campos (2015) assim relata o posicionamento dos jornais de grande circulação à
época“[…] Os discursos e comentários sobre o projeto de lei, na época de sua apresentação, ainda sob o
calor do constrangimento causado pelo episódio Katherine Dunham, são favoráveis à medida legislativa,
a qual era considerada necessária à prevenção contra algumas práticas discriminatórias isoladas, na visão
de uns, e contra um racismo incipiente que ameaçava instalar-se no país, na visão de outros.” ( Idem, p.
292).
117
O foco da jurisprudência no Brasil quanto ao racismo tem sido o combate ao
racismo moral, e ainda assim mesmo nesse enquadramento plenamente amparado na
legislação nacional, a discriminação racial continua sendo tratada como crime menor
pelos operadores de direito no Brasil e a própria lei tem criado uma série de obstáculos
para que as denúncias cheguem às instâncias de justiça69.
Sobre os crimes de injúria racial, o primeiro problema é a exigência da Lei em
comprovar a intencionalidade do acusado, dificultando a produção de provas. Em
segundo lugar, a inclusão da mudança na Lei, realizada em 2009, que determina que a
denúncia de crime de injúria racial só avançe mediante a representação do Ministério
Público (MP) implica que o “dono” da ação é o MP, que detém a decisão final de
prosseguir ou não com a denúncia, retirando da vítima qualquer autonomia frente às
instituições de justiça e servindo como desestímulo às denúncias.
A própria adoção do termo injúria racial esvazia o contexto histórico e sócio-
econômico que caracteriza a motivação racista em crimes desse tipo e evidencia os
paradoxos da luta do movimento negro frente ao direito burguês, pois ao mesmo tempo
em que a institucionalização dos direitos humanos oferece a possibilidade de
democratização de fato das instituições burguesas, por outro o enquadramento do direito
burguês ao racismo, evidencia os limites das reivindicações por reformas. Nesse
contexto, definido como crime que ocorre quando há ofensa contra honra de alguém se
valendo de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, a definição de
injúria acaba por desvincular o racismo do contexto social no qual é produzido,
restringindo a ofensa unicamente ao indivíduo e não ao grupo ao qual pertence
desembocando no apagamento da função de um crime racista: reproduzir um status de
superioridade contra o ofendido com base no contexto de relações sociais construídas
historicamente. Em outras palavras, o enquadramento como injúria está relacionado à
intenção de querer causar mácula ou mágoa em alguém por meio de expressões, o que
acaba por esvaziar o conteúdo histórico no qual está assentado esse tipo de crime e
individualizar o racismo.
A discussão sobre a possibilidade de existência do racismo institucional como
mecanismo presente nas instituições do Estado, nas sociedades ditas democráticas não
encontra interlocutores na instância máxima do sistema de justiça brasileiro. O Estado, e
69 Dados de 2017 do estado do Rio de Janeiro, por exemplo, revelam que em 30 anos de existência da Lei,
apenas 244 casos de racismo e injúria racial foram concluídos e 40% desses foram considerados
improcedentes pela justiça na área cível (Cf. GLOBO NEWS, 2017).
118
consequentemente a jurisprudência brasileira, pauta-se em um entendimento de racismo
tomando o holocausto como referência e a concepção de direitos humanos “[…] como
capazes de responder aos anseios de dignidade e pleno desenvolvimento da autonomia
em qualquer tempo/espaço e para qualquer pessoa […]” (PIRES, 2017, p. 2).
A jurisprudência parece ainda orientar suas ações pautadas no conceito de
racismo como aberração, gestado e reproduzido exclusivamente na mente de pessoas
antidemocráticas e apenas em contextos em que as instituições democráticas não estão
funcionando plenamente, conduzindo a um entendimento jurídico de que é incompatível
com o Estado brasileiro, a existência de práticas institucionais que impliquem na
negação de direitos ou na negligência de prestação de serviços públicos a determinados
grupos unicamente por causa da cor70.
O conceito de genocídio também tem sido campo de disputas na construção de
uma nova gramática contra-hegemônica do enquadramento jurídico do genocídio e o
movimento negro, desde os anos 50 nos Estados Unidos e a partir dos anos 60 e 70 no
Brasil, vêm disputando o conteúdo desse termo. Em ambos os contextos, o termo
começou a ser mobilizado pelos movimentos negros para denunciar a esterelização
compulsória de mulheres negras e indígenas.
O termo genocídio foi cunhado pelo jurista polonês Raphaël Lemkin, na sua
obra “O Domínio do Eixo na Europa Ocupada”, publicada nos Estados Unidos em 1944
e vem da união dos termos gregos “geno” (tribo, raça) e “cide” (caedere, matar). O
termo foi cunhado originalmente para designar qualquer tipo de ataque que ameaçasse a
destruição social, econômica, cultural e política de grupos:
“[…] Generally speaking, genocide does not necessarily mean the immediate
destruction of a nation, except when accomplished by mass killing of all the
members of a nation. It is intended rather to signify a coordinated plan of
different actions aiming at the destruction of essential foundations of the life
of national groups (...) The objectives of such a plan would be the
disintegration of the political and social institutions of culture, language,
national feelings, religion, [and] economic existence of national groups, and
the destruction of the personal security, liberty, health, dignity, and even the
lives of the individuals belonging to such groups […]” (LEMKIN, 1944, p.
79)
70 Válido pontuar que o Brasil foi condenado em 2006 pela Organização dos Estados Americanos (OEA)
por ter violado a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção Racial ao permitir que um
caso de racismo fosse arquivado sem a abertura sequer de uma ação penal. O caso (ocorrido em 1997)
tratava-se de uma denúncia de uma empregada doméstica que foi barrada em uma vaga de emprego por
ser negra na cidade de São Paulo mas que teve sua acusação arquivado pelas instâncias de justiça. O
inquérito conduzido pelo sistema de justiça de São Paulo e que foi concluído em duas semanas, sem
responsabilizar ninguém. Na época, o Ministério Publico recomendou o arquivamento do caso por não
haver "qualquer ato de racismo" ou "base para oferecimento de denúncia" e o juiz acatou a
recomendação, arquivando o caso antes mesmo do mesmo virar ação penal (Cf. PENTEADO, 2006).
119
O conceito de genocídio (tal como todo o arcabouço linguístico relativo à
categoria de raça) tem sido campo de disputa intensa entre Estados e movimentos
sociais no contexto do pós-holocausto. Apesar de Lemkin ter concebido o termo de
forma menos restritiva, como consta em um artigo dele próprio no American Journal
of International Law em 1947, no qual define o crime de genocídio como uma ampla
gama de ações “including not only the deprivation of life but also the prevention of life
(abortions, sterilizations) and also devices considerably endangering life and health
(artificial infections, working to death in special camps, deliberate separation of
families for depopulation purposes)” (Idem, p. 9), o entendimento que ganhou força e
que se faz presente nas narrativas atuais no campo do direito, é o crime de genocídio
tendo como referência a “experiência paradigmática do Holocausto”.
Ao longo do processo de deliberações que criaria a Convenção para a
Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), as “controvérsias” em relação à
caracterização do crime, os grupos a serem protegidos sob a Convenção, a questão da
prova de intencionalidade, a inclusão do genocídio cultural, os critérios para aplicação
e punição, o grau de destruição para que fosse considerado genocídio estiveram
presentes no debate (KUPER, 1981, p. 24) e o que temos hoje na Convenção é
resultado dessas disputas. Assim encontra-se hoje definido o crime de genocídio como:
Artigo II: [...] um dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir,
ou no todo ou em parte, um grupo nacional, étnica, racial ou religiosa, como
tal: (a) Assassinato de membros do grupo; b) Prejuízo grave para a
integridade física ou mental dos membros do grupo; c) Submissão
intencional do grupo a condições de existência que devem resultar em
destruição física total ou parcial; d) Medidas para impedir partos dentro do
grupo; e) transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo"
(Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Cf. ONU,
1948).
A inclusão da intencionalidade, uma das armadilhas mais permissivas do direito
moderno no que tange a crimes de genocídio, é fruto da pressão, advinda principalmente
dos Estados Unidos da América (EUA) e Inglaterra, que junto a outros países vitoriosos
da Segunda Guerra Mundial pressionavam para que o enquadramento do termo fosse
mais restritivo e por isso os referidos países não estavam de acordo com a concepção
inicial, mediante a possibilidade de o termo vir a ser usado pelas populações subjugadas
naqueles países, o quê de fato ocorreu.
Em 1948 o Comitê de Coordenação Estudantil Não Violento (que mais tarde
fundaria, o que ficou conhecido como o Partido dos Panteras Negras) publicou
"Genocídio no Mississippi", uma carta na qual denunciava e protestava contra as
120
esterilizações involuntárias (fala-se entre 60 mil e 80 mil mulheres, na maioria negras,
esterelizadas) naquele estado e utilizou-se da noção de genocídio de Raphael Lemkin.
Em 1951, o Comitê elaborou a petição “Nós cobramos o genocídio: o crime do
governo contra o povo negro” que foi dirigida à Assembleia das Nações Unidas em
Paris em 1951 com base nos critérios estabelecidos pela Convenção sobre a Prevenção
e Punição do Crime de Genocídio (adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas
em 1948, mas que entrou em vigor em 1951). O documento de 237 páginas acusava o
governo dos Estados Unidos de violência e maus tratos aos afroamericanos.
O documento citava as muitas ocorrências de assassinatos (e linchamentos) de
afro-americanos, bem como espancamentos e execuções ilícitas cometidas por
funcionários públicos. A petição também colocou em questão a discriminação (legal e
política) e a coerção que estava sendo conduzida em todos os níveis do governo federal
e estadual contra os afroamericanos, incluindo a negação do direito ao voto. Tentativas
foram feitas para entregar as cópias da petição à delegação das Nações Unidas em Nova
York e Paris, mas sem sucesso, diante da forte pressão do governo dos EUA
(LANGLEY, 2014).
Interessante ainda pontuar o posicionamento de Raphaël Lemkin que
argumentou que as disposições da Convenção do Genocídio não tinham qualquer
relação com o tratamento dispensado pelo governo dos EUA em relação aos cidadãos
negros. Quando o jornal The New York Times (em 18 de dezembro de 1951) perguntou
a Lemkin o que ele achava da petição elaborada pelo Movimento Negro, ele respondeu
que era uma manobra para desviar a atenção dos crimes de genocídio cometidos contra
estonianos, letões, lituanos, poloneses e outros povos soviéticos subjugados
(LANGLEY, 2014).
A simplificação do conceito de genocídio foi também alimentada pela “ameaça
do perigo vermelho” e que também esteve na argumentação de Lemkim, para quem os
ativistas negros responsáveis pela elaboração da Petição, eram elementos "não
americanos", servindo a uma potência estrangeira. Em 1953, Lemkin escreveu um
artigo para o editorial do jornal The New York Times no qual ele declarava que embora
pudessem experimentar discriminação, os afro-americanos desfrutavam de condições de
crescente prosperidade e progresso nos Estados Unidos e que eles não estavam a ser
ameaçados de "destruição, morte, aniquilação com grande magnitude" – elementos que
caracterizariam o crime de genocídio (Cf. LEMKIN. 1953).
121
Em resposta ao editorial, Oakley Johnson, um dos autores da Petição, enfatizou
que se “aniquilação com grande magnitude” implicar na aniquilição total dos grupos
vítimas do crime de genocídio, então a Alemanha nazista também não poderia ser
acusada de genocídio, pois existiriam milhares de judeus vivendo pós-holocausto
(SCHALLER & ZIMMERER, 2009).
Nesse sentido longe de uma posição antissemita, a argumentação de Oakley
Johnson desafia os limites impostos pela gramática eurocêntrica pós-holocausto que
nega as continuidades de práticas colonialistas nas democracias liberais e estabelece um
“protocolo silencioso” (HESSE, 2004) sobre o racismo anti-negro. O “Protocolo
silencioso” que organiza as relações raciais, por um lado, condena as manifestações
abertamente racistas a partir de um ponto de vista moral (ou seja, enquanto atitude
individual mais ou menos inapropriada ao contexto) e por outro nega a possibilidade da
existência do racismo enquanto estruturante das relações de poder existentes no mundo
Ocidental (HESSE, 2004; FUREDI, 1998).
Apesar da intensa disputa no contexto internacional, até hoje temos apenas dois
casos reconhecidos como crimes de genocídio: Ruanda (assassinatos em massa do
grupo étnico dos tutsis) e a antiga Iugoslávia (assassinatos em massa de meninos
muçulmanos em Srebrenica). Gostaríamos ainda de chamar atenção para dois pontos
quanto a essas condenações. O primeiro é quanto aos países nos quais o genocídio foi
considerado crime pela Organização das Nações Unidas: o primeiro em África e o
segundo no leste Europeu. Em ambos os casos são regiões cujas narrativas
predominantes são de que elas seriam regiões antidemocráticas, incivilizadas, incultas,
em outras palavras, tudo que a Europa Ocidental (diz que) não é. E em segundo lugar,
chama atenção que os envolvidos no Holocausto da Alemanha nazista não foram
acusados de genocídio mas de crimes contra a humanidade.
No contexto brasileiro, a disputa em torno da definição do crime de genocídio
vem ocorrendo desde a década de 70, com o uso do termo pelo Movimento Negro e que
adentrou no meio acadêmico brasileiro com a publicação do livro “O Genocídio do
negro brasileiro: processo de um racismo mascarado” de Abdias do Nascimento
publicado em 1978 e que assim definiu o que seria genocídio negro:
“[…] Da classificação grosseira dos negros como selvagens e inferiores, ao
enaltecimeto das virtudes da mistura de sangue como tentativa de erradicação
da “mancha negra”; da operatividade do “sincretismo” religioso à abolição
legal da questão negra através da Lei de Segurança Nacional e da omissão
censitária […] a história não oficial do Brasil registra o longo e antigo
genocídio que se vem perpetrando contra o afro-brasileiro. Monstruosa
122
máquina ironicamente designada ‘democracia racial […]. O fato concreto,
nenhuma retórica acadêmica pode apagar: o negro no Brasil está sendo
rapidamente liquidado nas malhas difusas, dissimuladas, sutis e paternalistas
do genocídio mais cruel dos nossos tempos. Uma técnica genocida de fazer
inveja a Salazar, Vorster e Smith […]” (NASCIMENTO, 2017 [1978] ,p.
111- 115).
A “multiplicidade de processos genocidas antinegros” (VARGAS, 2010, p. 31)
já apontados por Abdias do Nascimento na década de 70, nos obriga a reenquadrar, a
partir do entendimento de genocídio como uma prática sistemática e institucional dos
estados modernos, processos como o encarceramento em massa da população negra, o
extermínio da juventude negra e pobre, a exploração sexual da mulher negra que
resultou em uma Nação miscigenada e o próprio processo de branqueamento
“sutilmente” presente em diversas políticas (como as políticas de migração) do século
XIX no contexto brasileiro.
No ano de 1988, o I Encontro de Mulheres Negras viria denunciar
nacionalmente, por meio da mídia, o extermínio de crianças e adolescentes negros e a
esterilização de mulheres. Em 1992, fruto das mobilizações feitas pelo movimento de
mulheres negras a partir da divulgação do Relatório Kissinger71, foi instaurada a
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito na Câmara dos Deputados, presidida pela
pesquisadora e ativista negra Jurema Werneck.
A comissão confirmou as denúncias de esterilização em massa das mulheres que
atingiu 45% das mulheres brasileiras durante os anos da ditadura militar de 1964. E
conclui que era “[…] evidente que a ligadura de trompas nas brasileiras servia a
interesses econômicos e à defesa da ideologia de branqueamento proposta por aquele
país” (SANTOS, A.C.C. 2016, p. 22), referindo-se às políticas de controle de natalidade
propostas pelo governo de Nixon no início dos anos 60-70 e levadas a cabo pelos
governos militares brasileiros com a colaboração ativa de uma gama de organizações
governamentais e não governamentais financiadas estrategicamente pelo governo norte-
71 A Administração Nixon (1969-1974) elaborou um estudo intitulado “Os efeitos do crescimento da
população mundial para a segurança dos Estados Unidos e outros interesses” e que considerava o
crescimento da população mundial como um assunto prioritário na agenda das ações do governo norte-
americano porque esse crescimento nos países “em vias de desenvolvimento” punha em perigo
designadamente o acesso aos minerais e a outras matérias primas indispensáveis, constituindo como
ameaça à segurança econômica e política e para tal era necessário o controle da população. Esse estudo
deu origem a um famoso memorando de Kissinger, executivo da Administração americana. O estudo
sugeria que a estratégia usada a fim de conter o crescimento populacional poderia ser o financiamento de
organizações de “cooperação” norte-americana mas também instituições nacionais (conferindo um
caráter protagonista na medida em que assegurava-lhes o acesso às tecnologias da contracepção).
123
americano com vistas ao controle de natalidade72. Diante das conclusões da CPI e da
pressão do movimento de mulheres negras, em 1996 foi instituída a lei do planejamento
familiar, ficando proibido qualquer programa ou política com fins de controle
demográfico, regulamentando a esterilização.
A reivindicação do crime de genocídio negro voltou à agenda de debate no
parlamento brasileiro em 2015, quando foi instaurada a Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) de Violência contra Jovens Negros e Pobres (fruto da pressão
principalmente de mulheres negras) e a conclusão foi a de que “o Estado brasileiro,
direta ou indiretamente, provoca o genocídio da população jovem e negra”. O Fórum
Permanente de Igualdade Racial (FOPIR) apresentou uma denúncia contra o Estado
brasileiro junto ao Conselho de Direitos Humanos da ONU e com base no relatório da
CPI elaborou o Plano Nacional de Redução de Homicídios exigindo, dentre outras
pautas, o fim dos “autos de resistência” 73 e a desmilitarização da polícia.
A disputa em torno do significado do crime de genocídio, apesar de tensionar o
enquadramento da norma jurídica moderna, ainda não resultou concretamente em uma
mudança de perspectiva do judiciário brasileiro, já que até hoje temos registrado apenas
um crime de genocídio74 julgado pelo STF.
Olhar, isoladamente, para os poucos casos de racismo (envolvendo anti-
semitismo) e genocídio (envolvendo indígenas) julgados como tal pelo judiciário
brasileiro nos faz pensar então que, aos olhos do Sistema de Justiça, vivemos em uma
72 Para mais detalhes acerca desse processo consultar: “Ou belo ou o puro? Racismo, eugenia e novas
(bio)tecnologias de Jurema Werneck. Disponível em:
http://www.criola.org.br/artigos/artigo_ou_o_belo_ou_o_puro.pdf. Acesso em 10 de maio de 2018. 73 Foi criado em 1969, após o Ato Institucional nº5 (dezembro de 1968), como medida interna da própria
polícia, a fim de justificar e minimizar a prisão em flagrante de policiais autores de homicídio. A partir da
CPI de 2015, ocorreu uma alteração do uso dos termos “autos de resistência” ou “resistência seguida de
morte” para “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de
oposição à ação policial”. Entretanto a mudança de termo não implicou em mudança nas práticas
policiais: nos primeiros meses de 2019, o Brasil teve 6.160 mortes cometidas por policiais na ativa em
2018, contra 5.225 em 2017 (entretanto em relação ao número de policiais mortos, a queda foi de 18%).
Disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/04/19/numero-de-pessoas-
mortas-pela-policia-no-brasil-cresce-em-2018-assassinatos-de-policiais-caem.ghtml. Acesso em
16/4/2019. Além do aumento no número de assassinatos cometidos pelo Estado, o alvo continua a ser o
negro: 75% das vítimas de homicídio são negros e essa é a maior proporção da década (ATLAS DA
VIOLÊNCIA, IPEA, 2019). 74 O Massacre de Haximu, região onde aconteceu o assassinato de 16 indígenas Yanomami por 6
garimpeiros de ouro em 2006, e apesar de ter sido julgado pela Corte brasileira, esse crime genocídio
ocorreu entre as fronteiras do Brasil e Venezuela e foi considerado genocídio pois constatou-se “[…]
a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso” (ALBERT,
Bruce. O massacre dos Yanomami de Haximu. Escrito em 27/09/1993. Folha de São Paulo, 03 de out.
1993. Disponível em:< pib.socioambiental.org/files/file/.../yanomami/massacre_haximu.pdf> Acesso
em: 26 nov. 2012.
124
paraíso racial, onde o tratamento violento, cotidiano e institucional, destinado à
população negra “[…] constitui a normalidade social brasileira, contra a qual se
frustram quaisquer potencialidades constitucionais de transformação do real”
(CASSERES & PIRES 2017, p. 1459).
O movimento negro vem denunciando o enquadramento limitado do sistema
jurídico acerca das relações raciais no Brasil e os processos decorrentes desse
entendimento que ao mesmo tempo em que conferem legitimidade a zona do ser:
“[…] estruturam e condicionam a própria percepção sobre o que pode ser
entendido como violência […] que para os que estão na zona do não ser “[a
normalização violência] é o modelo […] de resolução de conflitos [nessa
zona e que] é subdimensionada em categorias como inefetividade ou violação
de direitos, que reproduzem a proteção ilusória que o colonialismo jurídico
oferece a corpos e experiências não-brancas” (PIRES, 2018, p. 66).
Em outras palavras, a “filtragem racial” do sistema de justiça revela como a
reprodução do racismo afeta diretamente a aplicabilidade da concepção legal de
genocídio (FLAUZINA, 2014) que impede que esse tipo de acusação, seja objeto de
análise do STF. A partir dessas constatações percebemos como têm sido gerenciadas
pelo sistema de justiça as distorções criadas pela gramática eurocêntrica e burguesa de
racismo na invisibilização da estrutura que mantém o racismo, pautando a atuação
antirracista(?) dos tribunais.
A (re)produção de “mundos de mortes” só é possível graças a existência de uma
estrutura que, burocraticamente, regula a distribuição da morte e torna possível as
funções assassinas do Estado (MBEMBE, 2016). Nesse sentido, refletir sobre os limites
da gramática do aparato de justiça, dos direitos humanos e as possibilidades de
radicalizar suas brechas são tarefas urgentes, pois se “[…] a América branca [e o mundo
ocidental moderno] é uma corporação concebida para proteger o seu direito exclusivo
de dominar e controlar os nossos corpos [negros] seja pelo exercício do “poder direto
(linchamentos) ou insidioso (pelo relining75) […] qualquer que seja sua aparência”
(COATES, 2016, p. 50), a confrontação dos limites do direito frente ao mundo anti-
negro, por entre as brechas do aparato jurídico-legal estatal, tem se configurado como
um campo potente de disputa e contestação.
A existência de um único caso julgado e condenado como crime de racismo
contra judeus e de genocídio contra indígenas nos informa acerca da força e da presença
75 Prática discriminatória de bancos e companhias de seguros nos Estados Unidos da América que
consiste em recusar no todo ou em parte a prestação de serviços com base nos bairros de residência dos
requerentes.
125
no sistema de justiça da ideia de que o racismo anti-negro é em primeiro lugar
inexistente e que quando se constata é lido como algo da ordem das relações
interpessoais (e isso, como vimos, tem implicações no que tange, por exemplo, a
comprovação da intenção para o crime de racismo). Além disso, o racismo entendidas
como atitude da mente de pessoas ignorantes ou pouco afeitas aos valores democráticos
oferece entraves reais a possibilidade de consideração por parte do judiciário da
existência do racismo institucional ou ainda do genocídio contra a população negra
cometida por agentes das forças de segurança do Estado, como vimos anteriormente.
O cerne da atuação jurídica (quando se manifesta) é no combate ao racismo
moral, com foco nos crimes de injúria racial, discriminação e preconceito impedindo a
discussão sobre as múltiplas facetas assumidas pelo racismo enquanto estruturante da
sociedade. Vemos novamente por um lado a negação da existência do racismo anti-
negro como elemento que organiza as relações sociais no Brasil e por outro como a
experiência do Holocausto mobiliza ideias, grupos, políticas e leis em torno da
construção de um sistema jurídico burguês forjado na ideia de incompatibilidade entre
democracia capitalista e opressão contra negros.
Entretanto, se por um lado, encontramos no meio jurídico o entendimento do
racismo como “fenômeno excepcional” e que não encontra lugar no Estado democrático
e de que toda a mazela na qual se encontra a maioria da população negra no Brasil é
apenas efeito de um passado distante, fora do estado de direito moderno e democrático,
por outro lado, as (limitadoras) possibilidades de mobilização do direito têm sido
oportunamente reivindicadas pelo Movimento Negro desde o século passado.
A luta antirracista no campo do direito tem desafiado os limites impostos pela
gramática eurocêntrica pós-holocausto. Entretanto, como aponta Pires (2016), nos
perguntamos quais são os desafios que se apresentam quando usamos “o direito contra o
direito”? Isto é, “partindo da premissa de que a construção normativa (tanto teórico
quanto jurisprudencial) se produz a partir da experiência da zona do ser” (PIRES, 2018
p.66), quais estratégias podem ser empregues na mobilização do aparato dos direitos
humanos contra o racismo sem, no entanto, nos tornarmos reprodutores da narrativa da
neutralidade, universalidade (e por isso eficiência) do direito criado pelo e para o seres
que habitam a “zona do ser” (FANON, 1975)?
A instituição das políticas de ação afirmativa permite vislumbrar a possibilidade
de disputas que visem à radicalização do direito, tendo em vista que a partir daquelas
políticas, a concepção de igualdade em termos puramente jurídicos é amplamente
126
problematizada, passando a ser duramente criticado por seu caráter essencialmente
abstrato e limitado pela ideologia meritocrática, abrindo novos caminhos ou se
quisermos, problematizando velhas estratégias para a efetivação de direitos a grupos
historicamente oprimidos e explorados.
O quadro atual de pesquisas realizadas sobre o tema das políticas de ação
afirmativa, ainda que suscitem avaliações enriquecedoras para o debate, não
contemplam um ângulo crucial, em nosso ponto de vista: como interesses de classe e
raça atravessam esse debate? Tanto no campo da produção científica quanto na
produção das normas jurídicas, isto é, do direito, o que vemos é que em ambos os
campos parecem movimentar-se sempre no sentido de forjar certo isolamento das
motivações históricas da adoção desse tipo de política e os conflitos políticos que ela
suscita, examinando o problema a partir de “pressupostos dados como verdades” 76.
Compreender quais são os aspectos centrais presentes no processo de
implementação das Políticas de ação afirmativa no ensino superior requer que
analisemos de forma articulada os interesses de classe e raça, evidenciando quais são as
lógicas e ideologias que orientam determinados posicionamentos políticos. Com isso
estamos situando nosso campo teórico, a saber, o da luta de classes e frações de classe, e
afirmando que a discussão sobre a implementação de políticas públicas (o embate entre
os que seriam a favor ou contra essa política), deve ser remetida ao conflito pela
apropriação da riqueza produzida em determinados contextos a partir das condições
históricas dadas pelo modelo capitalista neoliberal (BOITO JR. et al, 2013).
O debate apresentado no presente capítulo buscou apresentar as tensões, dilemas
e contradições vividas em três campos essenciais, em nossa análise, ao entendimento
das disputas de classe e raça que se configuram no Brasil: o pensamento social, a
produção da jurisprudência e as estratégias de luta do movimento negro.
Buscamos evidenciar de que forma a produção de conhecimento está em estreita
colaboração com a produção do direito, mas que ambos os campos também são lugares
disputados pelo movimento negro que por sua vez também interage de modo dinâmico
com aqueles dois. Nesse sentido, no que diz respeito ao interesse da presente tese,
76 Como exemplo de lugar-comum ou naturalizado por alguns acadêmicos, podemos citar os estudos
focados na análise de medição de desempenho dos alunos cotistas com vistas a justificar (ou não) a
continuidade do sistema de cotas étnico-raciais nas universidades públicas. Ainda que compreendamos
que algumas negociações são necessárias ao avanço da luta, nos surpreende que não encontremos, em boa
parte dos estudos sobre políticas afirmativas, o questionamento/problematização das justificativas para a
avaliação dos cotistas ao longo dos cursos. Em sua maioria, os estudos já partem do pressuposto de que o
cerne do debate deve ser a medição do desempenho dos ‘cotistas’, sem problematizar tal argumento e,
pior ainda, sem questionar de onde ele tem vindo e a quem interessa que ele seja reproduzido.
127
impõe-se como desafio que proponhamos uma análise sobre a disputa presente na
adoção das ações afirmativas nas universidades públicas do estado de São Paulo que
leve em conta o dinamismo e as contradições inerentes às condições de raça e classe que
atravessam os sujeitos nela envolvidos.
Entendemos que para compreender a problemática de classe e raça e como essas
desigualdades estão articuladas na polarização do debate sobre ações afirmativas no
ensino superior, é fundamental a articulação e mobilização de quatro conceitos
importantes: classe média, raça, racismo institucional e democracia racial.
A partir da mobilização instrumental desses conceitos é que poderemos gerar
insumos necessários para problematizar alguns ‘lugares comuns’ relativos às análises
sobre políticas de ação afirmativa no Brasil, e em específico nas estaduais de São Paulo,
evidenciando como o debate sobre as cotas nas universidades explicitam como não
podemos desvincular o racismo da lógica que organizam as classes e compreender de
que modo é possível (e necessário) superar a dicotomia analítica que aparta raça e classe
no que tange ao entendimento dos conflitos no contexto brasileiro.
128
CAPÍTULO 3: O PROGRAMA DE INCLUSÃO COM MÉRITO NO
ENSINO SUPERIOR PÚBLICO PAULISTA (PIMESP)
“[…] Uma coisa que se pode se pode dizer a respeito do branco do Sul: ele é
honesto. Mostra os dentes para o homem preto. Diz ao homem preto, na cara,
que os brancos do Sul jamais aceitarão a falsa ‘integração’. […] A vantagem
disso é que o homem preto do Sul jamais teve quaisquer ilusões sobre a
oposição que tem de enfrentar. Pode-se dizer a favor dos brancos do Sul que,
individualmente têm ajudado de uma maneira paternalista muitos negros
individualmente. Mas o homem branco do Norte sorri com os dentes e
apresenta a boca sempre cheia de truques e mentiras de “igualdade” e
“integração”. Um dia, por toda a América, uma mão preta vai tocar no ombro
do branco; e ele vai se irar e deparar com um negro a lhe dizer.
-Eu também…O liberal do Norte tem pavor desse homem preto, pois se sente
tão culpado quanto qualquer homem branco do Sul. Na verdade, o homem
preto mais perigoso e ameaçador da América é o que vêm sendo mantido
pelo homem branco do Norte nos guetos pretos. A estrutura de poder branco
do Norte vive falando em democracia, enquanto mantém o homem preto fora
de vista, em algum buraco, do outro lado da esquina” (X, MALCOM, 1992,
pg. 260).
O objetivo do presente capítulo é examinar como a mobilização da ideologia
meritocrática, do mito da democracia racial e da autonomia universitária pelos docentes
das universidades estaduais paulistas frente à proposta do PIMESP, deixa evidente
como classe e raça são indissociáveis na organização capitalista no Brasil. Buscaremos
explorar como a defesa em torno da inclusão com mérito e a defesa da prioridade do
perfil econômico (focado na escola pública) em detrimento do racial para o
estabelecimento das políticas inclusivas, além de estratégia para a manutenção da
hierarquia do trabalho, também buscou minimizar (quando não silenciar) as
desigualdades com base em raça, reproduzindo o racismo institucional.
Nesse sentido, buscaremos nesse capítulo traçar os pontos de conexão que
orientaram as diretrizes contidas no PIMESP e os programas de inclusão nas
universidades estaduais de São Paulo (2004-2014) e a partir daqueles pontos de conexão
situar as idéias que orientaram a atuação dos docentes das três universidades no
processo de avaliação do PIMESP. Entretanto, antes de adentrarmos na análise do
processo que culminou na rejeição ao Programa de Inclusão com Mérito no Ensino
Superior público paulista, entendemos que se faz pertinente examinarmos de que forma
a própria fundação das universidades paulistas confunde-se com a consolidação da
fração da classe média abastada e branca no estado de São Paulo, principal fração
opositora ao PIMESP e às cotas étnico-raciais.
Faremos, primeiramente, um breve incurso na história e nos discursos que
justificaram a criação e a missão das universidades estaduais públicas do estado de São
129
Paulo. Longe de uma genealogia acerca dos processos que culminaram na criação das
três universidades, nosso objetivo se limita apenas a tentativa de evidenciar que as
universidades paulistas (mas não apenas elas), nascem comprometidas com interesses
muito bem delimitados pela classe média alta, branca e intelectualizada no contexto de
consolidação da divisão social do trabalho no Brasil.
Buscaremos evidenciar em que medida as três universidades estaduais paulistas
nascem do alinhamento entre o anseio de uma classe média em garantir sua posição
frente às mudanças impostas pelo capital e o respaldo da classe dominante. Guardadas
as especificidadades dos contextos políticos e econômicos sob os quais emergem as três
universidades nascem em torno de um projeto político pautado na adaptação do modelo
escolar europeu para a realidade brasileira com vistas ao controle da hierarquia de
trabalho. Nesse sentido, iremos a seguir contextualizar a expansão do ensino superior
público no estado de São Paulo, procurando inserir aquele processo em um quadro mais
geral de expansão da educação gratuita para dois públicos diferenciados e com dupla
função: civilizar as massas e fomentar o surgimento de uma elite pensante.
“A elite intelectual capaz de orientar todas as classes sociais” 77: a criação
das universidades estaduais de São Paulo
A presente seção tem como objetivo situar historicamente a construção das
universidades estaduais públicas paulistas como espaço agregador dos interesses da
fração da classe média alta e branca e que se constituiu como projeto, pretensamente,
universalizante, compatibilizando os interesses da classe média a uma função
fundamental para a manutenção da hierarquização do trabalho: conceder à estrutura
capitalista uma aparente igualdade de oportunidades e ao mesmo tempo mascarar a
manutenção da exclusão intrínseca ao sistema capitalista.
Estamos interessados em situar a expansão das universidades paulistas a partir
das disputas entre a classe dominante e a classe média, a fim de evidenciar que a
implementação da educação pública tem uma função ideológica fundamental para a
77 O título da presente seção é uma alusão às palavras de Júlio de Mesquita quando da criação da UPS.
Nas palavras de Júlio de Mesquita Filho, uma das principais lideranças no processo que levou a criação
da USP. Júlio de Mesquita Filho, advindo da família que é proprietária do jornal O Estado de S. Paulo.
In:FILHO, Júlio de Mesquita. A Crise Nacional. São Paulo: Seção de Obras de “O Estado de S. Paulo”,
1925, p. 3. Cf. BARROS, Roque S. M. de. Júlio de Mesquita Filho e o pensamento liberal. In: BARROS,
Roque S. M. de. Estudos Liberais. Londrina: Editora da UEL, 1997, pp. 117, 131.
130
reprodução das classes (mas principalmente a classe média), a saber, de disseminar a
todas as classes que as instituições burguesas são abertas a todos e que existe igualdade
de condições de acesso e mobilidade social, definida exclusivamente pelos dons e
méritos dos indivíduos. Assim, apresentaremos de que modo o processo de expansão do
ensino superior paulista entre os anos de 1930 e 1960 cimentou, a partir dos princípios
de cidadania e competência, o alinhamento entre a classe dominante e classe média
(BARROS, C. M. 2011) que culminou na criação das três universidades estaduais
paulistas.
A criação da USP, da UNICAMP e da UNESP se insere na complexa
configuração brasileira da divisão social do trabalho marcado pela dinâmica de classes e
raça. O contexto de criação das três universidades foi marcado por grandes mudanças
acerca do papel da educação para o “desenvolvimento e progresso da nação”, onde a
classe média teve um papel fundamental. Com exceção da USP, a UNICAMP e a
UNESP foram criadas a partir do movimento de expansão do ensino superior na década
de 1960, fruto da reivindicação estudantil mas que acabou por ser orquestrado pela
ideologia empresarial no que tange a liderança da expansão: empresas privadas de
ensino (BARROS, C. M. 2011). Entretanto sobre esse ponto falaremos mais adiante.
A USP foi estabelecida em meio a uma conjuntura política marcada por disputas
entre as elites paulistas e o governo federal. Na busca pela consolidação da sua base
social e na tentativa de aproximação com os setores médios, o Governo Federal tinha
pretensões de abrir uma universidade no Rio de Janeiro com a colaboração da Igreja
Católica, o que intensificou os conflitos com as elites paulistas, como avaliou Júlio de
Mesquita em 1937:
“[...] Derrotados pelas forças das armas, sabíamos perfeitamente bem que só
pela ciência, e com um esforço contínuo, poderíamos recuperar a hegemonia
gozada na federação por várias décadas. Paulistas até os ossos, [sic] tínhamos
herdado dos nossos antepassados bandeirantes o gosto pelos projetos
ambiciosos e a paciência necessária para as grandes realizações. Que
monumento maior do que uma universidade poderíamos erigir àqueles que
tinham aceito o sacrifício supremo para defender-nos do vandalismo que
conspurcara a obra dos nossos maiores, desde as bandeiras até a
independência, da Regência até a República? […] Saímos da revolução de
1932 com o sentimento de que o destino tinha colocado São Paulo na mesma
situação da Alemanha depois de Jena, do Japão depois do bombardeio pela
marinha norte-americana, ou da França depois de Sedan. A história desses
países sugeria os remédios para os nossos males. Tínhamos vivido as terríveis
aventuras provocadas, de um lado, pela ignorância e incompetência daqueles
que antes de 1930 tinham decidido sobre o destino do nosso estado e da nossa
nação; de outro, pela vacuidade e a pretensão da revolução de outubro[de
1930]. Quatro anos de contatos estreitos com os líderes das duas facções nos
convenceram de que o problema do Brasil era acima de tudo uma questão de
131
cultura. Daí a fundação da nossa universidade, e mais tarde da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras” (Cf. SCHWARTZMAN, 2006, p. 164).
O conflito instaurado com a possibilidade de criação da universidade no Rio de
Janeiro evidenciava o descompasso entre uma classe média em expansão, ávida pela
liderança da reforma do aparelho educacional 78 e que exigia a instauração de um
sistema de educação republicano. Quanto ao papel da classe média paulista no
estabelecimento do ensino público, Saes (2005), afirma que:
“[…] No Brasil do século XX, o desenvolvimento da classe média – um dos
aspectos centrais da primeira fase do processo brasileiro de transição para o
capitalismo – desaguará na eclosão da Revolução de 1930 (que foi, em parte,
uma revolução de classe média) e, a seguir, na deflagração da luta dos seus
representantes ideológicos (escolanovistas, nacionalistas, progressistas, etc) a
favor da escola pública, atacada de modo mais ou menos aberto pelos
representantes - clericais ou meramente privatistas – das classes dominantes”
(idem, p. 102).
A classe média é a principal interessada na implantação do ensino público,
obrigatório e gratuito na ordem capitalista, pois, esse é o grupo que considera que a
manutenção de sua posição na hierarquia social do trabalho só pode ser assegurada pela
existência da formação escolar pública.
Além da ideologia da classe média, é preciso situar a narrativa de Júlio de
Mesquita e do grupo que liderou a criação da USP no contexto das relações raciais no
Brasil. Em nossa análise, as aspirações da classe média branca paulista não podem ser
circunscritas apenas em termos de classe. A afirmação de que como “[…] herdeiros dos
bandeirantes e por isso com gosto pelos projetos ambiciosos (SCHWARTZMAN, 2006,
p. 164)” e cujo objetivo seria criar uma universidade cuja missão é “trazer civilização” e
formar a nova “intelligentsia cosmopolita” (Idem) não nos parecem que são mobilizados
como meros gracejos linguísticos mas são conclamados para enunciar a idéia central na
criação da universidade: a idéia de modernidade como equivalente à missão
civilizatória. E essa idéia acarreta implicações para o acesso da população negra ao
espaço da universidade.
A narrativa eurocêntrica sobre a fundação da universidade exprime “as relações
entre o discurso e sociedade, em geral, e reprodução do poder social e da desigualdade
78 Utilizamos aparelho em diálogo com o conceito de aparelhos ideológicos de Estado de Louis
Althusser (1996) para quem “[…] toda formação social, ao mesmo tempo que produz […] tem que se
reproduzir as condições de sua produção. Portanto, tem que reproduzir: 1. As forças produtivas; as
relações sociais de produção existentes” (idem, p. 105), sendo essas reproduzidas “[…] essencialmente
fora da empresa […]” (idem, p. 107), sendo forjados desse modo os aparelhos ideológicos de Estado
como o aparelho ideológico escolar e o sistema representativo (Cf. ALTHUSSER, 1996).
132
[...]” (VAN DIJK, 1999, p. 24), além de evidenciar quais são os elementos ideológicos
que informam os recursos discursivos empregados pelos grupos dominantes para
estabelecer, manter e legitimar seu poder (Ibid).
A reivindicação da classe média brasileira por universidades públicas está
relacionada ao fato de que a universidade oferecia, naquele período de expansão de
vagas e postos de trabalho não-manuais, o meio pelo qual a classe média poderia
justificar e garantir a permanência naqueles postos que não dependesse unicamente da
indicação da classe dominante (oligarcas, coronéis), prática predominante no período de
transição entre o sistema escravista e a República, como aponta Saes (1975). Nesse
sentido, as reivindicações da classe média nos anos 30 são coerentes com:
“[…] o desenvolvimento das forças produtivas e o tipo de unidade
historicamente constitutiva das forças produtivas, num dado momento, geram
o resultado de que a força de trabalho tem que ser (variadamente) qualificada
e, portanto, reproduzida como tal. Dito de outra forma: de acordo com os
requisitos da divisão técnica e social do trabalho, com seus diferentes
‘cargos’ e ‘postos’. Como se assegura a reprodução da qualificação
(diversificada) da força de trabalho num regime capitalista? Neste, ao
contrário das formações sociais caracterizadas pela escravidão ou pela
servidão, a reprodução da qualificação da força de trabalho […] tende […]
cada vez menos a ser fornecida in loco ( o aprendizado dentro da própria
produção), sendo mais e mais obtida fora dela: através do sistema
educacional capitalista e de outras instâncias e instituições” (ALTHUSSER,
1996, p. 108).
Se na Primeira República, como analisou Saes (1975), as camadas médias não
lograram se converter como agentes de sustentação de um projeto político que fosse
particular e universalizante, articulando “[…] a defesa de seus verdadeiros interesses
(isto é, interesses coletivos, de longo prazo, e não interesses meramente individuais e
imediatos) com a promoção dos interesses dos grupos ascendentes na comunidade
brasileira […]” (idem, p. 59), a partir dos anos 20, dado o contexto propício (crise de
1929 e o colapso da economia cafeeira que afetaria o mito da “vocação agrícola” do
Brasil), as camadas médias buscam liderar reformas modernizadoras no nicho que lhes
seria possível: as políticas educacionais.
A mudança de comportamento político (agindo cada vez mais como classe
média) culminará, primeiramente, no lançamento do manifesto A reconstrução
educacional no Brasil: ao povo e ao governo – manifesto dos pioneiros da educação
nova79 de 1932, seguido da criação da Universidade de São Paulo em 1934.
79 Assinaram o Manifesto: Fernando de Azevedo, Afranio Peixoto A. de Sampaio Doria, Anisio Spinola
Teixeira, M. Bergstrom Lourenço Filho, Roquette Pinto, J. G. Frota Pessôa, Julio de Mesquita Filho, Raul
Briquet, Mario Casassanta, C. Delgado de Carvalho, A. Ferreira de Almeida Jr., J. P. Fontenelle, Roldão
133
A organização dos agentes das altas camadas médias em torno da instalação da
educação obrigatória e pública configurou-se, a nosso ver, como o primeiro projeto
político da classe média branca brasileira na República. O manifesto e a criação da
Universidade de São Paulo evidenciam, em nossa leitura, a emergência de uma
consciência unificada e sofisticada das camadas médias acerca da educação e da
atividade intelectual e que resultou na reforma do aparelho educacional80 no âmbito
nacional liderada por aquelas camadas.
Em nossa leitura, o lançamento do Manifesto marca a atuação dos intelectuais e
sinaliza a existência do primeiro grande conflito81 em torno da definição dos rumos do
sistema educacional na República. Dizemos conflito (e não luta), pois, apesar da
tentativa de forjar que existiria de fato uma oposição de projetos para a educação
pública brasileira (entre os que assinavam o Manifesto e as elites dominantes), os
intelectuais buscavam primeiramente, dentro da ordem capitalista estabelecida, garantir
o lugar da recente classe média no novo ordenamento econômico e político.
O redimensionamento do papel da educação pela classe média branca convergiu
para frear as possibilidades de mobilidade econômica do único grupo que, assim como
Lopes de Barros, Noemy M. da Silveira Lima, Attilio Vivacqua, Francisco Venancio Filho, Paulo
Maranhão, Cecilia Meirelles, Edgar Sussekind de Mendonça, Armanda Alvaro Alberto, Garcia de
Rezende, Nobrega da Cunha, Paschoal Lemme e Raul Gomes. 80 Podemos citar alguns exemplos de reformas educacionais liderados por representantes daquelas
camadas médias envolvidas no Manifesto. Em São Paulo, em 1920 ocorreu a primeira reforma no sistema
educacional com Sampaio Dória e no ano de 1933, Fernando de Azevedo deu continuidade e seguiu
consolidando as reformas no sistema educacional básico e no código de educação paulistas. Na Bahia, em
1929, Anísio Teixeira empreende uma ampla reforma no sistema educacional. Júlio de Mesquita Filho
junto com um grupo de 12 professores, do qual também participavam Raul Briquet, A. Ferreira de
Almeida Jr., Roldão Lopes de Barros, dentre outros, elaboraram o pré projeto de 25 de janeiro de 1934
que viria a instituir a USP. Em Brasília, no ano de 1934, Anísio Teixeira e Julio Afranio Peixoto
lideraram uma ampla reforma no sistema primário. No Ceará (no ano de 1922), M. Bergstrom Lourenço
Filho lidera uma reforma educacional. José Getúlio da Frota Pessoa juntamente com Paschoal Lemme
lideram no Rio de Janeiro uma ampla reforma educacional que vai dos anos de 1920 a 1940. Em Minas
Gerais, Mario Casassanta realizou importantes reformas na educação pública mineira em 1927. José
Paranhos Fontenelle esteve no Instituto de Educação do Rio de Janeiro onde produziu vários trabalhos
para formação de professores da escola primária no Rio de Janeiro entre os anos de 1917 e 1950. Roldão
Lopes de Barros foi um dos fundadores da Escola Normal Padre Anchieta que viria a torna-se Instituto
Pedagógico para formação de professores no estado de São Paulo entre os anos de 1912 e 1933, quando
viria a ser incorporado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
Noemy M. da Silveira Lima foi diretora do Serviço de Psicologia Aplicada de São Paulo nos anos de
1930. No Espírito Santo, Attilio Vivacqua promoveu uma ampla reforma educacional quando esteve
como secretário da Instrução Pública entre 1928 e 1930. No Paraná, Raul Gomes foi um dos principais
entusiastas da reforma no ensino primário, publicando matériais de jornais e livros acerca das diretrizes
que deveriam tomar o ensino e a formação de professores entre os anos de 1910 e 1960. Francisco
Venancio Filho, junto com Edgar Sussekind de Mendonça, Armanda Alvaro Alberto foram fundadores da
Associação Brasileira de Educação (1924), importante instituição para circulação das novas idéias acerca
da expansão do sistema educacional. 81 A própria escolha do termo “Manifesto” e a nomeação de quem seria o alvo da crítica contida no
Documento, a saber a burguesia, evidencia a intenção do grupo em demarcar que trata-se de um conflito
político, como aponta Cunha (2002).
134
as camadas médias, apenas possuíam a sua força de trabalho e que poderiam vir-se a
beneficiar da instrução pública na novíssima sociedade industrial: os negros libertos.
Sobre o estabelecimento da educação pública no Brasil e o seu papel na naturalização
do racismo na desumanização da população negra voltaremos a tratar no capítulo 4.
O ponto chave do Manifesto e que interessa para o debate no contexto do
presente capítulo diz respeito ao projeto de universidade defendido pelos manifestantes.
Vejamos:
“[…] A educação superior que tem estado, no Brasil, exclusivamente a
serviço das profissões "liberais" (engenharia, medicina e direito), não pode
evidentemente erigir-se à altura de uma educação universitária, sem alargar
para horizontes científicos e culturais a sua finalidade estritamente
profissional […] impõe-se a criação […] de faculdades de ciências sociais e
econômicas; de ciências matemáticas, físicas e naturais, e de filosofia e
letras que, atendendo à variedade de tipos mentais e das necessidades
sociais [grifo nosso], deverão abrir às universidades que se criarem ou se
reorganizarem, um campo cada vez mais vasto de investigações científicas
[…] Nessas instituições [da instrução pública tradicional], organizadas antes
para uma função docente, a ciência está inteiramente subordinada à arte ou à
técnica da profissão [é] incapaz de habilitar os espíritos a formar juízos e
incapaz de lhes inspirar atos" […] A organização de Universidades é, pois,
tanto mais necessária e urgente quanto mais pensarmos que só com essas
instituições, a que cabe criar e difundir ideais políticos, sociais, morais e
estéticos, é que podemos obter esse intensivo espírito comum […] que possa
estabelecer entre eles a diversidade de pontos de vista na solução dos
problemas brasileiros. É a universidade, no conjunto de suas instituições de
alta cultura, prepostas ao estudo científico dos grandes problemas nacionais,
que nos dará os meios de combater a facilidade de tudo admitir […] (Cf.
AZEVEDO, F.E.A. 2006, p.198-200)
Como aponta Carvalho M. M. C. (1998), os intelectuais reproduziam a divisão
entre a educação para o povo e a educação para a elite. Acompanhando as discussões
realizadas pela Associação Brasileira da Educação (da qual fazia parte grande parte dos
intelectuais do movimento pela reforma educacional e daqueles entusiastas pela criação
da USP) e as Conferências Nacionais de Educação realizadas entre 1924 e 1931, a
autora concluiu que enquanto para o povo, as diretrizes da instrução pública estavam
muito bem definidas e concensuadas em tornar a educação como dever (transformando
uma escolha em uma exigência) com vistas a civilizar (sanear, moralizar) e instruir para
o mundo operário, para as elites, o tom autoritário do dever de educar-se dava lugar a
discussões que, apesar de divergirem em alguns posicionamentos (como o papel do
estado na educação, laicização versus ensino religioso ou ainda regionalização versus
uniformização), os intelectuais convergiam para o mesmo entendimento em torno do
fim da universidade. Retomemos o Manifesto:
135
“[…] A educação superior ou universitária, a partir dos 18 anos, inteiramente
gratuita como as demais, deve tender, de fato, não somente à formação
profissional e técnica, no seu máximo desenvolvimento, como à formação de
pesquisadores, em todos os ramos de conhecimentos humanos. Ela deve ser
organizada de maneira que possa desempenhar a tríplice função que lhe cabe
de elaboradora ou criadora de ciência (investigação), docente ou transmissora
de conhecimentos (ciência feita) e de vulgarizadora ou popularizadora, pelas
instituições de extensão universitária, das ciências e das artes […] De fato, a
Universidade, que se encontra no ápice de todas as instituições educativas,
está destinada, nas sociedades modernas a desenvolver um papel cada vez
mais importante na formação das elites de pensadores, sábios, cientistas,
técnicos, e educadores, de que elas precisam para o estudo e solução de suas
questões científicas, morais, intelectuais, políticas e econômicas. Se o
problema fundamental das democracias é a educação das massas populares,
os melhores e os mais capazes, por seleção, devem formar o vértice de uma
pirâmide de base imensa [grifo nosso]. Certamente, o novo conceito de
educação repele as elites formadas artificialmente "por diferenciação
econômica" ou sob o critério da independência econômica, que não é nem
pode ser hoje elemento necessário para fazer parte delas” (Idem, p. 199-200).
