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Teatro

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    GARRETT E O TEATRO PORTUGUS

    Conferncia pronunciada por Augusto de Castro no Teatro Nacional

    D. Maria II, em 19 de Novembro de 1954

    Para compreenso da influncia e da glriade Garrett no seu tempo, impossvel, mais do que em qualquer outro escritor naLiteratura Portuguesa, separar a evocao da sua vida do estudo da sua obra. Noconheo mesmo na Literatura Europeia, parte Byron, outro esprito em quem aproduo artstica e as vicissitudes do destino pessoal estejam mais indissoluvelmenteligadas.

    Nenhuma existncia mais ardentemente humana do que a desse inquieto, desseamoroso impenitente, desse inconstante atormentado pelas paixes e pela vaidade,desse gnio do Corao que foi, acima de tudo, Garrett. Raramente no esplendorliterrio, o Poeta e o Homem se encontraram mais sincera e empolgantemente unidos.O drama a vida e o amor a essencial parte da vida escreveu Garrett no Prlogodo Alfageme de Santarm. Poucas existncias tero mais dispersiva e luminosamenteilustrado esta realidade. Pode dizer-se que a todas as criaes do seu esprito estomisturados farrapos da sua carne.

    Esse Escritor espartilhado e brasonado, visconde, no fim da vida, como Camilo (que mania tinham, desde o Visconde de Chateaubriand, os homens de letras nosculo 19, de serem viscondes!) que se preocupava, como de negcios de Estado,com os sinetes, os anis, os berloques e as condecoraes; que mandava vir de Londrescasacas e um trajo de caa, para ir a Sintra, e que, aos 56 anos, j ferido pela morte,ainda se gabava para os amigos, conforme conta Gomes de Amorim: sinto-me capazde aguentar seis namoros) este Escritor janota, por vezes enfatuado e ingenuamentevaidoso, que cria, no seu tempo, o dandismo em Portugal e a moda Garrett, massempre generosamente, exaltadamente sincero, conservou, mesmo na doena e naprecoce velhice, o segredo, o culto, o vcio admirvel da mocidade. Morreu com osvinte e cinco anos que tinha havia trinta anos disse Herculano.

    O tempo que preciso para se ser jovem! escreveu um dia Picasso, queanda h setenta anos a passear vinte anos pelo Mundo. Garrett, seis anos antes demorrer, publica a sua obra-prima lrica, As Folhas Cadas, os versos estuantes dum

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    amor de colegial pela Viscondessa da Luz, que tinha 28 anos espanhis; exibe, sob asrvores de Sintra, e na estrada de Pedrouos, o seu idlio inflamado e s escondidasescreve e passa, nos sales, bilhetinhos de derrio mulher amada: morro pelos maislindos olhos que ainda vi. J consagrado pelo xito e pelos anos, debruado dumafrisa deste teatro, de casaca verde, colete branco e camisa com folhos de cambraia,numa noite de primeira representao, grita para a plateia indiferente e silenciosa:Aplaudam, brbaros!.

    O mundo divide-se em duas grandes floras humanas: os velhos e os novos. Estadistino no tem nada com a idade. A mocidade no homem a capacidade dodesejo e do entusiasmo. H novos de sessenta anos e velhinhos de dezoito. A vida deGarrett , no fogo que a consumiu, a histria duma juventude. A sua obra o espelhoe a imagem dessa vida, agitada por clares de gnio, florida de iluses, velada desombras, iluminada por doces claridades, sacudida por vendavais, fremente evoluptuosa. E isso que faz, no barro eterno do amor e da dor, a sua palpitanteimortalidade.

    Quando (far dentro em alguns dias cem anos), por uma fria e triste tarde deDezembro, Garrett foi a enterrar, s Rebelo da Silva, no fnebre silncio do cemitriodos Prazeres, soube, em improviso no estilo pomposo da poca, interpretar osentimento nacional, perante o tmulo desse que fora a maior figura literria dePortugal depois de Cames. Herculano, que estava presente, recusou-se a falar. AntnioFeliciano de Castilho pronunciou poucas palavras. Houve uma poesia de MendesLeal, recitada por Lus Augusto Palmeirim. Mas no momento preciso em que sefechava a campa, um raio de sol descreve-nos, vinte e trs anos depois, umatestemunha um raio de sol at ali encoberto, rompeu por entre um castelo denuvens cinzentas e veio iluminar, como numa despedida, o caixo que descia cova.A mocidade pagava-lhe, numa derradeira chama, o tributo que devia quele que forao corao mais novo do seu tempo.

    Mas se a glria do escritor do Arco de SantAna, do orador do Porto Pireu, dodramaturgo do Frei Lus de Sousa, do homem excelsamente amado pelas mulheres,adulado, detestado, caluniado pelos homens, entrava nessa hora na Posteridade, a suainfluncia no pensamento e nas letras portuguesas leva trinta anos a produzir-se.Neste Pas traduzido nessa poca do ingls e do francs e de que Garrett fora a primeiraexpresso verdadeiramente nacional, o neogarrettismo s surge com a gerao de 70 com o teatro neo-romntico de Lopes de Mendona, de Marcelino, de D. Joo daCmara e mais tarde de Jlio Dantas; com Ramalho Ortigo, Joo de Deus, Antnio

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    Nobre, Alberto de Oliveira, Conde de Monsaraz, Antnio Sardinha, Lopes Vieira,Fernando Pessoa, Correia de Oliveira, com a gerao que, atravs dos incidentes eperspectivas da agitada vida portuguesa dos ltimos cinquenta anos, precede aressurreio nacionalista de que o autor das Viagens na Minha Terra, do Romanceiro,da Dona Branca e do Alfageme de Santarm foi o nclito precursor. No prtico dessaobra inscrever-se-o para todo o sempre estas palavras de que Garrett fez o seu programaespiritual e literrio: Vamos a ser ns mesmos, a ver por ns, a tirar de ns, a copiarda nossa natureza.

    *

    Foi-me destinado evocar hoje, neste lugar, a memria de Garrett, homem deteatro. Nenhum quadro mais prprio para o fazer do que o cenrio desta casa que foia sua, que, pode dizer-se, ele ergueu pedra a pedra.

