Acerca Do Mal _os Tres Principios Da Essencia Divina

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  • 8/10/2019 Acerca Do Mal _os Tres Principios Da Essencia Divina

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    PLURA, Revista de Estudos de Religio, vol. 2, n 2, 2011, p. 123-139

    Revoluo na Reforma: a mstica e a cincia sob a nova

    perspectiva teolgica de Jakob Bhme

    Revolution in the Reformation: mysticism and science from under Jakob Bhmesnew theological perspective

    Humberto Schubert Coelho

    Resumo

    Na continuao do processo orgnico da Reforma Protestante desenvolveu-seindependente e fragmentariamente um movimento crtico de reviso da ortodoxialuterana. Esta assim chamada heresia luterana no se dava por satisfeita com aformulao cristalizada dos dogmas da f crist, considerando ser a superao de Lutero

    uma homenagem mais honrosa a ele mesmo do que a aceitao passiva de seus pontosteolgicos. Na liderana deste movimento Jakob Bhme, sapateiro sem instruo formalem qualquer disciplina acadmica, empreendeu no apenas uma apropriao exaustivadas cincias mdicas e alqumicas de Paracelso, como uma invulgar sntese entreneoplatonismo, a tradio mstica e a nova teologia protestante, abrindo espao para aflorao da filosofia clssica alem, em suas conhecidas associaes com a teosofia e amstica.

    Palavras-chave: Mstica, Neoplatonismo, Protestantismo, Bhme.

    Abstract

    The Protestant Reformation gave birth to an organic process of self-revisionism, intrinsicto its own liberal nature, although this anti-orthodox movement was a fragmentary one.Not accepting the crystallized form of Christian dogmatics, and considering thatovercoming Luther was a most honorable way of praising him, the so called Lutheranheresy went forth with the radicalization of individualism in theology and cosmology. Onthe lead of this movement was Jakob Bhme, a shoemaker without any academiceducation, who not only adapted the alchemic and medical language of Paracelsus, butalso performed a major synthesis between Neo-Platonism, Christian mystical traditionand the still young Protestant theology, opening the field for the blossom of Germanclassical philosophy in its remarkable and well known associations with theosophy andmysticism.

    Keywords: Mysticism, Neoplatonism, Protestantism, Bhme.

    1. O interesse religioso pela cincia

    No contexto filosfico do sculo XVII domina completamente a emergncia

    do pensamento cientfico e a elaborao das primeiras diretrizes da modernidade,

    que se consolidaro no sculo XVIII com Voltaire e os enciclopedistas na Frana,

    Graduado em filosofia, mestre e doutorando em cincia da religio pela Universidade Federal deJuiz de fora. Email: .

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    Kant na Alemanha e Hume no mundo ingls. Mais do que no espao italiano,

    onde despontou a nova cincia no Renascimento, no norte-europeu, com

    destaque para a Alemanha, que a cincia, ainda nos moldes nada laicos do

    neoplatonismo, se casa com a teologia.

    Avanos na astronomia, qumica e medicina propiciaram uma viso de

    mundo naturalista em contraste com a doutrina teolgica escolstica, ferindo,

    desde Bruno, Coprnico e Galileu, toda a cosmologia escolstica em que

    subsistia a autoridade da Igreja para afirmar-se, para alm de seu papel

    espiritual, como soberana intelectual da Europa (Berdiaeff, 1945, p. 66-87).

    Semelhantemente a este movimento cosmolgico, que apontava causas naturais

    e a viabilidade de um estudo autnomo da natureza, o pensamento religiosoheterodoxo permitiu grandes avanos rumo a uma teologia e uma mstica

    naturais.

    O mesmo esprito de pesquisa independente e busca das causas naturais

    que animava os cientistas animava tambm Bhme na investigao da alma, da

    f, da salvao e da moral. Os msticos da Reforma, em geral, efetuaram uma

    sntese legtima entre a nova cincia e o esprito reformista, produzindo uma

    magna scientia, capaz de unificar, por meio da razo e da experimentao, o

    micro e o macrocosmo, a natureza fsica e a natureza espiritual (Berdiaeff, 1945,

    p. 87). Da a justificativa para o uso intensivo de frmulas mgicas e alqumicas

    que, ao que parecia, associavam-se empolgao do incio da Era Moderna na

    sua nsia por meios de conciliar os conhecimentos mstico-religiosos aos

    conhecimentos da natureza.

    No que pese, negativamente, a fama de supersticiosos, os pesquisadores

    do perodo como Paracelso, Agrippa, Bhme e vrios outros contriburam para

    firmar a crena de que as doenas podiam ser explicadas por causas naturais,como a quantidade de substncias minerais, salinas e a proporo de elementos

    no corpo (Berdiaeff, 1945, p. 93).