Retornando à análise da classe média na Primeira República realizada por Décio
Saes (1975), o referido autor parece sugerir que a “verdadeira” integração das camadas
médias na arena política viria por meio da organização desses grupos em partidos
incorporados ao jogo político82 e que tivessem como bandeira principal a
industrialização do país (idem, p. 64). Em nossa análise, a visão de Saes (1975) acaba
por limitar as possibilidades de integração da classe média, restringindo-a ao Aparelho
Ideológico Político, isto é, situando-o no âmbito do sufrágio universal e da participação
da política partidária. Entretanto, como aponta Althusser (1996):
“[…] o Aparelho Ideológico de Estado [AIE] que se instalou na posição
dominante nas formações sociais capitalistas maduras, em decorrência de
uma violenta luta política e ideológica de classes contra o antigo Aparelho
Ideológico de Estado dominante, foi o Aparelho Ideológico escolar [apesar
de] na representação ideológica que a burguesia tentou dar a si mesma e às
classes que ela explora, o AIE dominante nas formações sociais capitalistas
realmente não parece ser a escola, mas o AIE político, ou sejam o regime da
democracia parlamentar que combina sufrágio universal e a luta partidária
[…] todos os aparelhos ideológicos de Estado, seja quais forem, contribuem
para um mesmo resultado: a reprodução das relações de produção, isto é,
das relações capitalistas de produção […] não obstante, nesse concerto, um
Aparelho Ideológico de Estado certamente detém o papel dominante,
embora quase ninguém dê ouvidos à sua música- ele é tão silencioso! Trata-
se da escola…[…] nenhum outro Aparelho Ideológico de Estado tem a
audiência obrigatória (e gratuita) da totalidade das crianças na formação
social capitalista, oito horas por dia, durante cinco ou seis dias por semana”
(idem, p.120-122).
82 Tal como aconteceu com no fim do século XIX na Argentina, com a criação pelos setores médios
urbanos da União civil Radical que levou a presidência Yrigoyen em 1916 e no Chile com a criação da
Aliança Liberal que também conseguiu eleger o candidato que estavam a apoiar nas eleições de 1920 (Cf,
Saes, 1975).
136
Ao reinvidicar o estabelecimento do ensino público e obrigatório, defendendo a
concretização de um projeto em longo prazo, as camadas médias urbanas, em nossa
leitura, aproveitaram o contexto de instabilidade política entre as classes dominantes na
Primeira República e orientou a ação política a procura de novas estratégias que
garantissem seu lugar na estrutura de classes. Situado o contexto de emergência das
reivindicações pelo reenquadramento do papel da educação pública no ordenamento das
classes, avancemos para contextualizar a criação da USP em meio àquela configuração.
Chamada pelos seus entusiastas de “A primeira semente do Brasil novo”, a USP
foi criada em 1934 e representava um projeto das camadas médias urbanas com o apoio
da oligarquia paulista, frustrada com a derrota na Revolução Constitucionalista, e que
nas palavras de Júlio de Mesquita “acreditava que, para São Paulo recuperar e manter
sua preeminência no país era necessário criar uma nova elite, instruída não só nas
ciências modernas, mas também nas mais avançadas práticas gerenciais e de negócios.”
(Cf. SCHWARTZMAN, 2006, p. 164).
Criar uma nova elite “também nas mais avançadas práticas gerenciais e de
negócios” (Idem) parece sinalizar que a criação da USP converteu-se na oportunidade
para as camadas médias urbanas tornarem-se agentes de sustentação desse projeto
político, agregando os interesses da elite aos seus verdadeiros interesses. Válido dizer
que a nova universidade congregou instituições que já existiam no estado como as
antigas Faculdades de Direito, Medicina e Engenharia e a Escola Superior de
Agricultura Luiz de Queiroz, portanto, instituições que já eram ocupadas pela camada
média abastada intelectualizada, acompanhado da contratação em massa de professores
estrangeiros.
A seleção dos professores evidencia como as altas camadas médias brancas
controlaram o processo de fundação da USP assim como denuncia os contornos do
pretenso universalismo ocidental liberal sob o qual a “primeira semente do Brasil novo”
estaria sendo fundada. Em relação à seleção dos professores, Júlio de Mesquita afirma:
“[...] Éramos irredutivelmente liberais. Tão liberais, que nos julgávamos na
obrigação de tudo fazer para que o espírito em que se inspirasse a
organização da Universidade se mantivesse exacerbadamente’. E, fiel a essa
idéia (e com muito tato), para as cadeiras de que dependia diretamente a
formação espiritual dos estudantes, isto é, para aqueles estudos que nunca
são inteiramente ‘neutros’, preferiram-se mestres franceses, afinados com a
tradição ocidental e que repudiavam os credos fascista e nazista” (Cf.
BARROS, S.1997, p. 121).
137
Importante notar que a defesa “irredutível” do liberalismo, atrelada à bandeira da
laicidade, como pilares basilares da universidade evidenciam o pertencimento à classe
média do grupo que liderou a fundação da USP na medida em que assumem um papel
de agentes da modernização e da modernidade no ensino superior. Modernização
enquanto processo movido pela consciência moderna ocidental. Modernidade como
lógica que se apresenta como eminentemente secular, racional e tolerante frente à
diversidade religiosa, isto é, razão e liberdade de pensamento como essencialmente
constitutivos de sociedade moderna (MALDONADO-TORRES, 2016).
O projeto recebeu o apoio do governador do estado e culminou na criação de
duas instituições: a nova universidade e uma escola independente de sociologia e
ciência política. Criada a Universidade, para quem se destinou? Vejamos o que diz o
sociólogo Simon Schwartzman no artigo A universidade primeira do Brasil: entre
intelligentsia, padrão internacional e inclusão social (2006):
“[...] Desde o início, pois, a Universidade de São Paulo foi uma instituição
voltada para o mundo, com um corpo docente formado de professores da
Europa, freqüentada em grande parte por filhos dos imigrantes europeus que
constituíam uma parcela considerável da população do estado. Naqueles
anos, a ambição da nova universidade foi não apenas desenvolver
competência profissional e conhecimento aplicado para fazer crescer a
economia, o que de fato ocorreu, mas também trazer civilização ao Brasil por
meio da “ciência pura” e do “pensamento puro”. A adoção do modelo francês
(tanto Mesquita Filho como Duarte tinham estudado em Paris) implicou que
os professores estrangeiros eram vistos não apenas como cientistas e
especialistas, mas como intelectuais, fundadores de uma nova intelligentsia
cosmopolita” (idem, p. 165-166).
A narrativa que se orgulha de, já no “nascimento”, a USP ter desenvolvido uma
“ciência pura” feita por “imigrantes” “para trazer civilização ao Brasil”, desde a sua
fundação é a mais pura evidência do confinamento racial no qual está fundada essa
Universidade e que em um só golpe, reflete o estado da relação que o Brasil e os
produtores de conhecimento estabeleceram com a massa negra liberta na nascente
República. Nesse sentido, percebemos os delineamentos dos primeiros mecanismos que
começaram a ser institucionalizados para naturalizar a hierarquização racial no contexto
do ensino superior público do estado de São Paulo.
Sobre o confinamento racial que acomete a USP desde a sua fundação e a
indiferença da classe média branca e abastada frente a isso, o professor José Jorge de
Carvalho (2006) faz uma análise bastante pertinente:
“[...] Meditemos na famosa passagem de Roger Bastide em que fala da
experiência de democracia racial em um bonde noturno do subúrbio do
Recife cheio de trabalhadores cansados, onde um negro dormia apoiando sua
cabeça no ombro de um empregado de escritório. O curioso aqui é que
138
Bastide não conseguiu estabelecer uma conexão entre o que viu naquele
bonde carregando gente humilde e o seu mundo cotidiano na USP,
inteiramente segregado e excludente racialmente. Se ainda é segregado hoje,
como não seria há 50 anos atrás quando Bastide decidiu empregar a
expressão “democracia racial” para falar do que vira entre as classes
populares do Recife quando visitou Gilberto Freyre. Um relance do que era a
realidade racial da USP na época desse texto de Bastide pode ser capturado
por uma olhada atenta às fotos do livro História da Universidade de São
Paulo, de Ernesto de Souza Campos, publicado em 1954. Em uma centena de
pessoas registradas em mais de 30 fotografias sobre as mais diversas áreas de
ensino e pesquisa conduzidas na universidade, não encontramos nem um
único rosto que pudéssemos identificar como de uma pessoa negra, ou
mesmo mulata, nem sequer entre os funcionários. Bastide celebrava a
“democracia racial” que encontrara nos bondes de subúrbio do Recife sem
conectá-lo com o apartheid acadêmico em que vivia no interior da
Universidade de São Paulo [...]” (idem, p.7).
Apesar de estarmos falando da formação da USP, que data do século XX,
parece-nos que a missão civilizatória permanece até os dias atuais na narrativa dos
docentes, ainda dissimulado sob o manto do pretenso universalismo abstrato liberal e da
valorização das competências. A fala do ex-reitor da USP em 2013, João Grandino
Rodas, à época reitor da Usp, acerca do debate sobre políticas de ação afirmativa e a
possibilidade de cotas para negros e indígenas nas universidades estaduais revela as
continuidades entre a “USP do século passado” - criada pelos herdeiros dos
bandeirantes e destinada a formar a intelligentsia nacional e a “USP atual” - que aceita
a representação da “população com todos os seus aspectos”:
“[...] Nós temos um certo [sic] prazo [para analisar o PIMESP] entretanto o
importante é verificar em primeiro lugar que é imprencidível que as três
universidades paulistas mantenham o mérito porque é justamente do mérito
é que nós vamos retirar a grandeza da excelência que essas universidades
tem tanto no Brasil quanto no mundo então isso é indispensável que
aconteça. Daí porque a preocupação no âmbito do conselho de reitores de
estudar algo que fosse de justiça porque é óbvio: é de justiça que
universidades públicas aceite uma parcela da população representada em
todos os seus aspectos mas por outro lado não adianta abrir essa
possibilidade como um simulacro. Entram e se veem perdidos no dia
seguinte. Ou que se abra a universidade de tal forma que ela possa vir perder
o mérito. (Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).
Refletir sobre o projeto político que funda as universidades na sociedade
capitalista racializada contribui para evidenciar os contornos da dominação de classe e
raça. Nesse sentido a constituição da USP é forjada como projeto político que articula
competência e cidadania, elementos ideológicos fundamentais para naturalizar e
justificar o “destino” do negro e o lugar da fração da classe média branca abastada na
organização de classes brasileira. O projeto político que orienta a existência da USP,
para além de alinhado com os interesses da classe dominante, funda-se na produção de
mecanismos velados de inferiorização da população não-branca brasileira.
139
A fundação da UNICAMP e da UNESP está inserida no contexto de
intensificação da expansão do ensino superior no Brasil, relacionados por sua vez a
momentos de reestrututação das forças produtivas e nesse sentido podemos situar dois
momentos importantes: o primeiro na década de 60 e o segundo entre os anos 90 e 2000
(BARROS, C. M. 2011).
Nos anos 60, o aumento da presença das empresas estrangeiras, o crescimento
do desemprego com o fechamento de empresas nacionais e da desigualdade de renda
foram acompanhadas por mudanças nas formas usuais de ascensão ou manutenção
social dos setores médios nos cargos estatais e de gestão. Nesse contexto, o trabalho
dito “qualificado” tomou proporções importantes, cumprindo o papel técnico e
coercitivo já que o trabalho massificado exigiria maior controle, direcionamento e
organização que deve ser exercido por um grupo especializado. Será no contexto
marcado pelas mudanças na dinâmica capitalista no Brasil dos anos 60 (intensa
industrialização, aumento do capital estrangeiro no país, expansão do capital privado
nacional e as reivindicações da classe média frente aos impactos daquelas mudanças)
que a UNICAMP e a UNESP foram criadas.
A mobilização estudantil pela expansão do ensino superior dos anos 60
contribuiu, articulada a outros fatores, para a criação da UNICAMP e da UNESP. Desse
modo a fundação de ambas as universidades foi impulsionada por certa preocupação da
classe média com a dinâmica na hierarquização de trabalho dada pelo aumento das
exigências por formação técnica e especialização como pré-requisitos para acessar
determinados cargos. Assim, dado que a ‘valorizada’ diplomação é conferida pelo
sistema educacional, a pauta reivindicativa da classe média era pela expansão do ensino.
Como afirma Cunha L.A. (2007):
“[...] A rebelião dos jovens das camadas médias contra a ordem social vigente
resultou da impossibilidade de elas atingirem os alvos da ascensão social
propostos por essa mesma ordem. Na raiz da rebelião está a intensificação do
processo de monopolização da economia, o qual determinou o deslocamento
dos canais de ascensão possíveis para essas camadas fazendo com que elas
dependessem cada vez mais da obtenção dos graus escolares,
progressivamente mais elevados, exigidos pela expansão das burocracias do
aparelho governamental e das empresas” (idem, p. 71).
Diante da pressão do movimento estudantil, em 1968 ocorre a Reforma
Universitária que se por um lado, cedeu a pressão do movimento estudantil na criação
de vagas no ensino superior, por outro, esteve focada na criação de “estabelecimentos
isolados de ensino no setor privado, contrariando a própria lei da Reforma Universitária
(5.540/68)” (BARROS, C. M. 2011, p 138).
140
A criação da UNICAMP, em 1962, emergiu em um contexto de forte pressão
das camadas médias pela interiorização do ensino superior que contemplasse a demanda
da expansão do capital no interior paulista. Nesse sentido, é preciso ter em conta a
dinâmica das forças produtivas e os conflitos entre as classes nesse contexto de
transformação que irá instituir o tripé sob o qual a Universidade de Campinas viria a ser
instituída: pragmatismo econômico, burocracia e meritocracia (LIMA, 1989).
A UNICAMP nasce como universidade operacional para cumprir com os fins,
supostamente, desenvolvimentistas da ditatura militar iniciada em 1964 e, portanto em
total conexão com a ideologia empresarial voltada para os interesses do capital
monopolista. A idéia-chave que atravessou todo o processo de concepção e fundação da
UNICAMP foi a da universidade-empresa, fundamentada na defesa de que o objetivo
do ensino superior seria formar técnicos para o desenvolvimento, conforme palavras do
primeiro reitor, Zeferino Vaz:
“[...] a universidade tem que dar auxílio a pequena e média empresa [...]
assessoria administrativa e assessoria técnica [...] o que não pode é a
universidade dissociar-se da empresa com um falso pudor de
comercialização mas esse contato da universidade com as empresas é
fundamental para o desenvolvimento da nação brasileira” (VAZ, Zeferino,
2011).
A UNICAMP surge em meio às mudanças na dinâmica do capital financeiro
internacional com grande demanda pelo aparelhamento dos serviços e atividades com
vistas a apoiar o setor produtivo industrial e o setor educacional, assim como os setores
voltados para o desenvolvimento científico-tecnológico que não ficaram de fora dessa
dinâmica. Assim, fundada sob um projeto político carregado de algum paradoxo já que
nasce conectada- assumidamente, aos interesses do capital, a UNICAMP é criada em
articulação com o processo de renovação das funções do Estado capitalista brasileiro e
se insere no processo de instrumentalização da universidade para o desenvolvimento do
capital com vistas a atender à fração da burguesia interessada em apropriar-se do
conhecimento produzido nas universidades para dinamizar a produção industrial, sob a
concepção da “educação-mercadoria” (RODRIGUES J., 2007).
A UNICAMP nasce em diálogo com a concepção de Educação-mercadoria
porque diferentemente da concepção de mercadoria-educação, na primeira teríamos uma
burguesia industrial, supostamente interessada em um projeto de educação e
desenvolvimento econômico enquanto na visão mercadoria-educação, liderada por uma
fração da nova burguesia de serviços interessada apenas em vender sua mercadoria, a
141
educação é concebida sem nenhum projeto ligado ao desenvolvimento científico-
tecnológico (RODRIGUES J., 2007).
A criação da UNICAMP é fruto de uma conformação de interesses e forças: de
um lado a classe média de Campinas que, ao longo dos anos 60, se mobilizou
fortemente por meio do conselho de entidades de Campinas junto ao governo do Estado
para criar, em primeiro momento uma faculdade de medicina que viria a ser fundada em
196283 e de outro a burguesia industrial em expansão. Dentre os argumentos alegados
para criação da faculdade em Campinas, o grupo referiu que um dos motivos seria o
“alto grau de cultura da classe média de Campinas e as tradições culturais de Campinas”
(Cf. VAZ, 2011).
Do outro lado, o governo militar, interessado em responder as demandas do
capital estrangeiro ao mesmo tempo em que estimulado pela corrida tecnológica
alimentada pela Guerra Fria pela crença na necessidade de dominar tecnologias
estratégicas principalmente na área de comunicações, contribuiu para contratação de
“[...] pesquisadores para inventar coisas, construir laser para derrubar um aviãozinho lá
em cima, precisava ter gente com intelecto” 84. Isso explica porque os primeiros cursos
montados foram os de engenharia com o apoio inclusive da Fundação da Indústria do
Estado de São Paulo que à época contribuiu de forma decisiva na elaboração dos
currículos dos cursos de engenharia.
A UNICAMP nasce para responder as necessidades da dinâmica do capital nos
anos 60. Zeferino Vaz, reitor por mais de uma década não escondeu sua preocupação
em responder às demandas advindas da indústria, expressas na adequação das pesquisas
desenvolvidas, nos currículos dos cursos e na própria lógica que orientava o
planejamento da aplicação dos recursos, pois “[...] a Universidade Estadual de Campinas
está a ser implantada como Empresa de produção cultural [e] a sua elaboração há de
obedecer estritamente os princípios empresariais que regem a empresa privada” (VAZ,
1969, apud LIMA, 1989, p.92).
O processo de criação da UNICAMP coloca em suspensão o discurso (muito
evocado pelos docentes ao longo do processo do PIMESP) que situa a universidade
pública brasileira como ontologicamente democrática e neutra em relação aos interesses
83 Quanto ao ano de fundação existe alguma controvérsia já que o lançamento da pedra fundamental como
marco de instalação da UNICAMP ocorreu em 1966. 84 Professor Rogério César de Cerqueira Leite, um dos primeiros professores convidados por Zeferino
Vaz. Foi professor do Instituto de Física de 1970 a 1987. Entrevista concedida para o documentário A
História da UNICAMP, Fundação Padre Anchieta em 13 de dezembro de 2011. Cf. VAZ, Zeferino, 2011.
142
do capital. Nesse sentido, talvez pela justificativa que orientou sua criação,
estabelecendo por isso uma relação menos dissimulada com a lógica empresarial, a
UNICAMP tenha elaborado o modelo de política de inclusão que viria a inspirar o
PIMESP e que até hoje se encontra em vigência na Universidade- o Programa de
Formação Interdisciplinar Superior (Profis), que tem como foco a formação de jovens
de escolas públicas voltada para atender as demandas do mercado. Mas sobre esse ponto
falaremos mais adiante.
Além desses elementos, percebemos que o próprio princípio da autonomia
universitária, longe de absoluto, é em si mesmo contingencial, apesar de ter sido
amplamente e exaustivamente utilizado pelos docentes das três universidades paulistas
para contrapor-se à adoção de cotas étnico-raciais nos anos 2000 como no trecho a
seguir:
“[...] a autonomia acadêmica foi e vinha sendo respeitada até recentemente,
sendo a forma de recrutar seus alunos um dos aspectos relevantes desta
autonomia, explicitada, como vimos acima, na LDB [...] A recente decisão do
governo federal, assim como a de alguns legislativos estaduais, de determinar
cotas para certos grupos nas universidades públicas, fere frontalmente esse
princípio [...] Finalizando, o projeto de lei, como divulgado, vai muito além
de indicar metas e prazos, no caso em questão. Mas ainda há tempo para que
seja repensado, de maneira a garantir que o instituto constitucional da
autonomia universitária, pelo menos em um de seus aspectos essencialmente
acadêmicos, o de formar o corpo discente das universidades, seja preservado
[...]” (PEDROSA, R. H. L.,2004).
Ao olharmos para o processo de criação da UNICAMP e ao nos defrontarmos
com a reivindicação da autonomia universitária como mecanismo que ‘protegeria’ a
universidade de interesses externos, tão presente no discurso dos docentes paulistas
contrários às cotas, nos parece que a autonomia tem sido mobilizada mais como um
mecanismo que assegura a regulamentação da relação da universidade a partir dos
interesses da fração da classe média abastada do que como valor ontológico ancorado
em ideais democráticos e independentes das demandas das classes dominantes.
O processo de criação da UNESP desvela, em nossa análise, as primeiras
disputas das frações da classe média paulista sobre o controle da “sobrecertificação”
(BOURDIEU, 1982) e nesse sentido os trabalhos de César Barros (2007; 2011) quanto à
relação entre expansão do ensino (acarretando um grande contingente de pessoas
diplomadas) e os efeitos desse processo para a manutenção da hierarquia do trabalho
parece ser um bom ponto de partida para compreender as disputas no interior da classe
média paulista pela gestão da ampliação do ensino superior e do conflito entre a classe
média e a classe dominante quanto ao controle pelo aparelho educacional.
143
A UNESP surge a partir da junção dos Institutos Isolados de Ensino Superior do
Estado de São Paulo que já existiam desde os anos 40 em decorrência das demandas da
classe média paulista interiorina que crescia decorrente do processo de desenvolvimento
urbano, agrícola e industrial. A demanda era por uma formação superior dos jovens da
classe média que não tinham possibilidade de se manterem na capital ou em outras
universidades fora do estado. A junção de institutos, fundações, escolas para formação
de universidades era corrente, como aconteceu com a própria USP, mas mesmo assim, a
UNESP só viria a ser instituída como universidade em 1976. Ou seja, entre a criação da
USP nos anos 30, da UNICAMP nos anos 60, por quais razões a UNESP só viria a ser
criada quase no início dos anos 80 mesmo diante da demanda das classes médias
interiorinas e com o apoio das elites locais desde os anos 60? O Conselho Universitário
da USP teve um papel muito importante sobre esse processo (LEITE, 1997;
CASTILHO, 2009).
Até os anos 50, o Conselho da USP exercia um papel importante na política
educacional e era consultado pela Assembléia Legislativa quanto à criação dos
Institutos isolados de educação. Mesmo não aprovando a existência da maioria dos
Institutos, a USP acompanhava o processo de criação e funcionamento muito de perto,
pois, supostamente, precisava assegurar que “os interesses políticos [...] “não
prejudicassem o alto nível do Ensino e da cultura no país” (LEITE, 1997, p. 273).
A USP, por meio do supervisionamento da criação de novas Faculdades e
demais Institutos Isolados no estado de São Paulo (que viriam depois a constituir a Rede
dos Institutos Isolados do interior), retardou o surgimento de universidades no interior
paulista. A análise de um trecho do relatório do primeiro diretor da Faculdade de
Marília, Prof. Querino Ribeiro, nomeado pelo governador do Estado, evidencia a
resistência da USP:
“[...] A história das solicitações da cidade de Marília para obter um instituto
de ensino superior vem de muito longe. O Processo número 4557/52 apesar
de avolumado pela pertinácia edificante dos marilienses encerra, todavia,
uma quase dezena de pareceres de professores isolados ou em comissão, da
Faculdade de Filosofia ou de outros institutos da Universidade e do próprio
Conselho Universitário, todos, invariavelmente, contrários à pretensão, com
ponderáveis fundamentações que vão desde os fatos concretos e elementares
das dificuldades materiais, até a idéia superior da necessidade preliminar de
um planejamento geral para a distribuição dos institutos de ensino superior
(isolados ou participantes da Universidade) pelos grandes centros do interior
do nosso Estado” (ANAIS, 1969, p. 10 apud CASTILHO, 2009, p. 86).
Segundo Castilho (Idem), em torno de 60 pedidos vindos do interior paulista
para criação de institutos, cursos, fundações foram negados pelo Conselho da USP sob a
144
justificativa de que essas instituições não teriam condições de assegurar o “alto nível do
Ensino e de Cultura do país, exigido das Instituições Superiores” (Idem). A preocupação
com rigor e qualidade parecia dissimular: 1) o impacto no volume de recursos advindos
do governo estadual para a USP, caso outras universidades viessem a surgir e 2) o
controle da “sobrecertificação”.
O funcionamento na forma de Institutos levou ao crescimento, cada vez maior,
da mobilização da classe média interiorana pela criação de uma universidade. A Rede
de Institutos não dispunha de orçamento próprio (tendo que negociar mês a mês os
recursos diretamente com a Secretaria de Educação). Além disso, um segundo elemento
era o fato dos institutos não constituírem uma mesma instituição, em termos jurídicos, o
que acabava por enfranquecê-los politicamente. E um terceiro fator, era o próprio
controle feito pela USP que ainda exercia influência no funcionamento dos Institutos
(nos currículos e quadro docente). Então finalmente em 1976, frente a grande pressão
dos institutos, a UNESP é instituída como universidade com o apoio da já criada
UNICAMP, mas ainda assim sofrendo fortes críticas advindas do grupo fundador da
USP. Mas como entender a resistência da USP mesmo diante da incapacidade, em
termos de infraestrutura, daquela Universidade em dar conta da demanda e diante da
forte pressão das classes médias do interior do Estado com o apoio de representantes
políticos para a criação da UNESP?
Além da divisão dos recursos, a resistência pode estar atrelada a tentativa de
elitização do ensino superior articulada à busca pela limitação à “certificação”. Ainda
que complementares, entendemos que esses dois elementos têm características que os
particularizam e que estão relacionados ao modo como a opressão de classe e raça se
himbricam (mas não podem ser tomados um pelo outro) na disputa pelo controle do
sistema universitário público.
Quanto ao primeiro elemento, entendemos que a razão pela qual existia
resistência no grupo ligado aos fundadores da USP, estava relacionada a certa postura
elitista de matriz eurocêntrica, que discutimos anteriormente acerca do contexto de
criação da USP e do movimento de reforma educacional que dissimulava os interesses
políticos pelo controle da universidade disseminando o discurso de que o ensino
universitário deveria ultrapassar:
“[…] os limites e as ambições de formação profissional, a que se propõem as
escolas de engenharia, de medicina e direito. Nessas instituições, organizadas
antes para uma função docente, a ciência está inteiramente subordinada à arte
ou à técnica da profissão a que servem, com o cuidado da aplicação imediata
145
e próxima, de uma direção utilitária em vista de uma função pública ou de
uma carreira privada […]” (Cf. AZEVEDO F.E.A., 2006, p.199).
A resistência da USP à criação da UNESP parece inserir-se nesse contexto de: 1)
rechaço da intelectualidade uspiana a qualquer movimento de ampliação do ensino
superior e; 2) preocupação em barrar qualquer proximidade com uma formação mais
“profissionalizante” ou “técnica”, como era o caso de alguns institutos que viriam a
compor a UNESP.
Em relação ao segundo elemento, entendemos que o foco da preocupação estaria
mais em garantir que se mantivesse a idéia de “que não seria necessário criar mais
escolas de qualidade, pois não havia a necessidade de formar mais elites. Bastava a
Universidade de São Paulo garantir essa formação e renovação” (CASTILHO, 2009, p.
95). Nesse sentido, mediante a expansão do ensino, a USP mobilizou-se para bloquear a
criação de mais instituições, mantendo sua distinção, limitando as vagas no ensino
superior público e assim evitando a desvalorização dos diplomas, isto é, controlando a
sobrecertificação.
Retomar os projetos políticos e as idéias que atravessam a criação das
universidades estaduais paulistas nos parece oportuno para compreender de um modo
mais ampliado a grande resistência da classe média branca abastada paulista à adoção
das cotas étnico-raciais.
Em nosso entendimento a resistência dos docentes da USP, é em parte explicada,
pelo medo da sobrecertificação que implica na possibilidade de juntar-se à grande massa
de trabalhadores manuais e esse medo, como vimos, acompanha a própria fundação da
universidade. Entretanto, como tentaremos evidenciar na seção seguinte, para além da
condição de classe, a resistência dos docentes expõe de que forma, historicamente, a
fração da classe média abastada e branca tem reproduzido a naturalização do racismo.
Longe (ou não tão longe assim) do contexto eugenista do século XX no qual
justificara a sua posição no ordenamento social pela “hierarquia das capacidades” para
formar a “hierarquia democrática” (AZEVEDO F.E.A., 2006, p. 191), a fração da classe
média branca e alta paulista no século XXI, buscará, em nossa leitura, justificar sua
posição na divisão social do trabalho por meio da defesa da meritocracia aliada à crença
na democracia racial, recorrendo à prerrogativa constitucional da autonomia
universitária para assegurar o controle sobre a democratização do acesso ao ensino
superior público.
146
O PIMESP
Confrontados a decidir sobre políticas que pudessem vir a ampliar as chances de
acesso para as populações negras e indígenas ao ensino superior, os docentes das
estaduais de São Paulo são levados a enunciar idéias e percepções a partir das quais
entendem: 1) os motivos da ausência de estudantes negros e indígenas no espaço da
universidade pública e 2) as soluções adequadas para esse problema. Nesse sentido, o
objetivo da presente seção é examinar como o conceito eurocêntrico de raça e racismo e
o pertencimento à fração da classe média abastada e branca orienta o posicionamento
político dos docentes das universidades estaduais paulistas frente ao PIMESP e às cotas.
Buscaremos explorar como a defesa em torno da inclusão com mérito e a defesa
da prioridade do perfil econômico em detrimento do racial para o estabelecimento das
políticas inclusivas consiste na manutenção da hierarquia do trabalho e silenciamento
das desigualdades com base em raça viabilizado por meio de uma atualização de
políticas de cunho integracionistas chamadas por seus elaboradores de políticas
inclusivas.
Buscaremos traçar, ao longo da presente seção, os pontos de conexão que
orientaram o PIMESP e os programas de inclusão nas universidades estaduais de São
Paulo (2004-2014) e a partir daqueles pontos de conexão situar as idéias que vem
orientando a atuação dos docentes das três universidades no processo de ampliação de
acesso à universidade.
Negros e indígenas correspondem a 37,5% da população total do estado de São
Paulo (IBGE, 2010), entretanto a presença desses grupos nas três universidades, mesmo
com as “políticas de inclusão” adotadas pelas universidades estaduais paulistas desde
2004 – como o sistema de bonificação que atribui pontos aos inscritos no vestibular
egressos de escola pública, esteve sempre abaixo do percentual da população negra e
indígena. Por exemplo, em 2012, ano da criação da lei federal de cotas, a presença de
negros e indígenas na UNESP e UNICAMP no corpo discente não passava dos 16% e
na USP dos 14% (VOGT, 2013), subrepresentatividade que encontraremos também no
perfil do corpo docente.
Os dados85 disponibilizados pela USP, UNESP e UNICAMP desnudam a
composição étnica-racial do corpo docente das estaduais paulistas. Em 2019, dos 3.372
85 Sobre as informações acerca do perfil racial, no caso da USP os dados estão disponíveis na página da
Universidade (https://uspdigital.usp.br/portaltransparencia/informacaoServidorRacaCor), mas no caso da
147
docentes na UNESP, apenas 7% são negros (218 autodeclarados pretos e pardos) e
indígenas (4). Já na UNICAMP, do total de 2.087 docentes, 89% autodeclararam-se
brancos (1.857) e 4% negros e indígenas (87 negros e cinco indígenas).
A USP é, dentre as universidades, a que menos tem em seu quadro docente a
presença de negros e indígenas. Dos 5.763 docentes na ativa, 91% (5.246)
autodeclararam-se brancos e apenas 126 eram negros e um indígena (2% do total). Vale
enfatizar que a porcentagem de autodeclarados brancos no estado de São Paulo é de
63,9%, o que aponta para uma subrepresentação de negros e sobrerepresentação de
brancos nos cargos de docência.
Com a apresentação dos dados acerca da composição étnica-racial do corpo
docentes das universidades, gostaríamos de pontuar que a própria inexistência de um
censo estadual acerca da composição étnico-racial dos docentes nas universidades
públicas de São Paulo, como aponta Carvalho, J.J. (2006), já é um forte indício da
negação da academia de defrontar-se com sua condição racial privilegiada.
A categoria cor/raça está presente no censo demográfico brasileiro desde 1872, e
tem sido instrumento fundamental na elaboração de políticas públicas focadas no
enfrentamento às disparidades raciais. Entretanto, estamos nos anos 2000 e a
disseminação e problematização acerca dos dados da composição étnico-racial dos
docentes das universidades estaduais paulistas parecem ainda não estar no horizonte
político dessas instituições. As universidades de São Paulo endossam essa
invisibilização da composição racial dos seus quadros na medida em que ainda não há
uma sistematização, a nível estadual, desses dados, o que é, por si, um recurso
estratégico que torna invisível os lugares de privilégio na estrutura de dominação
racializada.
A negação das categorias raça e racismo e a ocultação da posição de classe são
centrais para compreender as estratégias de naturalização de não acesso de
determinados grupos à universidade. A própria nomeação dos programas de ampliação
de acesso nas universidades estaduais paulistas não carrega nenhuma referência à
afirmação de raça, etnia como reivindicado pelo movimento negro e utilizado para
nomear a política em diversos contextos no Brasil e em outros países. Todos os
programas, até 2014, carregavam no título o termo inclusão complementados pelo
UNICAMP e UNESP é necessário fazer uma solicitação, por meio da Lei de Acesso livre à informação, e
a resposta ao pedido leva entre 20 e 30 dias úteis.
148
termo social, o que para nós evidencia a “presença-ausência” da raça e ocultamento do
pertencimento à classe.
A UNICAMP era a única dentre as três universidades, que fazia referência em
seu “Programa de Ação Afirmativa para Inclusão Social”, mas ainda assim permanece a
sinalização da inclusão social. Longe de mero preciosismo linguístico, a referência à
inclusão social para complementar a ação afirmativa é, em primeiro lugar, um
marcador que diferencia aquela política das políticas afirmativas implementadas pela
Lei de Cotas. E em segundo lugar, a adição do social, expressa a primeira negação do
racismo, da recusa em nomear raça (ou mesmo etnia) como se essa postura em si mesma
(antirracialista) fosse suficiente para banir o racismo. O antirracialismo estará
fortemente presente nos discursos dos docentes frente ao PIMESP.
A invisibilização do elemento cor/raça por meio do artifício da ênfase em
egressos da escola pública, numa explícita redução do problema do acesso às
universidades a uma questão de renda, deve ser encarada como um dispositivo de
racialidade (CARNEIRO, S. 2005) sob os quais o racismo institucional operacionaliza
práticas que asseguram a reprodução dos lugares de poder, como é o caso das
universidades.
Partimos da hipótese que o “problema do negro” é encarado pelos docentes
como uma questão apenas de pobreza (leia-se escola pública) e que a solução seria a
“integração/assimilação”, sendo preciso o gerenciamento da fração da classe média
branca nesse processo. Esse enquadramento, como nós buscaremos evidenciar, além de
reificar uma narrativa do perigo da degeneração advinda da entrada dos negros e
indígenas nas universidades, revela como aquele tipo de enquadramento compromete os
própositos de uma política educacional que se pretende afirmativa.
As implicações do enquadramento da integração resultam na reprodução da
narrativa na qual os sujeitos a serem “incluídos” são concebidos como culturalmente
deficientes e inaptos. A narrativa que circunscreve a integração como solução para os
problemas gerados pela hierarquização do trabalho só é viável pela presença-ausência
do racial (APPLE, 1999; ARAÚJO & MAESO, 2013). Raça e racismo são negados na
produção da narrativa da integração apenas de um modo aparente, pois o conteúdo
substancial do imaginário racial sustenta a lógica daquele enquadramento.
O processo de consulta que resultou na rejeição (total ou parcial) ao PIMESP
pelos docentes das três universidades nos informa sobre a complexidade dos processos
de disputa entre as classes na sociedade brasileira que, por sua vez, continuam sendo
149
organizados pelo imaginário racializado, mesmo após o fim do sistema escravocrata.
Em outras palavras, em um só tempo o debate em torno do PIMESP nos diz como raça
informa classe, pois se de um lado temos a possibilidade de compreender a
operacionalização dos dispostivos racistas que operam nas instituições, do outro lado
nos confrontamos com a fração da classe média abastada e branca buscando reafirmar
sua superioridade e rejeitando, à todo custo, “a igualização sócio-econômica do trabalho
manual e do não-manual” (SAES, 1977, p. 100).
A avaliação da proposta do PIMESP foi concluída entre 2013 (USP e UNESP) e
2014 (UNICAMP) e, em nosso entendimento, a análise de todo o processo pode ser
oportuno para entendermos como ocorrem as dispustas entre as classes, as articulações,
as negociações, em síntese as disputas pela manutenção da distinção da fração da classe
média abastada frente as outras classes. Nesse sentido, partimos do entendimento de que
o PIMESP resulta de uma tentativa de administrar um período no qual as formas de
reprodução da classe média branca, as relações e representações políticas estavam em
dispusta. Nesse sentido entendemos que o contexto politico no qual o PIMESP emergiu,
era um contexto de questionamento da reprodução das relações de classe e raça que
afetou principalmente a fração da classe média abastada e branca. Levada a entrar em
conflito aberto pela garantia do seu lugar de reprodução, a atuação política da fração da
classe média abastada revelou também as contradições e os limites das bases nas quais a
classe média liga-se às classes dominantes.
Dito isto, a proposta do PIMESP, portanto é resultado de uma articulação entre:
os reitores, à época a frente das três universidades públicas estaduais (Unesp, Unicamp
e USP), juntamente com o executivo estadual - à época comandado pelo então
governador Geraldo Alckmin do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), o
diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP), representantes da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (UNIVESP)
e do Centro Paula Souza.
Antes de adentrarmos na proposta em si chama atenção a composição da equipe
elaboradora da Proposta: por qual motivo em um processo que interessava
prioritariamente à comunidade acadêmica, o executivo e outros dois órgãos- UNIVESP
e do Centro Paula Souza foram convidados em detrimento de outros setores interessados
(como por exemplo, associações, sindicatos, movimento negro, indígena)? Para
responder a essa questão é preciso situar tanto a criação da UNIVESP como do Centro
Paula Souza dentro das propostas políticas para a educação do governo do PSDB,
150
alinhadas com uma proposta de ensino técnico, próximas às demandas do mercado e
que ao longo das gestões do PSDB no estado de São Paulo foi pautada por inúmeros
conflitos entre o executivo e os profissionais ligados ao aparelho educacional, revelando
os limites ideológicos da aliança entre a classe dominante e classe média.
Ao analisar a política educacional do Estado de São Paulo ao longo dos
governos do PSDB durante os mandatos de Mário Covas, Geraldo Alckmin, Cláudio
Lembo e José Serra, Sanfelice (2010) chega à conclusão que a perspectiva ideológica
que dominou a política educacional durante estes governos do PSDB foi o
neoliberalismo, com predominância da lógica do mercado.
A UNIVESP foi criada em 2008 como um programa vinculado às universidades
estaduais visando suprir a demanda por mais vagas nas universidades estaduais paulistas
com formação superior à distância. Em 2012, a Universidade ganhou indepedência em
relação às demais universidades por um decreto de lei (Cf. SÃO PAULO, 2012)
proposto pelo então governador Geraldo Alckmin. A Universidade contava com seis
cursos de graduação (Engenharia de Computação e Engenharia de Produção,
licenciaturas em Matemática, Física, Química e Biologia) assim como a oferta de
especialização para a formação docente.
Os cursos oferecidos pela entidade seriam 50% presenciais e 50%
virtuais. Nessa segunda parte os alunos aprovados no processo seletivo receberiam o
conteúdo virtual por meio da internet e de um canal de TV (TV Univesp). Já as aulas
presenciais seriam possíveis por meio de parcerias com as outras três universidades
públicas paulistas (USP, Unicamp e Unesp). Os estudantes receberiam aulas presenciais
nos espaços e laboratórios dos campi das três universidades, em geral, duas vezes por
semana e no período da noite. À época da sua instituição como fundação, a Univesp
tinha planos de formar 24 mil alunos, mas contava com apenas 40 professores
permanentes e 95 funcionários técnico-administrativos.
A UNIVESP recebeu, desde a sua criação, inúmeras críticas, como a qualidade
duvidosa do ensino ofertado, a qualidade da aprendizagem dos estudantes, o
beneficiamento da iniciativa privada. O professor Antonio Luis de Andrade86, à época
presidente da Associação dos Docentes da UNESP sobre a UNIVESP afirmou que “E
então [com a criação da UNIVESP] passará a existir universidades de primeira e de
86 Entrevista à Rede Brasil Atual em 31 de agosto de 2013 (Cf. OLIVEIRA C., 2013).
151
segunda classe”. A partir dessa afirmação gostaríamos de aprofundar a relação entre
expansão de vagas e a manutenção da distinção da classe média.
No artigo “Universidades vs terciarização do ensino superior: a lógica da
expansão do acesso com manutenção da desigualdade: o caso brasileiro”, o pesquisador
Antônio Augusto Pereira Prates (2007) faz um apanhado acerca da expansão mundial do
ensino superior, nos anos 70, para evidenciar de que forma a expansão ocorrida “é
resultado da incorporação da lógica mercantil no sistema de gestão pública do ensino
superior [e que ] tem, entretanto, permitido o insulamento das universidades de prestígio
acadêmico, mantendo-as como nichos exclusivos dos membros das elites sociais destas
sociedades” (idem, p. 351). A UNIVESP insere-se nesse contexto de expansão do
ensino superior, a partir das contradições frutos das demandas do sistema capitalista e
que atravessam o processo de aumento de vagas, não apenas no Brasil, mas no mundo
capitalista.
Retomando à UNIVESP, ela simboliza, portanto um modelo de expansão de
vagas que tem na base que a cria a diferenciação institucional, resultado da conciliação
de múltiplos interesses da classe dominante e da fração da classe média alta e branca
ligada ao aparelho educacional universitário na medida em que o tal arranjo contemplou
a agenda de interesses daquelas classes. A um só tempo, a proposta da UNIVESP
representou o sucateamento do ensino público, o corte nos investimentos em educação e
redução de custos, enxugamento dos conteúdos e reorientação curricular, precarização
das condições de funcionamento do ensino ao mesmo tempo em que manteve intocadas
as formas de seleção e, portanto de acesso às três universidades paulistas. A
implantação desse modelo contribuiu para o esvaziamento do debate acerca da
ampliação e democratização do acesso ao ensino superior público.
O Centro de Tecnologia Paula Souza é uma autarquia do Governo do Estado de
São Paulo, vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia
e Inovação (SDECTI). A instituição administra 219 Escolas Técnicas Estaduais (Etecs)
e 66 Faculdades de Tecnologia (Fatecs).
A educação profissional na agenda de políticas públicas de educação no Estado
de São Paulo está em estrita relação com a expansão do Centro Estadual de Educação
Tecnológica Paula Souza.
O Centro Paula Souza foi criado à época da ditadura militar de 1964 e insere-se
na esteira do refinamento do diálogo entre a proposta do regime militar para a educação
152
e as demandas do sistema capitalista de produção. O então Governador de São Paulo,
Abreu Sodré, ao empossar o Grupo de Trabalho (GT) que faria avaliação da situação do
ensino superior paulista e da possibilidade da instituição dos Collegs of Advanced
Technology, fez um pronunciamento que chama atenção pela presença explícita da
tensão existente entre trabalho manual e trabalho não-manual, afirmando que foi
combativo no:
“[…] encaminhamento da juventude para cursos do tipo acadêmico
tradicional ou de mero prestígio […] a escola “deve enaltecer a excelência e
ensinar os estudantes a amá-la e a alcançá-la em todo e qualquer tipo de
trabalho útil à sociedade […] selecionando e instruindo os moços segundo a
sua capacidade e a sua dedicação […] cabe à escola eliminar “o mito da
inferioridade do trabalho técnico e a importância [...] Sem considerar origem
social ou nível financeiro” dos seus alunos, cabe à escola eliminar “o mito
da inferioridade do trabalho técnico e a importância [...] do estímulo ao
desenvolvimento do ensino da tecnologia em suas variadas manifestações
[…]” (Parecer CEE/CES 384/1969e, in SÃO PAULO, 1969e, p. 2, apud
SACILLOTO, 2016, p. 202).
O relatório do GT ainda afirma que no que diz respeito ao setor do ensino
universitário, o Governador, apreensivo com a “ameaça de adulteração [da qualidade do
ensino universitário com o movimento de expansão do ensino], adotou posição firme de
contenção da expansão indiscriminada [e] estímulo à ampliação ordenada” (Parecer
CEE/CES 384/1969e, in SÃO PAULO, 1969e, p. 3, apud SACILLOTO, 2016, p. 202).
O embate entre classe dominante e classe média acerca dos rumos da expansão
do ensino superior paulista, presente também no debate sobre o PIMESP, vem de um
acúmulo histórico e revela os conflitos e os limites da aliança entre essas classes
burguesa e média.
Retornemos ao PIMESP. A proposta do Programa de Inclusão com Mérito no
Ensino Superior Público Paulista (PIMESP) foi apresentada em cerimônia com todos os
elaboradores do Programa no fim do ano de 2012 inserido dentro do Programa Paulista
de Inclusão Social no Ensino Superior, trazendo pela primeira vez a discussão sobre
cotas étnico-raciais como forma de acesso no âmbito das universidades paulistas na
agenda oficial do governo e que em nossa leitura foi a resposta do executivo (em
parceria com a burocracia educacional) ao cenário nacional (constitucionalidade das
cotas no STF, mobilização do movimento negro). Segundo o governador Geraldo
Alckmin, o PIMESP era a ampliação dos programas de inclusão, pois “as universidades
já têm um programa de inclusão com várias ações afirmativas, mas nós queremos ter um
programa mais abrangente e de Estado, ou seja, para todos” (Cf. SALA DE
IMPRENSA, 2012).
153
De fato, já existiam programas de bonificação na Unicamp e na USP, assim
como a isenção na taxa do vestibular da UNESP, entretanto esses programas já estavam
a enfrentar diversas críticas, fosse pelos resultados inexpressivos em termos de aumento
de matrícula de alunos oriundos das escolas públicas (principal foco das ações
afirmativas nas três universidades naqueles anos), fosse pelo próprio modelo da ação
afirmativa que dava primazia ao recorte de renda (leia-se escola pública) em detrimento
do recorte étnico-racial.
Dados das comissões dos vestibulares das três universidades do ano em que foi
proposto PIMESP mostram o quão pequeno vinham sendo os avanços alcançados pelas
“políticas inclusivas” das universidades paulistas (CRUESP, 2012):
Tabela 1: Matriculados 2012 na Usp, Unesp e Unicamp
VAGAS PRETOS,
PARDOS E
INDÍGENAS-
PPI (%)
ORIUNDOS
DE
ESCOLA
PÚBLICA-
EP (%)
PPI + EP
(%)
USP 10.733 1.511
(14%)
3.048
(28%)
793
(7%)
UNESP 7.094 1.137
(16%)
2. 843
(40%)
697
(10%)
UNICAMP 3.554 529
(16%)
1.088
(32%)
305
(9%)
Fonte: Vogt, 2013.
Os dados apresentados foram produzidos por Carlos Vogt, um dos elaboradores
do PIMESP e então presidente da Fundação Univesp, instituição que dentro da proposta
do PIMESP, iria criar a estrutura dos ditos cursos superiores sequenciais, que os
articuladores da proposta chamaram “colleges” e sobre o qual falaremos mais a frente.
O que interessa atentarmos sobre os dados acima é que apesar desse conflito de
interesses advindo do fato de serem os mesmos agentes que produzem dados avaliativos
das políticas de inclusão, assim como também elaboram propostas de políticas públicas,
ainda assim os dados na Tabela 1 revelam a gritante desigualdade em relação a presença
de brancos e negros matriculados nas universidades estaduais de São Paulo mesmo com
os programas de inclusão vigentes: em 2013 pretos, pardos e indígenas oriundos de
154
escolas públicas somavam apenas 10% do total de estudantes matriculados na UNESP e
nos casos da UNICAMP e USP esses grupos referidos não chegavam a somar sequer
10% do total de ingressantes.
Além dos resultados ínfimos dos programas de inclusão vigentes nas três
universidades, tinha-se no contexto nacional, na primeira década dos anos 2000, a
crescente adoção por parte das universidades federais e estaduais de programas
afirmativos com reserva de vagas em todo o Brasil, o que concorreu para aumentar a
pressão dos grupos interessados sobre as universidades públicas paulistas.
Válido ainda dois adendos importantes quanto ao contexto de surgimento da
proposta do PIMESP, antes de avançarmos para a análise da proposta em si: a decisão
pela constitucionalidade de programas das cotas étnicas/sistema de reserva de vagas
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012 e o fato de estarem previstas eleições
para o ano de 2014.
Em abril de 2012, a argumentação sustentada por muitos pesquisadores,
investigadores, representantes políticos de que as cotas feririam a dignidade e os
princípios universais dos direitos humanos, afetando o próprio combate à discriminação
e ao preconceito, criando as tais divisões raciais no Brasil, não encontrou respaldo legal
frente ao entendimento unânime da Suprema Corte de que sim, a modalidade de reserva
de vagas étnico-racial não feriria os princípios constitucionais e ainda de que seriam
necessárias, tendo em vista as desigualdades históricas que afetariam o acesso de negros
e indígenas ao ensino superior. Vejamos os votos dos ministros:
“[…] Se somos capazes de produzir estatísticas sobre a posição do negro na
sociedade e se é evidente a situação do negro no mercado de trabalho, e
não podemos negar isso, parece possível indicar aqueles que devem ser
favorecidos pela política inclusiva […]” (Voto do ministro Marco Aurélio,
Cf. BRASIL, 2012a).
“[…] Os deveres que emanam desses instrumentos impõem a execução
responsável e consequente dos compromissos assumidos em relação a todas
as pessoas, mas principalmente aos grupos vulneráveis, que sofrem a
perversidade da discriminação em razão de sua origem étnica ou racial
[…]” (Voto do ministro Celso de Mello, Cf. BRASIL, 2012a).