    A aco ilustre do grande Escritor no teatro portugus pode dividir-se em trsgrandes expresses: os seus esforos para a fundao deste Teatro e do Conservatrioe a criao da Inspeco-Geral dos Teatros; o auxlio, material e literrio, renovaodos autores e dos actores portugueses e, finalmente, a sua obra admirvel dedramaturgo, em que avulta, como jia insupervel da nossa literatura dramtica, oFrei Lus de Sousa que, s por si, constitui a glria definitiva do Teatro Portugus.

    *

    Quando Garrett regressa dos seus exlios na Inglaterra e na Frana, o espectculoque, nos domnios da inteligncia, a sociedade portuguesa do tempo, em plena fogueirapoltica, lhe oferece no podia deixar de impressionar o ardor dessa espcie deproselitismo intelectual e sentimental que, pela vida fora, nunca o abandona. Oprimeiro e mais flagrante dos contrastes com a influncia e a recordao do meio emque, em Londres e Paris, vivera, o estado andrajoso do teatro portugus, acantoado,como diz Tefilo Braga, nos barraces do Bairro Alto e do Beco das Comdias,vergonhosamente sumido no Ptio do Patriarca, nos pardieiros do Salitre e da Ruados Condes.

    Os actores eram borrachos sem conscincia. O pblico delirava com a Preta deTalentos, a Zanguizarra, a Talafozada e com as comdias do Antnio Xavier, de que

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    nos ficou a memria do famoso Manuel Mendes Enxndia. Vale a pena assistirmos,daqui, a uma representao duma pea da poca. Eis uma saborosa descrio de JosAgostinho:

    Est em cena o Marido Mandrio, traduzido do francs Le Mari Insouciant edado por original por um gnio abrilhantador. Feridos que sejam os tmpanos dosassistentes por uma, segundo o costume, desafinadssima gaitada de rebeca,engrossada a atmosfera teatral com o denso e fedorento vapor de sebo e azeite depeixe, ao som de agudo apito, como se aquilo fosse alcateia de Ermites da charneca,vai o pingado, esfarrapado pano acima, em que eternas teias de aranha formam oubarambazes ou bambolinas; aparece engasgada actriz com um olho na frisura tal,outro no banco tal, outro botado plateia tal, e outro l para onde a ela lhe parece.Abre a boca, depois de a abrir primeiro o alambazado ponto que grita mais do queela, olha para ela que j faz aces com os escarnados braos sem ter proferidopalavra, e diz: A flor que abre o clix ao orvalho do meio-dia, quando a noite compincis divinos pesponta o quadro da madrugada...

    A um sculo de distncia, perdeu-se, felizmente, a tradio de gaitada de rebecamas seramos injustos se no reconhecssemos que ainda por c ficaram restos, que,de vez em quando, revivem, do alambazado ponto que grita mais do que ela. Nemtudo pode desaparecer na voragem do tempo! H tradies tenazes.

    certo que nessa altura comeam a surgir actores como Teodorico, Epifnio,Florinda e Carlota Talassi. Em 1835, uma Companhia francesa vem a Lisboa, instala-seem 1837 na Rua dos Condes. Mas, sem reportrio, sem casas de espectculo, instaladoem pobres pardieiros, o Teatro Portugus um triste arremedo de feira.

    Garrett tinha feito representar em Plymouth, pelos companheiros de emigrao,a sua tragdia da mocidade, Cato. Recebera a influncia directa de Shakespeare, deGoethe e de Schiller, da renovao romntica na Alemanha. O vendaval de Hugo,com o Cromwell e o Ernani, comeava a soprar sobre a Europa. De Inglaterra Garretttraz o dandismo e essa espcie de liberalismo elegante e palaciano que, politicamente,conservou at morrer. Familiarizara-se com a ecloso do esprito europeu, na primeirametade do sculo 19. Mas facto s na aparncia paradoxal este Escritor, medida que, pela evoluo da sua inteligncia e da sua cultura, se universaliza (como muito bem notou o Sr. Joo Gaspar Simes, na primeira das suas confernciasno Porto, Garrett um dos nossos escritores do sculo passado de personalidade eestofo mais decisivamente universalistas), medida que se universaliza, o autor deMerope e do Cato, o poeta filintista da mocidade, o neo-arcdico de antes do exlio,

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    escreve, no seu regresso a Portugal, estas palavras que vo ser o programa da sua acopoltica e literria, o programa do Garrettismo: Os deuses gregos fizeram as delciasde nossos empoados avs e espartilhadas tias. Mas para ns a histria nacional, astradies populares, as supersties mesmas, os costumes, as crenas de cada povoque s podem fornecer assuntos que nos interessem e divirtam.

    Em Arte, a universalidade s se atinge atravs da expresso nacional. Onacionalismo de Garrett vai dar Literatura Portuguesa as nicas obrasverdadeiramente universais da primeira metade do sculo 19, em Portugal.

    *

    O aviltamento, material e artstico, do Teatro Portugus, em que h poucofalmos, as chocarrices e a misria do pblico, da sala, das peas e dos actores, nopodiam deixar de impressionar o emigrado europeu que voltava a Portugal vindo dosexlios de Londres e de Paris, e da Legao de Bruxelas, onde fora Encarregado deNegcios e onde a mulher o trara.

    No foi Garrett o nico impressionado pelo estado a que tinham descido aliteratura dramtica e o gosto popular, entre ns. Herculano j se indignara numadaquelas cleras reprimidas em que se expandia, de vez em quando, o seu ascetismoliterrio.

    O primeiro passo para a restaurao duma cultura artstica d-o, em 1835,Agostinho Jos Freire publicando o decreto de 5 de Maio desse ano para, segundo ostermos do seu relatrio, promover a Arte da Msica e fazer aproveitar os talentosque para ela aparecerem. Mas o que interessava o Ministro era o Teatro Italiano.Criava-se um Conservatrio de Msica e as aulas abertas ao pblico destinavam-seao ensino de msica sacra prpria dos ofcios divinos e a profana, incluindo o estudodas peas do Teatro Italiano.

    Para a direco da Escola escolhe-se um homem com um nomemeteorologicamente auspicioso. Chamava-se Bomtempo Joo DomingosBomtempo. E foram nomeados logo os professores para os instrumentos de lato,para os instrumentos de arco e at para os instrumentos de palheta. Em Janeirode 1836 era Governador Civil de Lisboa, Joaquim Larcher. Completando a iniciativado Ministro Agostinho Jos Freire, Larcher procura organizar uma associao para,por meio de aces, comprar um terreno para a edificao dum teatro nacional.