    Paracelso, sobretudo, apesar de sua pssima fama na atualidade, foi um

    dos grandes colaboradores da medicina e da qumica modernas, dando solues

    alternativas para casos que antes eram interpretados como maldies e

    possesses demonacas. Paracelso o primeiro mdico a perceber que cada

    doena possui uma sintomatologia e pode ser tratada por uma substncia

    qumica.1

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    A medicina, que o desacredita hoje por suas inclinaes esotricas, segue-

    lhe as orientaes na busca eterna por substncias que possam viabilizar a

    homeostase prejudicada. A mesma cincia que zomba dos devaneios astrolgicos

    daquela era reconhece animadamente as funes do ritmo biolgico a queobedecem todas as funes hormonais, bem como as influncias dos ciclos de

    atividade solar, sazonal e lunar sobre estas funes. evidente que no se

    ofereciam, quela poca, explicaes satisfatrias para tais influncias, no

    deixando, no entanto, de ser a constatao de sua existncia fruto de rigorosas

    observaes e estudos que merecem melhor apreciao na atualidade.

    Quanto aos pensamentos de Paracelso que mais influenciaram a sua

    poca, esto adaptaes modernas de conceitos hermticos, pitagricos eneoplatnicos, como a tricotomia do homem, dividido em corpo, alma e esprito,

    sendo a alma uma substncia etrea intermediria entre a matria e o esprito,

    convico esta amplamente difundida entre os crculos da moderna teosofia e

    espiritualismo; a concepo de que o cosmo um organismo em constante

    movimento, iniciado pela revoluo dos astros, a dinmica dos elementos, das

    mars, dos ciclos vitais, etc.; a ideia de que as doenas no so jamais um

    castigo, mas uma beno de Deus que nos serve de alerta para nossas distonias

    em relao ao mundo; e, principalmente, a exigncia de que o homem venha aconhecer o mundo de uma maneira qualitativa, em acrscimo ao conhecimento

    matemtico e analtico que tomava fora na poca (Wollgast, 1988, p. 654-656).

    Hans Theodor von Tschesch afirma, com entusiasmo evidentemente

    excessivo, que Bhme reuniu todo o saber possvel e necessrio num sistema

    completo de cincia natural e teologia. Outros autores contemporneos de

    Bhme acreditam que ele teve o mrito de transformar a cincia e a viso de

    mundo de Paracelso numa teologia protestante (Wollgast, 1988, p. 774-775). A

    verdade que qualquer destes modelos s muito generosamente poderia ser

    considerado um modelo cientfico, e mesmo suas contribuies para o saber

    natural especfico so mnimas. Mesmo assim, os resultados tericos destes

    primeiros esforos abriram caminho para as futuras filosofias da natureza, ou

    tentativas de unificao sistemtica da cincia, teologia e filosofia num saber

    completo.

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    2. Razo e f como duas linguagens sobre o mesmo

    Mais talvez do que a prtica cientfica e seus resultados, interessava a

    Bhme a sua fundamentao cosmolgico-metafsica. Se a cincia de Paracelso e

    dos magos renascentistas podia se ancorar firmemente numa metafsica de

    fundo religioso, ento no apenas os seus avanos, mas, sobretudo, o seu papel

    epistemolgico junto interpretao dos pequenos detalhes da estrutura do

    mundo tornam-se extremamente atrativos para a religio. A crise do luteranismo,

    que gerou no apenas a heresia mstica de 1600 como as bases para o pietismo

    posterior, estava na concepo passiva da salvao por adeso. irrelevante

    para ns saber se esta noo passiva e desvinculada da necessidade de um

    compromisso tico est implcita em Lutero ou constitui uma corrupo de suainteno original, mas o fato persistente era a degenerao moral da sociedade

    luterana, recentemente educada a acreditar que seus esforos morais eram

    irrelevantes perante Deus.

    Como reao a este problema e objetivando um retorno do purismo moral

    do Cristianismo primitivo, os herticos luteranos recorreram ao neoplatonismo,

    no por ltimo devido forma como estes conciliam o livre-arbtrio, o

    determinismo no reino da natureza e uma concepo monista de Deus que

    engloba estes elementos discrepantes.

    Marcantes para os protestantes desta fase so as influncias da dialtica

    de Nicolau de Cusa, do pantesmo de Giordano Bruno e da noo harmnica de

    Marslio Ficino. Como Bruno, todos os msticos neoplatnicos do sculo XVII

    entendiam e enxergavam Deus como centro de todas as coisas e lugares. Como

    Cusa, assumiam a unidade maior da dialtica e cises menores, originando uma

    coincidentia oppositorum. Como Ficino, acreditavam todos numa harmonia

    preestabelecida entre todas as coisas, e na justificativa quase parmenidiana paratodas as dores e sofrimentos aparentes do mundo: o defeito da criao subsiste

    exclusivamente na viso parcial e limitada de um fato ou coisa isolada. No

    quadro geral, compreendida a dinmica universal e o propsito do todo, no

    existe mais desarmonia (Wollgast, 1988, p. 685-686).