O reconhecimento de que existem desigualdades que afetam historicamente um
grupo e que estas não podem continuar a perpetuar-se no contexto de Estado de direito,
a nosso ver, constitui-se em um dos raros momentos, nos quais o sistema jurídico, no
que toca a reivindicação do movimento negro, decidiu colocar em suspenso o
155
igualitarismo abstrato e enfrentar, dentro dos limites do direito burguês, o racismo no
Brasil.
Retomemos os impactos da decisão do STF no contexto paulista. A votação pela
constitucionalidade das cotas étnico-raciais no STF em 2012 contribuiu para pressionar
não apenas os dirigentes das universidades paulistas, mas o governador à época que
tinha pretensões eleitorais. Diante do cenário inevitável, o então governador, viu-se
pressionado a dar uma resposta frente a esse cenário ao mesmo tempo em que poderia
aproveitar a oportunidade para elaborar uma “proposta-vitrine” para a área de educação
como candidato à reeleição.
Tendo em conta esse contexto de ano eleitoral podemos conferir significado à
condução da apresentação da proposta como: a apresentação da proposta do PIMESP
em uma grande cerimônia pública com grande apelo midiático e com um cronograma87
para avaliação relativamente curto.
A “coincidência” - entre o lançamento da proposta do PIMESP e a proximidade
com ano eleitoral - não passou despercebida pelos docentes nem tampouco pelos
movimentos sociais, principalmente o movimento negro, que atuou decisivamente
denunciando os fins eleitoreiros da proposta e o cunho extremamente elitista e racista do
PIMESP.
Apresentado os agentes e o contexto de elaboração da proposta do PIMESP,
avancemos agora para análise das propostas contidas no documento apresentado às
congregações. O documento apresentado continha 10 páginas ao total, divididas nos
seguintes tópicos88:
1) Alguns dados;
2) Proposta do CRUESP
2.1 Metas para matriculados oriundos da escola pública e, dentre estes, pretos,
pardos e indígenas.
2.2 Os meios para se atingirem as metas
2.2.1 Instituto Comunitário de Ensino Superior – ICES
2.2.2 Plano Institucional de Recrutamento de estudantes capacitados e
participantes dos grupos sociais no regime de metas
2.2.3 Fundo Especial para Apoio à Inclusão Social
87 O CRUESP apresentou o projeto oficialmente às Universidades em 28/01/2013, quando foi
reencaminhado aos diretores das unidades, conferindo-lhes 60 dias para que levassem uma resposta ao
Conselho Universitário. 88 Literalmente reproduzidos na presente tese.
156
A.1 Instituto Comunitário de Ensino Superior – ICES Detalhamento
A.1.1 Promoção do aumento da inclusão social no acesso ao Ensino Superior
Público Paulista
A.1.2 Promoção da permanência dos alunos no Ensino Superior
A.1.3 Disciplinas oferecidas para formação humanista e científica
A.1.4 Estimativa de custos para o ICES
A.1.5 Avaliação
De modo geral iremos nos debruçar sobre esse documento a partir de três
elementos que consideramos cruciais para nossa análise: justificativa para a construção
do modelo do PIMESP, o Instituto Comunitário de Ensino Superior e o currículo
proposto.
O primeiro ponto que gostaríamos de chamar atenção é a ausência no documento
de uma discussão sobre a situação das políticas de inclusão e os resultados ínfimos
atingidos pelos programas vigentes nas três universidades. Não há uma linha no
documento quanto a esse facto e como aquela realidade foi uma das razões para a
elaboração da proposta do PIMESP. Esse ocultamento, como nós analisaremos nos
próximos tópicos, terá implicações para a discussão nas congregações, pois como
veremos algumas defenderão a manutenção do sistema de bonificação, alegando o
sucesso daqueles programas.
Obviamente que suspeitamos que os docentes tivessem informações da
“ineficácia” dos programas vigentes, pois, era uma situação relativamente sabida nas
três universidades, mas manter-se ignorante nesse contexto também seria coveniente.
Entretanto, o fato é que um documento que se propunha a conquistar legitimidade para
uma nova proposta de inclusão teria por obrigação contextualizar a justificativa para a
mudança nas políticas desenvolvidas até aquela altura, o que não foi feito.
O Programa de Inclusão com Mérito está baseado em velhos modelos de
políticas universalistas a começar pela apresentação dos dados. Os números trazidos na
primeira página do documento não podem ser lidos ingenuinamente, pois cumprem a
função de legitimar a proposta que se auto intitula inclusiva, mas que como veremos,
pelo arranjo proposto, essa “inclusão” se mostraria veladamente racista e elitista ao
mesmo tempo em que tentava articular algumas justificativas controversas para adoção
do PIMESP. Nesse sentido, faz-se pertinente definirmos as justificativas que tem
157
orientado a implementação de políticas afirmativas ao longo da história de criação desse
tipo de medida.
Com Feres Jr et al (2011), concordamos que há três argumentos básicos de
justificação das políticas de ação afirmativa: reparação, justiça distributiva e
diversidade. A justificativa com base na reparação busca a correção por meio de
medidas específicas de discriminações históricas (escravidão negra, por exemplo),
diferentemente das justificações baseadas em justiça distributiva e diversidade. Na
primeira, o que sustentaria uma ação afirmativa é a constação da desigualdade no
presente (onde o peso do acúmulo de injustiças do passado não importa) assim como
para a justificativa da diversidade. Entretanto, dentre as três, essa última seria a mais
problemática em relação à luta antirracista, pois a um só tempo dilui o peso da
narrativa histórica da escravidão ao mesmo tempo em que esvazia a centralidade da
categoria raça por “considerar [que] raça e etnia não devem ser os únicos critérios
usados para se produzir diversidade” pois seria necessário considerar outros como
“origem social, geográfica, aptidões, orientação sexual” (FERES JR et al., 2011).
Mas avancemos com análise dos dados para podermos mais a frente situar a
justificação do desenho do PIMESP. Os dados apresentados no documento são
relativos à proporção entre a quantidade de estudantes que conseguem concluir o
ensino fundamental e médio e a porcentagem de concluintes do ensino médio que
chegam até a universidade. O motivo para a escolha desse tipo de informação pode
melhor ser percebido nas palavras do ex-reitor da UNICAMP e um dos elaboradores
da proposta, Fernando Costa:
“Quando nós olhamos o universo completo dos jovens de 18 a 24 anos, o
número desses jovens que estão no ensino superior no estado de São Paulo
ou no Brasil é inferior a 15% […] é muito menor do qualquer país
desenvolvido […] então existe a necessidade desses programas que estamos
falando [programas de inclusão] mas a gente não deve perder de vista que
nós precisamos aumentar também o número de jovens no ensino superior
mesmo” (Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).
Nas entrelinhas da proposta estaria a suposta preocupação em aumentar a
inclusão de qualquer jovem (independente de cor, classe, etnia) na universidade.
Aceitemos, provisoriamente, que seja cabível, tendo em vista a discrepância de jovens
que não chegam ao ensino superior, que o Programa focasse então nesse público.
Entretanto, mesmo partindo desse recorte (inclusão de jovens no ensino superior), os
elaboradores ocultam os dados que confirmam a disparadidade racial nessa faixa etária
quanto ao acesso ao ensino superior.
158
A proporção dos estudantes negros com idade entre 18 a 24 anos que cursavam o
ensino superior em 2012 era de 37,4%, frente 66,6% dos estudantes brancos89. Na
região Sudeste, em 2010, os números de universitários negros e brancos eram 28,1% e
70,2% respectivamente. Se analisarmos as instituições públicas em 2010, por exemplo,
a presença de estudantes negros com idade entre 18 e 24 anos no ensino superior
público correspondia a 38,5% dos matriculados, enquanto a de estudantes brancos
correspondia a 59,4% do total, sendo a região a Sudeste em 2010, a região com maior
disparidade entre o tamanho da população negra (34,6%) e a presença desse grupo
(28,1%) no ensino superior (cf. ARTES & RICOLDI, 2015).
Faremos um esforço para situar a justificativa de criação do PIMESP pelos seus
elaboradores, a partir da categorização proposta por Feres Jr et al (2011). Dizemos
esforço, pois, em nosso entendimento, o PIMESP foi primeiramente uma tentativa de
adequação dos interesses da fração da classe média abastada e branca aos interesses da
classe dominante que apenas empregou (de modo distorcido) alguns elementos da
gramática das ações afirmativas para manter-se no controle do acesso à universidade.
A ênfase, dada pelo Programa, aos egressos das escolas públicas pode ser
considerada uma justificativa da ordem da justiça distributiva. Mas de fato, como
veremos, o PIMESP se propunha a ser uma nova modalidade de ensino e a ênfase no
ICES dá o tom da proposta. Ainda sobre o argumento da diversidade, vejamos a análise
de Feres Jr. (2011) quanto ao emprego da justificativa da diversidade em programas e
políticas nos Estados Unidos90:
“[...] A ascensão do argumento da diversidade não se deu só na Corte [norte-
americana]. O termo adquiriu grande popularidade no cenário político e
institucional norte-americano nas últimas décadas, tornando-se central em
discursos multiculturalistas e para a justificação das políticas da identidade.
Isso não foi sem conseqüências. O argumento da diversidade dilui a idéia de
reparação. A discriminação racial do passado torna-se somente um elemento
entre os muitos que devem ser utilizados na seleção de candidatos [...] A
89 Cf. IBGE (2013). 90 Não podíamos deixar de considerar a observação pertinente que João feres Júnior (2011) acerca
relação entre o argumento da diversidade e o interesse estatal militar na manutenção das políticas de ação
afirmativas nos Estados Unidos Vejamos: “[...] Mas os casos da University of Michigan revelaram
também uma versão um pouco mais crua do argumento da diversidade, aquela usada pelos vários amici
curiae que acompanharam o caso com o interesse explícito na preservação das políticas de ação
afirmativa. Entre eles temos empresas gigantes como Microsoft, Boeing, General Motors, Merck, e outros
60 nomes da lista da revista Fortune, as universidades mais afamadas do país e o estabelecimento militar
em peso – isso em um contexto em que o presidente George W. Bush se declarou publicamente contra a
manutenção da ação afirmativa. Principalmente no caso dos militares, a diversidade aparece como uma
necessidade de se garantir o fluxo de recrutas, uma vez que para os brancos americanos a carreira militar
tornou-se pouco interessante. Algo similar acontece com as empresas privadas, cada vez mais
dependentes da mão-de-obra das minorias. Ou seja, nesses casos, não se trata propriamente de um
interesse nacional imperativo, mas de um interesse corporativo de auto-preservação” (p.9)
159
palavra diversidade pertence ao vocabulário da doutrina do
multiculturalismo, não raro associada à idéia do relativismo cultural, ou seja,
de que todas as culturas e formas de vida tem um valor equivalente nação.
Ora, se todas as culturas são equivalentes, então a contribuição histórica de
grupos humanos e comunidades para a consolidação nacional perde
relevância. Ou seja, em sua versão abertamente multiculturalista e relativista,
o argumento da diversidade preserva seu caráter avesso à valorização da
história e do passado” (idem, p. 10).
O PIMESP parece utilizar da justificativa da justiça distributiva e da diversidade.
Ainda que os grupos historicamente discriminados-negros e indígenas sejam
mencionados na proposta, entendemos que a referência ao grupo está relacionada ao
entendimento dos elaboradores sobre a exclusão do acesso (justiça distributiva) daquele
grupo à educação evidenciada nos dados que a proposta apresenta e não ao
reconhecimento de como o contexto histórico (passado escravocrata) contribuiu para
aquela situação (reparação). Vejamos o que diz Carlos Vogt:
“Tem crescido cada vez mais a percepção social das cotas no ensino superior.
O Pimesp pretende se concretizar como política de estado com propósito de
promover o equilíbrio socioétnico nas matrículas das universidades paulistas
e do Centro Paula Souza a partir do cumprimento de metas, sem implicar
necessariamente na reserva de vagas” (Cf. ESALQ Notícias, 2013).
A escolha dos dados confirma o foco da Proposta: recrutar jovens para cursos
pautados por uma lógica empresarial (cursos de curta duração, focados na
profissionalização para o setor de serviços) dissimulada entre o apelo a justiça
distributiva e a diversidade.
Ainda sobre os dados, no item quatro da Proposta consta a afirmação “no Brasil,
a renda familiar é fator mais determinante que a cor para o acesso ao ensino superiror”
(CRUESP, 2012, p. 1). Essa informação é colocada desacompanhada de qualquer
análise estatística que pudesse embasar a afirmação, sem nenhuma menção à algum
especialista ou estudioso que tenha chegado a essa conclusão acerca da realidade
brasileira.
A negação da existência da raça como categoria que baliza as relações sociais é
tão evidente na Proposta que mesmo a terminologia “étnico-racial” empregada na
proposta do governo federal para designar pretos, pardos e indígenas é excluída e em
seu lugar surgem “categorias sócio-étnicas”. A negação do “racial” (VANDIJK, 2008;
DEMBOUR, 2009; ARAÚJO, M. 2016; HESSE & SAYYID, 2006; FÜREDI, 1998;
AMAR, 2009; VARGAS, 2010) evidencia o entendimento dos elaboradores da
Proposta acerca da categoria raça e racismo decorrente do entedimento eurocêntrico do
160
racismo que logrou a categoria “raça” ao ostracismo, como se referir a raça conferisse a
racialização das relações quando na realidade essas estão dadas e orientam as
governamentalidades raciais no mundo moderno (GOLDBERG, 2009; HESSE, 2004).
Hesse e Sayyid (2006) usam a categoria “racismo pós-colonial” para descrever
este contexto de negação e apagamento da raça e do racismo e que estaria intimamente
relacionado com a gramática racial pós-holocausto com vistas ao apagamento da
continuidade do racismo. Como explica Hesse (2007):
“Here we have yet another analytical domain in which the western
hegemonic modernity discourse in forgetting its own entangled and contested
onto-colonial ‘origins’ can no longer be relied upon to furnish its privileged,
provincial categories for the genealogy of ‘race’”(idem, p. 659)
A nova gramática contribui para a confusão entre a descrença da noção de raça
como conceito científico e deslegitimação de quaisquer políticas antirracistas que
passam a ser rechaçadas pelos estados modernos frente à possibilidade de “racialização”
das sociedades (como se já não as fosse). Como consequência, o antirracialismo como
um “suposto antirracismo que se afirma através da negação do racismo existente” (Cf.
GOMES, J. 2011) se converte na ideologia hegemônica que orienta as narrativas frente
ao racismo e balisa a formulação de políticas integracionistas, como é o caso do
PIMESP.
A escolha dos elaboradores em simplesmente ignorar ou dar pouca relevância as
disparidades do acesso à educação superior que afetam desproporcionalmente a
população negra, já nos deixa chocados com o não seguimento das normas básicas
acadêmicas (tão valorizadas pelos senhores elaboradores da referente proposta) ou ainda
com o não cumprimento mesmo das normas que balizam a justificação de qualquer
programa ou política pública (no que tange a importância do embasamento analítico
sério que considere o contexto social de maneira geral para aferir conclusões nesse tipo
de documento). Porém, mais do que essas “falhas de formato”, a escolha em ignorar os
dados raciais contraria toda a produção de pesquisas que tem afirmado categoricamente
desde os anos 70 que sim, mesmo entre os pobres, negros e indígenas têm menos
chances de acessar às instituições de ensino superior que os brancos pobres (SILVA N.
do V., 1978; HANSENBALG, 1979; PASTORE & SILVA, 2000; HENRIQUES,
2001), sendo impossível afirmar que não há uma linha de cor no perfil de quem acessa
os cursos de instituições de ensino superior no Brasil.
161
A ocultação desse dado da realidade é a produção consciente de indução ao erro
dos leitores, no caso os docentes, que farão a apreciação do documento com base
também nas informações que ali constam. Fica evidente a indução ao erro, como
veremos nos tópicos, onde algumas congregações fazem uso daquela (des) informação
para justificar a defesa do perfil do ingressante por cotas a partir do critério
sócioeconômico, em detrimento do critério étnico-racial.
Segundo dados do Pnad, em 1988 a porcentagem de negros com diploma de
nível superior era de 4%, enquanto entre os brancos era de 96%. Em 2013, a
porcentagem de pessoas negras com ensino superior aumentou para 29% mas ainda
assim permanecia inferior à porcentegem dos brasileiros brancos (76%), ainda que a
população negra representasse, em 2013, 50,7% do total da população brasileira.
Ainda quanto aos dados presentes na Proposta, nos chama ainda atenção a
informação de que “apenas 11% dos concluintes” do Ensino Médio teria proficiência
em Matemática, não constando no documento menção a nenhuma outra área de
conhecimento, apenas a essa área. Nesse sentido à referência à matemática parece
justificar a presença de uma quantidade significativa de disciplinas ligadas às ciências
ditas exatas, que constam no currículo proposto pelo ICES e que somavam 600 horas do
total de 1600 horas de disciplinas que os “cotistas” teriam que cumprir no ICES.
Causa ainda alguma inquietação no item sobre dados na Proposta, o fato de não
existir nenhuma menção aos resultados de avaliações das políticas de ação afirmativa
em outras universidades ou mesmo sobre o grande debate acerca das políticas de ação
afirmativa no mundo como na Índia ou nos Estados Unidos. O documento simplesmente
passa ao largo desse debate mesmo tendo em vista que a discussão central girava em
torno daquele tipo de política e que existia, aquela altura, uma produção acadêmica
extensa acerca delas, porém em 10 páginas, não há uma linha sequer sobre a situação
das políticas afirmartivas em outras universidades e por quê?
Em nosso entendimento o “lapso” cometido pelos elaboradores serve para
esvaziar o debate acerca da relação entre raça e desigualdades no acesso à educação
superior, pois ignorar essa realidade é ocultar que existem desvantagens de toda ordem
(material, simbólica e subjetiva) as quais negros e negras são submetidos e que somente
podem ser desmanteladas por políticas no campo das ações afirmativas (BRANDÃO &
MARINS, 2006).
A proposta do PIMESP não apenas nega a existência do racismo, como se
desvirtua totalmente da discussão sobre os motivos históricos que justificam a
162
necessidade das políticas de ação afirmativa, como podemos ver nas palavras dos
elaboradores quanto aos motivos de elaboração da Proposta:
“[o PIMESP] Um programa de inclusão que ao invés de trabalhar com o
conceito de cotas, que implica em reserva, ele trabalha com o conceito de
metas, considerando a situação atual das nossas instituições públicas do
sistema paulista, considerando, portanto qual é o número de estudantes que
hoje ingressam nas nossas instituições e que vem do ensino público e que
são pretos pardos e indígenas […] e estabelece essas metas” (Carlos Vogt,
Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).
“E também uma importância fundamental é preservar a autonomia das
universidades [...] o facto é que cada universidade poderá dentro desse
molde maior escolher, por exemplo, como eles vão buscar os alunos para
compor o seu alunado dentro dessas minorias [...] todas as unidades
receberam o programa como sugestão e deverá ser estudada por todos [...]
porque é muito provável que se deseje é que tenhamos um programa com
linhas gerais mas nas linhas específicas cada um de nós, Centro Paula Souza
e as três universidades poderão ter linhas específicas próprias que mais
digam respeito a sua tradição [...] faz com que eles não só entrem mas que
eles permaneçam e possam sair e por outro lado faz com que nós mesmos
em cada universidade decidamos o que desejamos [...] (João Grandino
Rodas, Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).
Gostaríamos de destacar três aspectos dos trechos supracitados. O primeiro é a
manobra de “substituição dos conceitos”. O grande debate histórico transnacional e a
luta dos movimentos negros nas Américas (e em outros contextos como os Dalits na
Índia ou ainda dos aborígenes na Austrália) pela adoção de políticas de ação afirmativa
com reserva de vagas no mundo são reduzidos, nas palavras de um dos elaboradores do
PIMESP, a um “conceito” que na percepção desse sujeito- e por prolongamento dos
demais elaboradores da Proposta- podem ser substituídos por outro conceito.
O segundo aspecto é relativo à justificativa para a escolha do modelo de política
afirmativa concretizada na proposta do PIMESP que aparece na fala do ex-reitor da
USP: a manutenção da autonomia das três universidades para ir “buscar os alunos para
compor o seu alunado dentro dessas minorias”. Nesse ponto reside um aspecto
fundamental da nossa hipótese de pesquisa, a saber, a de que é na “defesa da
autonomia” para definição de regras de acesso às estaduais paulistas que o racismo
institucional encontra um arcabouço legal para sua (re) produção.
A defesa da autonomia, nesse contexto, converte-se numa brecha legal para a
construção de normas que tem como fim impedir a emancipação do acesso à
universidade que permita que negros e indígenas possam adentrar e a esse mecanismo
estamos nomeando como racismo institucional.
Alguns analistas podem até conceber que se trata apenas de um “efeito colateral”
desse tipo de norma, mas quando analisamos profundamente as estruturas discursivas
163
que orientam as justificativas das políticas de inclusão no estado de São Paulo entre os
anos de 2004 e 2014 o que de fato vemos é um processo de estabelecimento de normas
“ditas inclusivas” onde negros e indígenas quando são “eleitos” beneficiários daquelas
políticas são introduzidos como subcidadãos, menos competentes, com necessidade de
capacitação, o que justificaria, por exemplo o ICES ou o Profis.
A recorrência a defesa do mérito como bastião do igualitarismo ou ainda de um
universalismo vazio é pautado numa abstração que favorece a manutenção da
reprodução dos lugares de privilégio. Ignorar a condição subalternizada, desumanizada
e explorada da população negra, em nome de um projeto puramente abstrato de
igualdade é uma estratégia de fugir ao enfrentamento das condições que permitem a
reprodução do racismo.
O terceiro ponto diz respeito à relação entre recrutamento de talentos,
diversidade e racismo. Vejamos as falas dos elaboradores da proposta sobre ir “buscar
os alunos para compor o seu alunado dentro dessas minorias”:
“[…] a experiência da Unicamp é importante porque ela mostra nesses dois
anos que a busca ativa em cada escola pública de ensino secundário dos
melhores alunos ela tem uma vasta gama de consequências. A primeira é
que 70% desses alunos, bons alunos, porque são os primeiros naquelas
escolas, eles não prestariam o vestibular. Portanto, nós estamos pegando
aluno com mérito que não prestaria o vestibular. Segundo ele faz uma
inclusão social efetiva. Quase 60 ou 70% desses alunos representam o
primeiro membro daquela família que faz o ensino superior que mostra que
nós estamos pegando pessoas com mérito que nunca procurariam o ensino
superior […] e quando você olha a distribuição do que você quiser, renda
familiar quase 40% é de renda familiar de 1 a 4 salários mínimos […]”
(Fernando Costa, à época reitor da UNICAMP e um dos elaboradores da
proposta. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013)
“[…] nos dois primeiros anos em que nós não teremos alunos formados no
curso proposto, as universidades vão buscar esses alunos por diferentes
meios […] o importante é que as universidades nesses dois primeiros anos e
depois […] essa busca desses bons alunos, ela vai ser feita de acordo com o
critério que cada uma com autonomia decidir […]” (Júlio Durigan, à época
reitor da UNESP. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013)
“[o ICES] é mais uma estratégia de busca exatamente dos alunos que nós
queremos ver dentro das universidades porque a diversidade social e étnica
dentro das universidades faz bem a sociedade mas faz muito bem às nossas
instituições […]” (Carlos Vogt. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).
“A universidade não pode ser só universal em seu conhecimento, mas também
em sua abrangência social” (Geraldo Alckmin, à época governador do estado de
São Paulo e um dos idealizadores do PIMESP. Cf.. MAGGI, 2012).
Gostaríamos de explorar nas manifestações supracitadas, como a defesa da
diversidade e a “busca por melhores” pela fração da classe média alta e branca têm uma
164
função ideológica na criação de uma ideia de instituição que permite que o racismo e as
desigualdades sejam negligenciados (CICONELLO, 2008). Nas falas acima referidas,
não há nenhuma menção à raça e racismo, mas fala-se em diversidade de modo genérico
e o foco é apenas na busca pelos “melhores alunos” para alcançar a diversidade
desejada pelos elaboradores do PIMESP. Nesse sentido, a diversidade idealizada está
condicionada ao mérito. Além disso, o apelo à diversidade, deslocada do contexto da
colonialidade, sufoca os conflitos e mascara o racismo no esvaziamento da discussão
sobre raça enquanto categorização social ainda vigente.
Cabe analisarmos o que não está explícito na defesa dessa tal “diversidade”
como justificativa para implementação de políticas de ação afirmativa no contexto
analisado. A defesa da diversidade, quando esvaziada de sujeitos reais e de relações
históricas entre capitalismo, colonialismo e racismo acabam por ser reapropriada por
alguns setores (como é o caso da alta fração da classe média branca) apenas como mais
um recurso, uma “estratégia para fazer avançar” os propósitos das classes dominantes,
não desafiando os pressupostos que reificam os grupos racializados, mantendo intacta a
estrutura de classes e a exploração da população negra.
A diversidade, portanto, só é desejável na medida em que está dentro dos
critérios definidos pela fração da classe média alta e branca ou nas palavras do reitor da
USP, Vahan Agopyan, “as cotas não são favor, mas uma forma da universidade recrutar
ótimos alunos e avançar” (Cf. WEINBERG & VASSALLO, 2018). O discurso da
diversidade parece dar novos contornos à lógica integracionista, ao mesmo tempo em
que busca controlar a emancipação do acesso ao espaço da universidade.
A defesa da diversidade está condicionada à garantia da “qualidade dos
cotistas”. A desconfiança do “nível” dos ingressantes via sistema de cotas encontrou sua
expressão- permitida- na defesa do mérito ou nas palavras dos elaboradores do
PIMESP:
“Queremos que os cotistas tenham o mesmo nível dos alunos que entram pelo
vestibular. A política federal não prevê isso. Vamos ter um aluno na medicina
que é de altíssimo nível e outro que é baixíssimo nível. Os dois vão estar na
mesma sala, fazendo o mesmo curso. Se não dermos condições para que eles se
aproximem, vamos ter problemas na sala de aula, não adianta dizer que não. O
governo estadual e o CRUESP [Conselho de Reitores das Universidades
Estaduais de São Paulo] pensaram nisso: vamos melhorar o nível dos cotistas."
(Júlio Durigan, à época reitor UNESP. Cf. FAJARDO, 2013)
“[...] E justamente nesse ponto [da tradição das universidades] que o
programa é insuperável porque ele dá abertura social justamente para
aqueles que pagam os impostos e mantêm a universidade nesse grau
importante que ela está e ao mesmo tempo preserva o mérito [...]” (João
165
Grandino Rodas, à época reitor da Usp. Cf. ENSINO Superior Especial,
2013).
Quanto à defesa “da qualidade” dos cotistas, mais que gastar linhas para dizer o
que à época exaustivamente foi dito pelos movimentos a favor das cotas, isto é, de que
os cotistas também teriam que passar pelo vestibular, ou seja, eles não estariam isentos
de passar pela suposta comprovação dos conhecimentos necessários para entrar na
universidade, gostaríamos de nos debruçar sobre como os elaboradores do PIMESP
assumem a função de “agentes da marginalização cultural das classes baixas”
(BORDIEU & PASSERON, 1975 [1970]; SAES, 2007).
A desconfiança da “qualidade” dos ingressantes pelos elaboradores do PIMESP
nada mais é do que a evocação por parte das classes altas da necessidade de
demonstração da capacidade de dominar o código linguístico da elite, o que implica na
inferiorização de outros códigos linguísticos como, por exemplo, a tradição dos Mestres
e Griôs das culturas afro e indígena que tem na oralidade o meio pelo qual transmitem
cosmovisões, cosmologias. Esse tipo de conhecimento não é só deslegitimado, como
apontam Bordieu & Passeron (1975) e Saes, (2007) como também lhes é retirado a
humanidade daqueles tipos de conhecimento e nesse sentido, estamos indo além dos
referidos autores quando afirmamos que não há apenas marginalização, mas
desumanização pelas camadas médias dos sujeitos que não dominam o código
linguístico da elite, leia-se branca.
É no processo de conversão, isto é, “dos recursos culturais de natureza pré-
escolar e extraescolar, acumulados pelos alunos da classe dominante, em recursos
propriamente escolares” (SAES, 2007, p. 108) que em nossa análise reside a chave para
compreender o papel da fração da classe média alta e branca na desumanização da
população negra, evidenciado mais fortemente em momentos de conflito, como ocorreu
com o PIMESP. Vejamos o que dizem os elaboradores do PIMESP sobre o modelo de
reservas de vagas étnico-raciais:
“[…] Chegou-se à conclusão que deveria se pensar rapidamente em um sistema
que trouxesse algumas correções dos problemas que vimos na proposta federal
[…] Nossa ideia é dar condições para que esse aluno venha melhor formado para
entrar na universidade. De que jeito? Fazendo algo que seja interessante para a
vida dele, um curso de formação, com certificação, de forma que, se não quiser
para universidade após este curso, ele pode ir para o mercado de trabalho […]
Queremos que os cotistas tenham o mesmo nível dos alunos que entram pelo
vestibular. A política federal não prevê isso. […] O governo estadual e o Cruesp
[Conselho de Reitores das Universidades Estaduais de São Paulo] pensaram
nisso: vamos melhorar o nível dos cotistas […] A gente quer fazer a inclusão
social de forma que os cotistas tenham condições de acompanhar o curso
oferecido e se forme em igualdade de condições. O que vai ser muito difícil de
166
ser feito no federal [Lei de cotas] (Júlio Durigan, à época reitor UNESP. Cf.
FAJARDO, 2013)
“[...] A questão não é só por para dentro da universidade. A questão colocar
na Universidade, por critérios de seleção adequados, fazer com que eles
tenham condição de permanecer na Universidade do ponto de vista
econômico, do ponto de vista acadêmico, isto é, com capacidade de
acompanhar os cursos e formar competências para o exercício adequado das
profissões que eles se formarem [...]” (Carlos Vogt, Cf. ENSINO Superior
Especial, 2013).
Ao exigir o domínio do código linguístico da elite, o CRUESP e executivo
estadual de São Paulo estavam reproduzindo o favorecimento dos alunos da classe
dominante na competição escolar já que é esse grupo que detem o referido código
(SAES, 2007, p. 108). Entretanto, longe de ser uma posição apenas assumida pela
burocracia educacional, a partir da análise dos discursos na avaliação do PIMESP como
veremos, os docentes também assumem o papel de agentes de marginalização e
desumanização cultural, na medida em que baseados no mesmo argumento- domínio do
código linguístico- os docentes rechaçaram o referido Programa por também desconfiar
da “qualidade dos cotistas”, ainda que os beneficiários tivessem que passar pelo
vestibular e pelo curso sequencial (ICES) por 2 anos.
Outro elemento presente no discurso dos elaboradores do PIMESP é
naturalização da existência do vestibular como ferramenta capaz de mensurar sujeitos
com e sem méritos, sem qualquer tipo de questionamento desse instrumento:
"[…] Existe a possiblidade de um dia substituir o vestibular. Mas esse ‘um dia’
talvez não esteja muito próximo. Por quê? Temos uma estrutura de vestibular
consagrada, conceituada, com qualidade de seleção muito boa, compatível com
que queremos nos nossos cursos. Nosso vestibular há anos vem sendo feito com
uma qualidade muito boa, posso falar pela Unicamp e USP também" (Júlio
Durigan, à época reitor UNESP. Cf. FAJARDO, 2013).
A naturalização da existência do vestibular está em íntima relação com o
processo de ocultamento da dinâmica real da hierarquização do trabalho e exclusão dos
pobres do ensino universitário. O vestibular é em si um mecanismo que assegura a
monopolização do espaço da universidade, pois:
“[...] reduzindo a parte da auto-eliminação ao fim dos estudos primários em
proveito da eliminação prorrogada ou da eliminação só pelo exame, o sistema de
ensino não faz mais do que preencher melhor sua função conservadora, se é
verdadeiro que, para dela desempenhar-se, ele deve mascarar oportunidades de
acesso em oportunidades de êxito: os que invocam o ‘interesse da sociedade’ para
deplorar o desperdício econômico que representa o ‘resíduo escolar’ deixam
contraditoriamente de levar em conta aquilo de que este desperdício é o preço, a
saber o proveito que a ordem social encontra em dissimular, prorrogando-a no
tempo, a eliminação das classes populares” (BOURDIEU, 1982, p.168).
167
O Vestibular serve como mecanismo de filtragem no sistema educacional,
constituindo-se no mascaramento da reprodução do poder na medida em que “ele
conduz aquele que é eliminado a se identificar com aqueles que malogram, permitindo
aos que são eleitos entre um pequeno número de elegíveis ver em sua eleição a
comprovação de um mérito ou de um ‘dom’ que em qualquer hipótese levaria a que eles
fossem preferidos a todos os outros” (BOURDIEU, 1982, p.171).
Importante registrar ainda que a “flexibilização” da defesa absoluta do vestibular
já vinha ocorrendo nas três universidades se entendermos que os programas de inclusão
até então vigentes (como a bonificação) eram, em si, o reconhecimento por parte dos
docentes de que há disparidades sociais que impedem a competição igualitária e que não
é possível estabelecer os mesmos critérios de seleção quando a sociedade tem
desigualdades absurdas.
Apresentado as justificativas para criação do PIMESP, avancemos para os meios
estabelecidos pelos elaboradores para alcançar “as metas” objetividas pelo Programa. O
PIMESP propunha atingir o percentual de 50% de alunos oriundos de escolas públicas
e, desse total, seriam reservadas 35% das vagas para o grupo de PPIs, no entanto, ao
serem selecionados pelo ENEM ou por outra forma a ser definida pelas universidades
(como aumento do bônus no vestibular), os estudantes aprovados teriam que fazer um
curso semi-presencial a ser realizado no Instituto Comunitário de Ensino Superior
(ICES) com duração de dois anos e com grade curricular que incluia disciplinas como:
serviços e administração do tempo, gerenciamento de projetos, profissionalização,
inovação e empreendedorismo.
O Instituto Comunitário de Ensino Superior obrigaria o vestibulando, mesmo
tendo sido aprovado, a receber uma formação que o deixaria ‘apto’ a adentrar na
universidade pública. Só depois dessa ‘formação’ ele poderia iniciar os estudos na
Universidade:
“[...] O curso o que faz é oferecer uma nova modalidade de ingresso,
oferecendo também condições de permanência do estudante do estudante
nos cursos um curso de dois anos [...] oferecendo uma nova modalidade de
ensino superior no estado e ao mesmo tempo aumentando, portanto a nossa
capacidade de atendimento dessa demanda social que é crescente
[...]”(Carlos Vogt. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).
“[...] Esse [sobre o ICES] é um aspecto inovador do programa, dessa proposta
porque ela permite que as universidades de uma maneira autônoma discutam
meios de aumentar esses alunos de escola pública, de minorias de acordo com
as suas características e com suas experiências [...]”(Fernando Costa, Cf.
ENSINO Superior Especial, 2013)
168
Para além da confusão entre a finalidade de uma política afirmativa, a criação de
novas formas de ingresso, gostaríamos de refletir sobre o pressuposto da defasagem dos
cotistas em relação aos não cotistas. O PIMESP parte desse pressuposto e estabelece
que o cotista teria de estudar dois anos a mais, além dos anos previstos do curso
superior. Os dois anos justificam-se, segundo os elaboradores, não apenas pela
necessidade de garantir de fato a formação “cidadã” para esses sujeitos mas
principalmente para oferecer um outro tipo de formação que não o superior:
“[…] mas a capacitação é o principal objetivo do ICES, podendo ser
comparado aos “colleges” americanos. Trata-se de cursos sequenciais de
capacitação e formação superior de dois anos com diploma que habilita o
aluno a atuar em áreas que não exigem formação técnica específica, como por
exemplo, alguns cargos em setores de prestação de serviços e alguns cargos
públicos” (Cf. GRILO, 2013).
O ICES, em nossa leitura, foi uma tentativa de unir em um só projeto os
interesses da classe dominante-formação de trabalhadores não especializados à
disposição do mercado, e da alta fração classe média branca-controle do processo de
“sobrecertitificação” mas que não resistiu, em nossa análise, a desconfiança dos
docentes em relação à capacidade do ICES conseguir manter a distinção do espaço da
universidade como espaço por excelência do trabalho não-manual.
Para aprofundar nossa análise consideramos que vale investirmos alguma
reflexão em torno da expansão do ensino superior nas décadas de 60 e 70 e a realizada
nos anos 2000-tendo essa última como um dos seus desdobramentos, a discussão sobre
políticas afirmativas no Brasil. Quais foram os motivos que levaram a expansão e como
ela foi feita nos dois períodos? O processo ocorrido nos anos 60 teria pontos de conexão
com os anos 2000? Quais foram seus desdobramentos para a manutenção da fração da
classe média alta e branca ligada à Universidade? E quais tipos de narrativas são
mobilizadas nesse contexto de disputas? Nesse sentido, interessa-nos perceber possíveis
rupturas e continuidades referentes às dinâmicas de expansão do ensino entre aqueles
dois períodos e quais seriam seus impactos para a dinâmica de reprodução das classes e
para a hierarquização racial.
Tanto nos anos 60-70 como nos anos 2000, a reivindicação por expansão foi
respondida pelo governo federal com o aumento de investimento no setor privado, mas
no segundo momento, como constatou César Barros (2011):
“[…] as matrículas nas instituições privadas pela primeira vez superaram as
feitas nas instituições públicas, fato que não mais se reverteu durante todo o
período posterior. Em 2006, as instituições privadas detinham 71.7% das
vagas em todo o país. Dados de 2003 demonstram que as instituições
169
públicas tinham 5.662 cursos de graduação presencial, enquanto que as
[universidades] particulares tinham 10.791” (idem, p. 136-137).
Em relação às políticas de expansão em ambos os períodos, a subordinação
desse tipo de política às políticas científico-tecnológicas e de inovação, esteve na
essência daqueles processos, consolidando:
“[...] o processo de institucionalização da política de ciência e tecnologia, na
década de 1960, até os dias de hoje, as bases conceituais, a estrutura
organizacional, os meios de financiamento e as formas de avaliação são
comuns no que diz respeito à implementação de políticas para estimular a
produção e instrumentalização do conhecimento científico e tecnológico [...]
a política educativa vem, historicamente, respondendo aos objetivos
imediatos da política científica tecnológica dos Estados brasileiro e português
[...]” (SILVEIRA, 2011, p.161).
Se a expansão do ensino superior nos anos 2000, com os governos dos Partidos
dos Trabalhadores, caminhou lado a lado com a privatização e mercantilização do
ensino (SILVEIRA, 2011), dinâmica presente desde os anos 60-70, dois elementos
novos dinamizarão a expansão do ensino superior nos anos 2000, reverberando na
relação entre as classes e na hierarquia racial: o primeiro a nível mundial relativo ao
processo de mercantilização da diversidade e o segundo em nível nacional no que diz
respeito à base social do Partido dos Trabalhadores.
A marca distintiva da fase do capitalismo neoliberal que “diferentemente de
outras estratégias de representação ocidentalistas que ressaltam a diferença entre o
Ocidente e seus outros, a globalização neoliberal evoca a igualdade potencial e a
uniformidade de todas as pessoas e culturas, como uma modalidade, particularmente,
perniciosa de dominação imperial” (CORONIL, 2005, p. 127), o que está refletido na
defesa da “valorização da diversidade”, da “promoção da interculturalidade”
disseminada por diversos organismos internacionais91, empresas e governos desde os
anos 90, mas que em nossa leitura se intensificou ao longo dos anos 2000.
Podemos citar como evidências de que a “diversidade funcional” começava a se
inserir nas agendas dos governos neoliberais dos anos 90 no Brasil92, a realização de
algumas ações, ainda que tangenciais, nos governos de Fernando Henrique Cardoso
(1995-2003) como a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da
População Negra em 1995 e a realização do Seminário Internacional "Multiculturalismo
e Racismo: O Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos".
91 A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural de 2001 pode ser um bom exemplo da
disseminação da narrativa da “diversidade funcional”, como chama atenção Walsh (2012). 92 Não podíamos deixar de assinalar que a inserção das demandas por inclusão racial na agenda dos
governos nos anos 90 é também fruto da pressão do movimento negro.
170
Entretanto se o estímulo à “diversidade funcional” estava na agenda neoliberal a nível
internacional e nacional, quais as razões pelas quais o então presidente Fernando
Henrique não avançou com a implementação de políticas de ação afirmativa para as
populações negras e indígenas no ensino superior? Segundo ele, em entrevista a Folha
de São Paulo, porque “não devemos simplesmente imitar. Nós temos que ter
criatividade" (Cf. PINTO, P.S.1996), numa alusão aos programas de ação afirmativas
nos Estados Unidos e crítica ao movimento negro brasileiro que desde os anos 80
reivindicava o modelo de reservas de vagas no ensino superior adotado nos Estados
Unidos da América.
Analisando o documento “Construindo a democracia Racial” (BRASIL, 1998)
que reúne todas as falas de Fernando Henrique Cardoso acerca do tema enquanto foi
presidente, podemos extrair que a resistência às cotas parece não se tratar exatamente de
um problema relacionado à “importação de uma política”:
“[...]Entrevistador - O senhor disse que os brasileiros não gostam do sistema
[de cotas]. Por quê? Ele não poderia ser utilizado, por exemplo, para facilitar
o acesso dos negros à educação? Presidente [Fernando Henrique Cardoso]
- Há uma reação muito grande à idéia, porque ela implica deixar de lado a
avaliação de mérito. Portanto, seria uma discriminação. A oposição à cota é
muito grande, mesmo dentro do Ministério da Educação. Entrevistador -
Mas os movimentos negros são a favor Presidente [Fernando Henrique
Cardoso] - Sim, são a favor. À medida que você amplia a educação,
universaliza mesmo, a probabilidade de ascensão dos negros vai ser maior.
Leva mais tempo, mas tem resultados. Não quero entrar na discussão do
sistema de cotas, pela resistência que vai provocar, mas não sou contrário.
Havendo duas pessoas em condições iguais a nomear para determinado
cargo, sendo uma negra, eu nomearia a negra [...] Entrevistador - A política
oficial brasileira é de que não aceitamos o racismo. Presidente [Fernando
Henrique Cardoso] - Se fosse diferente, seria mais fácil lutar contra.
Entrevistador - Por isso mesmo, porque não há uma política oficial negativa
contra a qual lutar, é que, talvez, uma ação afirmativa, como o sistema de
cotas, seja necessária. Não lhe parece? Presidente [Fernando Henrique
Cardoso] - Na questão da universidade - que é onde, basicamente se
aplicaria a cota - é complicado. Agora, acho importante haver um esforço
grande no emprego. No Estado brasileiro, a discriminação caiu muito[...]”
(idem, p. 13).
A fala do ex-presidente reflete a dinâmica de classes e como essa interage com a
hierarquia racial e como o mérito desempenha um papel central na discussão sobre
políticas afirmativas no ensino superior brasileiro. O presidente apesar de reconhecer
que existe racismo e que são necessárias medidas de combate (e que inclusive, contava
171
com algum respaldo internacional para fazê-lo), em sua opinião, as medidas deveriam
ser focadas no acesso deveria ser no emprego93 e não na Universidade e por quê?
Em nossa análise, esse discurso refleteo confinamento racial da universidade
pública brasileira, na medida em que a negação da possibilidade de criação de cotas
étnico-raciais no ensino superior se converte em estratégia de “imobilismo social contra
o negro”, diminuindo as chances reais de mobilidade da população negra (MOURA,
1988). Apesar de fazer referência às cotas na distribuição de cargos, o então presidente
parecia não ter pretensão de levar a discussão para o ensino superior. Fato é que ele não
foi capaz de estabelecer uma ação organizada em nível nacional para levar adiante esse
tipo de política. Não é necessário dizer que o ex-presidente faz parte da elite intelectual
dos pensadores do Brasil e que compartilha, em nossa leitura, com esse grupo seleto o
imaginário hegemômico acerca da condição do negro no Brasil.
O segundo ponto em relação ao processo de expansão do ensino superior público
nos anos 2000 e a instituição das políticas afirmativas é a relação do Partido dos
Trabalhadores com o movimento negro (uma das suas principais bases sociais do
Partido).
Se nos anos 60-70, o movimento estudantil pertencente à classe média branca foi
o principal agente de reivindicação por aumento de vagas no ensino superior, nos anos
2000 foram os ativistas do movimento negro (militantes desde o processo de
redemocratização, ligados aos movimentos sociais e aos partidos) os principais
responsáveis pela reivindicação de acesso não apenas à universidade, mas a outros
serviços básicos por séculos negados. A proximidade com o Partido no governo (desde
os anos de sua fundação94) possibilitou a abertura de um diálogo e uma pressão mais
intragoverno que resultou, dentre outros avanços na Lei de Cotas e no Estatuto da
Igualdade Racial em 2012.
A estreita relação com o governo permitiu que o movimento negro fissurasse as
brechas da “diversidade funcional” e vislumbrasse ocupar um espaço que por tantos
anos fora-lhe negado: a universidade pública. A mobilização deu-se no âmbito nacional,
principalmente a partir da votação no STF em 2012, quando o movimento negro passou
a ganhar mais força na mobilização nos estados, fazendo frente às universidades e
câmaras estaduais (FERES Jr. et al 2013a, GUIMARÃES, A.S.A. 2007; PAIVA &
93 Nos governos de Fernando Henrique Cardoso foram criadas cotas em alguns Ministérios, no Exército Brasileiro mas como dissemos ações muito tangenciais e em setores muito específicos. 94 Ver Rios (2009; 2014 e 2015).
172
ALMEIDA, 2010), inclusive em São Paulo denunciando o caráter racista do PIMESP e
exigindo a adoção das cotas. Nesse sentido, o movimento negro teve um papel
importante no processo que resultou na rejeição ao Programa de Inclusão com Mérito,
principalmente na denúncia da desvirtuação dos objetivos dos programas de ação
afirmativas, que vinham sendo implantados no contexto nacional, e a proposta (de
caráter racista e elitista) do ICES. Sobre o caráter racista e elitista do ICES, os trechos a
seguir apontam para as evidências dos reais objetivos dos “colleges”:
“[…] formação em funções profissionais que, embora regulamentadas no
mercado de trabalho, nem sempre são contempladas pelos cursos
tradicionais de graduação […] o objetivo é ampliar a formação cultural dos
estudantes, possibilitando, além da sua capacitação, a plena inserção na
sociedade contemporânea […]95” (CRUESP, 2012).
“A UNIVESP, em parceria com as universidades e o Centro Paula Souza,
oferece, no Instituto Comunitário de Ensino Superior (ICES), Curso Superior
Sequencial (similar a College) com propósito de: a) Aumento de horizonte
intelectual nos campos das humanidades e ciências promovendo a preparação
para o mundo do trabalho; b) Formação sociocultural superior para exercício
da cidadania na sociedade moderna; c) Aumentar o grau de competitividade
de alunos provenientes do ensino médio público quanto aos processos
seletivos das universidades paulistas; d) Aumentar a participação de
categorias sócio-étnicas” (CRUESP, 2012).
O “aumento de horizonte intelectual [...] promovendo a preparação para o
mundo do trabalho”, “a formação sociocultural superior para exercício da cidadania na
sociedade moderna” e o aumento do “grau de competitividade” revelam a um só tempo
o arcabouço colonialista (civilizar) e capitalista (manter a hieraquia do trabalho) da
proposta do ICES. Nesse sentido, o ICES a um só tempo propunha-se a ser um misto de
missão civilizatória (evidenciando como o imaginário racial orienta a prática política
das classes) e formação de trabalhadores técnicos.
Os destinatários do PIMESP são concebidos pela fração da classe média alta
como deficientes, despreparados e, portanto, com dificuldades de adaptação ao ensino
superior público- sendo esse, segundo os elaboradores da proposta, o verdadeiro motivo
da ausência dos grupos beneficiários dos espaços da universidade. Portanto, a presença
de negros e indígenas é vista como um gesto de benevolência- e por isso
assistencialista- por parte da fração da classe média alta, que os enquadra como um
grupo desprovido de capacidades e competências e que portanto precisariam de passar
por um curso que os nivelassem em relação aos não-cotistas:
“[…] Uma formação geral que o capacite de um lado para permanecer na
universidade e fazer os cursos que ele possa vir a escolher a depender do seu
95 Citação extraída de uma versão resumida do Programa, produzida por Carlos Vogt. Disponível em:
http://www.iri.usp.br/documentos/acoes_afirmativas_pimesp.pdf. Acesso em 10 set 2014.
173
desempenho […] então são cursos que vem suprir necessidades […], mas
eles têm uma finalidade em si próprio que é a finalidade de profissionais
para o mercado. Há uma quantidade enorme de profissões que são
regulamentadas, mas que não tem cursos específicos para sua formação
então é um amplo espectro de atividades que vão desde as atividades de
serviço púbico a atividades do mercado que exigem conhecimento,
formação, línguas, capacidade de articulação, de expressão, de realização de
operações matemáticas, etc e que vai, portanto, colocar este cidadão em
condições de exercer de fato os seus direitos de cidadania [ entrevistador:
Deixei eu colocar uma palha um pouquinho. Um curso desse tipo que
pretende formar alguém para cidadania. Isso não deveria já ser o ensino
médio, professor?] Não. O ensino médio não diploma no sentido de dar a
eles uma formação profissional. Quem faz isso é o ensino superior […]”
(Carlos Vogt. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013)
“[...] E esse curso ele desenvolve competências exigidas pelo mundo
moderno e eu acho que isso é fundamental. Então um aluno depois desses
dois anos de curso no ICES, ele se sente muito mais preparado, muito mais
seguro e eu digo isso porque o Centro Paula Souza é uma instituição que
prepara para o mundo do trabalho, a formação específica é importante mas a
geral é fundamental. Hoje se você perguntar para um empresário o que o
profissional tem que ter para exercer bem as suas atividades ele vai dizer
exatamente liderança, capacidade de resolução de problemas, o trabalho em
equipe então essas são competências que esse curso certamente vai
desenvolver [...]” (Laura Laganá, diretora superintendente do Centro Paula
Souza. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013)
“[...] Um dado importante […] é que [o ICES] Ele próprio é um curso
extremamente abrangente que permite que o aluno, porque ele é um curso
moderno, ele tem uma formação geral, permite que o aluno tenha aula
optativa em alguma área específica […] esse tipo de formação é muito
importante para algumas áreas de conhecimento […] alguns cursos do ensino
superior [...] maior parte daqueles que se formam não trabalham nas áres que
se formam, trabalham em áreas completamente distintas. Esse curso formará
pessoas que poderão atuar em áreas que exigem formação geral […] é assim
que acontece nos Estados Unidos, é assim que a Europa está se
movimentando, a Ásia. Então acho que vai mostrar [os resultados atingidos
pelo ICES] uma possibilidade de ampliar o ensino superior sem
necessariamente ser um curso tradicional nas nossas universidades […]”
(Fernando Costa. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013)
Ainda que façamos o exercício de ignorar o imaginário social dos elaboradores
do PIMESP acerca da população beneficiária e a forma para integrá-los à universidade,
ainda assim o “problema e a solução” por eles definidos ficam diluídos na proposta que
longe de um programa de fato afirmativo onde o objetivo primordial é combater
discriminações, aumentando a participação de grupos historicamente desfavorecidos em
espaços também historicamente excludentes, o PIMESP é um misto de reafirmação da
ideologia meritocrática dissimulado em certo assistencialista que concebe os
beneficiários do Programa como sujeitos incompletos e que precisam de intervenções
para os tornar sujeitos plenos, cidadãos:
“Nós temos um certo [sic] prazo [para aprovar o PIMESP] entretanto o
importante é verificar em primeiro lugar que é imprencidível que as três
universidades paulistas mantenham o mérito porque é justamente do mérito
174
é que nós vamos retirar a grandeza da excelência que essas universidades
têm tanto no Brasil quanto no mundo então isso é indispensável que
aconteça [...] não adianta abrir essa possibilidade como um simulacro.