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    Formou-se o plano, indicaram-se subscritores, tratou-se do local, escolhendo-se oterreno da Anunciada, onde estava o Teatro da Rua dos Condes. Desses trabalhos eesforos resultou o ofcio remetido ao Governo em 28 de Janeiro de 1836, assinadopor Joaquim Larcher.

    Os trabalhos dos,arcos e das palhetas, assim como os esforos do benemritoGovernador Civil para a fundao dum teatro nacional, foram interrompidos, emSetembro desse mesmo ano de 1836, pela Revoluo chamada Setembrista. O MinistroAgostinho Jos Freire foi assassinado. Passos Manuel sobe ao poder e encarrega algunsdias depois o seu amigo e patrcio Almeida Garrett de propor sem perda de tempoum Plano para a fundao dum teatro nacional nesta capital, o qual, sendo umaEscola de bom gosto, contribua para a civilizao e aperfeioamento moral da naoportuguesa e satisfaa aos outros fins de to teis estabelecimentos; informando, aomesmo tempo, acerca das providncias necessrias para levar a efeito os melhoramentospossveis dos teatros existentes.

    Esta portaria tem a data de 28 de Setembro. Algumas semanas depois, em 12 deNovembro de 1836, Garrett apresentava o seu projecto, convertido em lei pelo Decretode 15 de Novembro. Dava-se o primeiro passo para a restaurao do teatro portugus.A luta de Garrett ia, porm, durar seis anos, at 1842, em que essa obra, finalmente,se completa.

    O decreto de 1836, ao qual devemos a honra de estar aqui sentados esta tarde,cria a Inspeco-Geral dos Teatros e Espectculos Nacionais e o Conservatrio deArte Dramtica; funda os Prmios para os Autores das peas declamadas como daspeas cantadas ou lricas, prmios cuja concesso s ser regulamentada em 1839, e,finalmente, lana as bases para a constituio duma sociedade associao de pessoaszelosas destinada a promover os meios para a construo dum edifcio em quedecentemente se possam representar os dramas nacionais.

    A Inspeco-Geral dos Teatros tem por fim: velar e prover em tudo quanto nofor a polcia externa dos teatros e mais espectculos; aprovar as peas; interpor juzode equidade em todos os casos de desinteligncias entre os Artistas e os Empresrios,dirigir e fiscalizar a boa regncia dos Conservatrios; convocar e presidir ao jri dosprmios.

    Garrett nomeado para o cargo gratuito de Inspector-Geral dos Teatros, que sexercer durante cinco anos, at Janeiro de 1841, e o seu primeiro trabalho organizaruma companhia de declamao que vai funcionar no velho Teatro da Rua dos Condes,

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    estreando-se com o drama A Duquesa de Vaubalire. Garrett aproveita-se para esseefeito do exemplo e da colaborao duma Companhia francesa, que chegara a Portugalem 1835 e de que faziam parte os actores MM. Paul, Charlet, Roland, M.me Charton.

    O Conservatrio de Arte Dramtica, criado ao mesmo tempo que a Inspeco-Geral dos Teatros, foi dividido em trs escolas: declamao; msica e dana; msicae ginstica especial.

    frente do novo Conservatrio continuava o Sr. Bomtempo, o que era de bomagoiro. O curso de declamao era dividido em trs perodos ou termos: RectaPronncia e linguagem; Rudimentos literrios e Aula de dana para desplante docorpo e desembarao dos movimentos. Este programa valeu durante algum tempo,a Garrett, a alcunha, lanada pelos seus inimigos, de Recta Pronncia. Quanto aodesembarao dos movimentos avanou-se alguma coisa desde ento at aos nossosdias. O desplante do corpo hoje sensivelmente o mesmo.

    Aps longas hesitaes, o Conservatrio ficou instalado no edifcio dos Caetanos,ento pouco menos do que em runas. O actor francs M. Paul fora encarregado dadireco da Escola Dramtica e para o coadjuvar, como professor, foi nomeado umactor portugus de nome Lisboa. O Conservatrio passou assim a ser no oConservatrio Real de Lisboa, mas o Conservatrio do Lisboa.

    Em 23 de Maro de 1840, por ocasio do aniversrio da Rainha D. Maria II,realizou-se no Teatro do Salitre a primeira festa do Conservatrio. O programa tinhatrs partes. A primeira era constituda por uma cantata chamada Apoteose, compostapelo professor Francisco Xavier Migone, com letra de Csar Perini di Luca. Os alunosda Escola de Msica interpretavam os papis de Vnus, Cames, Apolo e o Coro. Acantata tinha cinco cenas e todas decorriam em um stio delicioso dos bosquesIdlios, onde Cames aparecia pensativo e triste (dizia a rubrica) assentado debaixodum loureiro.

    O pico comea naturalmente por lamentar as desgraas da Ptria, as discrdiascivis e a decadncia das Artes. Ferido por este trplice infortnio, Cames dspe-se apartir e, a cento e tantos anos de distncia, ns ainda lhe damos razo. Mas nessemomento ouve uma msica de suaves acentos. Vnus, em carne e gases, que cantavauma ria de esperana. O Poeta (diz a cantata) fica maravilhado, e o caso no erapara menos. Fica maravilhado e mais tranquilo. A voz da Deusa foi um remdiosanto: num instante apazigua-lhe os desgostos. Os vates foram sempre sensveis vozde Vnus! Afinal, Cames decide-se e sai para dar lugar entrada da conhecida

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    divindade mitolgica comovida pelos tormentos do cantor dOs Lusadas. Seguem-sediversos Amorinhos (estou seguindo sempre a inspirao do Sr. Perini di Luca)formando engraados grupos em torno da Deusa. Surge tambm, tirada por pombase guiada pelo Amor imaginem os senhores o qu? , uma concha marinha. Vnus,comovida com a apario, anuncia a felicidade da Lusitnia, a renascena das Artes ea glria da senhora D. Maria II e pe o coro na rua, porque quer ficar s com Cames. neste instante culminante que se abre o fundo do teatro, sob os eflvios dumamsica vaga. E v-se, no meio dos Amorinhos, com instrumentos artsticos e grinaldasde flores, o busto da Rainha. Em torno do pedestal esto Deus do Cu! ,agrilhoados, a Ignorncia, o dio e a Discrdia. Cames, acompanhado por Vnus,coroa o rgio busto e Apolo e o Coro aclamam esta singular Apoteose que deve tersido muito aplaudida.