Entram e se veem perdidos no dia seguinte. Ou que se abra a universidade
de tal forma que ela possa vir perder o mérito. Então a preocupação nossa é
de procurar um estado de equilíbrio [...] e dessa forma nós temos certeza
que as nossas três universidades elas continuarão sem dúvida nenhuma a
estarem nos rankings nacionais e internacionais como estamos hoje e até
melhorando porque em última análise esse pessoal todo que será trazido,
além de, como disse o professor [Vogt], não piorarem nada, eles trarão um
sangue novo, trarão um ânimo que certamente fará com que a universidade
se renove.” (João Grandino Rodas. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).
“[…] Esse aluno vai estar muito mais preparado para a permanência que é
um problema que as universidades têm e Centro Paula Souza também. Às
vezes o aluno ingressa e depois ele não tem condições de permanência,
encontrando as primeiras dificuldades de acompanhamento, esse aluno
muitas vezes abandona o curso. Esse aluno vai estar muito mais preparado
[...], além disso, ele vai estar muito mais preparado para o mercado de
trabalho” (Laura Laganá. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).
A abordagem integracionista como solução para ampliar o acesso ao ensino
superior, a partir da abordagem do PIMESP, legitima práticas excludentes, recorrendo a
imaginários que reificam a população beneficiária do sistema de reserva de vagas. Mas
até aqui não há nada de muito novo, como apontou Abdias do Nascimento (2017
[1978]):
“[...] Monstruosa máquina ironicamente designada de democracia racial que
só concede aos negros um único privilégio: aquele de se tornarem brancos,
por dentro e por fora. A palavra-senha desse imperialismo da brancura e do
capitalismo que lhe é inerente, responde a apilados bastardos como
assimilação, aculturação, miscigenação; mas sabemos que embaixo da
superfície teórica permanece intocada a crença na inferioridade do africano
e seus descendentes (idem, p. 111).
Abdias do Nascimento foi um dos ativistas negros que criticou fortemente
durante os anos 60 e 70 o caráter integracionista das políticas públicas (como a
supressão das pergunta sobre cor/raça nos censo demográfico durante a ditadura de
1964). Porém, diferentemente dos anos 60 e 70, entendemos que nos anos 2000, o
movimento negro no Brasil reivindica adentrar nos espaços de reprodução da fração da
classe média alta e branca, desencadeando um processo de complexificação das
estratégias empregadas por aquela classe para garantir sua reprodução. Nesse sentido,
nos anos 2000 ocorre uma reordenação de gramáticas tanto as empregadas pelo
movimento negro quanto pela classe média branca, ambas inéditas em nossa leitura. De
um lado o movimento negro buscava articular a perspectiva integracionista aliada à
gramática da diversidade para reivindicar cotas e como resposta, a classe média branca
175
atrela integração, diversidade mas com a exacerbação da defesa da meritocracia como
tentativa de controlar o processo de sobrecertificação.
O conceito de sobrecertificação diz respeito “a grande quantidade de pessoas
diplomadas, em áreas diversas” (BARROS, C., 2011, p.141). Nesse sentido,
acompanhando as reflexões de Bourdieu e Passeron (1975), interessa-nos compreender
se o PIMESP evidencia os novos mecanismos ideológicos articulados pela fração da
classe média alta e branca para manter a exclusão de negros e indígenas da universidade
no processo de expansão de acesso à universidade.
César Barros (2007; 2011) analisando a expansão do ensino universitário e as
implicações para a estrutura de classes entre os anos 60-70 e 2000, identificou que
aliado à expansão de vagas nos dois períodos mencionados, ocorreu um aumento
significativo de instituições privadas de ensino, mantendo os espaços nas universidades
públicas quase intocados. Entendemos que a lógica que orientou a elaboração do
PIMESP (e de outros programas inclusivos nas universidades estaduais paulistas),
evidencia um processo de contenção da diplomação de grupos historicamente oprimidos
como resposta da fração da classe média alta e branca ao processo da expansão do
ensino superior. E com base em quais evidências podemos afirmar isso?
Primeriamente pelo formato (de curso sequencial) do ICES. O tempo no qual o
estudante teria de ficar no ICES acarretaria a desistência de centenas de estudantes antes
mesmo de adentrar no curso superior. Segundo o PIMESP, os créditos adquiridos no
curso preparatório e de formação profissional poderiam não valer para a universidade.
Isto é, seriam dois anos em que o cotista despenderia tempo sem ter a certeza se entraria
em um dos cursos de graduação. Esse arranjo evidencia que a intenção real da Proposta
era a formação técnica para atender as demandas do mercado:
“[apresentador pergunta: Que tipo de área contrata um profissional desse tipo?]
Qualquer concurso público. Ele vai estar habilitado a fazer qualquer função
administrativa, qualquer função de gestão, gerenciamento seja de lojas,
magazines, comércio, de serviços, serviços bancários [...]” (Carlos Vogt. Cf.
ENSINO Superior Especial, 2013).
Em segundo lugar, a presença de disciplinas como “empreendedorismo” e
“gestão do tempo”, mais próximas a uma formação de tecnólogo, ao mesmo tempo em
que agrada à classe dominante com a formação para o mercado, por outro lado controla
a emissão de diplomas universitários, já que dado o perfil dos ingressantes (pobres e
com necessidade de colocação rápida no mercado de trabalho) a probabilidade de
muitos, dentre eles e elas, contentarem-se com um curso profissionalizante seria muito
176
provável ou ainda a desistência de muitos dentre eles e elas no meio do curso (e que
como veremos mais adiante, aconteceu nos primeiros anos do PROFIS).
O PIMESP propunha, atrelado à criação do ICES, um plano de recrutamento. O
“Plano Institucional de Recrutamento de Estudantes” deixa evidente o pouco
comprometimento da Proposta com a inclusão já que esse Plano de recrutamento
deveria atender aos 60% restantes de alunos contidos nas metas de “inclusão” não
abarcados pelo PIMESP (que abarcaria 40%). Entretanto, na proposta do PIMESP não
se apresenta nenhuma ação objetiva de implementação, deixando o “recrutamento”
apenas sugerido genericamente e à cargo das universidades.
A proposta do Programa é atravessada por uma lógica perversa da
desumanização do público beneficiário do PIMESP. Aos negros e indígenas cabe à
formação em cursos técnicos e tecnológicos com o ingresso mais rápido no mercado de
trabalho, enquanto aos mais abastados caberia ambicionar a formação superior em
carreiras de maior prestígio e remuneração.
O projeto foi encaminhado em 2013 para discussão nas instâncias
representativas das três universidades e Faculdades de Tecnologia (Fatecs), e somente
entraria em vigor se tivesse sido aprovado nos respectivos conselhos. Válido ainda dizer
que o executivo e os reitores (responsáveis pela elaboração do PIMESP) apontavam nas
solicitações enviadas às congregações que gostariam que fosse aprovada a Proposta
ainda em 2013 para que em 2014 (ano eleitoral) já começasse a vigorar o Programa.
Em 2014 houve um recuo do conselho de reitores diante das fortes críticas ao
PIMESP advindas das três universidades por meio dos seus conselhos universitários e
da própria atuação do movimento negro. As críticas resultaram no arquivamento da
proposta, mas implicou em alguns reajustes nos programas já correntes de bonificação
no caso da USP e Unicamp e adoção de políticas de ação afirmativa com reserva de
vagas no caso da Unesp.
A grande discussão gerada a partir do PIMESP no meio docente nas três
universidades oferece uma excelente oportunidade para observarmos a dinâmica de
articulação e mobilização daquela fração da classe média quanto à defesa de seus
interesses e privilégios. Os argumentos movimentados pelos docentes que se opuseram
ao PIMESP, fornecem, em nossa interpretação, elementos indicativos da posição de
classe e raça daqueles sujeitos. Em outras palavras: o processo que envolveu a análise
sobre adoção do Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público
Paulista revela como opera em conjunto a ideologia meritocrática e o mito da
177
democracia racial no conflito sobre a adoção de cotas étnico- raciais no ensino superior
público.
À época da apresentação do PIMESP às três universidades, Carlos Vogt,
presidente da Univesp e um dos co-autores da proposta do PIMESP ao referir-se ao
Programa, assim o definiu:
“Entre os que querem mais e os que querem menos está o PIMESP, isto é, na
confluência da tensão de desejos opostos e forças contrárias, que produzem
como resultado a mesma negação. Os que querem menos tendem a defender a
manutenção do status quo, recusando considerar qualquer tipo de proposta que
objetive programas de inclusão social, mesmo com características fortes de
defesa do mérito e da qualidade do ensino, como é o caso do que propõe o
PIMESP. Os que querem mais almejam um programa que reserva vagas nas
universidades e ponto final” (VOGT, 2013, p. 7).
A definição supracitada do presidente da Univesp já aponta para alguns dos
principais elementos que comporão os discursos dos docentes nas três universidades e,
dentre eles, nos interessa destacar a refutação da reserva de vagas para negros, tal como
vinha acontecendo nas demais universidades federais. Isso fica evidente quando Carlos
Vogt afirma que o PIMESP conseguiria ser uma saída “entre os que querem mais e os
que querem menos [...], isto é, na confluência da tensão de desejos opostos e forças
contrárias, que produzem como resultado a mesma negação” (Ibidem).
A “negação” diz respeito à rejeição ao desenho da política afirmativa do governo
federal para as universidades que propôs reserva de vagas (sem curso preparatório) e
para oriundos de escola pública e dentre aqueles estudantes pretos, pardos e indígenas.
Veremos aquela “negação”, afirmada por Vogt, aparecer repetidas vezes na ampla
maioria dos documentos produzidos pelos docentes das três universidades acerca do
PIMESP.
Como veremos, entretanto, a proposta do PIMESP não conseguira se impôr
como segunda via ao programa de política afirmativa do governo federal: tenha sido
porque seus meios foram considerados pouco evidentes (com a proposta do ICES), ou
porque tenha sido considerado uma proposta equivocada que desvirtuava os objetivos
das políticas afirmativas. Cabe ressaltar que mesmo entre esses últimos que
consideraram o PIMESP uma aberração, por desvirtuar-se da finalidade primeira de
uma política afirmativa não apontaram como saída a adoção do programa afirmativo
para o acesso ao ensino superior proposto pelo governo federal tampouco consideraram
o projeto de Lei 530 de 2004 que tramitava na Assembléia Paulista a alguns anos e era
apoiado pela Frente Pró-cotas do estado de São Paulo. O referido projeto propunha que
178
50% das vagas fossem reservadas para estudantes da rede pública, sendo 30% destinada
a negros.
No geral, o de posicionamento dos docentes das três universidades, ficou
centrado na necessidade de estudos de impacto, na manutenção dos programas já
existentes e/ou na elaboração de uma política ‘adequada’ ao contexto das universidades
paulistas. Ou seja, tanto os docentes que consideraram o PIMESP uma proposta
“confusa” como os docentes que o consideraram equivocada, no fim negavam a mesma
coisa: a inclusão imediata de negros nas universidades estaduais paulistas. Tais
argumentos, ao final, contribuíram para a mesma finalidade: a protelação da adoção de
qualquer medida de inclusão racial imediata. Nesse sentido João Feres Jr et al (2011a)
chamaram atenção para um ponto muito pertinente quanto à resistência das
universidades estaduais paulistas em relação à adoção de cotas raciais.
Os referidos autores fizeram um cruzamento de dados entre as universidades que
adotaram a modalidade de reserva de vagas e a posição ocupada por aquelas
universidades no ranking realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP) para aferir colocações a partir dos resultados da
medição da qualidade do ensino superior, mensurado pelo Índice Geral dos Cursos da
instituição (IGC).
Os dados utilizados por João Feres Jr et al (2011a) foram baseados no Índice
Geral de Cursos da Instituição de 2008 (IGC). O referido índice é calculado
considerando o ranking feito pelo INEP a partir do resultado do Exame Nacional de
Desempenho de Estudantes (ENADE), professores e estrutura didática logística das
instituições de ensino superior.
O resultado final é expresso a partir de valores contínuos de 0 a 500 e em faixas
que vão do mínimo 1 (pior avaliada) ao máximo 5 (melhor avaliada). USP e Unicamp,
por discordarem da metodologia empregada na referida avaliação, não participam, mas
os autores do referido estudo equipararam as notas do IGC às notas adquiridas pelas
referidas instituições em outra avaliação ao nível de América Latina: o Webometrics
Ranking Web of World Universities. A USP obteve a 1ª posição e Unicamp a 4ª. Com
exceção de uma universidade do ranking feito pelo IGC, as notas da USP e da Unicamp
superaram todas as demais universidades que obtiveram conceito cinco no IGC. Dessa
forma, os autores atribuíram às duas instituições o valor máximo na avaliação do IGC
(ou seja, 5). O quadro a seguir mostra os resultados do cruzamento entre conceituação
das universidades e existência de cotas étnico-raciais em suas formas de acesso:
179
Tabela 2: AVALIAÇÃO INEP X POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA
AVALIAÇÃO
DO INEP
TOTAL
DE
VAGAS
VAGAS
RESERVADAS
PERCENTUAL
DE VAGAS
RESERVADAS
COTAS
RACIAIS
PERCENTUAL
DE COTAS
RACIAIS
Conceito 1 Não
avaliado
Não avaliado Não avaliado Não
avaliado
Não avaliado
Conceito 2 13. 958 4. 249 30, 4% 1.833,6 13,1%
Conceito 3 89. 745 21. 503, 3 24% 11.161,4 12,4%
Conceito 4 101. 421 22. 352, 5 22% 7.966 7,9%
Conceito 5 25. 586 1, 413, 9 5, 5% 767,1 3%
Fonte para elaboração: FERES JR et al (2011a)
A partir do cruzamento da informação “universidades melhores avaliadas” e
“universidades com sistema de cotas” é possível perceber que há uma relação
inversamente proporcional: o percentual de vagas reservadas para a ação afirmativa
decresce à medida que o conceito de excelência96 da universidade sobe (FERES Jr.,
2011a). A hipótese levantada pelos autores é a de que sendo a USP e Unicamp,
universidades muito bem avaliadas internacionalmente, ambas não teriam interesse em
destinar um elevado número de vagas para ações afirmativas tampouco para cotas
raciais face à suposta possibilidade da perda de qualidade.
A resistência das universidades estaduais paulistas à reserva de vagas étnico-
raciais pode ser entendida, por um lado, como uma ação política típica da fração da
classe média alta e branca vinculada às universidades públicas com vistas a garantir a
“impermeabilidade” da universidade (espaço de reprodução daquela fração da classe
média). Por outro lado, a interpretação a partir do ponto de vista das classes, em nossa
análise, parece não dar conta de outro fato: tanto USP como UNICAMP, tinham desde
2004 e 2006 respectivamente programas de bonificação para egressos de escola pública
nos seus vestibulares. Isso implica dizer que a fração da classe média alta e branca já
vinha, há alguns anos, flexibilizando o ideal meritocrático e, em alguma medida, o
compromisso strictu sensu com esse valor. Então como explicar a resistência à reserva
de vagas étnico-raciais?
96 E dentre as mais bem avaliadas, estão às universidades estaduais paulistas (dentre essas, as federais
mais bem avaliadas como UFRJ, UFMG, UFF e que também estiveram na resistência às cotas étnico-
raciais).
180
As reflexões levantadas por M. W Apple (1999) acerca da formação das
ideologias racistas no campo da educação formal com foco nos currículos, sugerem a
existência de um discurso hegemônico que estabelece pólos em oposição, onde de um
lado teríamos a “qualidade”, a excelência na educação e de outro corpos que
representariam uma ameaça aquela qualidade:
“[…] The sense of economic and educational decline, the belief that private is
good and public is bad, and so on is coupled with an often unarticulated sense
of loss, a feeling that things are out of control, an anomic feeling that is
connected to a sense of loss of one's 'rightful place' in the world (an 'empire'
now in decline), and a fear of the culture and body of 'the other'. The 'private'
is the sphere of smooth running and efficient organizations, of autonomy and
individual choice. The 'public' is out of control, messy, heterogeneous. 'We'
must protect 'our' individual choice from those who are the controllers or the
'polluters' (whose cultures and very bodies are either exoticized or
dangerous)” (idem, p. 12).
Em 2013 o PIMESP foi rejeitado pela UNICAMP e pela USP e aceito
parcialmente pela UNESP. Entretanto, a discussão em torno da Proposta reabriu o
caminho para que as políticas de ação afirmativa com a modalidade de reserva de vagas
étnico- raciais pudessem estar na pauta de debates no meio universitário público
paulista. Dali em diante, as discussões seguiriam caminhos controversos que se por um
lado, viriam a revelar a continuidade da defesa da meritocracia e da narrativa
desumanizadora sobre as populações beneficiárias das políticas de cotas no meio
docente, por outro, tornariam evidentes a insustentabilidade da resistência da fração da
classe média branca frente ao movimento nacional de reconhecimento da existência de
entraves ao acesso ao ensino superior público que afetavam, principalmente e de
maneira inegável, a população negra brasileira.
Sobre o processo que culminou na rejeição total do PIMESP pela USP e pela
UNICAMP e na adoção parcial do Programa pela UNESP, trataremos nas seções a
seguir a partir do debate realizado em cada uma das três universidades.
A UNESP e a aprovação parcial do PIMESP
As discussões em torno do PIMESP também impactaram as ações afirmativas na
Unesp, sendo essa a primeira entre três as universidades estaduais paulistas a adotar a
reserva de vagas étnico- raciais. Em 2013, a UNESP aprovou o PIMESP mas não de
todo, rechaçando a proposta do ICES mas aceitando as metas de inclusão. Assim em
181
2014, a UNESP cria o Sistema de Reserva de Vagas para a Educação Básica Pública
mais Preto, Pardo e Índigenas (SRVEBP+PPI). A rejeição ao ICES pelos docentes da
UNESP nos informa sobre as disputas travadas entre a fração da classe média alta e
branca e a classe dominante sobre o domínio do aparelho educacional. Procuraremos
evidenciar que a explicação para a rejeição dos docentes da UNESP ao PIMESP está
muito mais relacionada ao controle da expansão do acesso ao ensino do que com o teor
racista daquela proposta.
A UNESP, até 2013, não tinha nenhuma política afirmativa propriamente dita
para o ingresso de estudantes negros e indígenas. Entretanto, ainda em 2005, a
Universidade já tinha tentado iniciar o debate, mas a discussão ficou engavetada, só
voltando a estar na pauta de debates da Instituição em 2013.
Em 2005, a UNESP (muito provavelmente influenciada pelo contexto político
estudual e nacional), iniciou o processo de discussão da adoção de programas inclusivos
no formato de bonificação. Entretanto, ao final das discussões em 2006, só foi aprovada
a isenção na taxa de inscrição para estudantes oriundos de escolas públicas. Na ocasião,
o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão Universitária (CEPE) - responsável pela
indicação de uma comissão que elaboraria uma proposta de ação afirmativa - foi
contrário à proposta de adoção de bonificação, ainda que fosse com a ampliação da
oferta de vagas.
O documento produzido pela comissão indicada pelo CEPE sobre ações
afirmativas denominado “Reflexões sobre a Inclusão Social na Unesp”, e que foi
apreciado pelo Conselho Universitário, indicava a não adoção de cotas “mas a adoção
de medidas visando a ampliação da contribuição da Universidade para a inclusão, por
meio de ações para a melhoria do ensino básico público” (SÃO PAULO, 2013a, p.5). O
CEPE indicou que a estratégia eficaz de inclusão de pobres, negros e indígena seria a
isenção na taxa de inscrição. Tal proposta foi aprovada ainda naquele ano.
Em 2007, impulsionada pela Comissão da Pró-reitora de Graduação
(PROGRAD), a proposta de bonificação voltou à pauta, mas foi rechaçada novamente,
agora não mais pelo CEPE, mas por ampla maioria das unidades de ensino e campus
experimentais. Os docentes alegaram que tal sistema feriria o princípio do mérito e que
faltava infraestrutura para absorver os ingressantes do sistema de bonificação, ainda que
na proposta feita pela PROGRAD estivesse expresso que se criaria mais vagas tendo
como condição a ampliação dos recursos advindos das receitas do governo estadual
182
(SÃO PAULO, 2013a,). Diante do rechaço generalizado, foi aprovado apenas o
reajuste na ampliação das isenções das taxas de inscrição.
Em 2008, o Conselho Universitário retirou da pauta o assunto e reencaminhou à
Câmara Central de Graduação e ao CEPE, que deveriam aprofundar os estudos.
Enquanto isso, a medida de inclusão da UNESP continuava sendo a isenção da taxa de
inscrição.
Contrariando as (ingênuas?) expectativas dos docentes, a ampliação na oferta de
isenções de taxas de inscrição não resultou no aumento significativo de alunos de
escolas públicas presentes no vestibular da UNESP, nem de aprovados ao longo dos
quase 10 anos de existência da isenção da taxa de inscrição do vestibular (SÃO
PAULO, 2013a, p.5).
Os dados sinalizaram a urgente necessidade de se repensar as estratégias de
inclusão adotadas até então. Com a apresentação da proposta do PIMESP, a UNESP
voltou a discutir as ações afirmativas em 2013 aprovando para o vestibular de 2015 a
reserva de vagas raciais e sociais escalonada, ou seja, comprometia-se a atingir 50% das
matrículas de alunos de escola pública e 35% de PPI’s até 2018 e não em 2016, tal qual
estava na proposta do governo federal.
O processo que culminou na criação do o Sistema de Reserva de Vagas para a
Educação Básica Pública mais Preto, Pardo e Índigenas (SRVEBP+PPI) em 2013 levou
em conta: o estudo feito pela Comissão, as manifestações de 21 unidades de ensino, as
manifestações do CEPE e da Câmara Central de Graduação (CCG). A proposta
aprovada disponibilizava um total de 25% das vagas para estudantes oriundos da escola
pública. Desse percentual, 35% seriam destinados aos estudantes que se
autodeclarassem pretos, pardos ou indígenas. Válido mencionar que o ICES foi
rechaçado.
Mesmo despontando em relação às outras duas universidades estaduais públicas
paulistas ao adotar a reserva de vagas, o SRVEBP+PPI, o percentual de 50% de alunos
cotistas ao longo de cinco anos a contar a partir de 2014. Com isso a meta de alcançar
50% dos estudantes de escola pública e dentre esses 35% de negros e indígenas foi
protelada para 2018, postergando mais ainda o acesso de negros e indígenas à
Instituição.
Interessante notar que entre a primeira tentativa de discussão até ao primeiro
vestibular com politica afirmativa, a Unesp levou dez anos (2005 a 2015) para concluir
183
pela adoção de algum tipo de política. O que nos chama a atenção é que mesmo tendo
passado uma década, supostamente discutindo o desenho da inclusão, os docentes
optaram por levar ainda mais cinco anos para alcançar as metas estabelecidas a nível
federal. Resta-nos entender quais foram os argumentos que embasaram a posição dos
docentes. Por quais motivos os docentes rechaçaram o ICES? E por quais razões a
política de ação afirmativa do governo federal não foi analisada pelos docentes tal como
o PIMESP, já que existiam questionamentos acerca do Programa de Inclusão com
Mérito?
Em seguida apresentaremos um panorama dos posicionamentos dos docentes,
destacando as contradições nos argumentos e de que forma alguns recursos, como a
suposta preocupação com a qualidade da produção intelectual universitária e o mérito
foram acionados para camuflar, por um lado, os interesses da fração da classe média
abastada e por outro, o conflito de classe e raça.
As políticas de cotas étnico-raciais voltam à pauta na UNESP: a
‘ameaça’ aos privilégios da fração da classe média alta e branca
Em 2013, as congregações da Unesp foram solicitadas a se manifestarem sobre o
PIMESP. Ao todo, tivemos acesso às manifestações de 21 unidades de ensino, assim
como as manifestações do CEPE e da Câmara Central de Graduação (CCG), somando
ao total 34 documentos consultados entre posicionamentos de faculdades, institutos,
departamentos, núcleos e disciplinas, campus experimentais. Das 34 manifestações, 6
posicionaram-se a favor do Pimesp, 26 contra e 2 sem posição. Entretanto, o PIMESP
foi aprovado pelo Conselho Universitário em abril de 2013, mas com ressalvas: aprovou
as “metas” de inclusão e pediu mais informações acerca do ICES, vindo mais tarde a
desistir da adoção do referido Instituto.
Dentre as manifestações contrárias ao Programa de Inclusão com Mérito, as
principais justificativas que encontramos para a rejeição foram: condução
“antidemocrática” de avaliação do PIMESP (tempo), identificação da má qualidade da
escola pública como o problema real a se investir recursos, preocupação com o garantia
do mérito, recusa às cotas étnico-raciais, defesa de programas voltados para estudantes
de escola pública e crítica ao ICES. Importante dizer que os discursos não seguem
apenas uma ou outra linha argumentativa de forma excludente. Na maioria dos
184
documentos produzidos pelos docentes, as linhas discursivas mesclam-se, mas no geral
os principais argumentos são aqueles que fizemos referência. E por fim, válido dizer
que os docentes, em sua maioria, reconheceram que há injustiças que afetam o acesso à
Universidades mas segundo os documentos consultados: 1) as injustiças são
identificadas por conta da defasagem da escola pública; 2) e a resposta para essa
situação seria o melhoramento da escola pública. Consideramos importante destacar que
que o termo racismo aparece apenas em uma das 34 atas consultadas. Vejamos agora
como cada um desses argumentos foram abordados pelos docentes.
Primeiramente vejamos a argumentação dos docentes em relação à condução do
processo e o cronograma para avaliação da Proposta. Os docentes manifestaram a
insatisfação em relação a esse suposto caráter consultivo de análise do PIMESP e crítica
19 manifestações fizeram menção a esse ponto. O fato de a proposta ter chegado aos
docentes como um “pacote fechado” teria dado um contorno apenas consultivo e não
construtivo ao processo de implementação de Políticas de ação afirmativa na percepção
dos docentes da UNESP.:
“Um programa de inclusão social para as universidades estaduais deveria ser
refletido e elaborado pelo governo estadual em total parceria com as
próprias universidades, em todos os âmbitos e, não somente na forma de
consulta com relação aos critérios de seleção dos ingressantes nas
Universidades, pois um regime político que se diz democrático precisa antes
de qualquer coisa acolher as idéias e ponderar sua validade na
transformação da realidade, em imposições e imediatismo” (Faculdade de
Odontologia. Cf. SÃO PAULO, 2013a).
“A forma como esse tema e essa proposta estão sendo conduzidos no âmbito
da universidade está longe de ser a ideal. A comunidade acadêmica foi
ignorada e sua formulação e o projeto não oferece [sic] justificativas
pedagógicas sólidas. A forma delineada de pensar essa proposta e um
método que contraria a tradição de debate plural e democrático tão cultivado
na universidade. Concebida pelos reitores das universidades públicas
paulistas e pelo governo estadual, a proposta carece de legitimidade
acadêmica [...]. É de suma importância que se abra um período adequado de
debates sobre a proposta oficial e que haja espaço e receptividade para
apresentação de sugestões alternativas” (Faculdade de Arquitetura, Artes e
Comunicação. Cf. SÃO PAULO, 2013a)
“Em janeiro de 2013 a Comissão nomeada pela Congregação para elaborar
documento que servisse de subsídio para discussão deste colegiado foi
surpreendida com a informação da existência de uma proposta concreta
elaborada pelo Conselho dos Reitores das Universidades do Estado de São
Paulo [...]. A interpretação que se pode ter é que o CRUESP tomou decisões
sem fazer qualquer consulta a respeito de posicionamentos que seriam
tomados em qualquer das três Universidades referidas. O referido Programa
foi “dado a conhecimento” dos membros do CEPE [...] chama atenção,
ainda, o tempo exíguo destinado à discussão de tema tão importante [...]
com o argumento de que se não atendermos a esse prazo, a Assembleia
Legislativa Paulista tomará a decisão por nós, como que ignorando
185
deliberadamente a condição de autonomia que conquistamos a certo tempo
[...]” (Instituto de Biociências. Cf. SÃO PAULO, 2013a).
A condução do processo de aprovação da proposta do PIMESP de fato assumiu
um caráter verticalizado e “apressado”. O CRUESP e o executivo estadual paulista
assumiram publicamente a importância da criação de um programa de cotas em outubro
de 2012 e em dezembro do mesmo ano, a proposta tinha já sido finalizada, sem as
contribuições dos docentes ou de qualquer outro segmento da sociedade civil.
Entre a apresentação da Proposta pelo CRUESP- janeiro de 2013 - e a data para
devolutiva – abril do mesmo ano- os docentes se viram obrigadas a discutir e avaliar o
PIMESP. Entretanto, nos perguntamos até que ponto o argumento da “velocidade da
condução” acerca da avaliação do PIMESP também não se constitui como estratégia
com vistas a delongar ainda mais a adoção de cotas étnico-raciais na UNESP?
Como dito anteriormente, a UNESP iniciou a discussão sobre ações afirmativas,
incluindo o debate sobre cotas sociais e raciais em 2005. Se passaram então 10 anos
entre o debate inicial e a aprovação da implementação das cotas. Ainda assim, grande
parte dos professores alegou precisar de mais tempo para discutir e aprofundar o debate.
Se por um lado, a condução do processo de discussão pelos elaboradores do PIMESP
assumiu um caráter autoritário, por outro lado, chama atenção a procrastinação da
discussão entre os professores sobre as políticas de ação afirmativa na modalidade de
reserva de vagas.
Outro ponto que merece destaque sobre o argumento levantado pelos docentes
acerca do caráter antidemocrático da avaliação do PIMESP, é de que dentre as 19
manifestações que fazem crítica à condução do processo pelo pouco tempo de
envolvimento da comunidade acadêmica, apenas três atas apontam para a necessidade
de considerar o debate em curso no âmbito federal sobre políticas de ação afirmativa e
convidar outros especialistas na temática para colaborar no processo:
“O Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Paulista não se
apresenta como uma proposta de inclusão (COTAS) e, portanto, não justifica
a velocidade da tramitação desta proposta e nem de políticas emergenciais.
Além disso, não leva em consideração pelo menos 10 anos deste debate em
nível nacional e dentro da própria Unesp e desconsidera as experiências já
implementadas” (Departamento de Educação Física. Cf. SÃO PAULO,
2013a)
“Ações afirmativas que busquem compensar esse quadro histórico podem e
devem se realizadas. Na úlitma década, diversas formas de inclusão foram
tentadas, como está historiado no documento elaborado pela Comissão da
PROGRAD. No ano passado, por meio da Lei 12. 711 […] o governo federal
implementou a reserva de vagas sociais, representadas pelos extratos sociais
186
que realizaram seus estudos no ensino fundamental e médio em escolas
públicas (EP), e raciais (PPI).” (Instituto de Biociências, Letras e Ciências
Exatas. Cf. SÃO PAULO, 2013a)
Além disso, chama a atenção também o fato de os docentes reivindicarem um
processo mais democrático, mas a maioria das manifestações não faz menção à
importância de considerar a participação do movimento negro, por exemplo, ou
qualquer outro movimento implicado nas políticas de ação afirmativa como os
indígenas, recomendando apenas o adiamento da adoção do PIMESP ou da necessidade
de mais tempo para avaliar a proposta:
“ […] devido as várias sugestões e as discussões do sistema de cotas,
sugere-se o adiamento, por pelo menos um ano, para amadurecimento e
posterior implementação; que o Governo do Estado estabeleça ações para
melhoria do ensino público fundamental e médio, de tal modo que no prazo
proposto não seja mais necessária a adoção do sistema de cotas” (Faculdade
de Engenharia de Ilha Solteira. Cf. SÃO PAULO, 2013a)
“ […] Deve se fixar um plano/pacto para melhoria da qualidade da educação
básica paulista, viabilizado pela Secretaria do Estado de Educação (e
supervisionado pelas Universidades Paulistas), definindo metas, investindo
esforços onde os problemas estão localizados e não tentando implantar
medidas paliativas nesse processo que é histórico-social. Ressalta que o
período de vigência deste plano/pacto seria o período em que as
Universidades centrariam sua discussão sobre a temporalidade do ingresso
por cotas – estabelecendo‐se um prazo máximo de 10 anos para viabilização
das metas prevista pelo plano/pacto, bem como para ingresso de alunos pela
ação afirmativa da UNESP (sistema de cotas)” (Comissão Local do Núcleo
de Estudos e Práticas Pedagógicas (NEPP), do campus de Ilha Solteira. Cf.
SÃO PAULO, 2013a).
Diante disso nos perguntamos: até que ponto os docentes estavam reivindicando
um processo democrático de fato ou estavam apenas insatisfeitos pelo fato da
elaboração e condução do processo ter sido conduzido unicamente pelo executivo
estadual e CRUESP?
Importante destacar que não estamos desconsiderando o caráter autoritário e a
exigência de velocidade por parte dos elaboradores na avaliação da Proposta. Por outro
lado, é preciso atentar que a reivindicação de autonomia universitária, implícita na
reivindicação de mais tempo para análise, parece também escamotear a protelação da
adoção de políticas de ação afirmativa. Nesse sentido, a reivindicação de mais tempo e
mais participação parece servir como instrumento de controle autoritário para controlar
e mesmo limitar o acesso à universidade. Nesse sentido, o apelo a autonomia
universitária ou ainda a horizontalidade dos processos decisórios parece converter-se em
mecanismo de (re) produção do racismo institucional.
187
A identificação da má qualidade do ensino público básico como causa real do
problema do acesso ao ensino superior esteve presente em 33 das 34 manifestações. A
melhoria do ensino público básico como a verdadeira solução para o problema foi
consenso tanto nas atas dos docentes que foram contra o PIMESP quanto entre os
docentes que foram a favor:
”Por fim, entendemos que é dever do Governo do Estado de São Paulo
implantar medidas efetivas para a melhoria do Ensino Fundamental e Médio, e
não atribuir esta função às Universidades” (Faculdade de Medicina Veterinária.
Cf. SÃO PAULO, 2013a).
“[...] Um programa de inclusão social verdadeiramente efetivo seria a melhoria
do ensino público sem causar prejuízos a nenhuma classe da sociedade”
(Faculdade de Odontologia. Cf. SÃO PAULO, 2013a).
“[...] não há na proposta do PIMESP qualquer menção à necessidade de uma
urgente política de valorização e recuperação do ensino fundamental e médio
por parte do Governo do Estado de São Paulo, como se a dificuldade de acesso
dos alunos da escola pública ao Ensino Superior não fosse decorrente do
descalabro em que se encontra o ensino oferecido na escola básica [...] ações
afirmativas que busquem compensar esse quadro histórico podem e devem ser
realizadas [...] entende-se que tais ações, ainda que justas e necessárias, são
paliativas sem, por si só, apresentarem poder de alterar o perfil da distribuição
de renda da sociedade brasileira [...] políticas que transformem a qualidade da
escola pública nos níveis fundamental e médio são fundamentais e urgentes
para que todos os extratos sociais possam competir em igualdade pelas vagas no
ensino superior [...]” (Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, São
José do Rio Preto. Cf. SÃO PAULO, 2013ª).
“[...] paralelamente a esse programa, o governo estadual deverá promover ações
de recuperação do ensino público nos níveis fundamental e médio, de modo que
todos possam concorrer em condições iguais [...]” (Instituto de Geociências e
Ciências Exatas. Cf. SÃO PAULO, 2013a).
“[...] acrescentamos ainda que para o Conselho Diretor desta unidade, essa não
é a melhor solução para o problema da educação no estado ou mesmo no país,
porém esperamos que o programa seja implementado de maneira que possa
corrigir as falhas dentro do possível e que os verdadeiros esforços se voltem
para a educação de base, na qual acreditamos haver necessidade [grifo do
original] maior de planejamento e de novas políticas de funcionamento”
(Campus Experimental, Tupã. Cf. SÃO PAULO, 2013a).
A educação formal é propagandeada como o único meio que supostamente torna
possível a mobilidade social nas formações capitalistas de grupos excluídos entretanto, é
fundamental situarmos que a instituição da educação pública tem uma finalidade na
estruturação de classes no capitalismo, a saber, difundir que basta que todos passem
pelos níveis da educação formal para tornarem-se iguais para disputar vagas em
concursos públicos ou ainda acessar espaços de poder como é o caso da universidade.
188
Bourdieu & Passeron (1970) evidenciaram a falácia da neutralidade do sistema
de ensino público e de que forma a instituição escolar, assume uma função reprodutora
das desigualdades sociais e mantenedora da divisão social do trabalho por meio da
disseminação da ideologia da meritocracia. Mas de que forma a implantação dessa
aparente neutralidade contribui para a reprodução da divisão social do trabalho? E como
a classe média se beneficia desse mito? Todas as 33 menções feitas pelos docentes em
relação à necessidade de “melhoria” do ensino público básico, referem-se a tal melhoria
como “o verdadeiro problema” a ser enfrentado pelo poder público no que tange ao
acesso de estudantes pobres e negros às universidades.
Recorrer à melhoria do ensino básico como justificativa para negar ou colocar
como não prioridade a adoção de políticas afirmativas com reserva de vagas mascara
um dos principais pilares de sustentação e reprodução da classe média: a defesa do Mito
da Escola Única. Nesse sentido difundir que o que determina o acesso daqueles grupos à
universidade pública é unicamente a escolarização, é fundamental para que fração da
classe média abastada vinculada à universidade mantenha seu principal nincho de
reprodução.
Em algumas atas, os docentes chegam inclusive a reconhecer a sua condição de
classe média e defender os seus interesses, como podemos ver nos trechos a seguir:
“[...], além disso, o sistema de cotas penaliza por demais a população de classe
média (representada por um grande faixa da população brasileira) que investe
em escolas particulares para seus filhos, visto que o ensino das escolas públicas
até o presente momento é precário[...]” (Faculdade de Odontologia- Conselho
de Professores da Disciplina de Periodontia. Cf. SÃO PAULO, 2013a).
“[...] Ao assumir que os egressos das escolas particulares estão em vantagem,
despreza-se a causa deles terem procurado essas escolas. Uma causa provável é
a de que o ensino médio particular é mais eficiente que o público […] em vista
disso é também provável que famílias de todas as raças estejam reservando uma
parte de sua renda para seus filhos cursarem escolas particulares […] portanto,
a não ser comportando-se como um déspota pode o Estado arrogar a si o direito
de privilegiar um segmento e punir outro, por ter feito este esforço adicional de
pagar a seus filhos o que o próprio estado não lhe deu. Ou alguém duvida que
ensino fundamental e médio de qualidade oferecido pelo governo (municipal,
estadual e federal) aumentaria substancialmente a inclusão social na
universidade? (Faculdade de Odontologia- Departamento de Fisiologia e
Patologia. Cf. SÃO PAULO, 2013a).
Como assinala Saes (1997), para a classe média, pouco importa se o ensino
público tem de ser de qualidade ou não, pois como vimos nos trechos acima, a classe
média abastada recorre ao ensino privado para os seus filhos. Assim o argumento
recorrente dos docentes da UNESP de defesa de uma “educação universal pública” de
qualidade se constitui apenas como aparência dos reais interesses da classe média, pois
189
de fato a classe média não necessita de um ensino público de qualidade, pelo contrário
“inscrevê-los numa escola particular, onde o alto preço da mensalidade não só garante a
qualidade do ensino como também elimina uma parte dos futuros concorrentes,
delineia-se como a estratégia mais adequada para a consecução desse objetivo [de
manter-se em postos de trabalho não-manual]” (Idem, p. 104).
Assim a defesa do ensino público de qualidade se constitui como mecanismo
eficaz, na medida em que reproduz a um só tempo o arcabouço ideológico que estrutura
a sociedade capitalista, difundindo o Mito da Escola Única e ao mesmo tempo em que,
no caso do conflito em torno das cotas, nega o racismo e reproduz a idéia de que o
problema é a educação pública ofertada aos pobres em geral.
A implantação do ensino básico público, obrigatório e gratuito confere um status
de igualdade de oportunidades, isto é, independente da classe social, todos podem
acessar a escola. Será esse o principal recurso ideológico que a classe média propagará
com vistas à sua própria valorização econômica e social (SAES, 2005). Como afirmou
Décio Saes, o culto à ideologia do mérito exerce uma funcionalidade, a saber: o de
melhorar a posição relativa da classe média na hierarquia do trabalho. Nesse sentido, o
discurso meritocrático apareceu em 12 do total de atas analisadas, mas não para
contrapor a existência de injustiças, necessariamente, mas para reforçar que qualquer
medida afirmativa não deve abdicar desse valor:
“[...] parece que aprovando o PIMESP (vide organograma) evitamos a
proposta racista do governo federal [...] até ponto o ingresso por privilégio é
de fato lei? [...] para onde vai o mérito da sigla Pimesp se ela garante
ingresso privilegiado na universidade? [...], entretanto a questão
fundamental que se apresenta a respeito do PIMESP é outra: se por cursar o
ICES (que já atende privilégios de escola e raça), o cidadão deve ter
privilégio adicional para ingressar na Unesp [...] se o Estado fornecesse
ensino médio de qualidade teríamos uma porcentagem maior de egressos de
escolas públicas [..]”(Faculdade de Odontologia. SÃO PAULO, 2013a).
“[...] O Departamento de Didática da FCL concorda que essas políticas
[cotas] precisam garantir a qualidade da educação nas universidades paulistas
e dar incentivo aos esforços pessoais pelo reconhecimento do mérito dos
estudantes” (Faculdade de Ciências e Letras. Cf. SÃO PAULO, 2013a).
“[...] propostas de ingresso por privilégio sejam quais forem elas,
acobertam mensagens despóticas e demagógicas travestidas de democracia.
Cabe as universidades mostrar aos governos os limites para o arrojo sem
ferir princípios como responsabilidade e mérito. Cabe a Unesp mostrar
caminhos para inclusão social sem se tornar cumplice de situações
embaraçosas para o mérito que ela tanto cultiva.” (Faculdade de
Odontologia- Departamento de Fisiologia e Patologia. Cf.SÃO PAULO,
2013a).
“[...] Que sejam valorizadas prioriotariamente as notas obtidas no ENEM e
considerada a classificação dos alunos cotistas inscritos no vestibular “[...]
190
sugestões à proposta do PIMESP, a saber: […] realização periódica de
avaliação criteriosa dos acadêmicos ingressantes pelo referido Programa,
visando redefinir as ações do PIMESP” (Faculdade de Ciências e Letras.
Cf.SÃO PAULO, 2013a).
A defesa da meritocracia nos trechos acima parecem evidenciar como raça está
presente mas ao mesmo tempo ausente nos debates: os docentes não mencionam
explicitamente os negros e indígenas não estariam aptos a ingressar na universidade mas
quando exarcebam a explicitação da defesa do mérito parecem criar uma narrativa que
contrapõem os beneficiários dos programas afirmativos de um lado e a garantia da
meritocracia de outro, criando uma espécie de pólo antagônico. Nesse sentido, a
ideologia meritocrática nos parece ser informada nesse contexto por um entendimento
racializado de quem possui dons e méritos e quem não os possui.
O discurso meritocrático, segundo César Barros (2007), ganha força na década
de 50 com a entrada do grande capital monopolista no Brasil, contexto no qual a
valorização da certificação escolar e a introdução de mecanismos supostamente
meritocráticos (processos seletivos e concursos) são adotados a partir das novas
exigências para acesso às burocracias privada e do Estado. A falência de muitas
empresas familiares, a ocupação de cargos nas empresas privadas por profissionais
liberais e a instituição de concursos no serviço público foram fatores decisivos para
modificar a reprodução das camadas médias. O ensino superior passou a ser o meio pelo
qual as camadas médias assegurariam a certificação escolar necessária para manutenção
do seu lugar na divisão social do trabalho, a saber, em postos de trabalho não-manual
(BARROS, C. M. 2007).
A certificação escolar passa a ser concebida como resultado dos esforços
individuais e como critério fundamental para a entrada em determinados postos de
trabalho (BARROS, C. M. 2007). Entretanto, é sabido que a pobreza e o racismo são
fundamentais para compreendermos os níveis educacionais que determinados grupos
alcançam. Dada essas opressões constituintes do capitalismo, o falseamento da realidade
assume um papel fundamental na manutenção da reprodução das classes, como afirma
Pimenta (2012):
“[…] A razão dessas contradições se portarem como paradoxo está na
necessidade da ideologia constantemente se renovar, já que sua função é
realizar uma dissimulação sutil do mundo social, fundar simulacros para
tentar ocultar o profundo antagonismo vivido pelas sociedades de classe.
Essa constituição e renovação geral da ideologia sobre a realidade político-
educacional se sustenta profundamente através da ideologia e das práticas
ideológicas jurídicas. Estas, amparadas na figura de um Estado democrático
de direito, possui a capacidade de neutralizar formalmente, no nível do
191
discurso, as contradições sociais, e através de sua atuação gerar uma
simulação de ‘justiça’no âmbito da sociedade […]” (PIMENTA, 2013,
p.16)
A ideologia da meritocracia está necessariamente atrelada ao Mito da Escola
Única, como aponta Saes (2005). A instauração do ensino público, obrigatório e
gratuito, se constitui como principal arranjo institucional que serve a classe média, ao
conferir uma ilusória igualdade de oportunidades a todos os indivíduos, independente
das condições estruturais, oportunizando, ilusoriamente, mobilidade social a todos que
dela possam usufruir.
Cabe fazermos um brevíssimo comentário no sentido de ampliar o conceito de
ideologia meritocrática aqui empregada e fundamentada na contribuição do pesquisador
marxista Décio Saes (1975; 1985; 2005). Pretendemos enfatizar que o fato da classe
média brasileira (e logo, da ideologia meritocrática) ter se constituído no período de
transição do período escravocrata para a instituição da primeira República com a
instauração do regime de trabalho assalariado, tem implicações que, em nosso ponto de
vista, circunscrevem a ideologia meritocrática em um arcabouço racista. Essa ampliação
do conceito nos permitirá compreender, por exemplo, porque não é contraditório que as
universidades de São Paulo tenham aceitado flexibilizar a meritocracia ao instituir os
programas de bonificação no vestibular para egressos do ensino público, mas tenham se
posicionado contrários à reserva de vagas com recorte étnico-racial.
Segundo Saes (2005), a classe média (desprovida de capital, mas totalmente
inserida e subordinada na ordenação capitalista), busca diferenciar-se das outras classes
por possuir dons e méritos que a tornaria apta ao trabalho não-manual (funções ligadas à
gestão, administração e especialidades técnico-científicas).
A configuração da esfera jurídico-política97 que reestruturou as instituições
políticas na primeira República de modo a manter a distinção não apenas de classe, mas
de raça, ou seja, entre negros libertos e brancos, permite-nos afirmar que a classe média
branca, se constituiu como grupo na divisão de classes afirmando um posicionamento
marcado também pela distinção racial já que teriam de enfrentar os também desprovidos
97 Sobre as leis, podemos citar inúmeras mantidas nos primeiros anos da República que impactaram
profundamente a situação dos negros libertos como: incentivo a política migratória européia
(acarretando a disputa entre europeus e negros libertos por postos de trabalho, onde os últimos foram
preteridos em lugar dos primeiros), proibição do exercício de certas profissões por negros libertos e por
fim o acesso à educação formal entre o século XIX e XX que se por um lado não foi proibida aos negros
libertos, tinha como finalidade civilizar e educar para o trabalho manual, como discutiremos no capítulo
4.
192
de capital e possuindo apenas a força de trabalho, os negros recém-libertos e que
portanto se constituíam como grupo capaz de disputar lugares na nascente classe média.
Nesse sentido, é preciso ir mais fundo na análise da relação entre o pós-abolição
da escravidão e constituição da classe média no Brasil para compreendermos de que
forma a desvalorização do trabalho manual e a defesa da meritocracia estão inscritas no
processo de atualização do racismo e anti-negritude na formação de classes no Brasil.
Segundo, Saes (1975) o valor dado ao trabalho não-manual, “tende a ser
valorizada [pelas camadas médias urbanas], pois paira sobre o trabalho braçal a
condenação social imposta por séculos de escravidão” (cf. SAES, 1975, p. 27). Ora,
parece-nos que consoante à condenação social da escravidão (diga-se de passagem,
alimentada muito mais pelo temor da possibilidade de tornar-se mercadoria, já que uma
grande parcela dos brasileiros livres também eram desprovidos de capital), a própria
constituição das camadas médias confunde-se com a construção de uma narrativa que
liga ausência de dons e méritos à inferiorização-desumanização do negro na nascente
República democrática brasileira.
Ao analisar a natureza do movimento antiescravista urbano no século XIX e a
participação da classe média, Saes (1981) afirma que a classe média urbana defendeu o
igualitarismo jurídico- e não igualitarismo socioeconômico- pois:
“Na verdade, é o seu interesse político geral que a leva a lutar pela cidadania: só
a supressão do trabalho escravo e a igualização jurídico- formal de todo os
indivíduos permitirão o desenvolvimento de um processo- impossível numa
formação social escravista- de valorização social do trabalhador não-manual.
Por que a valorização social do trabalhador não-manual é impossível na
formação social brasileira de meados do século XIX? É que, tendo o trabalho
manual um caráter dominantemente compulsório, torna-se impossível para os
trabalhadores não-manuais, provar- para eles mesmos e para as outras classes
sociais- que a sua superioridade social sobre o escravo [sic] advém de uma
superioridade de ‘dons e méritos’. Impossibilitado o confronto de capacidade
entre o trabalhador não-manual, torna-se impossível, para toda e qualquer classe
social, alimentar a ilusão da existência de uma ‘meritocracia’ no país […] essa
classe […] deve buscar a construção de uma hierarquia de trabalho, fundada na
suposição da existência de uma escala de ‘dons e méritos’ [...]” (idem, p. 21).
Se a classe média esteve envolvida na luta antiescravista sem preocupar-se com
a melhoria das condições materiais de vida e de trabalho do negro, antes exerceu um
papel crucial na elaboração da justificativa da sua própria condição privilegiada98 (que
98 Como explica Saes (1975) “[…] os esforços de mobilidade individual ascendente dos membros destas
camadas [camadas médias] eram facilitados pelas situações oligárquicas (que encontravam prepostos à
medida para o desempenho de altos cargos políticos e burocráticos) e justificados, aos seus próprios
olhos, pela necessidade imperativa de que os mais cultos e aptos assumissem a direção da sociedade
brasileira. Eis por que foi o grande número de apadrinhados e bacharéis, egressos dos setores médios
tradicionais, a ocuparem altos cargos no legislativo, executivo e judiciário” (idem, p. 67).
193
por sua vez passa pela justificação da condição subalternizada dos negros e não de
outros grupos como os imigrantes europeus99), é preciso compreender de que forma a
conformação da ideologia meritocrática no Brasil é informada pelo racismo. E com esse
posicionamento não queremos afirmar que a estrutura de relações de produção
capitalistas seja uma mera extensão de seus antecedentes históricos, mas estamos
chamando atenção para necessidade de compreender como se fundiu classe e raça na
formação da ideologia meritocrática no Brasil.
A instalação da república e ascenção do igualitarismo abstrato articulado à
meritocracia para justificar a divisão entre dominados e dominantes é antes uma
ideologia que facilita uma transição de formas legais de desumanização dos negros para
formas dissimuladas de reprodução do racismo institucional. Isto é, perde legitimidade a
narrativa, amplamente aceita no período colonial, dos negros sem alma e, portanto,
passíveis de exploração e em seu lugar consolida-se a idéia do negro sem dons e sem
mérito na República. Tal ponto nos leva a levantar a possibilidade de que a
consolidação da ideologia meritocrática tenha profunda relação com “as novas maneiras
de legitimar as antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre
dominados e dominantes” (QUIJANO, 2005, p. 203).
Nesse sentido, em nossa análise, a recusa ao PIMESP pelos docentes da UNESP
esteve articulada ao fato do Programa fazer referência à reserva de vagas étnico-raciais.
Do total das 34 manifestações, apenas 3 fizeram críticas ao ICES pelo seu caráter racista
(mas apenas uma o nomeia como tal) e 14 estiveram contra o ICES por seu caráter
racialista. A negação de que a racialização organiza hierarquicamente a sociedade e as
relações sociais, e que dentre várias consequências, tem impedido o acesso de negros e
indígenas ao ensino superior público é um elemento central para compreender a razão
pela qual os docentes tomam antirracialismo como antirracismo. O discurso
antirracialista esteve atrelado à definição do problema de acesso como à universidade
como efeito exclusivamente da má qualidade da escola pública:
99 Gostaríamos de frisar dois pontos quanto ao estímulo à imigração européia. Em primeiro lugar que nos
primeiros anos, na transição do século XIX para o XX as idéias eugenistas ganhavam força e uma parte
considerável das camadas médias aderiu a essa corrente. Podemos citar alguns dos muitos nomes como
Júlio de Mesquita (proprietário do jornal O Estado de S. Paulo); Oliveira Vianna; Arnaldo Vieira de
Carvalho (fundador da Faculdade de Medicina em São Paulo) dentre outros que aderiram aquela corrente.
As idéias eugenistas também estiveram expressas na constituição de 1934: "Art. 138. Incumbe á União,
aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: b) estimular a educação eugênica". E em
segundo lugar é preciso ter em conta as centenas de revoltas lideradas pelos negros tanto no Brasil
(Revolta dos Malês, Conjuração baiana, Levante dos Haussás) como em outras partes da América (caso
da Revolução do Haiti), impulsionando entre as elites a construção (conveniente) de uma imagem dos
negros como insolentes e pouco afeitos ao trabalho.
194
“[...] em se tratando de obrigatoriedade da utilização de quotas, a FMVZ
[Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia] entende que para a
inclusão de alunos cotistas deve ser considerado, exclusivamente o aspecto
socioeconômico, ou seja, apenas alunos provenientes do ensino obtido por
escolas públicas, excluindo-se o caráter racial da proposta original”
(Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia. Cf.SÃO PAULO, 2013a).
“[...] a Câmara manifestou-se como segue: […] 3. Rejeitou, por 11 (onze)
votos contrários 1 (uma) abstenção, a proposta de que dentre a inclusão de
50% de alunos oriundos escolas públicas, haja reserva de vagas para pretos,
pardos e índios [...]” (Câmara Central de Graduação. Cf.SÃO PAULO,
2013a).
" [...] favorável a inclusão social por meio de cotas sociais para alunos
oriundos de escola pública e contrária à inclusão de cotas para PPI's-pretos,
pardos e índios [...]” (Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão
Universitária. Cf.SÃO PAULO, 2013a).
[...] O programa de inclusão deverá ser implementado no âmbito das
Universidades Públicas Paulistas para dar condições de ingresso no ensino
superior público de setores da sociedade que enfrentam barreiras sociais e
econômicas que impedem esse acesso. Os setores envolvidos nessa inclusão
referem-se aos alunos oriundos da escola pública no ensino médio,
independentemente de sua origem racial [...] paralelamente a esse programa,
o governo estadual deverá promover ações de recuperação do ensino
público nos níveis fundamental e médio, de modo que todos possam
concorrer em condições iguais, ingressando no ensino superior aqueles que
mais se esforçaram para esse processo de seleção [...]” (Instituto de
Geociência e Ciências Exatas/ Rio Claro. Cf.SÃO PAULO, 2013a).
As cotas sociais, para estudantes de escolas públicas, não geram o mesmo
incômodo por parte dos docentes como geram as cotas raciais, o que para nós corrobora
que a fração da classe média branca assume um posicionamento contrário às cotas
informado por raça. Ao se referirem às cotas raciais, os docentes afirmam que elas
ofereceriam perigo como “fraudes”, “carências de critérios objetivos para definição de
raças”, “criação de tensões étnicas”, “instauração de um sistema de privilégios”. Como
explicar as razões pelos quais os docentes reconheçam que há desigualdades e que se é
preciso intervir, mas negam a desigualdade gerada pela hierarquia racial? Parece-nos
que a fração da classe média alta e branca aceita que o igualitarismo abstrato e a
meritocracia podem vir a ser colocados em suspeição desde que seja para beneficiar
oriundos de escolas públicas, independente de raça, o que acaba por silenciar o racismo
institucional.
Se por um lado o ICES foi criticado (foram oito unidades que manifestaram-se
contrárias) porque teria reserva de vagas para negros e indígenas, por outro os docentes
não deixaram de notar as ‘peculiaridades’ do Instituto que de algum modo parecia
ameaçar a garantia da distinção da fração da classe média alta, ao aproximar a função da
universidade de um modelo de “mercadoria-educação” (RODRIGUES J., 2007):
195
“[...] A criação de cursos sequenciais à distância com um conjunto de
disciplinas questionáveis. A que servirão? É para a formação de mão de obra
de “segunda linha”, uma vez que o documento prevê o ingresso do aluno em
duas redes completamente distintas de escolarização, sendo uma a
Universidade, que garante a formação propedêutica e outra a Fatec, que
forma o trabalhador manual? Se o objetivo é a inclusão social, não deveriam
os conteúdos ter estreita relação com aqueles trabalhados na Educação
Básica? Trata-se de uma tentativa de recuperação dos alunos a quem está
sendo negado publicamente o acesso ao conhecimento histórico e
socialmente elaborado? [...] Com a proposta do curso – intitulado “tipo
College” – o tempo de permanência do aluno atendido pelo Programa de
Inclusão por Mérito, antes do ingresso no nível superior, seja ele na
Universidade (USP, UNESP, UNICAMP) ou na Faculdade (Fatec), será
ampliado em mais dois anos ao término do Ensino Médio, totalizando, em
média, 15 ou 16 anos, ao passo que a classe média e alta continuará a ter seus
filhos aprovados ao final do 13º ou 14º ano de estudo [...]” (Faculdade de
Ciências/Departamento de Educação. Cf.SÃO PAULO, 2013a).
“[...] Se de fato o que se pretende [segundo o PIMESP] é ‘aumentar o grau de
competitividade proveniente do ensino médio’ [...] e ‘a participação das
categorias sócio-étnicas’ por que enveredar por esse caminho [ICES]? Por
que criar dois sistemas de ensino superior diferenciados? Em lugar disso,
não seria mais producente criar mecanismos favoráveis de acesso dos alunos
da escola pública [...] sem a criação de um sistema paralelo? Outro aspecto a
ser apontado refere-se à estrutura curricular desses cursos sequenciais [...]
cabe perguntar qual é o fundamento epistemológico no qual essas disciplinas
estão ancoradas. O que se pretende com tais disciplinas? Que tipo de
formação se quer oferecer aos jovens egressos da escola pública?”
(Congregação do Instituto de Biociências. Cf.SÃO PAULO, 2013a).
“[...]Ressalta‐se que o papel da universidade é garantir uma formação
qualificada de profissionais e pesquisadores de nível superior e não intervir
diretamente na Educação Básica no sentido de promover a constituição de um
nível de ensino paralelo (entre Educação Básica e cursos de graduação) – os
Colleges –, que talvez possa impactar na manutenção da má qualidade da
educação básica oriunda de um processo de “proletarização” e
“desvalorização” do magistério público (Educação Básica) [...]” (Faculdade
de Engenharia/ Núcleo de Estudos e Práticas Pedagógicas (NEPP)-Campus
de Ilha Solteira. Cf.SÃO PAULO, 2013a).
O ICES é resultado de uma tentativa (frustrada) de agradar os “que queriam mais
e os que queriam menos”, isto é, ao mesmo tempo em que a burocracia educacional
pretendia adequar o ICES às demandas do mercado de trabalho, por outro lado, tentava-
se ajustar esse fim a outro: controle do processo sobrecertificação. Esse último, de
interesse da fração da classe média alta e branca parece não ter convencido os docentes
e dado o formato de curso sequencial, possibilitando acarretar mudanças que poderiam
pôr em risco as condições de reprodução da distinção da classe média, foi rechaçado
pelos docentes.
Outro aspecto a ser analisado foi o modo como foram colocadas às alternativas
para votação, revelando certo grau de manipulação a fim de rechaçar a possibilidade de
adoção de cota étnico-racial como podemos ver no registro da ata a seguir:
196
“Permeada pelos aspectos acima, procedeu-se a uma longa discussão, que
resultaram em três proposições votadas individualmente […] 1) Proposta do
PIMESP- Favoráveis 1, contrários 19 e abstenções 3; 2) Implementação de
um política de Cotas Sociais e Raciais, que teriam os mesmos percentuais
propostos na legislaçao federal, ou seja, 50% das vagas reservadas para os
egressos da escola pública (EP) sendo 35% delas reservadas para as etnias
preto, pardo e indígena (PPI), desde que seja explicitada a contrapartida do
governo estadual [grifo nosso], com a criação de um Fundo de permanência
estudantil digno, financiado pela Secretaria de Estado do Desenvovimento
Social e administrado pelas universidades. Votação: 17 favoráveis, 3
contrários e 2 abstenções […]3) Implementação de política de cotas raciais,
com a destinação de 35% do total das vagas para PPI e com a criação do
Fundo de Permanência Estudantil, mantido pela Universidade [grifo nosso].
Votação: favoráveis-3, contrários- 13 e 2 abstenções- 6” (Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas, . Cf.SÃO PAULO, 2013a).
Há nesse trecho um rearranjo que parece inocente e passa despercebido a
primeira vista mas que se olharmos com mais atenção, nos questionamos porque na
proposta 3 (reserva de vagas étnico- raciais) votada pelos docentes do Instituto está
atribuido apenas à UNESP os custos pela implementação do programa afirmativo,
enquanto na proposta 2 (com reserva para egressos de escola pública e dentro daquelas
vagas negros e indígenas) o “fundo de permanência estudantil digno” seria mantido pelo
governo do estado? Parece que houve na elaboração das propostas a serem votadas uma
tentativa de privilegiar as cotas sociais ao colocar a responsabilidade financeira da
reserva de vagas raciais apenas para a universidade, o que obviamente torna essa
proposta menos atraente que a número 2, na qual o governo estadual arcaria com os
custos pela implementação do programa afirmativo.
Em um documento produzido pela Câmara Central de Graduação100,
gostaríamos de destacar um trecho para refletirmos acerca da possibilidade da discussão
do PIMESP na UNESP ter sido no fundo uma disputa por conceitos divergentes de
justiça, tendo de um lado o entendimento dos docentes e de outro o entendimento dos
elaboradores do PIMESP. Vejamos o trecho do relatório produzido pela Câmara:
“Somos uma sociedade de classes que se caracteriza principalmente pelo fator
econômico resultando em divisão social e dificultando a evolução dos
indivíduos das classes menos favorecidas. No que se refere ao Ensino Superior
Público, e particularmente à Unesp, não há como deixar de notar que o alunado
tem apresentado uma composição em que predominam os originários das
classes social/economicamente mais favorecidas. Sem dúvida há uma dívida
social a ser saldada pela coletividade. Uma vez que constata esta realidade,
forçoso é adotaram-se medidas de correção da distorção” (Câmara Central de
Graduação. Cf.SÃO PAULO, 2013a)
100 A Câmara desempenhou diversas funções, desde acompanhamento e reunião das manifestações dos
docentes, até a elaboração de documentos para orientar a discussão.
197
Além do posicionamento da Câmara quanto ao recorte de classe, o trecho “Sem
dúvida há uma dívida social a ser saldada pela coletividade. Uma vez que constata esta
realidade, forçoso é adotaram-se medidas de correção da distorção” nos incita a refletir
acerca das justificativas dadas pelos docentes para adoção dos programas, fossem
afirmativos (tal qual o proposto pelo governo federal) ou inclusivos (sem um viés de
discriminação racial positiva). Válido aprofundar a discussão e buscar entender se de
fato a discussão do PIMESP também foi atravessada por justificativas diferenciadas
entre os docentes da UNESP e os proponentes do Programa de Inclusão com Mérito em
relação à forma de ampliar o acesso à Universidade. Isto é, estava em disputa conceitos
de justiça diferentes? Entendemos que sim, há, em alguma medida, uma disputa pelo
conceito de justiça, porém subjacente à dispusta pelo controle educacional, ou seja, à
reboque da busca pelo controle da expansão e não como tema central.
Retomando as justificativas para adoção de políticas de ação afirmativa
categorizadas por Feres Jr. (2005) para amalisarmos o debate na UNESP, o
entendimento de justiça dos docentes parece estar mais ancorado na idéia de justiça
distributiva na medida em que, no geral, os discursos minimizam (e por vezes, negam)
as discriminações raciais (e o peso do passado escravocrata na conformação das
desigualdades atuais), privilegiando o foco na situação de desigualdades presentes que
acometeria os estudantes de escolas públicas:
“Há uma indiscutível crise estrutural na educação básica brasileira e que é
um equívoco considerar que apenas os eventuais cotistas necessitam de um
processo de recuperação de defasagens de aprendizagem” (Congregação da
Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. Cf. SÃO PAULO,
2013a)
“A congregação observa também que a implantação de um Instituto
Comunitário de Ensino Superior- ICES, nos moldes dos Colleges, como
proposto […] não contribuiria de forma efetiva para sanar as deficiências na
formação do aluno proveniente da escola pública […] diante disso deve-se
pensar em formas de, pelo menos amenizar as deficiências de formação
apresentadas pelos alunos provenientes da escola pública” (Faculdade de
ciências e tecnologia. Cf .SÃO PAULO, 2013a).
“[…] este é o início de uma discussão ampla, pois, as formas, de
manutenção dos alunos carentes precisam ser retomadas […]” (Instituto de
Ciência e Tecnologia/Campus de São José dos Campos. Cf. SÃO PAULO,
2013a)
A “má qualidade” do ensino público é, portanto, o motivo da desigualdade de
acesso de ampla maioria da sociedade às instituições de ensino, o que exclui qualquer
conexão entre racismo e passado escravocrata. Entretanto, com essa discussão acerca da
justificativa em torno das ações afirmativas e dos entendimentos de justiça não estamos
198
afirmando que esse foi o cerne do debate e que tenha sido a razão para o rechaço da
Proposta na UNESP. Entendemos que o cerne do debate esteve mais em como chegar a
arranjos possíveis que garantissem a manutenção da hierarquia do trabalho e na medida
em que estava impossivel mantê-la intacta, os egressos da escola pública foram os
eleitos pelos docentes como beneficiários legítimos das políticas de acesso:
“Deve ser defendida uma política de cotas para ingresso nas universidades
paulistas como contribuição destas diante do caótico cenário de má
qualidade da Educação Básica pública – uma condição de`justiça social´”
(Comissão Local do Núcleo de Estudos e Práticas Pedagógicas (NEPP).
Cf.SÃO PAULO, 2013a).
“É importante a instituição da política de cotas tal como se indica na
legislação federal sobre o assunto, enquanto ação emergencial, com limites
de prazo para a sua implementação e parte de um amplo Programa de Ações
Afirmativas, estabelecendo-se o compromisso com a busca da superação de
problemas estruturais da educação brasileira […]” (Congregação da
Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília. Cf.SÃO PAULO,
2013a)
“[…] a Câmara manifestou-se como segue: […] 4. aprovou por unanimidade
a proposta de que a inclusão social para incluir alunos oriundos de escolas
públicas e permitir a justiça social ocorra por acréscimo do número de vagas
desde que haja aporte adicional de recursos” (Câmara Central de
Graduação. Cf.SÃO PAULO, 2013a).
Analisando o final do período escravocrata, Clovis Moura (1988) aponta que
além de leis postas em prática para barrar a inserção do negro em espaços que não fosse
o do trabalho manual sem assalariamento, o pseudoabolicionismo praticado já na fase
final do regime escravocrata foi também uma importante estratégia para barrar a luta
abolicionista revolucionária que os negros vinham travando. A defesa da bonificação ou
aceitação das cotas sociais nos parece ir pelo mesmo caminho, no sentido de que a
classe média branca não tem interesse em afirmar a legitimidade da reivindicação do
movimento negro a partir de um entendimento abertamente racializado para manter os
grupos raciais nos seus lugares na divisão social do trabalho.
A UNESP é composta por 21 unidades de ensino e em relação ao ICES, 8
manifestaram- se contra, duas a favor (mas desde que fosse ministrado pelo governo,
fora da Universidade) e a outras unidades sequer comentaram o Instituto, focando-se na
melhoria do ensino básico ou o pedindo mais tempo para analisar as propostas de
políticas de ação afirmativa.
A argumentação que justifica a recusa ao ICES, leva-nos a interrogar-nos se a
crítica ao Instituto e ao currículo está relacionada ao medo de uma suposta ameaça à
manutenção da hierarquização do trabalho. Isto é, a recusa aos ICES está relacionada à
199
igualização do sócio-econômica do trabalho manual e do trabalho não-manual? Ou a
recusa ao ICES poria em risco o Mito da Escola Única? Para nós, nos parece que são as
duas coisas.
O currículo do ICES e a sua explícita vinculação ao mercado de trabalho, sem
preocupação com a manutenção do prestígio social advindo do “trabalho intelectual”
confrontava diretamente a marca distintiva dos docentes em relação aos trabalhadores
manuais. Ao mesmo tempo em que o funcionamento de uma escola diferenciada em
relação às demais escolas, talvez pudesse vir a por em causa a inserção privilegiada dos
trabalhadores não-manuais na estrutura de classes já que de fato a tal melhoria na
qualidade do ensino tão mencionada pelos docentes pudesse vir a se efetivar no ICES.
Em nossa interpretação, o PIMESP foi rejeitado em parte pelos docentes da
UNESP muito mais pela ameaça em “apagar” as fronteiras que demarcam os lugares na
estrutura de classes (materializado na proposta do ICES) do que pelo caráter racista do
Programa. Assim dado o contexto no qual as políticas de ação afirmativa estavam a ser
adotadas em ritmo intenso no País, a grande mobilização do movimento negro, o
Conselho Universitário da UNESP aprovou o PIMESP, ainda que parcialmente em
2013. Avancemos para analisar o debate na UNICAMP e perceber se há de fato unidade
entre as justificativas entre uma e outra Universidade.
A UNICAMP e a rejeição ao PIMESP: a escolha pela bonificação
(PAAIS) e pela continuidade do Programa de Formação Interdisciplinar
Superior (PROFIS)
A análise do processo de avaliação da proposta do PIMESP, iniciado em 2013
na UNICAMP causa-nos, à partida, algumas inquietações pela condução centralizadora,
para dizer o mínimo, escolhido pela reitoria (e aceita pelo corpo docente). O Conselho
Universitário (CONSU) da UNICAMP conduziu de modo diferenciado a avaliação
sobre o PIMESP no que tange à participação direta dos docentes na avaliação da
Proposta.
A instituição de dois Grupos de Trabalhos (GT) pelo CONSU, o primeiro em
fevereiro de 2013 (na gestão do reitor Fernando Costa) e o segundo em maio do mesmo
ano (na gestão do reitor José Tadeu Jorge), nos leva a questionar o motivo desse tipo de
condução que se diferenciou do modo como transcorreu a avaliação da proposta do
PIMESP na USP e na UNESP, onde as unidades foram diretamente convidadas a
manifestar-se.
200
Apenas algumas poucas congregações na UNICAMP posicionaram-se acerca do
PIMESP mesmo sem serem convocadas a fazê-lo. Entramos em contato com as 24
unidades de ensino em 2015, mas apenas cinco deram retorno afirmando, ora
desconhecer a discussão sobre o assunto, ora não existir formalização do
posicionamento da Unidade sobre essa discussão ou ainda ter ocorrido à discussão, mas
sem a produção de um documento com o posicionamento final da congregação. De todo
modo, isso também é dado/informação, ou seja, diferentemente da USP e da UNESP, na
UNICAMP o processo de discussão sobre o PIMESP seguiu na direção pela
manutenção da bonificação, sem ouvir diretamente a opinião dos docentes.
Em relação a ausência de participação do corpo docente de modo geral e da
comunidade acadêmica, se por um lado parece contraditória com o discurso
reivindicado por muitos docentes no que tange a horizontalidade das decisões tomadas
na universidade, por outra, por outro lado, essa “apatia” do corpo docente era
conveniente com a manutenção das ações ditas inclusivas e que já estavam em curso na
Universidade. Cabe atentarmos para um aspecto curioso desse processo na Unicamp:
não houve nenhuma manifestação oficial ou até mesmo extraoficial dos professores
quanto à discussão não ser levada para os departamentos e os posicionamentos dos
professores serem considerados na decisão final da Universidade.
Intrigada com o fato de os docentes praticamente assistirem ao trabalho dos dois
grupos de trabalho acima mencionados e acatarem as avaliações feitas pelos referidos
GT’s que por sua vez acabaram por referendar os programas já existentes (PAAIS e
Profis), resolvi ampliar o corpus de análise, o que acarretou no resgate de alguns
documentos sobre as políticas de inclusão vigentes na UNICAMP. O resgate histórico
das políticas é uma tentativa de compreender essa diferenciação na forma da condução
da avaliação do PIMESP e suas implicações no processo de discussão sobre a ampliação
do acesso à universidade. A seguir, a análise dos programas inclusivos existentes na
UNICAMP entre os anos de 2004 e 2014.
O Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social (PAAIS)
A chegada do Partido dos Trabalhadores em 2003 ao governo federal abriu um
novo capítulo no debate nacional em torno da ampliação do acesso ao ensino superior.
A discussão sobre a constituição das Políticas de ação afirmativa com reserva de vagas
étnico-raciais marcou os primeiros anos do governo do PT. A mobilização do
movimento negro ganhava visibilidade em vários estados da federação, incluindo São
201
Paulo, pressionando as universidades estaduais paulistas a responderem a esse tema que
se inseria na agenda política nacional.
A UNICAMP foi a primeira dentre as três universidades estaduais a incluir o
debate em sua pauta e em 2003 o Conselho Universitário (CONSU) resolveu instituir
um Grupo de Trabalho que teve como principal resultado a realização de um estudo
coordenado pela Comissão do Vestibular (COMVEST) para analisar “temas relativos à
participação social” (Cf. UNICAMP, 2003).
A proposta do estudo, que parecia genérica na sua chamada, assumiu contornos
muito bem definidos na escolha dos recortes de análise a serem investigados: comparar
o coeficiente de rendimento médio ao longo do curso de graduação de todos os
ingressantes entre 1994 e 1997 com sua classificação no vestibular para verificar as
diferenças de notas entre alunos oriundos das escolas públicas e demais. O resultado do
estudo demonstrou que os estudantes que concluíram o ensino médio em escolas
públicas apresentaram um desempenho acadêmico positivo e melhor do que os demais,
como afirmou Leandro R. Tessler, um dos responsáveis pelo estudo e um dos
elaboradores da proposta do PAAIS:
“[…] O resultado desse estudo indicou que se a Unicamp de alguma forma
aumentasse o número de egressos de escolas públicas entre seus alunos, o
resultado poderia ser positivo em termos de desempenho acadêmico. Isso pode
ser entendido da seguinte forma: se dois candidatos, um egresso de escola
pública e um de escola privada empataram (tiveram pontuação semelhante) no
vestibular, se optarmos pelo que veio da escola pública teremos um melhor aluno
na Unicamp. Um mecanismo de ação afirmativa que considera prioritariamente o
mérito medido pelo vestibular pode na verdade melhorar o corpo discente da
universidade […]” (TESSLER, 2006, p. 6)
O mérito e autonomia universitária defendidos nas conclusões do estudo, estarão
também referidos na própria deliberação (CONSU-A-012/2004) que viria a instituir o
PAAIS na qual o:
“O Reitor […] considerando: O permanente e indissolúvel compromisso da
Unicamp com a autonomia universitária e o valor acadêmico; O objetivo,
desejável academicamente e socialmente justo, de se criar oportunidades para
que o corpo de estudantes reflita com a maior similitude possível, e à luz dos
valores acima afirmados, a sociedade brasileira […] Fica aprovado o
Programa de Ação Afirmativa para Inclusão Social na UNICAMP” (Cf.
UNICAMP, 2004c).
Os trechos acima evidenciam que desde a concepção, as políticas de inclusão na
UNICAMP tinha como elemento central a “preocupação” com o desempenho
acadêmico dos beneficiários daquelas políticas. Em outras palavras, já é possível
percebermos como a inclusão passa estar condicionada aos valores de mérito e
202
autonomia universitária, ficando à reboque desses valores e circunscrevendo o debate
sobre inclusão na direção oposta ao que vinha sendo debatido tanto no Brasil como em
outros países acerca da adoção de políticas afirmativas.
Merece ainda a nossa atenção o recorte dado ao estudo produzido pelo GT,
assim como as conclusões do estudo. Comecemos pelo fato do estudo não ter levado em
conta o critério étnico-racial e apenas a variável escola pública na escolha do perfil dos
estudantes selecionados para o estudo e como recomendação final no desenho da
política do que viria a ser a política de acesso:
“[…] Outra questão muito importante é sobre a cor da pele das pessoas. Está
falando a cor da pele, porque não sabe se tem que falar raça, etnia ou
descendência, cada uma dessas coisas é sujeita a vários tipos de críticas. Os
levantamentos que existem no Brasil falam da cor da pele, porque é isso que as
pessoas declaram para o IBGE, então não está falando isso com nenhum
conteúdo ideológico ou de qualquer natureza. Essa questão também foi
trabalhada e analisada pelo Grupo de Trabalho que não chegou a uma conclusão
a ponto de fazer uma recomendação ao Conselho Universitário […] A
Universidade só tem dados sobre a cor da pele dos estudantes a partir de 2003,
quando começou, por determinação do Ministério do Trabalho, um levantamento
sobre cor da pele da sua população. Houve muita oposição em toda
Universidade, várias organizações se manifestaram, trouxeram a questão ao
Conselho Universitário e à Câmara de Administração e a UNICAMP acabou por
decidir não fazer levantamentos dessa natureza, porque na época foram
classificados como de natureza racista e discriminatórios, […] Mesmo assim o
Grupo de Trabalho considerou que aquela proposição é unificadora e contou com
o apoio quase unânime […], foi a da adição de pontos para os oriundos da
escola pública, porque esta é defensável completamente, é coerente com a
cultura e as tradições da UNICAMP, e o Grupo de Trabalho considerou também
que devem realizar mais estudos que permitam incluir o tema e a característica
cor da pele nesse conjunto de ações.[…]” (Cf. UNICAMP, 2004b, p. 126-127)
A justificativa para ausência de dados étnico-raciais do corpo discente constrasta
com a realidade da política brasileira de recenseamento que inclui informações sobre o
perfil étnico-racial da população brasileira desde 1872. O argumento de que esse tipo de
levantamento é de natureza racista e discriminatória, nos remonta à justificativa dada
em diversos períodos da história brasileira pelas classes dominantes acerca dos
“perigos” do censo étnico-racial, como consta na declaração do coordenador do Censo
de 1920 a respeito da retirada categoria cor no censo de 1920:
“[...] a supressão do quesito relativo à cor explica-se pelo fato das respostas
ocultarem em grande parte a verdade, especialmente quanto aos mestiços, muito
numerosos em quase todos os estados do Brasil e, de ordinário, os mais
refratários às declarações inerentes à cor originária da raça a que pertencem”
(Brasil, 1922, p. 488-489 apud CAMARGO, 2009, p. 373).
O apelo às atitudes e práticas de dissimulação do racismo no que tange ao
silenciamento racial nos dados sobre o perfil racial da população universitária evidencia
que a escolha do CONSU em não realizar um censo sobre o perfil étnico-racial do corpo
203
é: 1) uma postura que toma o antirracialismo como antirracismo e; 2) uma escolha
política pela negação do reconhecimento de que os negros e indígenas estão fora desse
espaço. Escolhas políticas que não são novas.
No início do século XX, a justificativa da supressão do quesito cor/raça no censo
era pautada pelo branqueamento e busca pela homogeneização da população brasileira.
Na ditadura militar dos anos 60, a justificativa para omissão de dados raciais era
baseada no interesse pela disseminação do mito da democracia racial. No século XXI, a
narrativa do multiculturalismo, onde a nação brasileira é narrada como um país
vocacionado para a diversidade, parece dar o tom do debate para novamente negar o
racismo. A negação da “mancha negra”, segundo Abdias do Nascimento (2017):
“[...] reitera a erradicação da mancha negra, agora com o uso dos poderes da
magia branca ou da justiça branca. Dessa espécie de alquimia estatística resulta
outro instrumento de controle social e ideológico: o que deveria ser o espelho
de nossas relações de raça se torna apenas um travesti de realidade. E as
informações que os negros poderiam utilizar em busca de dignidade, identidade
e justiça lhes são sonegadas pelos detentores de poder. O processo tem
justificatica numa alegação de justiça social: todos são brasileiros, seja o
indivíduo negro, branco, mulato, índio ou asiático. Em verdade, em verdade,
porém a camada dominante simplesmente considera qualquer movimento de
conscientização afro-brasileira como ameaça ou agressão retaliativa. E até
mesmo se menciona que nessas ocasiões os negros estão tratando de impor ao
país uma suposta superioridade racial negra. Qualquer esforço por parte do
afro-brasileiro esbarra nesse obstáculo” (idem, p.93-94).
A supressão do quesito racial naquele contexto, ao mesmo tempo em que
dissimula a cor de quem ocupa aquele espaço, escamotea a exclusão racial daqueles que
a décadas não conseguem acessar a universidade e essa posição da Universidade nos
informa de que modo o racimo institucional opera.
Importante ainda quanto ao recorte e às conclusões do estudo realizado em 2004
na UNICAMP, atentar para o contexto no qual aquele estudo emerge, quais grupos
representa e que tipos de interesses estão em dispusta. Nesse sentido, é válido trazer o
fato de no mesmo dia em que de se deu a aprovação do PAAIS no CONSU, o
Coordenador de Pesquisa da Comissão permanente do Vestibular, Professor Renato
Pedrosa, um dos principais responsáveis pela pesquisa, escreveu um artigo intitulado
Inclusão social, cotas e autonomia universitária na Folha de São Paulo em que dizia o
seguinte sobre as políticas de ação afirmativa:
“[…] Este artigo se propõe a discutir alguns aspectos levantados pela iniciativa
do Executivo Federal […] proponho que o debate se amplie para incluir outras
formas de ações além da reserva de vagas, tão eficientes quanto esta para atingir
os mesmos objetivos, mas que preservem a autonomia das instituições
acadêmicas para decidir sobre o processo. Além disso, que garantam que não há
nenhum grupo específico da sociedade previamente excluído de disputar parte
204
das vagas do sistema universitário público, como o sistema de reserva de vagas
impõe […]” (Cf. PEDROSA, 2004).
Longe de propormos qualquer coisa que se aproxime do individualismo
metodológico, ao fazermos referência ao manifesto de um dos atores institucionais e dos
principais envolvidos no debate sobre políticas de inclusão na UNICAMP, nossa
intenção é evidenciar como as ações da fração da classe média alta e branca foram
direcionadas e estiveram mobilizadas no contexto de debate sobre as cotas para a
disseminação de uma narrativa que opunha cotas a automomia universitária e como essa
última deveria ser priorizada em qualquer debate sobre aquele tema. Nesse sentido
analisar o artigo (manifesto) do referido pesquisador permite que o discurso seja
abordado a partir de uma perspectiva relacional entre a (re)produção de estruturas
discursivas e como elas respondem a interesses de grupos, instituições, e estão
atrevessadas por relações de poder (VAN DIJK, 2006).
A narrativa da autonomia universitária como elemento que condiciona as ações
da universidade- inclusive na formulação de uma política inclusiva, por um lado, busca
legitimar o descomprometimento com qualquer ação que esteja fora do projeto político
daquela fração da classe média. E por outro lado, a garantia da autonomia é narrada
como indicativo do respeito à democracia, apelando a sociedade a apoiar, pois apenas
por meio dela é que a sociedade poderá garantir sua participação nas decisões, como
parece sugerir as palavras do Professor Renato Pedrosa, ao afirmar que “[…] este é o
momento para que a sociedade em geral, além das várias esferas do Estado, atente com
cuidado para a questão, buscando, caso existam, alternativas à reserva numérica de
vagas, as chamadas cotas. […]” (Cf. PEDROSA, 2004).
A partir dos resultados do estudo realizado em 2004, o Grupo de Trabalho
considerou que seria adequado que a UNICAMP priorizasse, nos programas inclusivos,
estudantes oriundos de escolas públicas e propôs uma adição de 30 pontos na Nota
Padrão de Opção do Vestibular para estudantes com aquele perfil, pois:
“[…] considerou esta estratégia bastante adequada, porque está coerente com três
valores muito importantes para a comunidade da UNICAMP: 1) autonomia,
seguidamente defendida, que pressupõe uma parte importante do seu exercício
para se selecionar os estudantes que vão cursar os cursos da UNICAMP; 2) valor
acadêmico, qualificação e mérito, que é completamente respeitado nessa
proposição e nesta estratégia, aliás, uma descoberta bastante original, porque o
Brasil inteiro pensa que ao se fazer mais inclusão nas universidades públicas
brasileiras necessariamente deverá conviver com uma perda de qualidade dos
estudantes admitidos. O que a UNICAMP está demonstrando é que não podem
generalizar isso para outras instituições, cada uma deverá fazer seus estudos, mas
no caso da UNICAMP, está demonstrado com muita certeza que esta ação de
inclusão levará também a uma melhora da qualidade acadêmica do corpo
205
discente da UNICAMP; e 3) valor desse objetivo permanente da UNICAMP de
realizar ações que elevem a inclusão social e a diversidade em todos os seus
cursos. Então, a UNICAMP está fazendo uma proposição que alia o valor
acadêmico à inclusão, ao contrário do que o Brasil inteiro está pensando sobre
essa questão […]” (Cf. UNICAMP, 2004b, p. 125)
O Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social da Unicamp – PAAIS – foi
instituído em maio de 2004, por deliberação do Conselho Universitário da Unicamp,
sendo aprovada por maioria (62 votos a favor e 2 abstenções). O PAAIS constituia-se de
duas iniciativas, visando estimular o ingresso para estudantes da rede pública do Ensino
Médio: 1) Programa de isenção das taxas do vestibular; 2) Programa de bônus de pontos
para os candidatos na nota final do Vestibular.
Consideramos oportuna uma análise do texto que estabeleceu o Programa:
“[…] Os estudos estatísticos detalhados, realizados pela Comissão do
Vestibular, Comvest, que mostraram que para candidatos com notas
semelhantes no vestibular, aqueles oriundos do ensino médio público
apresentaram desempenho acadêmico superior ao daqueles oriundos do ensino
médio privado; Que é objetivo acadêmico da universidade oferecer
oportunidades àqueles candidatos que demonstrem a maior capacitação para
os níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística; Que a
Constituição Brasileira estabelece, em seu Artigo 208, inciso V que: "o acesso
aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a
capacidade de cada um"; Que, à luz dos resultados dos estudos
supramencionados, fica claro que para a correta e precisa avaliação da
capacidade acadêmica dos candidatos é essencial complementar a informação
trazida pela nota obtida pelo candidato no exame vestibular com informações
sobre a natureza administrativa da escola na qual cursou o ensino médio; Que
os supramencionados estudos demonstraram que ao se acrescentar até trinta
pontos às Notas Padronizadas de Opção (NPOs) de candidatos oriundos de
escola pública, a nota final obtida por estes refletirá mais precisamente sua
capacidade acadêmica e de desenvolvimento intelectual; e Que a Unicamp vem
desenvolvendo ações que visam o melhoramento da escola pública, baixa a
seguinte deliberação: Artigo 1º - Fica aprovado o Programa de Ação Afirmativa
para Inclusão Social na UNICAMP” (UNICAMP, 2004c)
É preciso fazer algum esforço para compreender, mediante o documento de
criação do Orograma, em que medida as justificativas para a criação e escolha do
formato do PAAIS dialogam com as justificações políticas e jurídicas mais correntes
para adoção de políticas de ação afirmativa, a saber, reparação, justiça distributiva e
diversidade (FERES JR., 2005). Ao lermos o documento de fundamentação do referido
Programa, a busca pelo ampliação do acesso ao ensino superior para grupos
historicamente discriminados, sofre tamanho esvaziamento que a ação afirmativa que o
PAAIS carrega no nome parece mais referir-se a afirmação da meritocracia em si
mesma como fim primeiro do Programa.
206
É possível considerar, com algum esforço, que dada à preocupação com o
egresso de escola pública e a preocupação em propiciar inclusão (com mérito), as
justificativas que embasariam o PAAIS estariam relacionadas à justiça distributiva e à
diversidade, com ênfase nessa última. Recrutar os “melhores” desde que os docentes
mantivessem o controle desse processo de gestão da diversidade sem interferências e
isso só seria possível recorrendo à defesa da autonomia universitária como prioridade.
Nesse aspecto reside, em nossa análise, o ponto chave da operacionalização do racismo
institucional: quem determina o modo como serão selecionados os candidatos? A
negação da reserva de vagas étnico-raciais e a supervalorização do egresso de escola
pública parecem responder à questão.
A defesa do vestibular se insere nesse contexto como mecanismo que ao mesmo
tempo em que ‘recrutaria os melhores’, legitimaria a meritocracia “supostamente”
vigente no aparelho educacional:
“[…] Não violamos os princípios de mérito acadêmico porque não temos cotas.
Nós simplesmente tratamos de uma forma diferente os egressos de escola
pública, não reservamos vaga pra [sic] ninguém […] Apesar de ser um
programa de ação afirmativa, não abrimos mão de uma seleção que leve em
conta o mérito. E nós confiamos muito no nosso vestibular. Nós achamos que o
nosso vestibular – o que não é regra para todos os vestibulares – é um bom
avaliador de mérito” […] (Leandro Russovski Tessler, ex- coordenador-
executivo da Comissão Permanente do Vestibular da Universidade de
Campinas. Cf. AGÊNCIA, 2007).
O trecho supracitado choca-nos (ou deveria chocar-nos) não apenas pela total
ausência de questionamentos acerca do caráter excludente do vestibular, mas pela
própria valorização e crença absoluta desse tipo de mecanismo como avaliador eficaz na
aferição de capacidade intelectual dos candidatos.
A aprovação do PAAIS pode ser lida como uma evidência acerca do consenso
do corpo docente sobre o entendimento do que deveriam ser as políticas de inclusão na
universidade e quem deveria ser o público beneficiário:
“[…] O que foi proposto permitirá manter e até melhorar o nível dos alunos
que serão selecionados pelo vestibular […] É muito diferente do sistema de
cotas, que reserva vagas independentemente da qualificação, podendo
colocar em risco o valor acadêmico que deve basear a atuação da
universidade […]” (Tadeu Jorge, à época vice-reitor e coordenador do
Grupo de Trabalho encarregado de elaborar a proposta. Cf. LEVY, 2004).
“[…] é perfeitamente possível aliar inclusão com valor acadêmico desde que
não haja interferências externas e estranhas ao mundo acadêmico, como a
invenção das tais cotas, que o governo quer impor de cima pra baixo na
reforma universitária, ao invés de estabelecer objetivos e metas e deixar que
as universidades usem a sua inteligência, a sua capacidade de pensar e de
entender o ambiente no qual estão inseridas para criar soluções como essa
[programa de bonificação] que a UNICAMP criou” (Carlos Henrique de
207
Brito Cruz, ex-reitor da UNICAMP e reitor que liderou a criação do
programa de bonificação da UNICAMP. Cf. SERVIÇO, 2005).
O PAAIS, em sua concepção original, atribuía 30 pontos adicionais apenas na
nota da segunda fase do vestibular para candidatos que cursassem todo o Ensino Médio
em escola pública porém os resultados do estudo de avaliação de impacto do Programa
realizado pela Comvest em 2006, apontavam para os limites em termos de inclusão de
pobres mas principalmente de negros e indígenas já no segundo ano de vigência do
PAAIS. Em 2005, ocorreu um aumento em relação a 2004 no número de aprovados
provenientes do ensino público, passando de 31,4% em 2004 para 34,1% em 2005, mas
em 2006 o número declinou para 31,3%. Avaliações posteriores mostraram que esse
declínio seguiu e em 2010 o número de estudantes aprovados do ensino público era de
apenas 29,4% (FERES JR. et al, 2013a), longe dos 50% estabelecidos como meta pelo
Programa.
Dados de 2006 apontavam que além desse declínio no número de vestibulandos
provenientes da rede pública de ensino, a porcentagem de negros e indígenas que
adentraram na Unicamp e inscritos no PAAIS, praticamente manteve-se estagnado ao
longo dos anos: de 14% em 2004 para 19,2% em 2005 e depois para 17,6% em 2006
(FERES JR. et al, 2013a). Ainda assim, mesmo diante da ineficiência do Programa, a
defesa do mérito seguia sendo a preocupação central dos representantes institucionais:
“[...] o importante nessa nossa discussão é que as três universidades aqui
representadas [UNESP, UNICAMP e USP] hoje são vanguarda no Brasil,
são as melhores universidades do Brasil, juntamente com outras
universidades federais elas são importantes para o desenvolvimento do país.
E por que elas são as melhores do país? Porque elas têm os melhores
professores e os melhores alunos, elas conseguem atrair os melhores alunos.
Então o mérito desses alunos que entram nessas três universidades [UNESP,
UNICAMP E USP] é muito grande e isso é importante que seja preservado
[…] (Fernando Costa, à época reitor da UNICAMP e um dos elaboradores
da proposta. Cf. ENSINO Superior Especial, 2013).
Em 2013, com o debate gerado pelo PIMESP, ocorreu uma reforma no PAAIS a
fim de salvar o modelo de bonificação e melhorar os seus resultados. Nas reformulações
modificou-se o valor do bônus para o Vestibular 2014, dobrando a bonificação de 30
para 60 pontos na nota final de candidatos da rede pública de ensino e de 40 para 80
pontos para aqueles que, além de terem cursado ensino médio público, se
autodeclarassem pretos, pardos ou indígenas. Em março de 2014, o então reitor José
Tadeu Costa, anunciava na mídia os impactos dessa mudança, tidos pela reitoria como
expressivos no que tange às metas de inclusão propostas pela Universidade:
208
“[…] Podemos comprovar estatisticamente que o PAAIS sustenta os níveis
de excelência da Unicamp, ao mesmo tempo em que promove a inclusão
[…] É importante ressaltar que o PAAIS é um programa flexível, que
poderá ser ajustado nos próximos anos, com a segurança de que não vai
piorar o desempenho nos cursos de graduação da Unicamp. Ao contrário de
uma solução fácil como a das cotas, temos uma metodologia bastante
adequada” (Cf. SANGION, 2014).
De fato, as alterações no PAAIS causaram modificações no perfil dos
ingressantes com aumento do percentual de alunos que cursaram o ensino médio
integralmente em escolas públicas. Ao olharmos para os cinco cursos mais concorridos
(Medicina, Arquitetura e Urbanismo, Engenharia Civil, Midialogia e Engenharia
Química), a presença de estudantes de escola pública aprovados saiu de 14,5%, 3,3%,
12,35%, 16,67% e 16,67% respectivamente em 2013 para 33,3%, 31%, 31,65%, 30% e
23,7% em 2014 (Cf. SANGION, 2014). Entretanto, a meta estabelecida dos 50% de
ingressantes de escolas públicas não foi alcançada mesmo com as modificações. E no
caso das metas para os alunos negros e indígenas (35%) os resultados foram bastante
tímidos. Para os mesmos cinco cursos mais concorridos, a porcentagem de estudantes
negros e indígenas saiu de 7,4%, 10,3%,10,1%, 6,7% e 3,4% em 2013 para 9,2%,
10,3%, 8,8%, 13,3% e 22% em 2014.
Ao analisarmos os impactos no número de estudantes advindos de escola
pública que adentraram na UNICAMP desde a criação do PAAIS, o referido Programa
parece não ter modificado significamente o perfil de classe (e menos ainda de raça) dos
ingressantes. Tal fato pode estar relacionado ao desenho do Programa que não
considerava critérios de renda e raça, o que implica que estudantes egressos de escolas
públicas com renda média e alta (e brancos), mas que tenham vindo de escolas
renomadas foram diretamente beneficiados pelo aumento na bonificação. O PAAIS
segue sendo disseminado como programa inédito no país que conseguiu aliar “mérito e
inclusão” mesmo não incluindo negros e indígenas.
O Programa de Formação Interdisciplinar Superior (Profis)
Na esteira da lógica de inclusão concebida pela UNICAMP, isto é, que vinha
priorizando autonomia universitária, mérito e o foco no estudante de escola pública, o
Profis foi proposto e aprovado pelo CONSU em 2010 em sessão extraordinária,
passando a entrar em vigor a partir de 2011. Tem como formato um curso sequencial
profissionalizante cujo objetivo seria:
“[...] buscar alunos com mérito. Então a UNICAMP fez um programa
piloto em que ela escolhia ou dava a oportunidade de ingressar na
209
universidade os melhores alunos das escolas públicas de Campinas [...] e na
UNICAMP ele tinha a oportunidade de fazer um curso superior mas geral
que dava uma formação ampla [entrevistador interrompe: você certifica esse
curso?] certifico. Ele tem um diploma de nível superior e a UNICAMP
garantia aquele estudante [...] uma vaga no curso regular da Universidade
em medicina ou engenharia, dependendo do desempenho durante esses dois
anos e esse programa tem dois anos” (Fernando Costa, à época reitor da
UNICAMP e um dos elaboradores do PIMESP. ENSINO Superior Especial,
2013).
Segundo o Relatório preliminar da Pró-Reitoria de Graduação (UNICAMP,
2014), o Profis diferenciava-se do que vinha sendo adotado por outras universidades (o
relatório não menciona quais) porque permitiria “acesso a cursos de nível superior
(graduação); e isso com caráter de inclusão social decorrente do modelo de
recrutamento dos alunos para integrarem seu corpo discente, selecionados com base no
desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e exclusivamente de
escolas públicas de Campinas” (Idem, p.1). A seguir, abordaremos a justificativa para a
criação do Programa, a escolha pelo modelo e por fim os desdobramentos desse tipo de
política no que tange à ampliação do acesso à universidade.
Segundo os documentos de avaliação do PROFIS, as razões que levaram a
criação do referido Programa em 2010 estariam relacionadas à:
“seria a capacidade de aliar inclusão social com mérito”, com foco nos
estudantes de escolas públicas tendo em conta que as desigualdades de acesso
ao ensino superior “[...] envolve a qualidade da preparação no Ensino
Fundamental e ensino médio, a renda familiar e o nível de escolaridade dos
pais [...] estas variáveis aparecem associadas (baixa qualidade da preparação
na educação básica, com baixa renda familiar e pais com menor nível de
escolaridade)” (Cf. CARNEIRO A.M. et al, 2012, p. 23).
O apelo à renda e a escola pública como justificativa para criação do programa
em um primeiro momento parece estar relacionada com uma preocupação da ordem da
justiça distributiva, entretanto avancemos na análise dos objetivos da formação
oferecida pelo PROFIS a fim de para verificar essa hipótese:
“[...] formação busca cobrir o conhecimento básico do mundo natural, social
e artístico, oferecendo disciplinas básicas para desenvolver habilidades como
solucionar problemas de forma cooperativa, comunicação, raciocínio lógico e
pesquisa quantitativa e qualitativa. Busca também a formação de cidadãos
críticos e a preparação para o mundo do trabalho no sentido do
desenvolvimento das habilidades necessárias para qualquer formação
profissional” (Idem, p. 25).
O modelo do PROFIS é baseado em um curso que dura dois anos com matérias
das áreas de ciências humanas, biológicas, exatas e tecnológicas e o objetivo desse tipo
210
de formação seria capacitação “para exercer as mais distintas profissões”, além
obviamente, como não podia deixar de ser, oferecer “uma visão integrada do mundo”.
“[...] a ampliação de conhecimentos nas áreas acadêmicas desenvolvidas nas
Ciências Humanas e da Natureza, com abordagem de problemas científicos
de modo integrado e a compreensão da ciência como um modo de olhar o
mundo; nas áreas de Artes e Ciências Humanas, incluindo aspectos estéticos,
possibilitando participação ativa no processo de apreciação e de criação
nessas áreas; desenvolvimento de conhecimento de métodos de pesquisa
quantitativos e qualitativos; compreensão das relações do conhecimento com
o mundo do trabalho, visando uma definição mais segura do campo
profissional futuro; e, finalmente, compreensão de si mesmo como membro
de uma sociedade diversificada, globalizada e em constante mudança.”
(Ibidem)
Soa-nos familiar. O flerte com o mundo do trabalho, a ênfase na capacitação
profissional (mas que como veremos, apenas aparente), o apelo a uma formação
humanista, expressa sem nenhum constrangimento no objetivo da política e no
entusiasmo dos docentes envolvidos na proposta pela capacidade do programa em
ofertar aos alunos selecionados “a cultura de primeira a que finalmente têm acesso”101.