    Na segunda parte do espectculo os alunos da Escola de Declamaorepresentaram, pela primeira vez, o drama de Garrett, Amor e Ptria, que, remodeladomais tarde, deveria chamar-se D. Filipa de Vilhena. Aps a recitao, no intervalodum monlogo, O Parricdio, a Escola de Dana veio, na terceira parte, desempenharuma ferie em dois actos que tinha um ttulo que ainda hoje nos faz crescer gua naboca: As Trs Cidras do Amor ou Bela, Rica e Boa. Com tais requisitos, este ttulopoderia hoje inspirar, num anncio, uma aliciante proposta de casamento.

    *

    A gloriosa tarefa de Garrett de restaurao do Teatro Portugus, que, ele prprio,deveria qualificar de pasmosa pertincia, tem o seu coroamento na longa cruzadapara a fundao e construo deste Teatro.

    O decreto de 1836, promulgado sobre o Projecto de Garrett de 12 de Novembro,estabelecia, como vimos h pouco, as bases para a constituio duma sociedadedestinada a promover os meios para a construo dum edifcio em que (eram asexpresses do Legislador) decentemente se pudessem representar os dramas nacionais.

    A primeira dificuldade a resolver era a escolha do local para o novo Teatro.Comea a o inevitvel drama de todas as iniciativas e obras burocrticas. JoaquimLarcher indicara em 1836 o terreno da Anunciada, perto do velho Teatro da Rua dosCondes. Garrett, nomeado Inspector-Geral dos Teatros, renuncia a esta ideia e propeo Palcio da Inquisio, no Rossio. Alguns sculos antes, diante dos seus sinistros

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    muros, tinha sido queimado vivo um homem de teatro, Antnio Jos da Silva. Essacircunstncia, entre outras, indicava, antes de mais nada, este local para futurossuplcios dramticos. A Histria tambm tem as suas ironias.

    O Governo aceita a indicao de Garrett. O arquitecto Chiari encarregado defazer o projecto, cujo custo , nessa altura, computado entre sessenta e cinco mil esetenta e cinco mil cruzados. Foi ouvido o Inspector-Geral dos Teatros; forammandados ouvir os Arquitectos da Academia de Belas-Artes. Em Outubro de 1838,foi eleita uma Comisso para reunir os accionistas. Quando tudo estava pronto e seia obter a autorizao do Governo para a formao da Sociedade, o Governo de entoj tinha dado outro destino menos dramtico ao Palcio do Rossio. Tinha amortizadocom ele uma parte da dvida do Estado Cmara Municipal de Lisboa. O terrenoagora pertencia Cmara.

    E aqui acaba o primeiro acto.

    O segundo acto inicia-se com as diligncias de Garrett, desiludido do Palcioda Inquisio, para obter a cerca do Convento de S. Francisco da Cidade. A proposta aceita, publicam-se as condies para a constituio da empresa accionista, obtm-se30:700$000. O Parlamento aprova. Os trabalhos vo comear. Passou-se isto emcomeos de 1839. Entra nessa altura em cena o Conde de Farrobo que se oferecepara, sendo-lhe o terreno vendido em boas condies, construir, ele, o teatro suacusta, ficando sua propriedade. Foi solicitada e obtida oficialmente a autorizaopara a venda particular, sem arrematao em praa pblica. O Governo manda que aInspecco-Geral dos Teatros estipule as condies de venda. Surgem, porm,desinteligncias entre Garrett e Farrobo. Este desiste da sua proposta e da construo.A ideia da cerca do Convento de S. Francisco inutilizada. Tem de se voltar aoprincpio.

    Fim do segundo acto.

    A primeira cena do terceiro acto passa-se na Cmara dos Deputados, em 1840.Garrett, que faz parte do Parlamento, consegue a aprovao duma lei autorizando oGoverno a ceder o terreno, bem como os materiais desaproveitados de outros edifciosdestrudos, para a construo do Teatro Nacional, podendo faz-lo por meio de compraou troca por outros quaisquer bens.

    O Inspector-Geral dos Teatros, que tenaz, visa com esta ltima clusula oprojecto, que no abandonara e a que volta, aps a decepo do Conde de Farrobo,do aproveitamento do Palcio da Inquisio. A Cmara Municipal de Lisboa,

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    proprietria agora do terreno, acede solicitao de Garrett e, em ateno (diz a actada resoluo municipal) ao interesse pela realizao duma obra que a civilizao e opblico to altamente reclamam, vende o Palcio sociedade que se formar para aconstruo do Teatro, por dez contos de ris. No se pode dizer que fosse caro !

    Abre-se o concurso para as obras; lana-se um emprstimo de cem contos. Destavez, parece que tudo vai marchar. Mas no. Ainda no desta vez. Um novo golpe deteatro surge. Os mrtires da velha Inquisio vingam-se. A pasmosa pertincia, adedicao, a iniciativa e o desinteresse de Garrett tinham de receber um prmio. Pormotivos polticos divergncias com o Governo Garrett demitido deInspector-Geral dos Teatros, cargo que ainda por cima era gratuito.

    E desce o pano sobre o terceiro acto.

    Se fosse nos tempos de hoje, a pea acabava aqui. Mas, nessa poca, os dramastinham sempre, pelo menos, quatro actos.

    O quarto acto tem por protagonista o antigo Governador Civil, Joaquim Larcher,nomeado para substituir Garrett na Inspeco-Geral dos Teatros o homem queem 1836 realizara os primeiros esforos para a edificao do Teatro. ele quem, em1841, sucedendo a Garrett, retoma a tarefa interrompida pela demisso do grandeEscritor. Deve-se-lhe um engenhoso plano de subscrio para angariamento dos fundosnecessrios construo. Recorrendo s Caixas do Contrato do Tabaco, aliviadasdurante seis meses, de 1843 a 1846, do encargo de sustentar a pera Italiana em S.Carlos, esperando-se obter assim quarenta contos; com o subsdio de dez contos daRainha e cinco contos do Duque de Palmela, uma ajuda do Estado de vinte contos ecom outras verbas, Larcher obtm noventa contos. As obras iniciam-se em Julho de1842.