“O diferencial” da política não passou despercebido pela burocracia educacional
paulista e em 2012, o PIMESP lançaria o ICES tendo no Profis sua inspiração.
Segundo um dos idealizadores, Marcelo Knobel, à época da aprovação, pró-
reitor de Graduação e idealizador do programa, “o ProFIS constitui uma iniciativa
inédita para selecionar alunos que eram excluídos ou tinham chance reduzida no sistema
tradicional de seleção, sem abdicar do mérito acadêmico” (JORNAL da UNICAMP,
2013).
De fato, os resultados da avaliação realizada com a primeira turma do Profis em
2011 (Cf. CARNEIRO A. M. et al, 2012) pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas
(núcleo responsável pelo acompanhamento do Programa), do total de inscritos (731) na
primeira turma do Profis, 237 inscreveu-se para o vestibular da UNICAMP, mas apenas
27 conseguiram passar pelo vestibular. Ainda assim, gostaríamos de destacar o
silenciamento na fala do então Pró-reitor e superestimado no Relatório de Avaliação do
primeiro ano do Profis no que diz respeito aos reais motivos pelos quais esses jovens
são excluídos e por quais razões não almejam a entrada na universidade, tendo em vista
a diferença entre os inscritos no Profis e os estudantes que prestaram o vestibular. Além
do conhecimento sobre a dificuldade de adentrar na Universidade via vestibular, as
101 Marcelo Knobel, à época pró-reitor de Graduação e um dos criadores do Programa em entrevista ao
Portal Ig em 28 de maio de 2011. Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/eles-nao-prestaram-vestibular-mas-entraram-na-unicamp/n1596980560046.html. Acesso: 10 mai. 2015.
211
condições materiais de vida desses jovens condiciona a escolha por cursos como o
Profis, como assinala César Barros (2007):
“[...] os custos indiretos da escolarização fazem com que os pais relativizem a
importância da trajetória escolar para além da alfabetização e de noções
matemáticas, necessárias para a entrada no mercado de trabalho. Tais custos
indiretos de escolarização seriam os possíveis incrementos na renda familiar
que deixam de ser obtidos com a manutenção dos filhos na escola. Este
posicionamento vai gerar um determinado conformismo em relação à
impossibilidade da trajetória escolar mais longa, eventual para esta classe, e
uma valorização da formação direta na atividade profissional (Idem, p. 89)
Não é coincidência que o ProFis ainda que não tivesse critério racial nos seus
quesitos apresentasse em 2013 um nível de inclusão racial acima da média dos outros
programas da UNICAMP: em 2013, 40% dos alunos eram negros, “percentual 2,7 vezes
superior ao percentual de matriculados através do vestibular e ligeiramente acima da
distribuição de raça/cor da população de 18 a 24 anos do Estado de São Paulo”
(CARNEIRO A. M. et al, 2012, p. 27). Além disso, “77% dos matriculados do ProFis
são a primeira geração no ensino superior em suas famílias, em comparação aos cerca
de 46% dos matriculados via vestibular” (CARNEIRO A. M. et al, 2012, p. 27). Esses
dados poderiam gerar alguma expectativa mas se mediante a condição de ignorarmos o
formato do Programa: curso sequencial, sem acesso direto a Universidade. Tal formato
parece indicar uma preocupação de fundo dos docentes com o controle da
sobrecertificação.
A justificativa para a escolha do modelo de curso sequencial profissionalizante é
assim definida no Relatório de Avaliação do ProFis (UNICAMP, 2013):
“[...] Além disso, a notória insegurança na escolha profissional pelos estudantes
concluintes do ensino médio pode ser bastante reduzida ao longo dos dois anos
previstos para a integralização em fase do ProFIS pois, além da formação
superior diversificada, o convívio com a realidade do ambiente universitário e o
contato próximo com os cursos de graduação oferecidos na Unicamp são
importantes fatores contribuintes para tal” (UNICAMP, 2013, p.2).
A mistificação em torno dos reais motivos de criação do Profis além de
escamotearem as razões da “insegurança profissional” dos estudantes relacionada à
própria condição de classe e raça dos estudantes, dissimula, por um lado, a busca pelo
controle no caesso à universidade e por outro evidencia a lógica integracionista
neoliberal do Programa, expressa nos objetivos voltados para:
“[...] capacidades de ler, escrever, lidar com números, saber pensar e resolver
problemas, trabalhar em grupo etc, e apoia a escolha da formação profissional e a
formação de cidadãos críticos e preocupados com uma sociedade mais justa [...]
os estudos sobre o acesso à educação superior mostram, como impactos, que os
egressos do ensino superior são mais propensos a ser mais felizes, saudáveis e
democraticamente tolerantes; menos probabilidade de atividade criminosa; maior
212
participação em eleições e inclinação para trabalho voluntário” (CARNEIRO A.
M. et al, 2012, p. 23).
Salta aos olhos nos trechos acima a inversão da resposta ao problema do caráter
racista e elitista das universidades públicas. Não esqueçamos que esses jovens já tinham
cursado o ensino básico, já tinham realizado o Exame Nacional do Ensino Médio e
ainda assim o que lhes é ofertado enquanto currículo pelo ProFis parece mais um
programa para as séries iniciais do ensino básico sem mencionar o viés descaradamente
essencialista na forma como os elaboradores do Programa concebem os jovens
beneficiários. Entretanto, a justificativa para o currículo provém da constatação (?) das;
“[...] deficiências de formação, fruto da degradação da educação básica (Castro,
2011). Com a expansão das matrículas do ensino superior, esse nível de ensino
tem recebido alunos com formação insuficiente sem base sólida. Dessa forma, as
IES se veem frente ao desafio de oferecer o reforço de habilidades que deveriam
ter sido desenvolvidas nos níveis anteriores de escolaridade, o que pode ser feito
com os programas de educação geral” (CARNEIRO A. M. et al, 2012, p. 31).
Apesar de fazer uma afirmação que tem desdobramentos importantes para a
avaliação séria de qualquer política pública, o artigo que faz o balanço do primeiro ano
do Profis, cita apenas uma única referência-Castro, 2011 para balizar a afirmação
quanto à suposta deficiência dos alunos ingressantes no contexto de ampliação do
acesso à universidade. Na referência102 citada no artigo não encontramos menção a
qualquer estudo de caso que comprove a deficiência dos ingressantes e nem tampouco
encontramos no artigo evidências baseadas em dados factíveis acerca da relação entre
expansão de acesso ao ensino superior e aumento do ingresso de estudantes com
deficiências na formação básica.
Se não estaria baseada em evidências e estudos científicos de avaliação de
impacto quanto à relação mencionada entre políticas inclusivas e insuficiência dos
beneficiários, baseado em quais evidências o Núcleo responsável pela avaliação do
Profis reafirma essa associação? A ideologia meritocrática responde em parte a
pergunta, mas não poderíamos deixar de chamar atenção para o caráter essencialista que
dá o tom acerca do imaginário sobre os ingressantes que por sua vez são definidos como
deficientes.
O estudo da avaliação do primeiro ano do Profis afirma que “[...] além da
adaptação do conteúdo, os professores adaptaram também a linguagem habitualmente
102CASTRO, Claudio de Moura. Educar para o ofício ou educar para mudar de ofício? Ensino Superior
Unicamp, ano 2, n.3, junho 2011, p.20-39. Disponível em:
https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/educar-para-o-oficio-ou-educar-para-mudar-de-
oficioij. Acesso em 26 de março de 2014.
213
utilizada em sala de aula porque os alunos do ProFis demonstraram não ter
familiaridade com determinados termos e vocabulário” (CARNEIRO et al, 2012, p. 33)
mas que mesmo assim a avaliação é positiva porque “todos os professores comentaram
que os alunos evoluíram ao longo das disciplinas, inclusive com a constatação de saltos
ao longo da convivência e imersão no cotidiano das atividades acadêmicas” (Idem, p.
35). Sobre esse trecho, há uma série de reflexões que poderíamos fazer mas gostaríamos
de destacar três.
Em primeiro lugar o relatório não especifica quais seriam os “termos e
vocabulários” que os alunos do ProFis não tinham familiaridade. Seriam termos
específicos das disciplinas ou do cotidiano? E sendo do cotidiano, cotidiano de quem?
Em segundo lugar, qual é o parâmetro que leva a conclusão de que as dificuldades que
os jovens do Profis enfretam são exclusivas a esse grupo? Temos avaliações de
acompanhamento dos jovens que entram pelo vestibular tradicional que indique que já
nos primeiros dias de curso eles têm domínio do tal vocabulário exigido?
A avaliação feita pelo NEPP parece induzir a uma especificidade do perfil dos
jovens ingressantes no Profis que ao mesmo tempo em que justifica a própria existência
do Programa, também narra esses jovens como incapazes, sem habilidades. Ainda que
os docentes tenham mobilizado de forma mais intensa a ideologia meritocrática para
fazer frente aos programas de ação afirmativa, em nosso entendimento, em alguns
momentos os discursos deixam escapar a reivindicação da ideologia do dom
(BOURDIEU, 1982), evidenciando os contornos da lógica integracionista das políticas
de inclusão defendidas pela fração da classe média alta e branca na medida em que se
cria uma narrativa que esvazia a capacidade e a dignidade dos sujeitos destinatários
desse tipo de política, elaborada a partir de uma lógica neoliberal de integração.
Os sujeitos são vistos e narrados como incompletos. Essa escancarada
desumanização da população pobre, negra e indígena nos remonta à afirmação de
Carlos Hasembalg (1979) acerca de como a perpetuação da condição social
subalternizada da população negra não deve ser procurada “ […] na organização social
[sociedade escravocrata] destruída noventa anos atrás (ou nos supostos “defeitos” das
vítimas)” mas sim “nas práticas racistas e discriminatórias no período posterior à
abolição” (Idem, p. 16). Além disso, a “evolução” e a menção à “convivência e imersão
no cotidiano das atividades acadêmicas” parece querer forjar uma integração mesmo
que os alunos do ProFis não fossem de fato estudantes universitários. Nesse sentido, de
que tipo de “imersão no cotidiano das atividades acadêmicas” estamos falando?
214
A escolha pelo modelo de curso sequencial profissionalizante, apesar de flertar
com certo paternalismo ao definir como objetivo do programa um meio de contribuir
“para uma definição mais segura do campo profissional futuro; e, finalmente,
compreensão de si como membro de uma sociedade diversificada,” se olharmos para o
currículo, onde consta apenas uma disciplina referente às “profissões” nos perguntamos
quais seriam os reais objetivos do Programa:
Figura 1: Disciplinas da Grade Curricular do Profis
Fonte: UNICAMP, 2013.
A profissionalização parece ser mais uma fraseologia para atrair os jovens do
que de fato se faz presente na grade curricular do curso. O próprio NEPP, ao avaliar os
objetivos do currículo e a proposta de formação geral do currículo, aponta para a
existência de um “paradoxo” (apenas aparente, em nossa análise) entre:
“[a necessidade de] dar aos graduados uma base mais ampla de conhecimentos e
habilidades que permita ajuste rápido às novas ocupações. [e] oferecer o reforço
de habilidades que deveriam ter sido desenvolvidas nos níveis anteriores de
escolaridade, o que pode ser feito com os programas de educação geral. Não há
215
uma definição consensual do termo formação geral, mas este pode ser entendido
como a parte comum do currículo que é oferecida a todos os estudantes como
aspecto prévio e primordial do desenvolvimento intelectual, que os prepara para
ações cívicas e para a aquisição das competências profissionais, sendo também
necessária para uma vida de contínua aprendizagem, por oferecer uma
formação conceitual, e não prática utilitarista” (CARNEIRO A. M. et al, 2012,
p. 31).
Os elaboradores do Profis parecem ter feito a opção por uma “formação geral”
que contradiz a tal promessa de profissionalização do Programa e talvez isso explique,
em parte, a diferença entre os que se matricularam e os que concluíram o curso no
primeiro ano do ProFis.
Dados de 2011 apontam para a existência de uma diferença significativa entre os
alunos que iniciam o curso e os que conseguem terminá-lo com uma vaga na
Universidade: dos 120 ingressantes, 53 conseguiram, ao fim de dois anos, ingressar em
um curso na UNICAMP. A taxa de evasão também evidencia o desenho equivocado
dessa política que em 2011, teve de 28% do total de ingressantes desistindo do
Programa. Entretanto, em relação a esses dados, os avaliadores do Programa interpretam
como algo supostamente “natural” já que o valor é “ semelhante ao observado para os
cursos de graduação da Unicamp em 2011 (25% nos cursos diurnos e 33% nos cursos
noturnos) e a desistência pode ser explicada pela carga horária total do curso (1755
horas)” (UNICAMP, 2013).
A equiparação da situação da desistência entre os alunos do Profis e os
estudantes universitários, para nós, é uma tentativa de escamotear o equívoco do
desenho do ProFis. A menção à situação dos estudantes universitários parece querer
equiparar a condição dos dois grupos distintos (os alunos do Profis não estão
matriculados em um curso de graduação), ocultando que o curso sequencial levava à
desistência do Programa. Quando os ingressantes no Programa conseguem concluir não
saem com um diploma, mas com um “Certificado de conclusão de curso sequencial de
ensino superior”, tenha lá o peso que essa certificação tenha no mercado de trabalho.
Retornando ao problema da desistência, a “carga horária alta, com uma média de
29,25 créditos por semestre” como reconhecem os próprios idealizadores e avaliadores
do Programa (CARNEIRO A. M. et al, 2012, p. 29), pode ser uma das razões pelas
quais os estudantes desistem tendo em vista que, como apontado na pesquisa realizada
pelo NEPP, 54,8% dos jovens matriculados no Profis tinha como motivação a entrada
no mercado de trabalho e isso implica dizer que muitos dentre eles talvez tivessem que
trabalhar para manter-se estudando. Nesse sentido, concluir um curso integral de dois
216
anos, como era o formato do Profis, não era uma realidade possível para muitos dos
jovens ingressantes tendo em vista que eles tinham uma renda familiar per capita 3,6
vezes menor que a renda média da população de 18 a 24 anos do Estado de São Paulo
com acesso ao ensino superior (idem, p. 33).
A avaliação do primeiro ano do Profis apresenta dados sobre o interesse dos
jovens pelo Programa: para 59% dos matriculados, o principal interesse era “o
currículo de formação geral” (CARNEIRO A. M. et al, 2012, p. 29) mas ainda assim
existiam outros 41% que não tinham interesse nessa formação mais geral e
presumimos que tinham interesse em acessar à universidade, já que era esse uma das
promessas do Programa.
O último ponto em relação aos desdobramentos do Profis é quanto à orientação
profissional que o Programa se propunha a fazer e talvez nesse ponto resida à
dissimulação para controlar e bloquear o acesso dos jovens pobres e negros se não à
Universidade ou pelo menos a alguns cursos. Os dados trazidos no artigo “Formação
interdisciplinar e inclusão social – o primeiro ano do ProFIS” (2012) acerca da escolha
profissional dos jovens inscritos no Programa levantam alguns questionamentos quanto
à “orientação profissional” prometida. Vejamos:
“[...] Em relação à opção de curso apontada inicialmente no questionário da
matrícula, 49% dos alunos mudaram a opção de cursos para outra grande área do
conhecimento. Essa migração pode reforçar que o ProFIS realmente tem
contribuído para a definição vocacional de seus alunos. Ou pode ser uma
adequação à real oferta de vagas ou até mesmo uma adequação frente ao
desempenho (bom ou ruim) em disciplinas específicas, o que precisamos
investigar melhor” (CARNEIRO A. M. et al, 2012, p. 30).
No mesmo artigo, encontramos que dentre os objetivos dos jovens que
ingressaram no Profis, apenas 13% dentre eles escolheram o Profis pela sua promessa
de “apoio na escolha da carreira” (Idem, p. 29), o que em nossa leitura implica dizer que
os jovens já sabiam a profissão e, portanto o curso que gostariam de frequentar na
Universidade. Então o que explicaria que ao final do curso, 49% dos jovens tenham
mudado sua escolha profissional? Em nossa leitura, “o apoio na escolha da carreira” é
na realidade a forma dissimulada de bloquear o acesso dos jovens a cursos mais
“nobres”, ceifando o desejo deles de escolher livremente a carreira profissional e os
mantendo assim longe de alguns cursos. Como analisou Bourdieu (1982):
“[...] Segue-se que os alunos das classes populares pagam sua admissão no ensino
secundário pela sua relegação a instituições e carreiras escolares que, como se
fossem armadilhas, os atraem pela falsa aparência de uma homogeneidade de
fachada para encerrá-los num destino escolar mutilado” (p.168).
217
O Profis, como dissemos, inspirou o PIMESP, mas esse último não foi
implantado na UNICAMP mesmo com uma lógica muito similar ao primeiro programa.
Então como explicar que um tenha sido aceito pelo Conselho Universitário e o outro
não? Em nossa análise, além do impacto da grande mobilização do movimento negro e
do movimento estudantil, denunciando o caráter racista do PIMESP, entendemos que o
Profis já estava a assegurar o controle da sobrecertificação, dispensando a necessidade
de implantar o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior público paulista e
evitando assim a instauração de um conflito entre a burocracia educacional, docentes e o
movimento negro, ainda que tenha conseguido apenas momentaneamente.103 Nesse
sentido, dada que já existiam de mecanismos de controle para a formação de “novos
bacharéis” na UNICAMP, a condução da avaliação do PIMESP naquela universidade,
como veremos a seguir, transcorreu de um modo diferenciado.
A avaliação do PIMESP e opção pela continuidade das formas de controle
de expansão do acesso
O então reitor à época da apresentação do PIMESP, Fernando Costa, criou em
fevereiro de 2013 um Grupo de Trabalho (GT) que contava com a participação de 19
pessoas e que seria responsável por avaliar o PIMESP, o que acabou por não ocorrer
tendo em vista as eleições para reitor em maio de 2013.
O recém-empossado reitor José Tadeu Jorge revogou a deliberação do
antecessor, estabeleceu as “metas de inclusão”, seguindo as porcentagens estabelecidas
na lei federal de cotas mas manteve a política de bonificação (PAAIS), aumentando a
pontuação e mantendo o Profis. Ele também deliberou a criação do Grupo de Trabalho-
CONSU Inclusão (GT-CONSU Inclusão) que deveria não apenas avaliar o PIMESP,
mas de modo mais amplo, analisar os modelos de políticas de inclusão vigentes no
contexto das universidades no País. A seguir o trecho da deliberação que faz referência
ao objetivo de trabalho do Grupo:
“[…] Artigo 4º - O Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior
Público Paulista (PIMESP) e a participação do Instituto Comunitário de Ensino
Superior (ICES) na implementação desse programa, assim como cotas e outras
propostas de inclusão, serão objeto de estudos e debates na comunidade
universitária ao longo do segundo semestre de 2013, os quais fornecerão
subsídios para sua análise pelo Conselho Universitário até o final do primeiro
semestre de 2014. § 1º - Os estudos e debates referidos no caput serão
executados e coordenados por um Grupo de Trabalho do Conselho Universitário
(GT/CONSU) […]” (UNICAMP, 2013b)
103 Tendo em vista que em 2016 a greve de estudantes viria a mudar o rumo da discussão.
218
A opção pela criação do GT, e não abertura do debate com a comunidade
acadêmica, nos leva a inferir que a forma de condução do processo avaliativo do
PIMESP na UNICAMP tinha no horizonte controlar o debate para assegurar a
manutenção das políticas de inclusão já existentes.
A forma como foi conduzido o processo de avaliação do PIMESP na UNICAMP
só pode ser dimensionada se atentarmos que garantir o controle das formas de acesso à
universidade esteve na agenda de trabalho de diversos reitores ao longo dos anos 2000.
Isso levanta a possibilidade de que o desejo de manter a estrutura excludente da
universidade era mais que um interesse individual de um ou outro reitor mas
correspondia aos interesses de certa parcela dos docentes:
“[...] Paralelamente a UNICAMP criou no ano passado um programa de
ação afirmativa para aumentar ou intensificar a inclusão social em seus
cursos de graduação. É um programa muito interessante porque tem
características até revolucionárias ao aliar a inclusão social com o mérito e o
valor acadêmico – uma aliança que é algo inteiramente diferente do que o
Brasil vinha pensando sobre o assunto até aqui. No Brasil inteiro todo
mundo pensa que mais inclusão é sinônimo de menos valor acadêmico, de
menos mérito, mas a UNICAMP demonstrou que isso não é verdade […]
Então é um programa que faz mais inclusão e ao mesmo tempo que [sic]
traz melhores estudantes para a UNICAMP. É um programa que vai
continuar […]” (Professor Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da
Unicamp à época da criação do PAAIS, Cf. Cf. SERVIÇO, 2005)
“[...] o PAAIS é o Programa de inclusão mais eficiente que nós conhecemos
[...] É um programa que reúne condições importantes de manter a
competição pelo ingresso, minimamente considera o preparo dos estudantes
mas nivela aqueles que foram menos favorecidos para competição do
vestibular […]” (Professor José Tadeu Jorge, reitor da Unicamp à época da
rejeição do Pimesp. Cf. BRANDT, 2013)
Percebemos que há uma lógica partilhada pelos ex- reitores da UNICAMP no
que tange ao entendimento deles da centralidade da competência/mérito no processo de
ampliação do acesso à universidade. Nesse sentido, as prioridades estabelecidas como
objetivos dos programas de ampliação de acesso em nada dialogam com as justificativas
históricas mais correntes e que foram amplamente mobilizadas na criação de programas
de ação afirmativa no ensino superior em várias partes do mundo, incluindo o Brasil.
Os programas de ações afirmativas no ensino superior têm como fim primeiro a
criação de medidas com o objetivo de oportunizar a grupos historicamente
desfavorecidos o acesso à universidade e ponto. Ou seja, não há vinculação ou
condicionamento a outro objetivo, que é o que parece estar evidente na fala dos ex-
219
reitores ao enfatizarem que há uma “aliança entre inclusão social com o mérito e o valor
acadêmico” ou ainda de que “É um programa que reúne condições importantes de
manter a competição pelo ingresso”, diluindo totalmente os objetivos desse tipo de
política e a preocupação com os sujeitos a que ela se destinaria. Talvez, justamente por
querer garantir que o processo de amplição de vagas estivesse controlado e
condicionado ao mérito e à competência, os reitores tenham escolhido o formato de
Grupo de Trabalho para analisar o PIMESP.
A seguir, analisaremos a composição e as recomendações do Grupo de
Trabalho-CONSU Inclusão com base no “Relatório Consolidado do GT-CONSU
Inclusão (Deliberação Consu-A-004-2013)”.
O GT-CONSU Inclusão foi instituído em 28 de maio 2013 e finalizou seus
trabalhos no dia 13 de maio de 2014, após 6 encontros gerais que resultaram no relatório
com recomendações entregue em 2014. O GT Inclusão foi composto por 15 docentes, 3
discentes e 1 representante da comunidade externa104, divididos em três comissões
(subgrupos) e cada um deles responsável por avaliar um tipo de programa afirmativo, a
saber: Subgrupo de Programas Afirmativos, Subgrupo PIMESP e Subgrupo Cotas.
Analisaremos as recomendações por cada subgrupo.
A análise do Subgrupo de Programas Afirmativos em um primeiro momento
chama atenção pelo título do grupo e o que de fato ele analisou, que diferentemente do
que está enunciado (Programas Afirmativos) não chegou de fato a esmiuçar todos os
programas afirmativos ou modelos de programas afirmativos em outras universidades,
mas limitou-se a analisar simulações no PAAIS “de forma a obter cenários que
levassem à participação destes estudantes em pelo menos 35% das vagas do Vestibular
Unicamp”, pois o foco “foram nas ações que propiciassem um aumento percentual na
104 Vale uma nota sobre o único membro da comunidade externa convidado para compor o GT, José Ellis
Ripper Filho que foi professor no departamento de física na UNICAMP nos anos 60. Em entrevista para a
Revista Pesquisa Fapesp, sua biografia assim é resumida na entrevista: “[...] é um empresário na área de
telecomunicações, como presidente da empresa AsGa, que produz equipamentos para transmissões via
fibra óptica. É também um exemplo bem-sucedido de migração da sala de aula para a iniciativa privada.
Engenheiro eletrônico por formação, antes de se aventurar no arriscado mundo dos negócios, ele se
tornou professor do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) quando voltou
ao Brasil depois de passar alguns anos no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e como
pesquisador do Laboratórios Bell (Bell Labs) da norte-americana AT&T (hoje Lucent), nos Estados
Unidos”. Nos chama atenção os motivos pelos quais, dentre uma gama significativa de estudiosos acerca
do tema de programas de ações afirmativas, um físico que transformou-se em empresário foi convidado
para analisar as políticas de ampliação de acesso à Universidade. A entrevista encontra-se disponível em:
https://revistapesquisa.fapesp.br/2004/07/01/jos%C3%A9-ellis-ripper-filho-alternativas-do-saber/ Acesso
em: 28 de março de 2018.
220
participação de estudantes oriundos de Escolas Públicas entre os ingressantes na
Unicamp. Estes estudantes podem ser optantes do PAAIS ” (UNICAMP, 2014).
A escolha do foco do Subgrupo enquadra o problema (escola pública), e a
solução-(PAAIS) de modo que, à partida, não há uma análise crítica das limitações do
PAAIS, discussão que estava em vigor no meio do movimento negro, estudantil e entre
os estudiosos de programas de ações afirmativas como é o caso do Professor João Feres
Júnior e o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA105) e que
vem produzindo a mais de uma década uma série de análises sobre as políticas
afirmativas no Brasil. Em um dos estudos, Feres Jr. (et al, 2013a) conclui que o modelo
de bonificação não tem os mesmos impactos que a reserva de vagas no que tange à
inclusão de negros e indígenas:
“[..] Experiências como a da Unicamp têm demonstrado que o sistema de
bonificação conduz a resultados tímidos, senão nulos, no que concerne a meta de
incrementar a quantidade de candidatos de grupos desprivilegiados que
ingressam na universidade (Unicamp, 2013). Além disso, sabe-se que esse
sistema, quando eficaz, comumente resulta em uma distribuição desigual desses
candidatos entre os cursos: aqueles mais prestigiosos e disputados são pouco
tocados pelo sistema de bonificação, enquanto aqueles menos competitivos
costumam ser mais impactados por essa modalidade de ação afirmativa. Essa
assimetria é fácil de entender. Imaginemos que o bônus consiste em adicionar 20
pontos a alunos oriundos da escola pública e que para o curso de pedagogia a
nota de corte no vestibular (acima da qual o candidato é aprovado) seja 100 e
para o curso de medicina seja 400. O bônus de 20 pontos confere ao candidato ao
curso de pedagogia uma vantagem muito maior, 20% da nota de corte, do que ao
candidato ao curso de medicina, para o qual o bônus corresponde apena a 5% da
nota de corte. Isso não ocorre nos sistemas de cotas em que as reservas são
aplicadas a cada curso e turno, pois nesse caso a presença do grupo de
beneficiários é nominalmente garantida pelo procedimento, a despeito das notas
e outros procedimentos de entrada [...]” (idem, p. 9)
A análise do subgrupo “Programas Afirmativos” ignorou esse e outros estudos
sobre programas afirmativos ou mesmo experiências de programas de bonificação em
outros contextos a fim de comparar e sugerir melhorias ao PAAIS, se limitando a
realizar simulações de aumento de bônus e se isso resultaria em maior inclusão. O
referido Subgrupo concluiu (ou partira da premissa?) de que sim, que aumentar a
bonificação para estudantes de escola pública (60 pontos adicionais) e estudantes negros
e indígenas (120 a mais), seria suficiente para aumentar a matrícula desses grupos na
Universidade, apesar de não fazer menção a esse ponto nas recomendações.
O subgrupo conclui (não sabemos baseado em que tipo de informação, pelo
menos no relatório analisado não consta análises sobre esse ponto) que a ausência de
pessoas negras e indígenas deve-se a falta de conhecimentos desses grupos sobre a
105 Ver mais informações: http://gemaa.iesp.uerj.br/
221
existência da Universidade e do vestibular, pois o Subgrupo sugere nas recomendações
da sua avaliação, medidas que parecem partir desse pressuposto, como: “divulgação do
PAAIS nas escolas e no website da Universidade e da secretaria de educação”,
“participação dos membros do COMVEST em feiras de vestibulandos”, “visitas às
escolas”. Também sugere continuar usando o ENEM para os candidatos que assim
desejem (esse ponto também não foi alvo do estudo).
Além disso, o Subgrupo faz recomendações à melhoria do ensino público,
sugerindo restruturar a rede básica de ensino aos moldes dos colégios técnicos
administrados pela UNICAMP, como Cotil106 e Cotuca107. Por fim, válido dizer que
mesmo com o título “Programas Afirmativos” e do subgrupo ter analisado, com todas as
limitações, o PAAIS, no relatório produzido não há uma análise profunda acerca do
Profis que já estava em curso desde 2011 e que portanto, já existiam dados para fazer
uma análise se assim o subgrupo o quisesse, mas parece que essa possibilidade sequer
foi considerada, o que nos leva a refletir sobre os motivos desse silêncio sobre o Profis.
A seção do “Relatório Consolidado do GT-CONSU Inclusão” que corresponde
ao Subgrupo “PIMESP”, inicia por definir sua tarefa que corresponderia a “[...]
levantar as informações referentes à proposta do Programa de Inclusão com Mérito no
Ensino Superior Público Paulista […] e avaliar a situação das atividades propostas e a
possibilidade e a necessidade de adequação e atualização das metas propostas”
(UNICAMP, 2014, p.5). Chama atenção que o subgrupo não faz menção à avaliação da
possibilidade de adoção do PIMESP mas apenas às metas contidas naquele Programa.
Assim, no Relatório, o subgrupo faz uma extensa descrição do Programa (que não
adentraremos porque já o fizemos nas seções anteriores) e, após ter se reunido apenas
uma vez, conclui que:
“[...] Pelo que foi discutido, a conclusão é que as metas definidas então pelo
PIMESP, dentro do contexto da Unicamp, estão sendo atingidos com as
alterações recentes realizadas no programa PAAIS da Unicamp. As estratégias
propostas como implantação do ICES, planos de recrutamento de estudantes, e
de um fundo especial de apoio à inclusão social, não possuem resultados em
andamento; mas essas estratégias devem ser revistas e rediscutidas, tendo em
vista os resultados obtidos com a alteração do PAAIS e possível proposta de
direcionar os esforços das três Universidades públicas paulistas, tanto para
fornecimento de conteúdo quanto sua infraestrutura para, em conjunto com a
Univesp, estabelecer um plano de implantação e ampliação de ensino superior à
distância, o qual permitirá rapidamente oferecer um número expressivo de vagas
no ensino superior público paulista” (Idem, p. 8).
106 Para mais informações: https://www.cotil.unicamp.br/portal/ 107 Para mais informações: https://cotuca.unicamp.br/cotuca/
222
Se por um lado, o subgrupo descarta a necessidade de adoção do PIMESP, já
que em relação às metas, a UNICAMP já estaria a alcançá-las, por outro lado, aponta
para a possibilidade de voltar a discutir o Programa mas com foco no sistema de
educação à distância como forma de expandir as vagas. Diante do exposto, o PIMESP
parece não ter sido recomendado pelo Subgrupo não pelo contéudo racista e elitista da
proposta, mas porque a UNICAMP, já estaria atingindo as metas com o PAAIS. Válido
mencionar que novamente nenhuma referência foi feita ao ProFis por esse grupo.
Por fim, temos o Subgrupo “Cotas” que realizou uma audiência pública em 2014
e cuja caracterização assim está definida no Relatório: “reunião essa que contou com a
presença de representantes de vários movimentos sociais voltados à integração racial”
(Ibidem, p, 2). Ainda que não seja possível perceber, a partir da análise do Relatório,
exatamente de onde se concluiu que a reunião tivesse esse fim e no que exatamente
consistiria integração racial, tendo em vista que esse termo sequer é mencionado no
documento de criação do grupo de trabalho e não aparece em nenhum outro documento
oficial da UNICAMP no período analisado.
O relatório do Subgrupo aponta duas reivindicações que os estudantes
expressaram na audiência:
“[...] A Unicamp deveria, em seus órgãos colegiados e administrativos, assumir e
efetivar discussões sobre cotas de qualquer natureza, mas principalmente sobre
as cotas raciais, como um mecanismo de ingresso na Universidade; e 2. Deveria
ser estabelecida uma audiência pública do CONSU, para justificar o porquê
dessa não discussão e não opção da Unicamp pelas cotas” (UNICAMP, 2014,
p.9).
Importante termos em conta que a Frente Pró-cotas já estava atuante nos espaços
da Universidade, pressionando os docentes e a reitoria pela discussão sobre adoção de
programas de ação afirmativa com reserva de vagas étnico-raciais.
O Subgrupo apresenta ainda uma extensa descrição da história das ações
afirmativas e sobre elas tece alguns comentários e dentre um deles, ao referir-se ao
sistema de reserva de vagas étnico-raciais, o Subgrupo resume esse modelo como “[...]
As cotas são chamadas de políticas públicas mais radicais e objetivam a concretização
da igualdade material entre sujeitos e nasceram no âmbito das ações afirmativas”
(Ibidem, p.10). Não se percebe a partir de qual referencial os docentes que compõem o
Subgrupo classificam a modalidade de reserva de vagas como “mais radical”. Talvez a
máxima, “entre os que querem mais e os querem menos, temos o PIMESP”, tantas
vezes repetidas ao longo do processo de avaliação das cotas e do PIMESP, pode situar
tal afirmação do Subgrupo.
223
Os componentes também descrevem a lei de cotas e são enfáticos em concluir
que “a leitura dessa lei indica que nela não estão previstas cotas raciais nas
Universidades Públicas, mas ao adotar ações afirmativas na área da educação, ficaria a
critério das Instituições como implementá-las” (Ibidem, p. 11).
O Subgrupo também faz uma breve análise acerca do debate suscitado pela
modalidade de reserva de vagas étnico-raciais e afirmam que existiriam críticas a esse
modelo em decorrência da mestiçagem no Brasil e aqui gostaríamos de chamar atenção
para um ponto interessante: ainda que a política de reserva de vagas estabelecida pelo
governo federal para pretos, pardos e indígenas, o subgrupo faz menção apenas a uma
parte do grupo beneficiário:
“[...] um dos discursos que mais surgem contra a política de cotas coloca que em
vez do ingresso de negros se daria por meio de cota, o Estado deveria melhorar os
ensinos fundamental e médio de modo a garantir uma equiparação de saberes”
(Ibidem, p.13).
Mas por que a referência apenas aos negros se a política estaria destinada
também aos indígenas? Se o problema é com o desenho da política em si (dado o caráter
miscigenado da sociedade brasileira e a qualidade do ensinso público) porque há apenas
referência apenas a um grupo que seria beneficiário da política e não a todos os grupos?
Vejamos um trecho do documento:
“[...] A questão da mestiçagem no Brasil, que impede uma definição exata de
quem é negro ou afrodescendente também é tomada como ponto de discussão
para os que são contrários às cotas. Por não existir um critério científico que
indique ou certifique quem é negro em nosso país, a cota poderia ser aplicada a
indivíduos que não se enquadrariam dentro dessa política. Nesse caso os
defensores das cotas raciais não consideram que essas situações seriam
suficientes para invalidar sua aplicação. Ainda, no Brasil, verifica-se que os
níveis de escolaridade se diferenciam entre os jovens que se autodeclararam
pertencentes à população branca ou não branca” (Ibidem, 13).
A idéia de uma nação mestiça é reproduzida pelo subgrupo como forma de
questionar a legitimidade de políticas de discriminação racial positiva. Mas ainda assim
não fica evidente porque a menção apenas aos negros? Ora, se os beneficiários da
reserva de vagas seriam pretos, pardos e indígenas que correspondem respectivamente
5,5%, 29,1% e 0,1% do total da população de São Paulo, os docentes estavam
preocupados com o grupo que numericamente seria o maior beneficiário, a saber, os
negros. Mas a questão numérica explica apenas em parte as críticas dirigidas às cotas
raciais. Para além da confusão entre antirracialismo (com o apelo a negação da
existência da raça em termos biológicos) e antirracismo que marcou o discurso dos
docentes no conflito em torno do PIMESP, é preciso confrontar esses discursos com a
224
narrativa acerca do “perigo da degeneração” 108 da universidade pela presença dos
cotistas.
A força do racismo institucional está em justamente seguir vigoroso mesmo com
o suposto consenso da inexistência das raças em termos biológicos (e as doutrinas dai
decorrentes), mesmo que atitudes ou opiniões declaradamente racistas não estejam no
bojo da discussão. Isto para dizer que, em primeiro lugar quando os docentes são
enfáticos na reivindicação de uma nação mestiça, colocando-a como motivo de
questionamento da necessidade da adoção de uma política de discriminação racial
positiva, está a um só tempo a reproduzir o mito da democracia racial, ao mesmo tempo
em que utilizam esse argumento como impeditivo real da criação da política.
Convém assinalar a contradição expressa no trecho acima quando, mesmo
afirmando a dificuldade de identificar quem seria negro no Brasil por conta da
mestiçagem, o Subgrupo coloca um dado acerca das diferenças de escolaridade a partir
do elemento “branco” e “não-branco”, ou seja, ainda que o Subgrupo assinale as
dificuldades de classificação racial dos brasileiros, utiliza um dado produzido a partir de
uma classificação racial. Como afirma Goldberg (2015) “[…] race today is supposed to
be a thing of the past. And yet all we do, seemingly, is to talk about it. We talk (about)
race when not talking (about) it; and we don’t talk (about) it when (we should be)
talking (about) it” [...] Such is the condition, the paradox, of postraciality” (p. 1).
O subgrupo também faz referência ao PAAIS e ao Profis. Sobre esse último
curioso notar que há apenas dois parágrafos sem nenhuma avaliação do Programa mas
ainda assim, mesmo sem números, sem avaliação sobre um dos principais programas de
ação afirmativa que a Universidade tinha naquela altura, os componentes recomendam
que o Profis, assim como o PAAIS, deve ser mantido e a eles acrescentar 2% de cotas
raciais em cursos noturnos e 5% de cotas para alunos provenientes de famílias que
tenham a primeira geração candidatando-se ao ensino superior mas ambas as sugestões
condicionadas à realização de mais estudos de impacto (na estrutura da universidade, no
108 O termo é uma alusão à expressão mitos da degenerescência universitária utilizada pelo professor
Ivan Siqueira, Professor do Departamento de Informação e Cultura da ECA/USP no artigo intitulado:
Universidade pública: mérito ou oportunidade? No referido artigo, escrito em 2016, o professor tece
críticas ao fato da USP ainda não ter aderido ao sistema de reserva de vagas em nome defesa do mérito.
Link para reportagem: http://jornal.usp.br/especial/universidade-publica-merito-ou-oportunidade/.
Acesso em 20 jan de 2019.
225
orçamento, etc). Em síntese: o que resultou desse processo de avaliação foi a escolha
pela protelação da adoção de reserva de vagas étnico-raciais e manutenção das políticas
já existentes.
A UNICAMP optou pela permanência de seus programas de inclusão, fazendo
apenas reformulações na bonificação mesmo diante das críticas a esse tipo de política,
advindas tanto do movimento negro como de estudiosos no que se refere ao formato e ao
valor máximo do bônus (raramente alcançado pelos optantes pelo Programa). Além
disso, o bônus não alteraria a nota de corte dos exames por curso, diferentemente do que
ocorre com o sistema de reserva de vagas, onde há garantia das vagas sem estar
condicionada à nota de corte. Nesse sentido, a equação entre bônus e nota de corte é
incapaz de alterar o perfil dos cursos mais elitistas das universidades, como medicina,
direito e as engenharias. Daflon et al (2013) endossa o argumento:
“Outra diferença entre o sistema de bônus e o sistema de cotas se refere à
distribuição dos beneficiários nos diferentes cursos universitários. Cursos de
maior prestígio acadêmico e mercadológico costumam apresentar uma
concorrência mais acirrada e, portanto, barram uma quantidade maior de
candidatos em desvantagem social [...] Tendo em vista que os adicionais
fornecidos pelos sistemas de bônus não variam de acordo com a
competitividade de cada curso, esse sistema tende a concentrar os
beneficiários das ações afirmativas nos cursos menos concorridos, falhando,
portanto, em incluir candidatos desfavorecidos nos cursos de elite. O
sistema de cotas fixas e por cursos tende a evitar essa defasagem” (idem, p.
26).
O processo de avaliação do PIMESP na UNICAMP indica os meandros dos
mecanismos de protelação da ampliação de reserva de vagas para negros e indígenas,
justificados ora na defesa da autonomia universitária, ora na defesa obstinada pela
meritocracia ou ainda da mestiçagem. A discussão conduzida pelo GT-Consu- Inclusão
deixa evidente, em nossa análise, que se dependesse da vontade do corpo docente e da
burocracia educacional da UNICAMP, a reserva de vagas étnico-raciais e o acesso de
negros e indígenas aquela universidade, muito dificilmente teria se tornado realidade
não fosse a mobilização do movimento negro e estudantil que viriam a ganhar força
nos anos seguintes.
A USP e a rejeição ao PIMESP: a reformulação do sistema de bonificação
Os docentes da Universidade Estadual de São Paulo rejeitaram por ampla
maioria a adoção do PIMESP. Apesar das discordâncias entre os argumentos para
justificar o rechaço, nos parece que em um ponto teve consenso entre os docentes: a
226
rejeição ao ICES. Ainda que tenha ocorrido um esforço por parte da burocracia
educacional em enfatizar que o ICES seria uma estratégia de inclusão melhor que as
cotas, como podemos ver no trecho a seguir:
“[ao referir ao Instituto Comunitário de Ensino Superior] Ele é um programa
maior do que isso [cotas]. Ele é um programa que busca exatamente
estabelecer através de várias estratégias condições para atrair os jovens para
as nossas instituições públicas quebrando as barreiras do medo, da idéia de
que não terá chance nas nossas universidades, de que ele não tem como
competir. Ao contrário, nós estamos dizendo: você tem chance, você pode, e
nós te oferecemos condição para que você desenvolva suas aptidões dentro
das nossas instituições públicas e isso é que é uma das características fortes
do programa. Por isso é que eu digo ele é um programa de inclusão. Não é
uma questão de reserva de cotas, só. Ele é um programa de inclusão visando
a quê? Visando exatamente a ter dentro da universidade a mesma
diversidade que você encontra na sociedade, que é uma sociedade múltipla
do ponto de vista étnico-social[…]” (Carlos Vogt. Cf. ENSINO Superior
Especial, 2013)
O esforço empreendido pela burocracia educacional parece não ter tido sucesso e
os docentes rejeitaram a proposta do PIMESP. Entretanto, ainda que o ICES tenha sido
um dos principais pontos de discordância em relação ao Programa (31 das 42 unidades
manifestaram-se contrárias), outros elementos também compuseram os discursos dos
docentes e a partir disso categorizamos cinco pontos centrais que destacamos nos
discursos: 1) autonomia universitária (pouca participação dos docentes na elaboração do
PIMESP e pouco tempo para avaliação); 2) a definição do problema de acesso à
Universidade como estrito à pobreza e a qualidade da escola pública seguido da negação
do racismo; 3) a ênfase no mérito (atrelado à defesa da manutenção dos programas já
existentes por garanti-lo); 4) defesa da diversidade desde que funcional e; 5) rejeição ao
ICES. Comecemos nossa análise pelo ponto 1.
A ênfase no modo como foi elaborado o PIMESP e como foi conduzido o
processo de avaliação foi alvo de críticas por parte quase absoluta dos docentes, que
entendiam que o PIMESP não correspondia aos anseios da Universidade, o que exigiria,
segundo os docentes, mais tempo para analisarem o Programa:
“[…] O programa, por ter sido feito dentro de um contexto ‘fora’ da
Universidade não contempla a estrutura da Universidade e pode ocasionar
mudanças drásticas do seu funcionamento [..] o Departamento é favorável
ao INCLUSP pelas seguintes razões […] foi proposto pela própria
Universidade, de acordo com suas características, e, portanto, já está
acomodado à estrutura da Universidade” (Departamento de Fisiologia. Cf.
INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).
“[…] a proposta foi apresentada há pouquíssimo tempo […] com prazo
inviável para a deliberação sobre o tema. Ressaltaram que é grande a
227
possibilidade da ocorrência de riscos quando o debate é feito às pressas e
sem reflexão suficiente, que se diferencia em muito das ações afirmativas
consolidadas nas universidades federais, por exemplo […] Que o tempo
dado para a consulta e manifestação das Unidades da USP foi muito curto,
dada a importância do assunto […]” (ESCOLA DE ENGENHARIA, 2013).
“[…] O PIMESP, concebido sem a participação da comunidade das
Universidades Estaduais Paulistas, foi produzido pelo Conselho de Reitores
das Universidades Estaduais Paulistas (CRUESP) com a participação das
secretarias Estaduais de São Paulo, Universidade Virtual do Estado de São
Paulo, UNIVESP, entre outros órgãos do governo estadual. […]”
(INSTITUTO DE PSICOLOGIA, 2013).
“[…] A congregação do IAU [Instituto de Arquitetura e Urbanismo]
considera que o tema das ações afirmativas destinadas a minimizar as
desigualdades nas condições de acesso ao ensino universitário de qualidade
é da maior importância e justifica que a comunidade universitária se debruce
sobre as diferentes proposta num processo de discussão amplo e cuidadoso.
Apesar das limitações de oportunidade e prazos para a realização desse
debate […]” (INSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO, 2013).
A reivindição por participação e por mais tempo para avaliar a proposta, nos
parece em primeiro lugar um mecanismo para dissimular o desinteresse real dos
docentes em discutir políticas afirmativas já que a discussão vinha ganhando força
nacional e já estava de algum modo na agenda das universidades estaduais paulistas
desde 2004 (data da criação do PAAIS na UNICAMP) e na agenda da USP pelo menos
desde 2006 (com a criação do Inclusp em 2006).
Poucas manifestações, ao mencionarem a não participação da comunidade
universitária na elaboração da Proposta do PIMESP, fazem menção à participação do
corpo discente ou mesmo dos movimentos negro e indígena, por exemplo, na discussão.
Em segundo lugar, nos parece que reivindicar mais tempo e mais participação
conota uma preocupação em gerir e controlar a “diversidade” a ser incluída com a
ampliação do acesso à universidade do que uma demanda real por ampliação do debate,
além da evocação de uma fictícia “tradição” democrática nas decisões relativas às
políticas de acesso (como veremos mais adiante no contexto de aprovação do
INCLUSP). Atrelada à reivindicação por mais horizontalidade no processo, algumas
manifestações apontam para necessidade de mais tempo para analisar o tema:
“[…] A CG (Comissão de Graduação) […] concordou que os programas de
inclusão são importantes, mas sem discussão ampla sobre o assunto não
permite a elaboração de um projeto completo. Propôs que seja elaborado um
calendário de estudo para que aspectos importantes relativos ao
detalhamento possam ser especificados […]” (ESCOLA DE
ENGENHARIA, 2013).
“[…] O Conselho [ …] manifestou-se favoravelmente à adoção de Políticas
de ação afirmativa para ingresso nas Universidades estaduais paulistas e
228
contrária à implantação imediata do PIMESP. Propõe um prazo de 120 dias
para as propostas de inclusões raciais e socioeconômicas sejam amplamente
discutidas pela comunidade universitária […] (Conselho do Departamento
de Ciências Básicas . Cf. FACULDADE DE ZOOTECNIA, 2013).
“ […] a Egrégia Congregação […] aprovou: […] Sugerir ao Conselho
Universitário a criação de uma comissão que, no prazo de 90 dias, apresente
proposta alternativa ao PIMESP […]” (ESCOLA DE EDUCAÇÃO
FÍSICA, 2013).
“ […] a Congregação do IP/USP (Instituto de Psicologia) manifestou-se
favoravelmente à adoção de cotas nas universidades estaduais paulistas e
contrária à implantação do PIMESP. Propôs um prazo de 90 dias para que a
comunidade da USP seja incluída no debate, por meio de seus
representantes, ouvindo seu corpo de pesquisadores e especialistas […]”
(INSTITUTO DE PSICOLOGIA, 2013).
Causo-nos também estranhamento que a demanda por mais tempo para análise
do PIMESP tenha apenas surgido nesse contexto, não tendo ocorrido o mesmo
incômodo à época da implantação dos programas de bonificação na USP, quando foram
os reitores em exercício a fazerem propostas de implantação dos programas de
bonificação que por sua vez foram aprovados em prazos relativamente curtos. Foi na
gestão da então reitora Suelly Vilela Sampaio que o INCLUSP foi aprovado em 2006.
Válido frisar que a referida ex-reitora ao assumir a reitoria em novembro de 2005 já
fazia referência à criação de um programa de inclusão e qual deveria ser o modelo:
“Qual o desafio do vestibular? É não premiar apenas a informação, porque
assim você não privilegia uma determinada classe econômica. É preciso
também ver as habilidades dos candidatos. Agora, como fazer isso? Estamos
procurando. Sou contra as cotas, a simples reserva de vagas. A entrada na
universidade precisa privilegiar o mérito acadêmico, o aluno precisa ter
condição de acompanhar o curso. Mas podemos até criar um sistema de
pontuação” (Cf. TAKAHASHI, & MELO, 2005).
O Grupo de Trabalho criado em 2006, na gestão da ex-reitora, elaborou e
conseguiu aprovação do INCLUSP pelo conselho universitário já em junho do mesmo
ano e tinha a bonificação para alunos de escolas públicas como forma de ampliação de
acesso. Diante disso, concluímos que os docentes ao rechaçarem a falta de tempo e
participação na elaboração do PIMESP estavam a reivindicar na realidade a tutela na
elaboração da política de inclusão.
O segundo ponto, relativo à crença do espaço da universidade como espaço
democrática por excelência, fora dos conflitos e tensões da comunidade política nos
leva a confrontar a própria condição de classe e raça dos docentes. E por quê? Nos
discursos sobressai-se uma universidade quase ontologicamente democrática, como
espaço plural em si, negando o pacto do aparelho educacional de Estado com a
229
reprodução da divisão do trabalho (SAES, 2008, p. 174) que é ao mesmo tempo elitista
e racista.
Atrelado à reivindicação por mais participação e mais participação, a defesa da
autonomia universitária foi amplamente reivindicada, ora vinculada à opção pela
manutenção do INCLUSP e do PASUSP (29 das 42 unidades manifestaram essa
posição) e a não adesão à política afirmativa com reserva de vagas étnico-raciais, ora
esteve acompanhada de uma posição positiva dos docentes quanto à necessidade de se
repensar as políticas inclusivas em curso. De todo modo, entre aqueles que queriam a
manutenção dos programas inclusivos vigentes e os que manifestaram vontade de
discutir sobre a nova proposta, a quase absoluta maioria das manifestações criticou a
condução antidemocrática do processo por ferir a autonomia universitária:
“[…] O avanço do debate e das práticas e programas já implantadas ou em
implantação nas Universidades Estaduais Paulistas- no caso da USP, o
INCLUSP e o PASUSP- não deve ser interrompido por uma proposta que,
com independência de suas intenções, surge para a comunidade universitária
como intempestiva e vertical […]” (INSTITUTO DE ARQUITETURA,
abril de 2013).
“[…] O conselho […] após ampla discussão concluiu o seguinte: a questão
proposta tem a finalidade de cumprir exigência de estâncias superiores
(estadual e federal); a USP através de seus programas de inclusão (PASUSP
e INCLUSP) já cumpre parte da proposta […]” (Manifestação do
Departamento de Puericultura e Pediatria. Cf. FACULDADE DE
MEDICINA, 2013).
Embora reconheçamos que o cronograma de avaliação do PIMESP pudesse estar
atrelado a outros interesses ( como as eleições que ocorreriam naquele ano), a
reivindicação de uma condução democrática e de mais tempo, parecem ser apenas
evocadas para garantir a defesa da manutenção dos sistemas de bonificação, ignorando a
extensa produção de estudos acerca dos limites dos programas de bonificação como o
Inclusp. Como aponta Daflon et al (2013), a longo prazo a modalidade de bonificação
acaba por igualar beneficiários e não-beneficiários daquela modalidade de ação
afirmativa:
“[…] Formalmente e em tese os dois sistemas podem ser equivalentes.
Basta que o bônus seja calculado para resultar no mesmo número de vagas
que seriam preenchidas pela modalidade das cotas, para que não haja
diferenças substantivas. Contudo, mantidas a proporção da cota e a
magnitude do bônus ao longo do tempo, as diferenças emergem: o sistema
de bônus garante que a distância entre o desempenho dos beneficiários e dos
não beneficiários mantenha-se constante. Ou seja, os beneficiários sempre
terão o mesmo grau de vantagem em relação aos não-beneficiários. Porém, a
proporção dos selecionados pela ação afirmativa pode variar em cada
processo seletivo. No sistema de cotas, por outro lado, a proporção de
230
beneficiários mantém-se constante, enquanto a diferença de desempenho
dos cotistas e dos não-cotistas pode variar consideravelmente […]” (idem,
p.316).
A defesa da manutenção dos programas de bonificação pelos docentes reforça a
indiferença daquele grupo ao extenso debate e pesquisas feitas em relação à reserva de
vagas como um tipo de ação afirmativa realmente efetiva no combate às desigualdades
raciais no ensino superior.
Ao mesmo tempo em que rechaçaram o PIMESP pela condução pouco
democrática, os docentes negaram a existência do racismo e consequentemente não o
consideraram como razão justa para adoção de reserva de vagas étnico-raciais, apelando
ao recorte de renda como principal impeditivo da entrada dos jovens negros e indígenas
nas universidades:
“[…] O DB [o departamento de botânica] contrário a se levar em conta
critério racial para ingresso na universidade. Como o próprio documento do
“PIMESP” salienta em sua introdução, ‘No Brasil, a renda familiar é o fator
mais determinante do que a cor para o acesso ao Ensino Superior’, portanto
não há justificativa convincente para se fazer distinção entre pretos, pardos e
índios [sic]. O fator determinante, portanto, é a renda familiar […]”
(Departamento de Botânica. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).
“[…] Mesmo reconhecendo que o critério do mérito deva nortear as ações
da universidade, há que se reconhecer a absoluta necessidade de algumas
respostas efetiva à angustiante situação de extrema dificuldade de acesso ao
ensino público de terceiro grau enfrentada por pessoas de menor nível
sócioeconômico[…] Então o PIMESP precisaria vir acompanhado de ações
outras, articuladas com o ensino básico e médio, no sentido de aprimorá-los;
a USP tem muito a contribuir com isso, com ações de: […] Rediscussão dos
critérios de distribuição de cotas, que deveriam nortear-se pela situação
econômica dos pretendentes, jamais pela cor da pele. A defesa desse
argumento parte do princípio que a priorização a partir dos menos
favorecidos estenderia, forçosamente, o benefício aos negros. A priorização
partindo dos negros, todavia, nem sempre favorecia o conjunto de carentes,
uma vez que a cor da pele não é pré-requisito para a pobreza […] ”
(Manifestação do Departamento de Medicina Social. Cf. FACULDADE DE
MEDICINA, 2013).
“[…] o departamento se põe contrário a alguns itens contemplados na
proposta atual: serão 2000 vagas obtidas por classificação pelo ENEM,
sendo 50% reservadas a PPIs. Julgamos que as vagas deveriam priorizar o
atendimento de metas sociais, e não de metas étnico-sociais como propõe o
texto […]” (Departamento de Ecologia. Cf. INSTITUTO DE
BIOCIÊNCIAS, 2013).
“[…] De acordo com os dados apurados, destaca-se que a maioria é contra o
PIMESP na forma como foi apresentado, com realce contrário para as cotas
“raciais” […] Destaca-se também […] que a maioria dos participantes é
favorável a algum tipo de cota social (baseada no salário mínimo) […]”
(INSTITUTO DE ASTRONOMIA, 2013).
“[…] O Pimesp não atende adequadamente ao objetivo de promover a
inclusão social na USP e […] Peca também por não incluir critérios de renda
familiar considerada unanimamente como o principal fator de exclusão, e por
231
assumir metas de curtíssimo prazo (3 anos) que modificam radicalmente o
perfil do corpo discente da USP […] Considera-se, no caso da USP, que o
compromisso de alcançar uma meta de 50% de egressos do ensino médio em
escola pública em apenas 3 anos seria uma decisão precipitada e de
consequências imprevisíveis […] Que, em qualquer modelo de inclusão
social que a USP venha a adotar, o critério de renda familiar [grifo da
Congregação] seja considerado de modo explícito e com peso significativo
[...] “[…]Esses programas deverão ser oferecidos a todos os candidatos que
se enquadram nos grupos focados no projeto de inclusão, que serão
selecionados para deles participarem por critérios de desempenho (provas,
notas do Enem etc), em vista das limitações de vagas” (INSTITUTO DE
GEOCIÊNCIAS, 2013).
Embora reconheçam que existe uma estrutura que condiciona a entrada de
alguns grupos na universidade, os docentes apontam que essa estrutura seria
determinada apenas por critério sócioeconômico/renda e portanto, apenas aquele
critério deveria ser utilizado para a definição do público beneficiário das políticas
inclusivas. Entretanto, válido ressalvar que a renda nunca esteve como critério dos
programas de inclusão da USP mas apenas o critério escola pública. Até 2014, o
critério era ser egresso de escola pública, inclusive gerando uma distorção escandalosa
entre os beneficiários dos Programas de inclusão vigentes:
“[...] No que se refere aos alunos optantes pelo INCLUSP, nota-se que a
maior parte dos matriculados possui renda familiar entre 3 e 5 salários
mínimos. Todavia, é curioso notar que há alunos beneficiados pelo INCLUSP
cuja renda familiar é superior a 15 salários mínimos. No vestibular para
ingresso no ano de 2015, por exemplo, 74 alunos beneficiados pelo
INCLUSP declararam ter renda familiar entre 15 e 20 salários mínimos109,
enquanto 66 declararam possuir renda familiar superior a 20 salários
mínimos” (VENTURINI, 2015, p. 14).
Apesar de não termos dados que possam analisar a fundo o beneficiamento de
estudantes com renda familiar exorbitante uma possível explicação é que o INCLUSP
estaria a beneficiar os alunos das melhores escolas públicas de São Paulo.
Os docentes, até 2014 (corte temporal da presente pesquisa), nunca
reivindicaram mudanças no INCLUSP a fim de incluir os estudantes pobres, mas
parece que dado o PIMESP ter colocado a possibilidade de incluir estudantes negros e
indígenas, de imediato os estudantes pobres passaram a ser objeto de preocupação dos
docentes e não só: eles deveriam ser os únicos beneficiários da política. Em nossa
leitura, os docentes tinham pré-disposição em flexibilizar a meritocracia quando essa
visasse atender a estudantes egressos de escolas públicas, mas não estudantes negros e
indígenas, evidenciando a negação do racismo, o que nos permite afirmar que a prática
109 O salário mínimo vigente no ano de 2015 era de R$724,00.
232
política da fração da classe média alta e branca é informada também por sua posição
racial na hierarquia do trabalho.
A negação das categorias de raça e racismo é central para compreender o
posicionamento dos docentes da USP, que parecem encontrar na defesa de critérios
econômicos seguida da preocupação com a qualidade da escola pública as justificativas
para afastarem o “perigo da degeneração”:
“[…] Por fim, a congregação entende que tais iniciativas, por mais
relevantes que sejam, não podem sob qualquer hipótese elidir um fato
inegável: a crise que instalou no ensino básico. Boa escola, ensino afinado
com nossa contemporaneidade, para ricos e pobres, para brancos, negros,
pardos e índios aumentaria o número de alunos que concluem o ensino
fundamental e médio- reconhecidamente um dos maiores filtros ao acesso à
universidade- e certamente dispensariam o recurso às políticas
compensatórias […]” (FACULDADE DE FILOSOFIA, 2013).
“[…] Em resposta […] o Departamento […] se manifesta sobre o PIMESP
da seguinte forma: Prosposta ara alunos oriundos de Escolas Públicas,
quesito sócio-econômico, aprovada. Proposta para alunos oriundos de
Escolas Públicas autodeclarados pretos, pardos e indígenas, quesito sócio-
étnico (racial), reprovada […]” [grifos e destaques vindos do original]”
(Manifestação do Departamento de Prótese. Cf. FACULDADE DE
ODONTOLOGIA, 2013).
“[…] Ainda, observando os resultados positivos […] com os programas
INCLUSP e PASUSP se manifesta favorável ao aprimoramento e extensão
destes programas, ressaltando que os critérios para ingresso no ensino
superior devem ser embasados em mérito acadêmico e não em quaçquer
critério que beneficie uma ou outra classe étnica” (ESCOLA DE
ENGENHARIA, 2013).
Importante dizer que dentre os documentos analisados, apenas dois utilizam o
termo discriminação negativa para referir à proposta do ICES, mas nenhum dentre eles
citam a palavra racismo, termo amplamente utilizado pelo movimento negro paulista
para referir-se ao ICES e a proposta do PIMESP como um todo. Se de um lado
podemos afirmar que a ideologia da classe média branca, atravessada pela defesa da
meritocracia aliada ao igualitarismo negam a possibilidade de enunciar o racismo, pois
reduzem o antirracismo ao antiracialismo (GOLDBERG, 2002), por outro, a
invisibilização e negação da categoria social cor/raça e a sua substituição por egressos
da escola pública são dispositivos sob os quais o racismo institucional operacionaliza
práticas que impedem que negros e indígenas possam acessar à universidade.
Os docentes manifestaram apoio à manutenção das políticas inclusivas em curso
(INCLUSP e PASUSP), escolha que se justificaria pela desconfiança acerca da
capacidade do PIMESP em assegurar os critérios meritocráticos:
233
“[…] Assim, fazendo um levantamento histórico dos resultados obtidos dos
programas de inclusão e permanência já implementados pela USP, as
tabelas seguintes expressam os dados da EESC [Escola de Engenharia de
São Carlos] […]. Esses resultados devem ser divulgados à sociedade e
comunidade acadêmica , comprovando que um programa rígido de cotas
não seria necessário […] Ainda, observando os resultados positivos
alcançados nos últimos anos com os programas INCLUSP e PASUSP, a
EESC se manifesta favorável ao aprimoramento e extensão destes
programas […]” (ESCOLA DE ENGENHARIA, 2013).
“[…] o Departamento indica alguns pontos […] fortalecer o INCLUSP e
PASUSP que tem critérios claros de avaliação sequencial durante o ensino
médio […]” (Manifesto do Departamento de Genética. Cf. FACULDADE
DE MEDICINA, 2013).
“ […] Os programas INCLUSP e PASUSP têm apresentado bons resultados
[…] A porcentagem de estudantes de escolas públicas acima de 20% é
observada mesmo nos cursos de alta concorrência, como é o caso do curso
de Medicina. Portanto, o aperfeiçoamento dos programas INCLUSP e
PASUSP poderia certamente aumentar de maneira significativa a inclusão
de estudantes de escolas públicas […]” (Manifestação da Comissão de
Graduação. Cf. FACULDADE DE MEDICINA, 2013)
“ […] considerando a existência de um programa de inclusão social na USP
(INCLUSP) que propiciou 30% das 10. 733 vagas oferecidas em 2012
preenchidas por alunos oriundos da escola pública […] se o programa
estiver funcionando a contento, qual a necessidade de implementar uma
nova estratégia com tantos itens obscuros? […] (Manifestação do
Departamento de Ecologia. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013)
O Programa de Inclusão Social da USP (INCLUSP) e o Programa de
Avaliação Seriada (PASUSP) foram criados em 2006 e 2008 respectivamente por
iniciativa da Universidade e talvez tenha tido influência das discussões realizadas na
UNICAMP iniciadas em 2004 e que culminaram na criação do primeiro programa
de ação afirmativa vigente em uma universidade estadual pública de São Paulo. Não
é coincidência, portanto, que a USP também tenha optado pelo modelo de
bonificação.
O INCLUSP, inicialmente concedia o bônus de 3% em ambas às fases do
vestibular para candidatos que tivessem cursado integralmente o Ensino Médio
público em escolas da rede pública municipal, estadual ou federal (os critérios de
renda e raça estavam fora do desenho da política). Embora tivesse o foco no egresso
da escola pública, o Programa nos primeiros anos não conseguia atingir a meta
(50% dos ingressantes deveriam ser de escola pública): em 2006, os egressos de
escola pública representavam 24,7% do total de matrículas, passando a 26,7% em
2007 e apresentando uma queda em 2008, onde as matrículas de egressos de escola
pública corresponderam a 26,3% do total (PROGRAD, USP, 2008, p. 4).
234
Constatada a incapacidade do Programa em incluir jovens de escola pública, a
USP instituiu um Grupo de Trabalho ligado à Pró-reitoria de graduação em 2008
que dentre outras observações, apontou que:
“[...] Dentre as possíveis hipóteses para explicar a diminuição do número de
candidatos no vestibular das universidades públicas paulistas, em especial
os oriundos do ensino público, estão a criação de novos campi da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em Guarulhos e Diadema, a
criação da Universidade Federal do ABC (UFABC) e, principalmente, a
corrida dos alunos de Ensino Médio público ao programa de bolsas para o
ensino superior privado concedidas pelo governo federal (PROUNI). A
essas explicações soma-se a cultura de auto-exclusão dos estudantes do
Ensino Médio público em relação aos vestibulares das mais concorridas
universidades públicas” (USP-PROGRAD, 2008, p. 4-5).
Admitindo que de fato o contexto tenha impactado o número de inscritos oriundos
das escolas públicas, nos parece que recorrer ao contexto é mais uma forma de
protelação do enfrentamento da questão central: os mecanismos de seleção da USP são
altamente excludentes e seus programas inclusivos passam ao largo do enfrentamento
das injustiças reforçadas pelos mecanismos de seleção daquela universidade. Mesmo
com a instalação de outras universidades, como referido no documento, a presença de
estudantes de escolas públicas não chegava a 30% do total de matrículas mesmo com o
programa de bonificação em curso e antes das novas universidades mencionadas no
trecho acima. Assim como também é lamentável que novamente as vítimas do sistema
sejam narradas pelos docentes como as culpadas pela situação na qual são relegadas e se
coloque a culpa em uma “cultura de auto-exclusão” que seria característica daqueles
jovens.
O Grupo de Trabalho após analisar a insuficiência do Inclusp, elaborou o PASUSP
que consistia em uma prova elaborada pela USP, a ser aplicada nas escolas que
optassem por participar do Programa e os estudantes que escolhessem participar do
PASUSP teriam bônus adicional de até 3% no vestibular mas proporcional ao resultado
obtido na prova. O PASUSP passou a ser aplicado no vestibular de 2009. Outra
modificação realizada para o vestibular de 2009 foi acréscimo de bônus aos estudantes
com bom desempenho no ENEM com acréscimo de 6% em cima da nota total do
vestibular.
Ainda assim, as modificações não foram capazes de aumentar as matrículas de
alunos egressos de escolas públicas: o percentual total de alunos que cursaram o ensino
médio integralmente em escolas públicas e se matricularam na USP no período de 2007
235
a 2015 se manteve em torno de 27% e o de alunos de escolas privadas representavam
68% do total de matrículas (VENTURINI, 2015, p. 12).
A ineficácia dos programas adotados pelo USP era de conhecimento dos
docentes (dado a publicação de notícias sobre o assunto, as reuniões no Conselho
Universitário para tratar do tema, as denúncias feitas pelos movimentos sociais sobre o
caráter limitador dos programas), entretanto, a insistência por parte dos docentes em
mantê-los parecem ignorar todo esse contexto.
Como é possível explicar a defesa pela manutenção de programas insuficientes
mesmo que fosse sabido, à época, que os resultados dessas políticas estivessem a
apontar para a insuficiência daqueles modelos no que tange ao aumento de negros e
indígenas no corpo discente? Em nosso entendimento, a defesa dos programas de
bonificação e a recusa ao PIMESP (também pela proposição de cotas) evidenciam os
novos mecanismos de controle da sobrecertificação e manutenção da hierarquia racial
do trabalho. Nesse ponto adentramos no terceiro argumento dos docentes: a defesa da
meritocracia. Analisemos os trechos a seguir:
“[…] O PIMESP se propõe a ser um programa de Inclusão com Mérito, o
que pressupõe que haja alguma preocupação com o perfil dos cotistas
futuros e ações para recuperar as deficiências e as lacunas que, porventura,
o sistema de educação básica tenha deixado, [grifo nosso] preocupação está
aliás, que, se posta deveria ser geral e não restrita aos cotistas [...] Dado o
problema de fundo, que é a considerável falta de vagas públicas na educação
superior paulista, o perfil dos cotistas e as necessidades de intervenção dele
decorrente, dependerá muito do curso escolhido. É preciso insistir que
eventuais programas de recuperação devem depender de cada curso, tanto
por causa das eventuais deficiências apresentadas pelos ingressantes nos
diferentes cursos, como pelas exigências destes mesmos cursos”
(ASSOCIAÇÃO DOS DOCENTES DA USP, 2013).
“[No PIMESP] Como são separados os alunos cotistas dos não-cotistas no
vestibular? O que ocorrerá se não existirem alunos egressos do College em
condições de ingressar na Universidade? […]” (ESCOLA DE
ENGENHARIA, 2013).
“[…] foi considerado que a proposta como está confeccionada acarretaria
uma perda na qualidade dos alunos selecionados que se refletiria, daqui há
alguns anos, sobre todos os esforços que as universidades paulistas têm
feito para atingir o nível de excelência mundial […]” (Manifestação do
Departamento de Botânica. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013)
A desconfiança dos ingressantes se converte, portanto, em um mecanismo que
mascara o desinteresse em ampliar o acesso à Universidade, revelando, em nossa
interpretação, concepções acerca dos destinatários que os essencializa na categoria de
seres incompletos, pois seriam despreparados, desqualificados, reificando o imaginário
dos possiveis destinatários das políticas com modalidade de reserva de vagas étnico-
236
raciais. Nesse processo que visa a manutenção do lugar de reprodução da fração da
classe média alta e branca, via controle da sobrecertificação, a defesa do mérito toma
proporções que ao fim do debate ficamos com a sensação que o mérito é tomado pelos
docentes como um fim em si mesmo, subvertendo a razão de existir das políticas
afirmativas. Analisemos os trechos a seguir:
“[…] A proposta precisa de ajustes e o Departamento indica alguns pontos
que carece de mais debates e cumprimento para que a inclusão por mérito
seja a principal meta da proposta […]” (Manifestação do Departamento de
Genética. Cf. FACULDADE DE MEDICINA, 2013).
“[…] outro grupo considera que o “college”, se bem estuturado, pode ser um
caminho de inclusão, pois reforça a meritocracia […]” (FACULDADE DE
SAÚDE PÚBLICA, 2013).
“[…] Em conclusão a Congregação […] manifestou-se favorável ao
PIMESP destacando que a grande virtude desta proposta é a inclusão com
mérito […]” (INSTITUTO DE QUÍMICA, 2013).
A defesa do mérito aparece também atrelado ao mito da democracia racial e
nesse ponto chama atenção como raça e classe se conformam na ideologia da fração da
classe média alta e branca paulista, evidenciando como a estrutura racial informa a
hierarquia do trabalho:
“[…] a maioria dos membros do conselho não é favorável ao sistema de
cotas raciais. Houve concenso de que são inadequadas e que podem ser
inclusive prejudiciais, em virtude da dificuldade da aplicação de
classificações na população do país, que é muito miscigenada; além disso,
podem levar a distorções no processo da auto-identificação e estimular a
discriminação racial ou social dos estudantes […] houve concenso que as
cotas sociais seriam mais adequadas, pois levariam em conta a falta de
acesso à educação de qualidade por motivos enconômicos, um critério mais
justo de ser determinado do que o de raças […]” (Manifestação do
Departamento de Genética e Biologia Evolutiva. Cf. INSTITUTO DE
BIOCIÊNCIAS, 2013).
“[…] Quanto aos princípios e hierarquização da educação no Brasil […] os
critérios de inclusão com base étnica merecem críticas, uma vez que
esbarram em problemas de reconhecimento preciso dos ingressantes e,
talvez, até discriminação racial, agravada no transcorrer do curso, pelo
maior índice de reprovação, em nossa opinião, esperado entre os PPIs
provenientes da EP [Escola Pública]” (Manifestação do Departamento de
Oftalmologia, Otorrinoralingologia e Cirurgia de cabeça e pescoço. Cf.
FACULDADE DE MEDICINA, 2013).
Os trechos supracitados evidenciam a força da crença democracia racial e da
mestiçagem no imaginário que orienta a ação política da fração da classe média alta e
branca ao mesmo em que expõem o imaginário que inferioriza negros e indígenas,
ingressantes pelo sistema de reserva de vagas, ao se supor que deles viriam os maiores
237
índices de reprovação e por isso sofreriam mais discriminação. Uma narrativa que
naturaliza a desumanização de grupos historicamente oprimidos, mas que é corrente na
sociedade brasileira a tal ponto que não nos chocamos com esse tipo de afirmação
preconceituosa, para dizermos o mínimo. Nesse sentido, em decorrência da importância
social dessa construção ideológica nos parece problemático e inadequado basear a
reflexão sobre a resistência dos docentes das universidades estaduais paulistas às cotas
apenas do ponto de vista da posição de classe dos docentes. É preciso situar essa
resistência também como negação do racismo e da estrutura que o mantém.
Consideramos importante refletir porque para alguns estudiosos das políticas de
ação afirmativa, a explicação para a preferência de algumas universidades por políticas
afirmativas com recorte social seria reflexo da “maior sensibilidade à questão da
pobreza” (PAIVA & ALMEIDA, 2010). Estamos de acordo que sim, a pobreza parece
ser mais inteligível para as classes dominantes, entretanto para nós o mais importante
frente a essa constatação, seria perguntar porque a pobreza é reconhecida como
elemento que traz impeditivos em termos de acesso pleno a direitos mas racismo sequer
é considerado como uma opressão existente. Os estudos acima mencionados parecem
não problematizar o suficiente como as lógicas que orientam a formulação de políticas
públicas também estão atravessas e são informados pelo racismo.
A crença na democracia racial, a negação do racismo e a postura antirracialista,
em nosso entendimento, balizaram a rejeição às cotas étnico-raciais:
“[…] Nossos docentes concordaram com a proposta de destinar 50% das
matrículas para os estudantes oriundos da escola pública. Contudo não
concordaram com o percentual de PPI, uma vez que a classificação da raça
no Brasil carece de critérios objetivos. A autodeclaração do aluno para uma
ou outra raça, além de implicar em uma subjetividade, pode implicar em
fraudes. Assim, nosso grupo propõe que tais vagas sejam destinadas a
qualquer estudante da escola pública que tenha sido selecionado por meio de
meritocracia, independente de sua raça, etnia ou condição social […]”
(Manifestação do Departamento de Fonoaudiologia. Cf. FACULDADE DE
ODONTOLOGIA, 2013).
Além de recorrer a algumas afirmações que ignoram todas as contribuições
advindas das ciências sociais sobre a questão racial no Brasil, a posição do corpo
docente da USP deixa evidente a existência de um dúbio posicionamento sobre a
implementação das ações afirmativas: se por um lado os docentes aceitam flexibilizar a
ideologia meritocrática, aceitando a instituição de reserva de vagas para alunos oriundos
da escola pública, por outro renegam esse dispositivo se ele visa beneficiar pretos,
pardos e indígenas. O racismo também estrutura lugares de privilégio, pois fica
238
evidente, a partir dos posicionamentos dos docentes, que as políticas de ação afirmativa
só são vistas como inadequadas quando aquelas focam na inclusão da população negra e
indígena.
O entendimento dos docentes de que as políticas compensatórias deveriam
existir apenas porque os níveis de qualidade do ensino básico e médio públicos
impossibilitariam chances reais dos estudantes do sistema público competirem em
condições de igualdades com os demais, além de ocultar os motivos reais dessa
exclusão (organização do sistema capitalista e como interage com o racismo),
escamoteia o fato de a classe média ter na realidade interesse na falência do sistema
público de ensino, como afirma Saes (2008).
A classe média, na segunda metade do século XIX, esteve envolvida na
construção das instituições públicas de ensino buscando nela sua valorização em termos
econômicos e sociais. Tais instituições, ao oferecerem ensino a todos de modo
indistinto, apresentam o desempenho escolar superior dos estudantes do ensino privado
como resultado do mérito pessoal. A instituição do ensino público serve, portanto, para
construir uma falsa idéia de igualação e nivelamento entre desiguais (SAES, 2008). Na
medida em que esconde o real motivo do sucesso daqueles alunos, a saber, pela
superioridade econômica em relação aos estudantes proletários, a Escola Pública se
constitui como o principal recurso ideológico da alta classe média, como podemos
perceber a partir dos trechos de algumas atas a seguir:
“Tão importante quanto democratizar o acesso à Universidade é
continuarmos a reivindicar a melhoraria do Ensino básico e Ensino Médio
que foram sucateados nas últimas décadas” (ESCOLA DE ENGENHARIA,
2013).
“[…] Os alicerces da Educação Básica no sistema público deveriam ser
priorizados, pois são [sic] um mecanismo essencial para garantir iguais
oportunidades de acesso ao ensino superior” (INSTITUTO DE CIÊNCIAS,
2013).
“[…] De modo geral as manifestações convergiram para o fato de que o
equilíbrio entre os percentuais de participação sócioétnica na população do
Estado e as matrículas no ensino superior nas Universidades Públicas e no
Centro Paula Souza só ocorrerão quando houver a valorização e o
fortalecimento do ensino fundamental e médio, a partir de maiores
investimentos e melhoria da qualidade de ensino e que esse deveria ser o
foco de qualquer programa que vise a inclusão, com mérito, no ensino
superior” (ESCOLA SUPERIOR, 2013).
“[…] O DB [o Departamento de Botânica] se posiciona totalmente contrário
à implementação do PIMESP na universidade, tendo em vista que não
considera adequada essa medida, sem que haja, uma forte ação de
recuperação da qualidade do ensino público fundamental e médio. São
nesses níveis que ocorre a grande diferença de qualidade entre o ensino
239
público e o particular, fazendo com que o aluno de escola pública tenha
menos chance de ingressar […]” (Manifestação do Departamento de
Botânica. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).
“[…] A presente proposta visa encobrir um problema grave de educação dos
níveis fundamental e médio de uma forma extremamente simplista. Todo o
cidadão merece ter uma educação adequada que o possibilite se inserir
ensino superior e no mercado de trabalho de forma competitiva […] De
qualquer forma, o problema principal que parece sair do foco com a
discussão das cotas, é que a grande maioria da população tem acesso a uma
educação pública que na maior parte dos casos é medíocre e insuficiente”
(Manifestação do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva. Cf.
INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).
“[…] concessão de mais investimentos, por parte do poder público, para
melhoria da qualidade do ensino fundamental e médio, de modo a preparar
os estudantes que frequentam tal universo, tanto em relação ao acesso ao
ensino superior de qualidade, quanto a um desenvolvimento intelectual de
excelência […]” (ESCOLA DE EDUCAÇÃO FÍSICA, 2013).
“[…] foi de comum acordo entre os presentes a opinião de que o mais
importante para a educação seria o governo investir na educação de base, o
que automaticamente promoveria a inclusão de todas as crianças brasileiras,
independente de raça, etnia e condição social […]” (Manifestação do
Departamento de Fonoaudiologia. Cf. FACULDADE DE
ODONTOLOGIA, 2013).
“[…] O concenso sobre as limitações do ensino público- brasileiro e
paulista-e suas consequências justifica a pertinência de propor ao Governo
de São Paulo a elaboração de um programa estratégico de recuperação do
Ensino Público Paulista […]” (INSTITUTO DE ARQUITETURA, 2013)
“[…] O Conselho desse departamento considera de suma importância
políticas de inclusão social que efetivamente levem melhorias no acesso, de
todas as classes sociais e raças, ao ensino universitário brasileiro. Não
concordamos, no entanto, que se tente resolver com programas mal
estruturados e de êxito duvidoso, problemas relacionados ao ensino médio, e
fundamental, do estado de São Paulo […]” (Manifestação do Departamento
de Fisiologia. FACULDADE DE MEDICINA, 2013).
“[…] Este Instituto reconhece o mérito da proposta, porém, o projeto não
resolve o problema de reestruturação do ensino médio, possibilitando que os
candidatos cheguem com nível adequado à Universidade […]”
(INSTITUTO DE ASTRONOMIA, 2013).
A qualidade do ensino público como principal, senão único, motivo pelo qual
pessoas negras e indígenas não conseguem acessar a universidade traz à tona o fato de
que “os que vencem a disputa numa ordem social competitiva precisam lidar não apenas
com o desafio de como continuar a ser um vencedor, mas também de justificar
moralmente os critérios que validam a disputa” (CAVALCANTE, 2018, p. 113). Nesse
sentido reiterar a defesa da melhoria do ensino básico público evidencia o anseio da
fração da classe média alta e branca em dar contornos igualitários à corrida pela
ocupação dos espaços de poder, como é o caso das universidades públicas.
240
Gostaríamos de despender ainda algumas reflexões sobre a manifestação da
Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
que produziu um extenso documento analisando o PIMESP para que possamos
compreender as várias nuances acerca da ideologia da classe média em torno da
discussão sobre o racimo. Os argumentos da FFLCH questionam o Programa de
Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista, alegando que o referido
Programa, tal qual como fora apresentado pelo Conselho de Reitores das Universidades
Estaduais Paulistas (CRUESP), não priorizava os objetivos das políticas de ação
afirmativa, mas sim propunha um novo sistema de educação superior público com a
introdução de um curso preparatório anterior à entrada na universidade, atrelando à
conclusão e bom desempenho nesse curso ao acesso à universidade por parte dos
cotistas. Para a referida Congregação isso seria um tipo de discriminação negativa,
contrariando o que estaria previsto na Constituição, que permitiria apenas discriminação
positiva.
A Congregação também problematizou os efeitos em termos de inclusão de
pretos, pardos e indígenas (PPI’s) do INCLUSP e do Programa de Avaliação Seriada
(PASUSP), argumentando que a falta de análises rigorosas dos dados sobre, por
exemplo, qual vinha sendo a proporção de PPI’s que estava sendo contemplada pelos
programas supracitados encobrem os efeitos reais daqueles programas. Entretanto, a
problematização da Congregação em torno do PIMESP cessa por aqui.
Ao longo do documento produzido pela FFLCH, a crença na meritocracia
atrelada ao não questionamento do vestibular, acaba por reiterar a lógica que questiona a
competência dos beneficários das políticas de reserva de vagas, lógica que esteve
presente nas manifestações das demais congregações:
“Como é bem sabido, no entanto, essas políticas [de cotas] não fazem tábula
rasa da qualificação acadêmica, apenas alteram o padrão de seleção dos
candidatos [...] Com a política de cotas, a competição por vagas
permanecerá– e nos cursos mais procurados, permanecerá muito forte –,
porém com efeitos menos injustos do que os verificados hoje” (FFLCH,
2013).
“[…] Caso o sistema de cotas venha realmente a ser implantado, seria
interessante um sistema que possibilitasse um apoio a alunos com
deficiências de formação […]” (Manifestação do Departamento de Genética
e Biologia Evolutiva. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).
“[…] Como serão selecionados os estudantes que cursarão o ICES […] o
documento indica que todos os alunos deverão ter cursado ensino médio em
escolas públicas, mas haverá um número obrigatório de estudantes PPI, o
que indica que a seleção não será apenas por mérito […] ” (INSTITUTO DE
BIOCIÊNCIAS, 2013).
241
“[…] A utilização do ensino à distância proposto pelo PIMESP, para
nivelamento intelectual de alunos formados em escolas mais fracas, não é
adequada, pois não são só conhecimentos que são necessários, mas um
processo mais amplo de inclusão social e cultural e de convivência no
ambiente acadêmico […]” (FACULDADE DE SAÚDE, 2013).
Embora duas manifestações tenham questionado a existência do vestibular (em
uma, chega-se até a sugerir a abolição desse mecanismo na seleção, mas apenas para
alguns cursos), ainda assim o tom do discurso da maior parte as atas analisadas aponta
para a naturalização e defesa da existência do vestibular, sem qualquer tipo de
questionamento desse instrumento, que é em si um mecanismo que assegura a
monopolização das vagas por parte daqueles que tiveram condições financeiras para
prepararem-se para a prova. Na realidade, na maioria dos documentos analisados para a
presente tese, há a confirmação de que esse meio seria o mais adequado para selecionar
os melhores e que inclusive condiz com a autonomia das universidades:
“[…] O vestibular para acesso às universidades públicas, ainda que com
imperfeições, é um método que parece mais justo, pois possibilita o
reconhecimento do mérito, livre de protecionismo ou de outros tipos de
influências […]” (Manifestação do Departamento de Genética e Biologia
Evolutiva. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).
“[…] O programa [PIMESP] tal qual apresentando, não tem nenhuma
vinculação com os processos de seleção de candidatos às vagas das três
universidades do estado de São Paulo. Cada uma delas, exercendo o princípio
da autonomia universitária a elas outorgada em 1988, tem seu próprio sistema
de avaliação dos candidatos e seus próprios órgãos que o implementam.
Apesar de os vestibulares não serem unificados, os três são convocados por
editais públicos que garantem direito de inscrição no concurso a todos os
cidadãos do país, e não apenas aos residentes no Estado, que tenham
completado o ensino médio. Frente a essa constatação fica evidente que o
PIMESP provocará mudanças no sistema de ingresso […]” (FFLCH, 2013).
“[…] a proporção de alunos oriundos do sistema público (escolas públicas,
50%) seja feita a partir dos alunos aprovados para a segunda fase do
vestibular da FUVEST, uma vez que essa primeira avaliação é indispensável
para o aluno cursar o ensino superior. Ou seja, os alunos não aprovados para
a segunda fase não teriam condições mínimas (requisitos mínimos) de serem
matriculados em um curso de ensino superior. Assim na segunda fase do
vestibular da FUVEST, seria feita a distribuição de vagas de acordo com o
sistema proposto para cotas […]” (Manifestação do Departamento de
Ciências Biológicas. FACULDADE DE ODONTOLOGIA, 2013).
“[…] Que sejam feitas, com urgência, alterações no Vestibular da USP, que
permitam selecionar com maior eficiência os alunos mais capacitados a
serem acolhidos em programas de ensino superior de alto nível […]”
(INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS, 2013).
O debate suscitado entre os docentes na USP parece indiferente às discussões na
sociedade brasileira sobre racismo e sobre a finalidade das políticas afirmativas,
242
chegando mesmo a reproduzir argumentos de caráter racista. Tais narrativas remetem ao
que afirmou Ianni (2004):
“[...] São estereótipos, signos, símbolos mobilizados ao acaso das situações
elaboradas no curso de anos, décadas, séculos, com os quais o “branco”,
“dolicocéfalo”, “europeu”, “ariano”, “norte-americano”, “ocidental” explica,
legitima, racionaliza ou naturaliza a sua posição e perspectiva privilegiadas, de
controle de instrumentos de poder. Nesse sentido é que essa ideologia é uma
técnica de estigmatização recorrente, reiterada em diferentes formulas e
verbalizações, desenvolvendo a metamorfose da marca em estigma. Sob vários
aspectos, essa ideologia racial é transmitida por gerações e gerações, através
dos meios de comunicação, da indústria cultural, envolvendo também sistema
de ensino” (idem, p.24).
Gostaríamos de analisar o que categorizamos como “defesa da diversidade
funcional” pelos docentes a partir das atas. Nesse sentido, percebemos que ao
reivindicar a integração das “diferenças”, os docentes falam da diversidade com
características desejáveis e nesse sentido incluir adquire a conotação de “atrair
talentos”:
“Foram também sugeridas medidas que poderiam certamente contribuir para
facilitar o ingresso na USP de talentos de todo o país, particularmente
aqueles com condições sociais e econômicas mais precárias [..] 1) Muitos
docentes entendem que o processo de ingresso no ensino superior público
no estado deve ser repensado. Um processo de seleção unificado, quer seja
em nível estadual ou federal, poderia beneficiar enormemente uma camada
significativa da população que não tem recursos financeiros […] esta
medida também poderia gerar um impacto positivo para as universidades,
particulamente nos cursos com baixa concorrência, pelo potencial de atrair
mais talentos, particulamente nos cursos com baixa concorrência, pelo
potencial de atrair mais talentos, particularmente de outros estados; 2)
Iniciativas para identificar e apoiar inclusive a permanência na USP de
potenciais talentos, em nível nacional, também foram descritas por muitos
docentes como necessárias[…]” (INSTITUTO DE CIÊNCIAS, 2013)
“[…] Uma sugestão interessante foi que fosse feita a descoberta de
“talentos” já no ensino médio, possivelmente por meio dos programas já em
andamento […] estes jovens teriam, então, uma preparação mais ampla e
aprofundada pela própria USP para concorrer a uma de suas vagas […]”
(FACULDADE SAÚDE, 2013)
“[…] Tendo em vista a importância de atrair e capacitar o máximo de
talentos existentes na escola pública, nas famílias de baixa renda e no grupo
PPI [...] a USP deverá investir paralelamente […], em formas de
qualificaçao pré-universitária que visem a inclusãos desses grupos […]”
(INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS, 2013).
Na concepção dos docentes o programa afirmativo serve para buscar “atrair
talentos”. Nesse contexto, a diversidade pode ser considerada como objeto de políticas
de inclusão desde que os mecanismos que supostamente asseguram o mérito sejam
mantidos. A defesa da diversidade enquanto circunscrita como demanda do capitalismo
neoliberal é mais uma das armadilhas da lógica integracionista que parece orientar a
243
posição dos docentes na medida em que essa “bandeira”, na realidade, não desafia os
pressupostos que reificam os grupos racializados assim como reitera a concepção de
diversidade como apenas um “recurso” dentro de uma ordem capitalista, mantendo
intacta a estrutura de classe e raça. O apelo à diversidade nesse contexto, portanto, está
muito mais relacionado à proteção de privilégios do que ao desmantelamento de lógicas
desumanizadoras.
A “busca por talentos” sufoca os conflitos e mascara o racismo, esvaziando a
discussão sobre raça enquanto categorização social que por sua vez está refletida no
acesso desigual à universidade. E sobre esse ponto, gostaríamos de fazer duas
considerações.
Em primeiro lugar, a “busca por talentos” revela o total esvaziamento dos
objetivos das políticas de ação afirmativa, na medida em que a preocupação dos
docentes não está focada em discriminar positivamente para ampliar o acesso dos
grupos “minoritários” do estado de São Paulo, mas sim em recrutar os “melhores”,
mesmo que isso implique em fazer ajustes na forma de ingresso para ir buscar “os
talentos” até mesmo em nível nacional, como sugere a proposta do Instituto de Ciências.
Não esqueçamos que a discussão em torno do PIMESP tinha como foco debater
políticas afirmativas para incluir a população negra e indígena do estado de São Paulo.
Em segundo lugar, a “busca por talentos” evidencia as armadilhas de políticas
sob o aparato da gramática neoliberal da diversidade tendo em vista que a diversidade
só é desejável na medida em que está dentro dos critérios definidos a partir de quem
detem o poder e só é aceita se não desafiar os mecanismos que possibilitam a
reprodução da estrutura capitalista. E isso implica na manutenção de privilégios com
base em classe e raça.
Por fim, gostaríamos de analisar as reflexões dos docentes acerca do ICES, que
por sua vez foi alvo de duras críticas pelos docentes. Mas quais teriam sido o teor das
críticas? Nesse sentido, gostaríamos de analisá-las a partir de dois blocos: o primeiro
bloco de manifestações contrárias ao ICES pelas lacunas na proposta do PIMESP (por
deixar em suspeição a capacidade do Instituto em assegurar a distinção do espaço da
universidade) e o segundo bloco que rejeitou (pelo receio de que o ICES pudesse tirar
da Universidade o controle sobre o processo de sobrecertificação). Analisemos o
primeiro bloco de manifestações:
“[…] Sabemos que a origem dessa desigualdade no acesso á universidade
pública está no ensino fundamental e médio deficientes. Portanto, programas,
como o proposto [ICES] são paliativos e deveriam vir acompanhados de políticas
244
públicas, não somente da valorização efetiva dos docentes envolvidos no ensino
básico, como das condições estruturais desses cursos. Além disso, visto que há
uma deficiência no mercado de técnicos qualificados, como diariamente os
veículos de comunicação alardeiam, a prioridade deveria ser se concentrar na sua
formação com cursos de nível médio profissionalizante […]” (Manifestação do
Departamento de Ecologia. Cf. INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS, 2013).
“[…] Muitas manifestações apontam para problemas propostos
especificamente para o modelo apresentado para o College: uma vez que:
apresenta disciplinas relacionadas, por exemplo, a empreendedorismo, trabalho
em equipe e gestão do tempo que não parecem se relacionar com o objetivo de
preparar os alunos para o ingresso na universidade, mas sim com sua colocação
no mercado de trabalho […] o college poderia ser transformado numa
universidade virtual, de acesso mais amplo e com características atraentes de
formação em várias especialidades, contemplando, por exemplo, um período de
com [sic] formação profissionalizante mínima [nos moldes com está sendo
proposto] e um período opcional complementar de formação plena. Nesse caso,
seria preservado o sistema atual de seleção […]” (ESCOLA DE
ENGENHARIA, 2013).
“[…] Que o ICES (“college”), na forma proposta, seja rejeitado como
mecanismo de ingresso na USP, tendo em vista que sua conceituação e o
currículo proposto não caracterizam uma preparação para o ingresso na
universidade, mas antes uma formação técnica, de nível médio e não superior,
aparentemente voltada para o mercado de trabalho, e que, ainda, o caráter não-
presencial das aulas é inadequado para os fins propostos [...]” (INSTITUTO DE
GEOCIÊNCIAS, 2013).
“[…] antes de aceitar qualquer compromisso, é fundamental esclarecer qual o
papel das universidades públicas estaduais na mecionada parceria com a
UNIVESP para o oferecimento dos cursos superiores sequenciais na construção
do ICES[…]” (Manifestação do Departamento de Biologia Celular e Molecular
e Bioagentes Patogênicos. Cf. FACULDADE DE MEDICINA, 2013).
“[…] A criação do ICES pode se considerada experimental em nosso ensino.
Sem organizar o que já tem, cria-se outra modalidade, com grandes riscos de
também cair nas malhas da indigência e sucateamento […] Outro grande
problema com a proposta de criação do ICES é a idéia de se utilizar a infra-
estrutura das universidades, das ETECS e das FATECS […] e a falta de clareza
sobre como será composto o corpo docentes […] Quanto ao corpo docente em
particular, entendemos que a USP não está preparada pata tal desafio. Nossa
competência como professores é bastante diversa daquela exigida para a
complementação do ensino médio supostamente deficiente […]” (Manifestação
do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia. Cf. FACULDADE DE
MEDICINA, 2013).
Nesse primeiro bloco de manifestações, o receio dos docentes em relação ao
ICES esteve atrelado à possibilidade do Insituto converter o espaço da universidade em
espaço de formação de mão-de-obra barata à disposição das dinâmicas de mercado,
confrontando a posição de classe média dos docentes, impelindo-os a “defender os
[seus] interesses [e] […] valorizar-se econômica e socialmente aos olhos da classe
capitalista, em detrimento da classe dos trabalhadores manuais” (SAES, 2007, p. 112).
245
O segundo bloco de manifestações contrárias ao ICES diz respeito ao receio dos
docentes na perda do controle do processo ampliação do acesso à USP. Nesse sentido,
os docentes apelam ao papel específico que teria a universidade como instituição
produtora de conhecimento:
“[…] A eventual criação de uma nova instituição estadual de ensino superior,
de caráter semi-presencial, bem como a eventual criação de novas modalidades
de organização do ensino superior, devem ser objeto de avaliação e debate
específicos, sem se confundir com o tema, importante e estratégico, das
Políticas de ação afirmativa em geral e das cotas em particular” (INSTITUTO
DE ARQUITETURA, 2013)
“[…] É papel da universidade resolver as deficiências do ensino fundamental e
médio da escola pública? Se sim, por que não incluir uma maior participação da
universidade no ensino médio, na formação de professores, desenvolvimento de
projetos que promovam a inclusão, assessorias de ensino, atividades
laboratoriais e outras […] (Manifestação do Departamento de Ginecologia. Cf.
FACULDADE DE MEDICINA, 2013)
“[…] Então o PIMESP precisaria vir acompanhado de outras ações […]; a USP
tem muito a contribuir com isso, com ações de: […] Assessoria às secretarias de
educação a às escolas públicas de ensino médio, visando capacitar docentes,
discutir currículos, avaliar implementação, etc […]” (Manifestação do
Departamento de Medicina Social. Cf. FACULDADE DE MEDICINA, 2013).
“[…] Outras Manifestações foram registradas e reafirmaram a importância das
universidades (em especial a USP) na formação de pessoas das mais diferentes
áres que atuaram- e ainda atuam- na formulação de políticas públicas nos níveis
municipal, estadual e federal […]” (ESCOLA DE ENGENHARIA, 2013).
Após ampla rejeição por parte dos docentes acompanhada de forte mobilização
do movimento negro, o PIMESP foi rechaçado e a pró-reitoria da USP apresentou em
maio de 2013 uma proposta de reformas contida no “Plano de recrutamento
Institucional de Capacitados”. O plano era uma recomendação do PIMESP para que as
universidades recrutassem os 60% dos alunos referentes à meta de inclusão de alunos
egressos da escola pública (os outros 40% seriam atingidos pelo ICES) e dentre esses
negros e indígenas. Segundo o que consta na proposta do PIMESP, o objetivo do plano
de recrutamento era:
“[...] Implantar, em cada Universidade, os Planos Institucionais de Recrutamento
de estudantes capacitados e participantes dos grupos sociais no regime de metas:
ano 1 - 2.158 estudantes oriundos de escolas públicas, sendo 1.299 pretos,
pardos ou indígenas; ano 2 - 3.272 estudantes oriundos de escolas públicas,
sendo 1.870 pretos, pardos ou indígenas; ano 3 e subsequentes - 4.520 estudantes
oriundos de escolas públicas, sendo 2.543 pretos, pardos ou indígenas. Destes,
40% serão recrutados através do ICES” (CRUESP, 2012).
Apesar de ter como objetivo “ampliar a inserção de alunos provenientes de
escolas públicas e, também, ampliar a inserção do grupo PPI dessas escolas, na
246
Universidade de São Paulo” (USP, 2013, p. 1), no geral, o Plano Institucional de
Estudantes Capacitados, a começar pela nomenclatura, não modificava a estrutura de
seleção existente incidindo apenas sobre as formas de preparação para o “sistema
meritocrático”. Entretanto, mesmo sendo restrito, o Plano de Recrutamento previsto
pelo PIMESP dava margem para os docentes exercerem autonomia e proporem outras
formas de ampliação do ingresso para grupos excluídos, porém o Plano também foi
rechaçado pela Pró Reitoria de graduação da USP em decorrência da “dimensão da
Graduação da USP”:
“em razão da dimensão da Graduação da USP, em relação à das duas outras
Universidades Públicas do estado de São Paulo, a Pró-reitoria de Graduação
considera que a concretização dos objetivos do Plano Institucional da USP, no
sentido de atingir as metas propostas pelo PIMESP, só poderá ser alcançada de
modo responsável até 2018, e não em 2016 como antes sugerido” (Ibidem).
A Reitoria, em junho de 2013, apresentou à comunidade universitária o Plano
Institucional 2013-2018 no qual centrava as ações de ampliação de acesso em dois
eixos: ampliação da bonificação do INCLUSP e criação do Programa de Preparação
para o Vestibular da USP (PPVUSP) e que foi aprovado pelo Conselho Universitário.
Além disso, a narrativa de que os estudantes pobres, negros e indígenas não prestariam
vestibular porque desconhecem a existência do mesmo esteve expresso no Plano no que
tange às “estratégias para ampliar a divulgação do INCLUSP por meio do programa
Embaixadores, como indicado por cerca de metade das unidades da USP” (Ibidem),
apesar de quanto a esse último ponto não termos vistos nos documentos analisados
menção ao referido programa.
O programa de bonificação da USP inicialmente conferia bônus de até 3%
apenas aos egressos de escola pública após a discussão gerada pelo PIMESP, passou
também a conferir bonificação para pretos, pardos e indígenas egressos de escola
pública, mas condicionado ao desempenho no vestibular. A bonificação passou de um
máximo de 8% no caso do INCLUSP, para 15%, e de 15% para 20%, no caso do
PASUSP. A pontuação máxima seria concedida se o aluno acertasse mais que 27
questões na prova da primeira fase do vestibular, isto é, em caso de acertar menos que as
27 questões nenhum bônus seria concedido.
Outra mudança em relação ao ‘antigo’ INCLUSP gerada pelo debate em torno
do PIMESP, foi quanto à nota de corte que passou a ser calculada depois do acréscimo dos
bônus. Foram também instituídas novas regras de bonificação no Programa: o estudante
de escola pública poderia receber adicional na nota de até 20% e estudantes de escola
247
pública pretos, pardos e indígenas poderiam receber 5% a mais, totalizando 25% de
bonificação.
Apesar das modificações no INCLUSP, até o ano de 2015 o cenário de exclusão
permanecia quase inalterável tanto para egressos de escolas públicas, como para negros
e indígenas. Segundo dados do GEMAA (2015), feitos a partir da análise descritiva dos
dados estatísticos divulgados pela FUVEST com base nas respostas ao “Questionário de
Avaliação Sócio-econômica”, fornecidas pelos inscritos e matriculados no vestibular
para ingresso nos cursos de graduação da USP, entre 2007 e 2015, apenas 11,75% dos
alunos que ingressaram na USP eram pardos, 2,46% pretos e 0,24% indígenas.