    Realizava-se enfim o sonho de Garrett. O Teatro ia ser construdo sobre estacas,devido humidade do solo. Castilho pe-lhe, por isso, o nome de Teatro Agrio.O agrio nasceu, cresceu com o tempo e tem dado lugar, no decurso acidentadodos anos, a vrias e excelentes saladas. A ltima, meus Senhores, a desta tarde.

    A aco admirvel em prol da restaurao, material e artstica, do TeatroPortugus, no tem apenas o seu monumento nacional nas paredes desta Casa que,para a Posteridade, ficou como sua. No se limitou fundao do Conservatrio, criao da Inspeco-Geral dos Teatros e dos Prmios Literrios, estende-se, podedizer-se, a todos os domnios da vida intelectual portuguesa, desde a reviso dorepertrio teatral sua aco pessoal junto dos autores e das obras, sua iniciativa, a

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    tudo o que, no seu tempo, representou em Portugal um estmulo de grandeza, deinteligncia ou de beleza nacionais.

    Mas isso so aspectos da mltipla personalidade de Garrett de que outros, maisqualificados do que eu, se ocuparo em outros lugares. Da glria, que enche Portugal,daquele a quem os seus contemporneos chamavam o Divino, s me cumpre evocarnesta sala o homem de teatro.

    Falmos do Reformador. Mas acima das pedras que ele ergueu; da obra derenovao de que ele foi o grande inspirador e o gigantesco animador; do pensamentoque ele personifica na renacionalizao artstica da sua poca, est o gnio literrio doEscritor que deu Literatura Dramtica Portuguesa Um Auto de Gil Vicente, oAlfageme de Santarm e essa obra-prima que ( a hora de o proclamar!), na histriado teatro portugus, representa a mesma alta expresso do gnio nacional e de espritouniversal que, na Poesia, representam Os Lusadas. Refiro-me ao Frei Lus de Sousa.

    *

    Garrett , nas suas qualidades, como nos seus defeitos, na exaltao como nasfontes do seu gnio, no gosto espectaculoso da vaidade, na apaixonada volubilidadeda sua vida como no sentido lrico e dispersivo da sua obra, no seu idealismo amoroso,na sua inquieta sensualidade, no desperdcio e no ardor, o mais portugus de todos osportugueses do seu tempo. E, no entanto, no exlio que ele encontra o fecundo veioda sua inspirao nacional. l que, a trs sculos de distncia, ele trava relaes comGil Vicente; de l traz nos olhos e no esprito essa espcie de messianismo portugusque o h-de acompanhar at morte.

    O exlio sempre uma grande escola de Ptria. O amor ptrio (j o disse umdia), sentimento masculino dentro de fronteiras, transforma-se, na terra alheia, numsentimento feminino, feito de nostalgia, quase nupcial. O poeta livresco e arcdico, odramaturgo (eivado do classicismo do velho tio helenista) que escrevera o Cato e aMerope, regressa a Portugal trazendo na sua bagagem, com o sentimento europeuque vai fazer dele o mais universal dos escritores portugueses de todos os tempos, esselusitanismo de que, depois da sua morte, vai renascer o nacionalismo literrioportugus.

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    A esse pensamento nacional vai ficar fiel todo o seu teatro. E ele que vaiinspir-lo na obra dramtica em que, reatando a perdida tradio vicentina, Garrettmarca uma data na restaurao literria do Teatro Portugus: Um Auto de Gil Vicente.

    Quando se fala de teatro portugus, preciso remontar a Gil Vicente e, aps olongo intervalo de quase quatrocentos anos de indigncia, de artifcio, de dogmatismo,de revoadas dispersas e sem qualquer aco social, vir encontrar, de novo, no sculo19, o interrompido fio duma verdadeira literatura teatral em Garrett e, aps umnovo eclipse de trinta anos, no neogarrettismo e no fulgor da gerao que deu aPortugal Lopes de Mendona, Marcelino Mesquita, Fernando Caldeira, Joo daCmara, Schwalbach e Jlio Dantas e, aos nossos palcos, uma pliade de grandesintrpretes. Nem o Entremez do Poeta, de Francisco Rodrigues Lobo, nem osentremezes e as comdias de cordel do sculo 17, nem no sculo 16 a clebre Castrode Antnio Ferreira, nem a segunda Castro de Domingos dos Reis Quita, as tragdiasde Garo ou de Manuel de Figueiredo e as suas insossas adaptaes de Eurpides ede Corneille, nem a Nova Arcdia ou Bingre, Joo Baptista Gomes e a Nova Castropodem constituir, na sua expresso fragmentria, a expresso original de um Teatro.Apenas, atravs dessa escassa, hiertica, pedantesca, trivial ou truculenta evoluo apenas atravs desses desenxabidos arremedos clssicos e arcdicos, sem personalidadeou continuidade, sem qualquer influncia na poca ou qualquer projeco no futuro,quaisquer que sejam os mritos isolados duma ou outra figura ou duma ou outraobra, o gnero plebeu da farsa assinala aqui e alm a permanncia duma chama cmicanacional.

    Pondo em cena Gil Vicente, recortando para a reviviscncia das fontesquinhentistas do Teatro Portugus o quadro dum auto de Mestre Gil, Garrett,empenhado na tarefa de ressuscitar e renovar a literatura dramtica portuguesa, marca,numa inspirao genial, a filiao directa da renascena que vai operar.

    Garrett comeou a escrever Um Auto de Gil Vicente em 11 de Junho de 1838.Concluiu-o em 10 de Julho seguinte em menos de um ms. A ideia da peaveio-lhe da prpria rubrica histrica das Cortes de Jpiter, que fora representada nosPaos da Ribeira em 1519. Ele prprio define a sua inteno: O que eu tinha nocorao e na cabea a restaurao do nosso teatro, seu fundador Gil Vicente, seuprimeiro protector El-Rei D. Manuel, aquela poca, aquela grande glria, de tudoisto se fez o drama. E, em outro lugar, acrescentou: Eu no quis s fazer um drama,sim um drama de outro drama e ressuscitar Gil Vicente a ver se ressuscitava o teatro...