Sobre o critério “escola pública”, o número de alunos matriculados que
concluíram o ensino médio integralmente em escolas públicas representava apenas 27%
do total de matriculados entre os anos de 2007 e 2015. Válido ainda enfatizar que a
USP, até 2014, não adotou o critério de renda como critério de seleção para alunos
pobres, beneficiando estudantes não-pobres de escolas públicas renomadas e com renda
superior a 15 salários mínimos (VENTURINI, 2015, p. 16), mantendo assim seu status
de principal ilha de privilégio branco do país.
Considerações gerais A proposta do PIMESP assombrou a fração da classe média alta e branca por
duas razões em nossa análise. A primeira razão, pela possibilidade do Programa em
oferecer um perigo real ao apagamento da distinção do trabalho dos docentes, ao
aproximar a universidade das demandas do mercado de trabalho, com a instituição do
ICES, transformando-a em reduto de formação de trabalhadores e logo, pondo em
perigo a manutenção da marca distintiva da fração da classe média alta.
A segunda razão, foi o fato do PIMESP, ao incluir na proposta a reserva para
negros e indígenas, ter confrontado a um só golpe o sistema meritocrático e a narrativa
da democracia racial. A reserva de vagas raciais previstas no Programa ameaçou de uma
só vez a crença na harmoniosa sociedade paulista, expôs os limites dos programas que
vinham sendo implantados pelas universidades e desafiou (ainda que de modo bastante
limitado) as soluções que vinham sendo implantadas por aquela fração da classe média
em relação à democratização do acesso ao ensino superior.
A defesa, pelos docentes, das “políticas de inclusão” existentes nas
universidades estaduais paulistas, também revelam por um lado como a atualização dos
248
pressupostos do paradigma da integração na formulação das soluções para “o problema
do negro” constituem os novos contornos do racismo institucional e, por outro lado,
como os elementos centrais que fundamentam a criação dessas políticas permite que
entendamos como classe e raça acomodam-se na configuração das relações de poder e
espaços de privilégio no contexto paulista.
Os discursos analisados evidenciaram, em nossa interpretação, que a classe
média não é apenas agente de marginalização no processo de valorização dos
trabalhadores não-manuais, ela própria, converte-se em agente de desumanização das
populações subalternizadas na medida em que a prática pedagógica daquela fração da
classe média na busca pela legitimação da cultura da classe dominante deslegitima
outras culturas que estão fora da “zona do ser” (FANON, 1975).
A proposta do PIMESP (e o debate gerado a partir da proposta) também
evidenciou a lógica classista e racista da fração da classe média alta e branca, que
orientada pela defesa do mérito articulada a negação do racismo, tem pautado sua
atuação no contexto de debate sobre as políticas de inclusão na educação superior nas
universidades estaduais de São Paulo de modo a bloquear, ou quando não protelar, a
democratização das universidades. Entretanto, como discutimos no capítulo 2, esse
posicionamento não é uma característica ou uma particularidade da fração alta da classe
média paulista. Nesse sentido, a análise do debate gerado em torno da avaliação do
PIMESP , parece sugerir que quando o assunto é ampliação do acesso à educação por
grupos historicamente excluídos, a classe dominante e a classe média parecem limitar-se
a propor políticas inferiores (em relação ao que poderiam ser e mesmo ao que existe) e
inferiorizadoras no que tange ao modo como são desenhadas e seus fins intimimante
relacioadas ao modo como aquelas classes concebem o público beneficiário.
A educação como recurso mobilizado e gerenciado pela classe média e
legitimado pelas elites e pelo Estado voltado para regeneração da população negra está
ancorada em um acúmulo de experiências relativas ao processo de desumanização de
negros e pobres no Brasil. Nesse sentido entendemos que o PIMESP e os demais
programas de inclusão elaborados pelos docentes de São Paulo estão inseridos num
processo histórico longínquo que associou escola pública-civilização-branqueamento
desde as primeiras décadas da República. E sobre a “lógica da regeneração” trataremos
no próximo capítul
249
CAPÍTULO 4: “A REDENÇÃO DE CAM”: O ESTABELECIMENTO DA
EDUCAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL E O MELHORAMENTO DA NAÇÃO
Figura 2: A redenção de Cam
Modesto Brocos. A redenção de Cam (1895). Óleo sobre a tela, 199cm x 166cm. Rio de
Janeiro. Museu Nacional de Belas Artes
A consagração da obra A redenção de Cam está estritamente relacionada a sua
capacidade de reunir as principais idéias que circulavam entre as elites e a
intelectualidade brasileira acerca da construção da identidade nacional e do futuro da
nação no contexto da jovem República. A obra retrata o desejado (embranquecimento),
ainda que pela via da miscigenação, da população brasileira.
250
A obra, a começar pelo título, reflete os impasses no qual a elite brasileira
branca se via envolta entre os séculos XIX e XX, isto é, como branquear uma nação
com uma população significativa de negros e com um processo de miscigenação já em
curso?
O título da obra faz referência à passagem bíblica que narra a condenação feita
por Noé ao seu filho Cam (e seus descendentes) por ele ter olhado o pai nu e bêbado.
Como Cam é narrado na Bíblia como suposto ascendente das raças africanas, aquela
passagem passa a ser disseminada, principalmente com o papel ativo da Igreja
Católicacomo, a justificativa divina para a escravização dos africanos à época colonial.
Entretanto, como o pintor retrata na tela, seu interesse não está na maldição de Cam mas
como seria possível sua redenção.
A partir da imagem, vemos três gerações que parecem ser da mesma família,
mas com diferentes tons de pele. No canto esquerdo, uma mulher mais velha, negra, que
se encontra com pé na terra, descalça (marca que os negros cativos ou libertos
carregavam) ergue as mãos aos céus, parecendo estar a agradecer pelo nascimento do
neto branco que vemos no centro da tela. No canto direito, um homem branco, que pisa
em um calçamento de pedras e parece ser o pai da criança que está no colo de uma
mulher negra, mas também de tom de pele menos escuro em relação à senhora que seria
sua mãe no canto esquerdo.
Na contramão da Europa, a ramificação eugenista no Brasil não tinha contexto
para condenar a miscigenação, diante do contingente populacional negro recém- liberto
e a grande massa já em franco processo de miscigenação. Desse modo, valorizar as
misturas (mesmo com fins de branqueamento) era a única possíbilidade de tornar
possível a transmissão das características genéticas dos imigrantes brancos aos
descendentes, eliminando os traços indígenas e africanos dos habitantes do país.
A famosa tela “A redenção de Cam”, pintura do espanhol naturalizado brasileiro
Modesto Brocos (1852-1936), professor da Escola Nacional de Belas artes (1891-1936),
vencedora da medalha de ouro na Exposição Geral de Belas Artes de 1895, foi usada
pelo médico João Batista de Lacerda (1846-1915), cientista e diretor do Museu
Nacional do Rio de Janeiro, em uma publicação no I Congresso Mundial das Raças, em
1911, em Londres. A obra, assim como o artigo do médico ilustram as possibilidades do
embranquecimento da população brasileira mesmo com a miscigenação:
“[…] Demais, devem todos saber, porque a sciencia já o demonstrou, que
embora tomada como caracter differente de raça. A côr não passa de um
caracter anthropologico accidental […] que a superioridade e a inferioridade
251
das raças no sentido absoluto é um facto inveridico; e que no mundo só
existem raças adiantadas e atrazadas, devendo ser attribuidas essas
differenças ás condições do meio physiso e social em que o homem evoluio.
[…] Entretanto não se póde negar que o demorado contacto entre duas
raças, uma atrazada, outra adiantada, venha com o tempo fazer adquirir á
raça adiantada, muitos dos vicios e defeitos da raça atrazada […] Este facto
verificou-se não só no Brasil como em outros países onde a raça negra teve
prolongado contacto com a população branca. […] quanto mais diffundir a
civilização no paiz, tanto mais intensa será a reducção da raça indigena, a
qual, estou certo, desapparecerá com os negros daqui a um seculo […] O
abandono, o isolamento, a inação, a incuria a que se entregaram após a
abolição da escravidão, tem augmentado de mais em mais a sua decadencia
e estão concorrendo para a sua extincção. No Brasil o problema da raça
negra resolve-se sem esforço e sem dificuldade […]” (LACERDA, 1912, p.
90-91).
Nesse contexto da miscigenação como fatalidade e o branqueamento como
destino a ser perseguido, nas primeiras três décadas da República vemos desenrolar-se
um processo de institucionalização da instrução pública que destinaria à educação um
papel central no melhoramento da nação miscigenada brasileira. Nesse sentido a
educação pública, nas primeiras décadas da República, se converterá na solução para
civilizar e estabelecer os marcos da cidadania no Brasil, convertendo-se como
elemento neutralizador fundamental de conflitos na organização da hierarquia racial na
sociedade de classes no Brasil.
O objetivo do presente capítulo é compreender como se deu no Brasil a
instituição do aparelho educacional e a constituição peculiar, em nossa leitura, da
ideologia meritocrática no contexto brasileiro marcado pela experiência da escravidão
negra. Desse modo, buscaremos evidenciar como a educação nas primeiras décadas da
República constituiu-se como: 1) meio de regeneração da população negra; 2) meio de
reprodução da recém-nascente classe média branca e; 3) como promessa (nunca
cumprida) de mitigação do racismo.
Após a análise das argumentações que sustentaram a oposição da alta fração da
classe média branca às cotas em São Paulo, entendemos que o forte apelo à
desconfiança da capacidade da população negra e indígena, o medo da “degeneração”
da qualidade da universidade e a constatação de que essa lógica vem sustentando a
formulação de políticas educacionais com vistas à ampliação do acesso às universidades
estaduais paulistas, precisavam ser melhor analisados a fim de aprofundar a relação,
que parece vir de longa data, entre racismo e sistema educacional.
A pergunta feita em 1978 por Abdias do Nascimento (2017), sobre como “o
sistema educacional funciona como aparelhamento de controle nesta estrutura de
discriminação [...]?” parece fundamental se quisermos entender como o debate gerado
252
pela instituição das políticas de ação afirmativa confrontou narrativas hegemônicas
acerca da condição do negro, desafiando lugares e explicitando a posição (reacionária)
de certa fração da classe média branca.
A implantação da modalidade de reserva de vagas étnico-raciais no ensino
superior público brasileiro colocou em xeque o imaginário acerca do lugar do negro na
sociedade brasileira, expondo a lógica racializada que estrutura as classes no Brasil e
como aquela lógica tem estado presente na formulação de alguns tipos de políticas
educacionais. Nesse sentido, buscaremos na primeira parte do presente capítulo,
evidenciar como a lógica, presente também no discurso dos docentes acerca da
desconfiança da qualidade dos cotistas e na proposta do PIMESP em relação ao seu
caráter civilizacional, tem uma bagagem histórica evidenciadas nas políticas
educacionais nas primeiras décadas do século XX: negros e pobres como
ontologicamente inaptos a exercerem funções não-manuais e portanto, como objetos a
serem civilizados mas apenas para ocuparem postos de trabalhos manuais.
Longe da pretensão de realizarmos um longo percurso historiográfico,
pretendemos sintetizar como a grande reforma educacional realizada entre os anos 20 e
30 da República brasileira foi concebida por certa lógica civilizacional que sob a
alegação da necessidade de regeneração da população pobre e negra, relegou aquela
população uma educação de terceira classe que comprometeu profundamente o destino
dos negros na sociedade brasileira. Nesse sentido, procuraremos também situar como a
ideologia meritocrática no Brasil só pode ser compreendida em sua plenitude se
considerarmos os dois polos antagônicos que a sustenta: competência (como sinônimo
de branquidade) e degenerescência (como equivalente à negritude).
Procuraremos evidenciar que a construção desses pólos ocorreu ao longo dos
primeiros 30 anos da República sob a liderança dos intelectuais que levariam à cabo a
Reforma Educacional dos anos 20 e 30. A análise da institucionalização da educação
pública no Brasil oferece a possibilidade de compreendermos como as políticas
educacionais nas primeiras décadas do período republicano, refletiram uma concepção
racializada da sociedade e na qual a ideologia meritocrática moderniza a seletividade
racial e naturaliza a condição do negro.
Na segunda parte, a partir da análise de dados entre escolarização e perfil racial
no Brasil (1988-2013), buscaremos analisar como a existência da educação pública no
século XXI tem também sido utilizada para dissimular o racismo institucional na
distribuição dos postos de trabalho. Se as políticas educacionais eram concebidas para
253
servirem como fonte de regeneração da população negra e pobre nos séculos XIX e XX,
no século XXI a educação como única via para a integração da população negra ao
mundo do trabalho continua a dissimular o racismo que informa a hierarquia do trabalho
nas sociedades capitalistas. Importante dizer que nossa intenção nesse capítulo não
passa em nenhum momento por questionar ou interpretar como menor as reivindicações
do movimento negro por acesso à educação. A democratização do ensino não é alvo de
questionamento na presente tese.
Nossa proposta nesse capítulo é evidenciar como a educação tem sido
mobilizada pelas classes dominantes como forma de moderar e amortecer os conflitos
raciais e obscurecer o racismo institucional. Apresentaremos uma série histórica de
dados que indicam um padrão na taxa ocupacional: mesmo tendo a mesma escolaridade
em relação aos brancos, os negros continuam a liderar as taxas de desocupação,
indicando a persistência do racismo. Dito isso, avançaremos a seguir na tentativa de
apresentar o processo de institucionalização da educação pública no Brasil e como os
negros são inseridos nesse processo.
A política educacional pública no início do período republicano é fundada com
objetivo de desenvolver competências para o exercício da cidadania sem, no entanto
abandonar “o imaginário de uma população [pobre, preta e mestiça] concebida como
grupo inferior, de ‘difícil educação’” no período do Império (VEIGA, 2008, p. 507).
Com isso queremos dizer que a política educacional (e a ideologia meritocrática que a
sustenta) nos primeiros anos da República se configurará a partir de uma compreensão
racializada da sociedade onde negritude e competência seriam incompatíveis.
Nos primeiros anos da República, a política educacional foi marcada por
interdições e restrições aos negros que, se por um lado não vedavam completamente o
acesso de negros à educação, criavam normas que convertiam-se em verdadeiros
impedimentos para a formação educacional da população negra.
Alguns mecanismos criados e/ou reforçados na República como a vigilância da
polícia nas escolas frequentadas por negros (a fim de intervir em casos de agressão ou
violência e expulsar os culpados), a exigência de vestimentas adequadas, material
escolar e merenda (BASTOS, 2016, p. 747) ou ainda a instituição de taxas e exames
para admissão no ensino fundamental e superior (Decreto nº 8.659/1911, Cf. BRASIL,
1911) foram mecanismos que se por um lado, não assumiram formas jurídicas
abertamente expressas com vistas a impedir totalmente o acesso dos negros à escola
pública, acabaram por afastar nos primeiros anos da República a possibilidade de
254
formação escolar da população negra que, em sua maioria, não dispunha de dinheiro
(para pagar as taxas e material) e não tinha os conhecimentos prévios exigidos nos
exames admissionais para entrar nas escolas (como língua francesa ou aritmética).
A primeira metade do século XX foi marcada por reformas no sistema
educacional que foram elaboradas e executadas tendo como pressuposto “[...]
higienizar, civilizar, modernizar, enfim, preparar camadas da população para novos
hábitos de vida e de trabalho” (MATE, 2002, p.36). A educação formal passou então a
ser o bastião que iria redimir a população negra, outorgando-lhes um “diploma de
brancura” (DÁVILA, 2006). Nesse contexto o movimento pela Reforma Educacional
dos anos 20 e 30 foi um momento de tensionamento (não de ruptura radical) no modo
de conceber os fins da política educacional e a própria clientela a quem se destinaria a
educação pública.
O Manifesto dos pioneiros da educação nova de 1932 marcará essa distinção
nos modos de conceber a política educacional brasileira. Assinada por 26 intelectuais
que já tinham visibilidade nacional, fosse pela atuação profissional, fosse pela
participação em associações (ligadas em sua maioria às ciências, artes e educação), o
Manifesto (que ficaria conhecido apenas como Manifesto dos pioneiros da educação
nova), viria a colocar a questão da instrução pública como o grande problema nacional:
“Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e
gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar
a primazia nos planos de reconstrução nacional. Pois, se a evolução orgânica do
sistema cultural de um país depende de suas condições econômicas, é impossível
desenvolver as forças econômicas ou de produção, sem o preparo intensivo das
forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são
os fatores fundamentais do acréscimo de riqueza de uma sociedade. No entanto, se
depois de 43 anos de regime republicano, se der um balanço ao estado atual da
educação pública, no Brasil, se verificará que, dissociadas sempre as reformas
econômicas e educacionais, que era indispensável entrelaçar e encadear, dirigindo-as
no mesmo sentido, todos os nossos esforços […]” (Cf. AZEVEDO, F.E.A. 2006, p.
188).
O apelo ao progresso da nação que estaria travado pelo “problema educacional
brasileiro” foi a base que orientou a ação política daquele grupo, entretanto, essa
retórica apelativa serviu como estratégia (eficaz) para mistitificar a natureza do
Manifesto e seus fins políticos: a redifinição do papel da educação na divisão social do
trabalho. A atuação dos assinantes em associações com fins políticos merece um
adendo. A mais importante dentre elas foi a Associação Brasileira de Educação (ABE),
fundada em 1924.
255
A Associação Brasileira de Educação, apesar de ter nascido da tentativa de
fundação de um partido político (que se chamaria Ação Nacional), ficou marcada na
historiografia brasileira como uma instituição desinteressada do jogo político e
preocupada unicamente com a questão da educação. Entretanto, como aponta
CARVALHO, M.M.C. (1998), ao autonomear-se apartidária e defensora do progresso
da nação pelas vias da educação, a ABE procurava arregimentar poder político sob uma
fachada desinteressada partidariamente, de modo que não pudesse ser confrontada,
ganhando cada vez mais respaldo nacional sob a bandeira da defesa da educação. E a
defesa da educação pública viria se converter em estratégia de ampliação de poder do
referido grupo. Avancemos com a análise do Manifesto:
“[…] A instrução pública não tem sido, entre nós, na justa observação de Alberto
Torres, senão um "sistema de canais de êxodo da mocidade do campo para as
cidades e da produção para o parasitismo". É preciso, para reagir contra esses males,
já tão lucidamente apontados, pôr em via de solução o problema educacional das
massas rurais e do elemento trabalhador da cidade e dos centros industriais já pela
extensão da escola do trabalho educativo e da escola do trabalho profissional,
baseada no exercício normal do trabalho em cooperação, já pela adaptação crescente
dessas escolas (primária e secundária profissional) às necessidades regionais e às
profissões e indústrias dominantes no meio.” (Cf. AZEVEDO, F.E.A. 2006, p. 197)
Travestida na preocupação com a modernização do país via reforma do ensino,
os intelectuais, assinantes do Manifesto encontraram na redifinição do papel da escola
na República, o meio pelo qual poderiam controlar, de uma só vez, a inserção das
massas na sociedade industrial nascente (sob o trinômio moral, saúde e trabalho) ao
mesmo tempo em que conseguiriam assegurar a educação secundária e superior para si,
garantindo que essa classe pudesse ascender aos postos de liderança na condução dos
rumos do país (CARVALHO, M.M.C., 1998; 2000; 2003).
É fundamental enfatizar que os intelectuais reinvidicavam uma nova
mentalidade (republicana) acerca do papel da educação, mas “curiosamente” não se
dirigiram no Manifesto contra às oligarquias mas sim à “classe média (burguesia)” e sua
“estrutura tradicional escolar” que mantinha, via instrução pública, seus interesses de
classe, impedindo à “interpenetração das classes sociais” e colocando obstáculos para
que a educação pública atendesse “à diversidade nascente de gostos e à variedade
crescente de aptidões [comprovados via exames psicológicos] capazes de arrastar o
espírito dos jovens à cultura superior […]" (Cf. AZEVEDO, F.E.A. 2006, p. 198).
A disseminação da necessidade de orientar a divisão social do trabalho a partir
da articulação entre “tipos mentais e necessidades sociais” (Cf. AZEVEDO, F.E.A.
2006, p. 199) em um contexto no qual a abolição não havia completado sequer 40 anos
256
e com forte influência das teorias eugenistas e evolucionistas (como as análises feitas
por Hebert Spencer), não nos deixa restarem dúvidas acerca de quais tipos sociais, no
imaginário daqueles intelectuais, estariam e quais não estariam aptos à “cultura
superior”.
Munidos da defesa da educação pública como redentora “dos males da Pátria”,
entre os anos de 1920 e 1930, os intelectuais ligados ao Manifesto (e dentre eles, muitos
ligados à criação da USP), empreenderam reformas educacionais em diversos estados
no Brasil110. Uma análise das idéias que circulava entre esse grupo acerca do “problema
da instrução pública”, parece deixar evidente que todas essas reformas no ensino
público tinha como objetivo central liderar a civilização das massas sob três diretrizes
principais: hierarquização a partir de “aptidões naturais”, higienização e moralização da
classe trabalhadora (CARVALHO, M.M.C., 1998; 2000; 2003).
O ponto-chave do Manifesto, que interessa a discussão no presente capítulo, é a
(suposta) tentativa de superar “[…] o divórcio entre as entidades que mantêm o ensino
primário e profissional e as que mantêm o ensino secundário e superior […]” (Cf.
AZEVEDO, F.E.A. 2006, p. 197) e que orientou as diretrizes educacionais na Primeira
República. Vejamos o que diz o Manifesto:
“[…] a educação nova não pode deixar de ser uma reação categórica, intencional e
sistemática contra a velha estrutura do serviço educacional, artificial e verbalista,
[instalada para uma concepção burguesa, resultante da doutrina do individualismo
libertário] montada para uma concepção vencida. Desprendendo-se dos interesses
de classes, a que ela tem servido a educação […] deixa de constituir um privilégio
determinado pela condição econômica e social do indivíduo, para assumir um
"caráter biológico", com que ela se organiza para a coletividade em geral,
reconhecendo a todo o indivíduo o direito a ser educado até onde o permitam as
suas aptidões naturais, independente de razões de ordem econômica e social. A
educação nova, alargando a sua finalidade para além dos limites das classes,
assume, com uma feição mais humana, a sua verdadeira função social, preparando-
se para formar "a hierarquia democrática" pela "hierarquia das capacidades",
recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de
educação […] (Cf. AZEVEDO, F.E.A. 2006, p. 191)
Apesar de certa sofisticação com a qual os elaboradores do Manifesto trataram
a necessidade da não dicotomia entre ensino profissional e universitário, a recorrência
às “necessidades psicobiológicas” de cada educando para justificar as aptidões e
atividades para as quais deveria ser encaminhados, acaba por invocar uma
determinação (de cunho biológico/evolucionista) que ao final viria a justificar,
cientificamente, a manutenção da hierarquização, definidas legalmente, a partir de
110 Acerca das reformas empreendidas por esse grupo em diversos estados do Brasil Cf. nota de rodapé
n. 80.
257
então, não mais pela cor da pele, mas pelas capacidades psicobiológicas dos
indivíduos.
O longo trabalho documental realizado por Jerry Dávila (2006) analisa como a
expansão e reforma do sistema educacional nas primeiras décadas do século XX foram
feitas com vistas à reprodução da manutenção dos lugares de privilégio com base em
raça. O autor analisa as políticas educacionais do período que vai de 1917 a 1945 e
conclui que os pressupostos da “eugenia lamarckiana” foram incorporados nas políticas
educacionais e nos projetos levados por educadores, intelectuais e políticos e que
mobilizaram a ciência, a técnica e o Estado a fim de regenerar a população negra com
vistas ao embranquecimento, não mais de sua cor mas agora de suas práticas.
A análise das políticas educacionais e da legislação para regulamentar o ensino
público brasileiro nascido após a abolição da escravidão, possibilita que percebamos de
que forma o racismo atravessou todo o processo de reforma e expansão da instrução
pública e qual o papel da classe média nesse processo. Para Dávila (2006), os
educadores:
“[…] Tinham fé irrestrita na capacidade do estado de funcionar de maneira
técnica e científica para transformar a nação. Os condutores da expansão e
reforma educacional acreditavam que a maior parte dos brasileiros, pobres e/ou
pessoas de cor, eram sub-cidadãos presos na degeneração – condição que
herdavam de seus antepassados e transmitiam a seus filhos, enfraquecendo a
nação. Os mesmos educadores tinham também fé na sua capacidade de
mobilizar ciência e política para redimir essa população, transformando-a em
cidadãos-modelo […]” (idem, p. 12-13).
As produções no campo da medicina e da sociologia, extremamente
influenciadas pelo pensamento eugênico, forneceram as linhas gerais que marcaram o
caráter racista que orientou a política educacional na primeira república e ao longo da
Era Vargas.
A lógica que orientava a prática educacional era oferecer ensino diferenciado
para pobres e negros, onde “os alunos pobres e de cor foram marcados como doentes,
maladaptados e problemáticos” (DÁVILA, 2006, p. 13). Para tal fim, a inclusão dos
testes psicológicos e o desenvolvimento do ramo da psicologia (como ferramenta
científica válida para instruir e desenvolver as faculdades mentais das crianças)
ganharam centralidade nas reformas educacionais promovidas nas três primeiras
décadas da República (CARVALHO, M. M. C., 1998).
A política educacional brasileira nas primeiras décadas do século XX foi
marcada por um duplo movimento: 1) expandir rumo à universalização do sistema
258
educacional, consolidando o igualitarismo burguês e; 2) garantir a manutenção de
mecanismos que perpetuassem a distinção entre a educação para as elites e a educação
para a grande massa de negros e pobres. Nesse sentido, a expectativa em torno da
educação era consolidar hierarquias e moderar a mobilidade econômica dos negros.
Um exemplo do processo de contenção da ascensão dos negros (e, portanto,
melhoramento racial), foi a institucionalização de processos seletivos e treinamentos
que resultaram no embraquecimento do quadro de professores na cidade do Rio de
Janeiro no início do século XX, como aponta Jerry Dávila (2006).
O projeto de embranquecimento das práticas via educação, foi liderado por
artistas (Heitor Vila-Lobos), antropólogos (Artur Ramos), educadores (Anísio
Teixeira, Fernando de Azevedo, Afrânio Peixoto) e com apoio do Estado. Um dos
principais entusiastas das políticas de “embranquecimento” foi o então Ministro da
Educação e Saúde no Governo Getúlio Vargas, Gustavo Capanema que tinha junto
com aqueles intelectuais, a “incumbência de forjar um Brasil mais europeu e preso a
um senso de modernidade vinculado à brancura, [assim] esses educadores construíram
escolas em que quase toda ação e prática estabeleciam normas racializadas e concedia
ou negava recompensas com base nelas” (DÁVILA, 2006, p. 24).
A maquinaria de melhoramento via educação, foi montada de modo silencioso,
isto é, políticos, intelectuais e educadores imprimiram suas concepções de raça às
políticas educacionais sem nomeá-las como tal dissimuladas em uma retórica que
articulava saberes da medicina, conhecimentos tecnicistas e nesse sentido “[...] o
conceito de mérito usado para distribuir ou restringir recompensas educacionais foi
fundado em uma gama de julgamentos subjetivos em que se embutia uma percepção da
inferioridade dos alunos pobres e de cor” (Idem, p. 13).
O processo que consolida a ideologia meritocrática no período republicano, em
nossa análise, se dá em concomitante à subjetivação racial. Subjetivação que ocorre por
meio da valorização da ideologia meritocrática. A hierarquização racial, portanto é a
base que sustenta o sistema meritocrático brasileiro, naturalizando a distribuição de
dons e méritos, ou ainda nas palavras de Michael Omi e Howard Winant (2014) “[...]
Race becomes "common sense"—a way of comprehending, explaining and acting in the
world” (p. 3).
A educação pública tem sido espaço de conflitos e tensões em torno dos seus
obejtivos. Portanto, a finalidade na educação em um contexto no qual raça estrutura
relações de poder, não passa incólume às tentativas por parte da elite branca de criar
259
uma sensação de igualitarismo, confirmada pela existência da educação pública.
Entretanto, como veremos a seguir a instrução pública não tem sido capaz de desmontar
as lógicas racistas que orientam a seleção de trabalhadores.
Avançaremos agora para a segunda parte do presente capítulo, a saber, a análise
dos dados acerca da taxa de desocupação por perfil racial escolaridade. Fizemos um
levantamento dos dados da PNAD para vermos qual é a situação da população negra no
que tange a taxa de ocupação e as disparidades em relação à população branca. Veremos
que há um movimento de marginalização racializada que marca a distribuição de
empregos em todos os outros níveis de escolaridade. Vejamos os dados do gráfico 2 que
se referem-se à taxa de desocupação entre respondentes alfabetizados entre os anos de
1988 e 2013111.
Gráfico 2: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com nível de
escolaridade Elementar (alfabetizados)
Fonte: elaboração própria a partir dos dados da PNAD.
Os dados do Gráfico 2 apontam para as diferenças entre as taxas de desocupação
entre brancos e negros com o mesmo nível de escolaridade elementar: em 1990 o
desemprego não chegava a atingir 2% das pessoas brancas enquanto a taxa de
111 Sobre os dados da PNAD, como será possível constatar, a referida Pesquisa não foi realizada nos anos
de 2000 e 2010. Além disso, em 2004 a PNAD passa a contemplar a população rural de Rondônia, Acre,
Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
1,9%1,5%
1,8%
2,8%2,5%2,7%
3,2%3,4%3,8%
4,2%4,3%
3,5%4,0%
3,3%3,4%2,9%2,7%
2,1%2,6%
1,7%1,5%1,7%
2,6%
2,0%
3,6%
3,8%3,6%3,1%
4,2%4,4%
5,1%5,4%5,2%
5,2%5,2%
4,5%4,6%
3,8%3,8%
2,8%
3,8%
2,8%2,4%
2,8%
19
88
19
89
19
90
19
92
19
93
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95
19
96
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19
98
19
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20
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11
20
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13
Brancos Negros
260
desocupação entre negros atingia 3,6% da parcela dessa população com nível elementar
de escolaridade. Nesse extrato, a baixa escolaridade poderia ser a razão explicativa para
a taxa de desocupação, mas por quais razões ela atinge mais a população negra?
Os dados do gráfico 3 referem-se à taxa de desocupação entre respondentes da
PNAD com nível de escolaridade 1º Grau (Ensino Fundamental) entre os anos de 1988
e 2013.
Gráfico 3: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com nível de
escolaridade 1º Grau
Fonte: elaboração própria a partir dos dados da PNAD.
Nesse extrato, observamos a partir dos dados supracitados, que se mantém a
disparidade na taxa de desocupação entre brancos e negros com ensino fundamental: em
1999, por exemplo, 15,3% dos brancos se encontravam desocupados, enquanto, entre os
negros esse número chegava a 19%. Os padrões de disparidade não apenas se mantêm
em relação ao grupo de desocupados com nível elementar de escolaridade como
aumenta a diferença entre brancos e negros com ensino fundamental completo. Válido
dizer que a primeira década dos anos 2000 acentua uma tendência de diminuição dessa
disparidade racial nessa parcela da população. Esses números apontam para a
complexidade dos modos de manifestação do fenômeno da marginalidade e os efeitos
da sua interação com o racismo: quando há aumento dos postos de trabalho, há a
inclusão dos negros de modo parcial e se há a diminuição da oferta de trabalho, os
negros são os mais atingidos pelas ondas de desemprego.
8,1%6,4%
7,8%
11,4%10,5%10,8%12,3%12,7%
15,7%15,3%13,8%13,5%13,9%
12,6%11,4%11,2%
9,8%9,0%10,6%
8,4%7,2%7,6%
10,0%
7,9%8,5%
14,8%
12,0%13,3%
14,5%15,7%
15,2%
19,0%18,2%
17,3%17,9%
14,3%16,0%13,8%
12,8%11,6%
12,8%
10,5%8,8%
10,0%
19
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19
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19
90
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Brancos Negros
261
Os dados do gráfico 4 referem-se a taxa de desocupação entre respondentes da
PNAD com nível de escolaridade Ensino Médio (2º Grau) entre os anos de 1988 e 2013.
Gráfico 4: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com nível de
escolaridade 2º Grau
Fonte: elaboração própria a partir dos dados da PNAD.
Interessante observar em relação às taxas de desemprego entre negros com
ensino médio, que a taxa de desocupação é levemente maior que na faixa da população
negra com ensino fundamental. Dado que seria necessário um outro trabalho de tese que
analisasse a conjuntura mais geral e o próprio contexto de reestruturação produtiva dos
anos 90 que permitisse afirmar com precisão as razões dessa diferença, ainda assim,
podemos dizer que suspeitamos que a competição entre negros e brancos por empregos
ofertados para quem tem ensino médio é maior se comparada à faixa populacional que
tem ensino fundamental (pelo tipo de emprego), aumentando a taxa de desocupação
entre negros com ensino médio. Importante observar ainda que os números melhoram
nos primeiros anos do século XXI, mas os negros continuam liderando a taxa de
desocupação, dado esse que nos informa sobre como a população negra, mesmo em
conjunturas favoráveis em relação ao aumento das taxas de ocupação, segue liderando
as taxas de desemprego.
Os dados do gráfico 5 referem-se a taxa de desocupação entre respondentes da
PNAD com nível de escolaridade Superior entre os anos de 1988 e 2013 e novamente a
cor da desocupação permanece nesse nicho de escolaridade: os negros são os mais
6,5%4,4%
6,5%
10,4%9,2%10,1%10,3%
12,0%14,5%
15,7%13,4%14,3%14,7%13,9%
11,8%13,1%12,7%
9,7%12,5%
8,8%8,4%8,3%
9,8%
6,7%
9,0%
13,6%13,1%
11,0%12,5%
14,8%14,1%
20,5%
17,3%18,1%17,2%18,2%
18,4%16,0%17,0%
12,2%
16,6%
13,1%10,8%10,1%
19
88
19
89
19
90
19
92
19
93
19
95
19
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12
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Brancos Negros
262
atingidos pelo desemprego também entre as pessoas com ensino superior ainda que as
taxas nesse nicho sejam de fato menores do que nas outras faixas de escolaridade.
Gráfico 5: Taxa de Desocupação entre o(a)s brasileiro(a)s negro(a)s e branco(a)s com
nível de escolaridade Superior
Fonte: elaboração própria a partir dos dados do PNAD.
Nesse nível de escolaridade, a média da taxa de desocupação entre os brancos ao
longo dos 25 anos analisados é de 3,6% enquanto entre os negros é de 4,2%, diferindo
em relação as outras faixas educacionais e evidenciando que sim, a formação
universitária ainda possibilita acesso ao mercado de trabalho.
Outra observação importante é o influxo entre os anos de 2012 e 2013 que
observamos nos demais níveis de escolaridade analisados até aqui e que também marca
a taxa desocupação dentre as pessoas com ensino superior: entre os brancos observamos
certa estabilidade na taxa de desocupação e ou até mesmo decréscimo e entre os negros
percebemos uma tendência de aumento. Em 2012 e 2013 a taxa de desocupação entre os
brancos com diploma universitário se manteve em 3,4%, já entre os negros saiu de 4,2%
em 2012 para 4,5% em 2013.
Importante ainda atentar quanto aos dados acima apresentados, destacar que os
desenhos das curvas para negros e brancos em todos os gráficos são similares, as
subidas e descidas, no geral, são as mesmas e nos mesmos anos em todas elas, apesar de
que como fica evidente, há distância entre brancos e negros. Ainda assim, há um
elemento comum de classe: negros e brancos, todos são trabalhadores expostos, com
1,6%1,1%
1,7%
3,0%3,0%2,7%
3,4%4,0%4,3%4,5%
4,2%4,1%4,6%
4,1%4,6%
4,1%4,2%4,4%4,3%3,6%3,4%3,4%
2,8%
1,9%
4,9%3,6%3,3%3,2%
3,7%3,7%
2,1%
5,2%
4,3%4,8%
5,1%4,7%
5,2%5,0%5,0%
4,3%
5,6%
4,6%4,2%4,5%
19
88
19
89
19
90
19
92
19
93
19
95
19
96
19
97
19
98
19
99
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01
20
02
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20
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20
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20
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20
09
20
11
20
12
20
13
Brancos Negros
263
intensidade distinta, à insegurança do mercado de trabalho. Nesse sentido, a
possibilidade de alianças multirraciais pode converter-se em estratégia eficaz de reação
e proposição de novos caminhos para emancipação, se considerarmos que os
entrecruzamentos entre classe e raça conformam a organização do capitalismo.
A discussão iniciada por Moura (1988) sobre o que ele chamou de “imobilismo
social contra o negro no mercado de trabalho” parece atual para compreender o
panorama da taxa de desocupados no Brasil. Embora os dados apresentados na presente
seção não nos forneçam informações sobre escolarização e categoria ocupacional ou
ainda outros elementos como a formação escolar na escola pública ou privada que nos
permitisse afirmar de todo que há uma divisão racial do trabalho e o efeito dessas
variáveis nas taxas de desocupação entre brancos e negros, ainda assim, observando o
quadro geral de escolarização e ocupação, a série histórica parece evidenciar que sim,
existe uma hierarquia racial do trabalho no Brasil e que a escolarização não tem
desmobilizado o peso da estrutura racista que privilegia brancos na ocupação de postos
de trabalho.
A educação segue conferindo às relações capitalistas uma aparência igualitária e
niveladora mantendo a divisão do trabalho com base na hierarquia racial e diante desse
quadro é preciso que reconheçamos as dinâmicas raciais que continuam organizando
racialmente o capitalismo por meio de suas práticas e ideologias. Nesse sentido,
entendemos que o racismo é a força material que permeia as estruturas sociais
emergentes do capitalismo (ROBINSON, 2000 [1983]).
As políticas educacionais desde as primeiras décadas da República,
desempenham um papel fundamental na regulação das relações entre elite, classe
média, pobres, brancos e negros que dentre outros feitos, tem (re) produzido uma
narrativa de incompatibilidade entre negritude e competência que permite a reprodução
da divisão do trabalho na sociedade brasileira. Sobre o processo de divisão do trabalho e
o papel da educação, Saes (2008) nos alerta que:
“[...] cairia em contradição o Estado capitalista que encaminhasse todos os
alunos para o desempenho de um trabalho de concepção, pois, nesse caso, a
sobre-qualificação chegaria ao seu grau máximo; ou o Estado capitalista que
preparasse todos os alunos, simultaneamente, para o desempenho de trabalhos de
concepção e de trabalhos de execução, pois, nesse caso, o Estado capitalista
estaria atuando, no plano educacional, como se fosse um Estado socialista.” (p.
169)
No jogo de ocultar e dissimular os interesses de classe que tem acompanhado as
políticas educacionais, como o movimento negro pode mobilizar os processos de
264
expansão do ensino público para erodir os alicerces que mantem a exploração e a
dominação? A reflexão levantada por Hasenbalg et al (1999) parece ainda muito
pertinente:
“as realizações educacionais dos não-brancos são traduzidas em ganhos
ocupacionais e de renda proporcionalmente menores do que os dos brancos. A partir
disso, pode-se concluir que não será através do processo de mobilidade social
individual que o Brasil irá se aproximar de uma situação de maior igualdade ente
grupos sociais” (p. 40).
Entendemos que o acesso à educação formal é uma condição para o progresso
dos negros mas no presente capítulo buscamos chamar atenção que mesmo essa
reivindicação precisa vir acompanhada de uma crítica ao modo como a burguesia e a
classe média tem se apropriado dessa reivindicação para conferir uma aparência
igualitária ao capitalismo racial. As reflexões suscitadas no presente capítulo acerca da
função da educação na sociedade de classes no século XXI não pretende em absoluto
menosprezar o papel da educação formal na luta pela emancipação do povo negro
tampouco das ações afirmativas, pois como bem analisou Cornel West (1994):
“A crise fundamental na América negra é dupla: pobreza demais e amor-
próprio de menos. O problema urgente da pobreza dos negros deve-se
principalmente à distribuição de riqueza, poder e renda […] os progressistas
deveriam encarar a ‘ação afirmativa’ não como a solução principal para a
pobreza, nem como um meio suficiente para igualdade. Devemos considerá-
la principalmente como algo que desempenha um papel restritivo: garantir
que as práticas discriminatórias contras as mulheres e pessoas de cor sejam
atenuadas […] mesmo que seja deficiente para reduzir a pobreza dos negros
ou que contribua para a persistência das idéias racistas […] sem ela o acesso
dos negros à prosperidade norte-americana seria ainda mais difícil, e o
racismo […] continuaria a existir de qualquer modo” (idem, p. 81-83).
Nesse sentido, a tentativa de expor algumas reflexões acerca dos usos e abusos
da defesa da educação pública pela elite e pela classe média não tem como finalidade
criticar a reivindicação do movimento negro por acesso a educação pública, pois isso
seria, para dizer o mínimo, injusto e pouco estratégico tendo em vista os “esforços
redistributivos” dos últimos governos progressistas graças à luta do movimento negro.
Nossa intenção foi unicamente evidenciar que a luta por acesso a educação é sim
fundamental, mas a desumanização, a exploração e a dominação no qual o povo negro
brasileiro está submetido não se constituem apenas como um “problema de educação”.
A reivindicação da inserção do negro em espaços como o da universidade não
pode estar dissociada, em nossa leitura, de reivindicações que confrontem à organização
da hierarquia racial do trabalho, que em nossa ponto de vista, tendo sido o motivo pelo
qual a educação destinada a negros, indígenas e pobres tem, historicamente, se
265
convertido em campo de (re)produção de relações de opressão e inferiorização. Os
programas “inclusivos” existentes nas universidades estaduais paulistas entre 2004 e
2014 parecem evidenciar nossa hipótese.
A exclusão do negro da educação universitária caminha lado a lado com as altas
taxas de desemprego que atingem de modo mais perverso a população negra, principais
vítimas do trabalho precarizado e das “instabilidades” do capitalismo. Nesse sentido, o
presente capítulo buscou refletir sobre a necessidade da luta antirracista considerar a
estrutura capitalista como um todo e seu funcionamento que cria obstáculos a instituição
de uma educação emancipatória e que corresponda à reivindicação do movimento
negro e os “esforços de afirmar a condição humana dos negros” (WEST, 1994, p. 85).
266
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O debate gerado nas três universidades estaduais públicas paulistas acerca da
adoção da reserva de vagas com recorte étnico racial entre os anos de 2004 e 2014 se
converteu em uma oportunidade para entendermos em que medida a obstinação da
fração da classe média alta e branca pela ideologia meritocrática informa acerca da
estreita relação entre a prática política daquela fração classe e a reprodução de
mecanismos racistas no processo de expansão do ensino público brasileiro.
A crítica ao PIMESP pelos docentes se não serviu para manter as três
universidades isoladas absolutamente das mudanças que estavam a ocorrer no cenário
nacional em relação à expansão do acesso ao ensino superior, acabou por protelar a
adoção de cotas étnico-raciais. A crítica feita pelos docentes foi em parte conservadora e
racista. Em outras palavras, a recusa ao PIMESP não foi necessariamente pelo caráter
descaradamente racista e elitista do Programa, mas pela possibilidade real de
desorganizar os espaços de privilégio, já que a proposta do Programa instituiria o
mecanismo de reserva vagas, limitando – ainda que pouco – a reprodução e manutenção
dos privilégios da fração da classe média que tem perpetuado sua condição por meio do
controle do espaço da universidade.
O PIMESP foi resultado de uma tentativa de administrar um período no qual as
relações políticas, as formas de reprodução de classe- no caso a classe média- e
representações políticas estavam em disputa, diante da força do movimento negro e da
expansão das políticas de cotas no contexto nacional. Nesse sentido, entendemos que a
defesa da manutenção dos programas já existentes pelos docentes tinha como objetivo
afastar o perigo da deterioração da “excelência” das universidades, evidenciando a
busca daquela fração da classe média pela manutenção da hierarquia racial do trabalho.
O discurso meritocrático juntamente com mito da democracia racial articulado
ao antirracialismo compôs a base discursiva sobre a qual os docentes construíram seus
argumentos para barrar o PIMESP, assim como a adoção das cotas. Nesse sentido, esse
construto ideológico complexo foi mobilizado pela fração da classe média alta e branca
de forma a obscurecer os interesses e conflitos presentes na implementação das políticas
de ação afirmativa nas universidades estaduais paulistas, contribuindo para a
perpetuação do monopólio (racial e de classe) das vagas em instituições públicas de
ensino com grande prestígio e reconhecimento internacional.
267
A (suposta) reivindicação da classe média pela melhoria do ensino público não
conseguiu sustentar-se em algumas manifestações dos docentes, ficando mesmo
explícito, em nossa interpretação , que a rejeição ao PIMESP, principalmente ao modelo
do Instituto Comunitário de Ensino Superior (ICES), tinha como pano de fundo uma
preocupação com a possibilidade da erosão da “hierarquização do trabalho” (SAES,
1977, p. 100).
A crença do espaço da universidade como espaço democrático por excelência,
fora dos conflitos e tensões da comunidade política esteve também presente nos
manifestos, o que nos leva a confrontar a própria condição de classe e raça dos
docentes. E por quê? Nos discursos sobressai-se uma universidade quase
ontologicamente democrática, como espaço plural em si negando o pacto do aparelho
educacional de Estado com a reprodução da divisão do trabalho (SAES, 2008, p. 174)
que é ao mesmo tempo elitista e racista.
Longe de um programa totalmente forjado fora da lógica que orientava a
formulação de outros programas inclusivos já existentes nas universidades estaduais de
São Paulo, o PIMESP reproduziu (ainda que não de todo) a definição “do problema e da
solução” relativa à ampliação do acesso às universidades que estiveram nos
pressupostos de criação dos programas inclusivos vigentes nas estaduais paulistas como
o PAAIS, o Profis, o INCLUSP e o PASUSP. E afirmamos isso com base em dois
argumentos básicos.
Em primeiro lugar, em relação à definição do problema, a saber, da não presença
no espaço das universidades públicas de grupos historicamente oprimidos como
decorrente exclusivamente da má qualidade do ensino público. Tanto o PIMESP como
os demais programas partilhavam desse entendimento. E nesse sentido, a recorrência a
escola pública, acaba por jogar o racismo para fora do enquadramento da questão e a
pobreza e escola pública são tomadas como sinônimos, silenciando a estrutura de
classes e as hierarquias raciais que sustentam a exclusão da universidade. Como
resultado do enquadramento míope do problema do acesso, a negação do racismo e a
tomada do antirracialismo como antirracismo dissimulou o racismo institucional,
embasando a reprodução pelos docentes de uma narrativa muito próxima ao que Sueli
Carneiro (2002) chamou de “neo-democracia racial”.
Em segundo lugar, partindo da definição de que o problema é a má qualidade do
ensino público, a classe média, frente à pressão da classe dominante e do movimento
negro, buscou soluções que garantissem acima de tudo a manutenção do seu lugar de
268
reprodução. Para isso investiu em estratégias para controlar as fronteiras que dividem
trabalhadores manuais e trabalhadores não-manuais, garantindo o controle do processo
de sobrecertificação por meio da defesa dos programas inclusivos já existentes nas
universidades. Nesse contexto, a reivindicação da autonomia universitária teve um papel
importante, configurando-se em uma estratégia fundamental no conflito gerado em
torno do PIMESP.
Se por um lado, o conflito em torno do PIMESP nos informa acerca das novas
estratégias empregadas pela fração da classe média alta e branca frente à expansão do
acesso ao ensino superior, por outro, a narrativa empregada pelos docentes evidenciam
as tensões e choques na reprodução da estrutura racializada no Brasil, tornando
evidente, para nós, como aquela fração da classe média passa a ser agente que contribui
para a reprodução do imaginário que desumaniza a população negra no Brasil. Nessa
perspectiva, ao passo que afirma sua distinção pelas suas competências intelectuais, a
classe média branca constrói a base epistemológica que naturaliza a inferioridade da
população negra.
Parafraseando Fanon, que bem disse que um país é racista ou não é, o processo
de adoção das políticas afirmativas nas estaduais de São Paulo revelam os meandros dos
mecanismos que reproduzem as relações de classe e raça. As tensões racias, abertas e ao
mesmo tempo silenciadas, ao longo do processo que culminaram na rejeição do
PIMESP e que levaram a mera reformulação dos programas de “inclusão” já existentes
nas três universidades nos levam a refletir acerca dos limites da gramática da
diversidade que parece ter ganhado legitimidade junto à fração da classe média alta e
ligada à universidade naquele contexto.
A narrativa da diversidade, apropriada pelo neoliberalismo e reproduzida pelos
docentes expressa na “busca por talentos” presente em vários documentos analisados na
presente tese, é o mais do mesmo: reprodução da lógica da inclusão circunscrita no
horizonte do igualitarismo abstrato que esvazia os componentes históricos da luta
antirracista e que por isso não dialoga com os sujeitos políticos que reivindicam direitos
mas também o reconhecimento de uma história de opressão.
A reivindicação da diversidade presente no discurso dos docentes das
universidades estaduais paulistas, portanto, só é desejável na medida em que está
dentro dos critérios definidos pela fração da classe média alta e branca ou ainda nas
palavras do reitor da USP, Vahan Agopyan, “as cotas não são favor ou assistencialismo,
269
mas uma maneira de a universidade recrutar ótimos alunos e avançar” 112. O discurso da
“diversidade funcional” parece dar novos contornos à domesticação da luta pela
democratização do acesso à universidade, ao mesmo tempo em que modera os
conflitos de classe e raça.
A dinâmica que o capitalismo imprime às relações de classe, exigindo uma
renovação nos mecanismos de sustentação da hierarquia do trabalho, torna pertinente,
em nossa análise, a apropriação do conceito de racismo institucional para entendermos
como se dá a operacionalização da hierarquização racial a partir de mecanismos
rotineiros, assegurando a dominação e a inferiorização do negro de modo velado. E é a
partir dessa perspectiva- da negação dos condicionantes institucionais que perpetuam o
racismo- que inscrevemos a resistência da fração da classe média alta e branca no
debate sobre o PIMESP.
Do envolvimento (oportunista) nas lutas antiescravistas a reduto opositor da
adoção de reserva de vagas étnico-raciais, procuramos evidenciar na presente tese que
a narrativa da incompatibilidade entre competência e negritude não é um mero efeito
colateral da ideologia meritocrática reproduzida pela fração da classe média alta e
branca na busca pela manutenção da sua condição, mas é precisamente a reificação do
negro, fonte por excelência da afirmação da suposta superioridade daquela fração de
classe como justificativa para legitimar a manutenção do seu lugar na universidade.
112 Fonte: Revista Veja, edição online, 18 de maio de 2018. Disponível em:
https://veja.abril.com.br/revista-veja/um-passo-decisivo/ Acesso em: 20 jun. 2018.
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