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    A obra de Garrett desenrola-se em torno da representao das Cortes de Jpiter,escritas para celebrar a viagem da Infanta D. Beatriz para Sabia. Nela o escritor fazintervir a lenda dos amores de Bernardim Ribeiro e da Infanta e da paixo de PaulaVicente pelo Poeta da Menina e Moa.

    Na pea, Bernardim Ribeiro entrega Princesa um exemplar das Saudades,livro que s foi verosimilmente comeado e escrito depois da partida de D. Beatriz.Garcia de Resende surge quase mudo. Garrett esclareceu, ele prprio: os caracteresde Gil Vicente e da Infanta esto apenas delineados: tive medo do desempenho.Bernardim Ribeiro lana-se desesperadamente ao Tejo, gritando: estas guas que meroubam tudo, que levem tambm a minha vida! Ora a Histria diz-nos que Bernardimviveu largo tempo aps a sada da Infanta, e ainda foi feito Comendador da Ordemde Cristo e Governador de S. Jorge da Mina.

    De todos esses anacronismos e entorses de Histria, Garrett defendeu-se naIntroduo da obra, quando ela foi publicada, falando das fontes donde procuravaderivar a verdade dramtica, proclamando altivamente aos eternos coca-bichinhosda crtica: digo a verdade dramtica porque a histrica propriamente e a cronolgica,essas no as quis eu nem quer ningum que saiba o que teatro. Giraudoux, umsculo depois, no o disse melhor. E comentando o fim prematuro e trgico, comque na ltima cena de Um Auto liquida Bernardim Ribeiro, o dramaturgo resume:Atirei com ele ao mar porque me era preciso e o pblico disse que era bem atirado. o que me importa .

    Um Auto de Gil Vicente primeiro drama (na frase de Herculano) dos quevieram comear a poca do renascimento do nosso teatro foi representado algumassemanas depois de concludo, em 15 de Agosto. Escrevendo-o, levando-o ao palco,ensaiando-o, Garrett no vinha apenas ressuscitar para um pblico surpreendido, eque o aplaudia em delrio, Gil Vicente, Bernardim e a Infanta descobriu tambmuma actriz que ele talvez platonicamente amou (isso acontecia-lhe de vez em quando)e que se estreou na pea Emlia das Neves, aquela cuja beleza e cuja voz de oirochegaram at memria dos nossos dias sob a doce invocao da linda Emlia.Naquela noite, na Rua dos Condes, nasceram, ao mesmo tempo, para o teatro, umaadmirvel obra dramtica e uma grande actriz e, para a glria, um grande Escritor euma bonita mulher. So coisas que, valha a verdade, no acontecem todos os dias.

    Como em quase todas as fases da sua fecunda vida literria, uma recordaosentimental est ainda ligada inspirao e gestao de Um Auto de Gil Vicente.

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    Um ano antes, Garrett, que tinha ento trinta e oito anos, enquanto passava a procissodo Corpo de Deus, v, debruada janela, uma rapariga, em plena juventude, que,de longe, o fita demoradamente. O leo das salas no tira mais os olhos da janela.Finda a procisso, espera na rua a frgil burguesinha que regressa a casa, acompanhadapela famlia. Garrett, como um jovem alferes, segue o derrio e fica de planto esquina at que uma vidraa se abre e o objecto das suas ardentes miradas vem espreitarpor trs de uma cortina. O escritor e poltico, em plena fama, aclamado na tribuna ecortejado nas salas, enamorado agora como um estudante, volta no dia seguinte.

    E o clssico namoro lisboeta comea. Ela tem dezoito frescos anos. Chama-seAdelaide e filha duma dama francesa, Jernima Deville, casada com um negocianteportugus de nome Pastor. Garrett j casado, mas est separado da mulher, a banalLusa Midosi que o trara em Bruxelas. O corao e a vaidade ainda sangram destadolorosa prova. Escreve a Adelaide Deville e conta-lhe tudo. Envia-lhe, ao mesmotempo, para lhe excitar a imaginao, um exemplar da Nova Helosa. Poucos diasdepois, o idlio da procisso do Corpo de Deus voava para a casa do Ptio do Pimenta,onde Garrett morava, e quando a me, alarmada pela fuga, vai procur-la, Adelaidedeclara que a sua resoluo est tomada e quer ficar em casa do Poeta. E com eleviver at que, em 1841, morre, com vinte e dois anos, deixando-lhe uma filha,Maria Adelaide, que ser a mais fiel ternura, o remorso e o enlevo da vida do Escritor.

    O amor duma mulher traz sempre, nas suas asas doiradas, vinte anos. Garrettvolta, nesses braos virginais que se lhe estendem, sua mocidade. E sombra desseamor, que o remoa, na euforia sentimental que ele cria, que o dramaturgo escreveUm Auto de Gil Vicente e os acentos de paixo que pe na boca de BernardimRibeiro, de D. Beatriz e de Paula Vicente so a exploso do lirismo ardente que vai naalma do Poeta. Mais tarde, ser ainda a memria de Adelaide, personificada na filhaque ela deixou, ao morrer, que iluminar o doloroso gnio de Garrett. no drama eno destino de Maria Adelaide que o Escritor moldar a carne e a alma de Maria, doFrei Lus de Sousa. E nos traos da Joaninha dos Olhos Verdes verosimilmente amocidade de Adelaide que revive e no, por certo, a remota e desplumada primaque Alberto Pimentel lhe foi desenterrar em S. Miguel das Aves.

    E ser ainda durante o luto pela morte de Adelaide Deville que Garrett escreverO Alfageme de Santarm, delineado, como ele diz, em meados de 1839, em vidaainda da linda Musa da Rua dos Capelistas, e concludo em Benfica, em 1841, entreas lembranas daquela que foi talvez a nica mulher que verdadeiramente o amou.

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    Seria longo e seria abusar da pacincia de quem me escuta fazer passar hoje,entre as luzes desta tarde evocativa, toda a obra dramtica do Divino desde aMerope e o Cato da sua juventude, at Filipa de Vilhena, Sobrinha do Marquse s suas obras menores, mas que fixam uma faceta do seu esprito, e que vo desde oFalar Verdade a Mentir s Profecias do Bandarra e a Um Noivado no Dafundo.

    Evocando a glria teatral de Almeida Garrett, temos de nos deter agora j tempo! diante do claro da imortalidade que ele nos legou com o Frei Lus deSousa, sua obra mxima, obra-prima da Literatura Europeia do sculo 19 e que, porsi s, ilustra a existncia e a originalidade dum Teatro Portugus.

    Nem nos jardins de Racine, nem no fogo herico de Corneille, nem em Goethe,cujo estro emudecera em 1832, nem em Victor Hugo, em pleno fulgor da sua liratransbordante, em nenhuma das grandes influncias ou modelos do Romantismo, possvel encontrar parentesco ou filiao para essa tragdia da mais pura linhagemgrega e que, pela sobriedade da construo, no tem afinidade com qualquer outraobra de literatura da Europa da poca.

    preciso remontar a Shakespeare para encontrar paralelo na viva, descarnada,quase sobre-humana grandeza das situaes. Telmo Pais um filho portugus doHamlet. Na figura de Maria dir-se-ia adivinhar-se j o misterioso simbolismo queIbsen, que a essa data tinha 23 anos, havia de trazer, mais tarde, ao teatro. Comotodas as verdadeiras criaes de gnio, o Frei Lus uma obra solitria, sem razes quemergulhem em outros solos, nem ramagens que se estendam a outras sombras. Sangue,terra, almas, tudo portugus. Um sopro de eternidade o anima. Portugal moldado em bronze. Humanidade talhada em mrmore.

    Na gnese duma obra-prima h sempre uma estranha percentagem do Acaso.Garrett, ao escrever, durante umas curtas semanas de forada imobilidade, em casa, atragdia dos amores de Manuel de Sousa Coutinho e de Dona Madalena de Vilhena,no cuidou em criar a sua maior obra literria, no pensou sequer em escrever umaintensa obra dramtica. Ao levar ao Conservatrio e, depois, lendo em casa da famliaKruss o manuscrito de Frei Lus, Garrett reputava o seu trabalho mais um estudo

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    para se examinar no gabinete do que prprio quadro para se desenrolar na exposiopblica da cena.

    Como acontecera a Goethe, que num teatro de bonifrates recolhera a ideia doFausto, Garrett recebeu a primeira sugesto do seu drama, em 1818, num longnquoespectculo de actores ambulantes, na Pvoa do Varzim. A comdia famosarepresentada num cenrio de papelo tinha, como ingnuo tema, a lenda de Frei Lusde Sousa. Essa impresso da mocidade passou. Anos depois, lendo as Memrias doBispo de Viseu, D. Francisco Alexandre Lobo, e relendo a romanesca narrativa doPadre Frei Antnio da Encarnao, o Escritor, recordando o espectculo do barracoda Pvoa, teve a intuio magnfica da aco e do quadro da tragdia que viria aescrever na vertigem e na febre em que sempre trabalhava, durante a crise sentimentalde solido em que o deixara a morte de Adelaide Deville, debruado sobre o pequenoleito em que dormia a filha.

    O velho conceito de Beaumarchais de que o gnero duma pea depende muitomenos do conflito que ela cria do que dos caracteres que esse conflito pe em jogo,tem no Frei Lus de Sousa um singular exemplo. A intensidade dramtica, na obra deGarrett, dada, mais ainda do que pela aco, pela empolgante sobriedade do desenhodos caracteres, como nas grandes tragdias clssicas, pela sombra da fatalidade que,desde a primeira cena, sobre eles paira. A imortalidade do drama provm sobretudoda empolgante humanidade das figuras que, traduzindo sentimentos eternos euniversais, como o amor, o remorso, a fidelidade do sacrifcio, o fervor religioso,ficam, sempre, fundamentalmente locais e portugueses. Telmo e o seu sebastianismo,Manuel de Sousa Coutinho e o seu ardente simbolismo patritico, Madalena e o seuidealismo amoroso, so enraizadamente nacionais.

    Sete anos, como o tempo que Jacob serviu a Labo, levou esta obra mxima doTeatro Portugus a subir do pequeno teatro de amadores da Quinta do Pinheiro atao palco desta Casa que s obstinao de Garrett devia a sua existncia. Os meandrosda poltica nada tm de comum com a Justia da Histria.

    Da poeira do tempo, arrancadas ao tmulo, lenda, imaginao, vivas dessasobrevida irreal que a Arte, ressuscitaram hoje nesta sala, espcie de Juzo Final daobra de Garrett, as doces, as dolorosas, as apaixonadas, alegres ou melanclicas criaturasda sua inspirao. Ei-las, animadas pelo sopro ardente da Glria, reunidas por umatarde, em torno da memria do Divino que as criou a Infanta D. Beatriz e

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    Bernardim Ribeiro de Um Auto de Gil Vicente, Frei Froilo e o Alfageme, a Marianade Melo e a cabeleira do Marqus, Madalena de Vilhena, evocando as sombras do seusolar de Almada, Maria de Noronha, branco lrio do amor e da culpa desfolhado pelovendaval do Destino, o escudeiro Telmo, Manuel de Sousa Coutinho, D. Filipa deVilhena.

    Mas no so essas apenas as evocaes do seu esprito que vieram povoar deimortais fantasmas este palco. Outras se juntaram presena ideal das criaes que ognio de Garrett nos legou, to palpitantes ainda de vida como no dia em que saram,em mrmore ou em bronze, das mos do Escultor de Almas e de Beleza que as esculpiue animou.

    0utras vieram e nos cercam; outras ressurgem, friso de luz, de volpia e desonho, no claro da Eternidade que hoje banha esta Apoteose. E seria bem triste queno viessem e seria bem ingrato que no as chamssemos, labaredas em que se queimouo corao inconstante e maravilhoso do Poeta que do Amor fez a sua inquieta Musa essas que foram o disperso gnio do seu Gnio. So a Prima Tomsia, suacompanheira de infncia, Isabel Hewson, seu primeiro idlio, que ele cantou naAnacrentica:

    Isabel, oh saudade!

    Isabel, oh querida!

    Sem ti, que me importa,

    De que serve a vida?

    Como na noite da primeira representao do Cato, Lusa Midosi aqui revivenum camarote, com seus cabelos de oiro e seus olhos azuis essa a quem Garrettdeu o seu nome e que to ingratamente havia de o trair em Bruxelas, de quem elemais tarde se separou e para sempre havia de marcar a solido da existncia desseimpenitente infiel que, como o Carlos do seu romance, tinha corao a mais. Soagora Jlia, Georgina e Laura, as trs Robinsons, que, no seu exlio de Inglaterra,ele amou quase ao mesmo tempo, com o invencvel e cndido ardor que punha emtodas as suas paixes e que ele h-de, mais tarde, ressuscitar nas Viagens na MinhaTerra. A uma das trs irms, Laura a dos olhos de uma cor de avel difana Garrett dedicou uma poesia, Suspiros dAlma.

    Anjos ou demnios, simples burguesas ou aristocratas, loiras, morenas,portuguesas, inglesas, francesas, italianas, espanholas, todas elas descem, nesta hora,

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    do pedestal de iluses, de desenganos, do pedestal de rimas em que ele as colocou e chegam, uma a uma, iguais na morte, como iguais foram durante uma hora nachama do seu desejo ou da sua imaginao: Paulina Flaugergues, a poetisa francesa dequem ele traduziu, laia de declarao sentimental, os versos inspidos e romnticos;a danarina Valdini, por quem ele atravessava o Tejo todos os dias para ir, s escondidas,am-la ao Alfeite; a linda Emlia das Neves, de quem ele foi o padrinho de Artedesvelado e o lrico derrio.

    Neste cortejo de sombras amadas, uma fresca e luminosa imagem avana entrefestes de rosas. So os seus dezoito anos que revivem e a cercam. E ela a doce eromanesca Adelaide Deville que por Garrett, casado e j perto dos quarenta anos,abandonou a famlia, renunciou a tudo para seguir o Poeta, glorioso e s, que, delonge, a olhara numa tarde de procisso e lhe fizera ler a Nova Helosa.

    E a esse amor, que quatro anos depois havia de receber o beijo triste da Morte,a esse amor, partilhado e ntimo, amor de noiva, maternal e doloroso, a Posteridadedeve talvez os acentos mais puros e mais profundos do estro de Garrett. Foi juntodela que ele escreveu Um Auto de Gil Vicente, que concebeu Filipa de Vilhena e foina amargura da viuvez, no calor do bero da filha que ela lhe deixou quandoGarrett dizia que no tinha para amar no Mundo seno uma saudade e uma esperana que nasceu a inspirao que ia imortalizar, no drama da vida do Escritor, a amargaglria do Frei Lus de Sousa.

    E vm agora e so as ltimas Maria Kruss, a dos olhos negros, negros,ltima amizade amorosa de Garrett, que sobre o seu tmulo chorou as suas maismelanclicas lgrimas de mulher e o fatal amor a quem ele consagra a poesiaclebre As minhas Asas, a Deusa Andaluza, duma beleza toda judaica, toda rabe,das Folhas Cadas, Rosa Montufar Infante, a Viscondessa da Luz, frenesi, fogo sensual,tormento e xtase dos ltimos anos do Poeta. Morreu abraado cruz, com os olhospostos na luz, conforme o cruel epigrama de Rodrigo da Fonseca, no dia do enterrodo romancista do Arco de SantAna.

    Este o nico privilgio dos poetas: que at morrer podem estar namorados. Amais gente tem as suas pocas na vida, fora das quais lhes no permitidoapaixonarem-se escreve Garrett nas Viagens na Minha Terra. Eu creio que oprivilgio no apenas at morrer. Mesmo alm da morte, no seio do Senhor, osidlios dos Poetas continuam. Paul Valry disse que os Grandes Homens morremduas vezes uma, como Homens, e a segunda vez, como Grandes. Da sua vida

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    efmera e transitria fica-lhes, entre os outros homens, o rastro de sonho, de dor, deamor, de grandeza que deixaram e que a longa vida a que a iluso humana chamaa Imortalidade.

    Aquelas imagens que Garrett moldou e ergueu umas porque, na Arte, lhesdeu realidade e forma, outras porque, no Corao, as animou da sua prpria carne edas prprias palpitaes do seu sangue as mulheres que ele idealizou e aquelaspara quem viveu e por quem sofreu (e que importa se algumas o no amaram?)passam agora nesta sala e so a clara, florida, fremente Exaltao da sua memria.

    As figuras da obra de Garrett coroam Garrett. Mas uma outra figura, sublime efrgil, pequenino deus volvel que Deus criou quando criou o Mundo, em cujas asastrmulas uma eterna primavera vibra, desce agora, do Olimpo, num frmito de asasdoiradas, e vem, na ronda das plidas vises que ele, um dia, imortalizou, depor nafronte do Poeta o ltimo e ardente beijo das mulheres que ele amou e que, sporque ele as amou, nesta hora ressuscitam.

    E essa rsea sombra do Amor, segundo gnio de Garrett, que ainda hoje doces Fantasmas duma Vida! anima de inquieta e insacivel juventude as sombrasdesta sala.

    Augusto de Castro

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    DISCURSOS Almeida Garrett:150 anos DepoisndiceEditorialApresentao do NmeroPARTE I: ESTUDOSDAS EDIES CRTICAS E DA EDIO CRTICA DAS OBRAS DE ALMEIDA GARRETT OFLIA PAIVA MONTEIRO*FIGURAES DO FEMININO EM FREI LUS DE SOUSA DE ALMEIDA GARRETT MARIA JOO BRILHANTEGARRETT E O BRASIL DUARTE IVO CRUZOS PRIMEIROS ARROUBOS DE EXALTAO PATRITICA E LIBERAL DO ACADMICO GARRETT ISABEL CADETE NOVAISGARRETT: ENTRE A CRUZ DO DESEJO E A LUZ DO AMOR SRGIO NAZAR DAVIDGARRETT, HERCULANO E O ROMANCE HISTRICO MARIA DO ROSRIO CUNHA

    PARTE II: MEMRIASUM PAR DE LUVASGARRETT E O TEATRO PORTUGUS

    PARTE III DOCUMENTOS DE TRABALHOO SABER OCUPA LUGAR: FREI LUIS DE SOUSA NO ENSINO DE PORTUGUS ANA TEODORO e LEONTINA LUIS