    Os msticos herticos da Reforma criam unanimemente na

    cognoscibilidade de Deus atravs do autoconhecimento. Para o luterano Bhme

    a Reforma no de modo algum uma doutrina terminada, que se possa

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    consultar uma nica vez num escrito determinado. O mote ecclesia semper

    reformandano era para ele uma mxima sem contedo(Wehr, 1971, p. 111).

    Toda esta constelao engloba cincia, filosofia, religio e mstica. O

    movimento intensificou-se mais e mais na proliferao das ideias protestantes,

    capitalistas e renascentistas, as quais Ernst Troeltsch agrupou sob a alcunha de

    neoprotestantismo, fenmeno histrico que figura entre os principais da

    Modernidade a partir do sculo XVIII.

    3. A mstica entre a psicologia e a teologia:

    O ecletismo e a amplitude dos interesses de Bhme o levaram a reavaliarde modo revolucionrio o papel da mstica, sobretudo em que sua funo

    epistemolgica tenha por consequncia estimular o empenho existencial. Para o

    sapateiro visionrio, a mstica condensa a experincia e conhecimento sobre um

    elemento impondervel, a vontade, no correspondendo em nada a um dizer

    assistemtico e obscuro sobre algo desconhecido. Naturalmente que no se trata

    tambm de uma filosofia crtica, pois o conhecimento da vontade divina dado

    por revelao imediata que, embora universalmente acessvel, nem sempre est

    concretamente presente em todos os indivduos. O ar de mistrio desta filosofiaprovm da incapacidade de conceituar a vontade, mas esta sempre perseguida

    por Bhme at os limites da cognoscibilidade.

    Na sequncia de seus seguidores, como Leibniz (em parte), Goethe e o

    Idealismo, a vontade torna-se a matria-prima do mundo, o intelecto a ordem

    que estrutura esta vontade em inmeras formas. Assim, a mstica assume o

    duplo papel de reconhecimento da assinatura de Deus em tudo (processo

    intelectual idealista) e escolha pelo essencial, liberdade de ser real (processovoluntarista mstico). Assim descreve ele a liberdade da vontade:

    Mas isso deves saber, que no regimento da tua alma tu s osenhor de ti mesmo; no se levanta nenhum fogo a partir docrculo do teu corpo e esprito, tu o despertas por ti mesmo.Verdadeiro isto, todos os teus espritos fluem para ti e se elevamde ti; e na liberdade um esprito tem mais fora em ti do queoutros.

    Se uma fonte do esprito se eleva, isto no est oculto alma: Elapode imediatamente acordar as outras fontes do esprito, que seopem ao fogo insurgente, e podem apag-lo (Bhme, 1923, p.

    156-157).

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    A constatao de muitas fontes do esprito, subitamente despertas pelo

    fluxo contnuo do fogo, forma a base da fenomenologia da vontade. Este fluxo

    no catico, e deriva diretamente da liberdade do indivduo, embora ele no se

    aperceba e no se conscientize de que as muitas inclinaes de sua alma sotodas voluntrias, porque no atingiu ainda a profundidade da observao destes

    movimentos. Na precisa elaborao de Bornkamm: ...ele (Bhme) entende cada

    sensao, no como receptividade, mas como produtividade, assim cada

    sensao uma ao, e na verdade uma forma ou modo especial de ao (a do

    esprito) (Bornkamm, 1925, p. 32). Ora, a mstica voluntarista, enquanto

    autoinvestigao, um estudo ou uma cincia do comportamento, e no da

    sensibilidade. A sua realizao o comportamento santificado, no a mera

    percepo ou iluminao. Nisto ela se diferencia radicalmente da mstica

    contemplativa, passiva.

    Os nimos se levantam sem aviso, pois so muitos e muitas so as suas

    causas. Motivos corpreos, atvicos; vcios; memrias; conscientes ou no. Mas o

    esprito pode despertar de seu estado passional, em que os nimos vm e vo

    sem controle, para o estado vivo, em que o nimo criado ou modelado

    conforme o esforo e buscando certos fins.

    O voluntarismo essencialmente ativo. O seu pathosmstico a vontade

    que move o Universo e a moral humana. Os filsofos herdeiros da tradio

    mstica voluntarista (como os idealistas) investigaram exausto o processo pelo

    qual a predisposio da vontade no carter pode redirecionar-se pela educao.

    Concluram que mesmo sendo a vontade o fundamento, sua essncia livre faz

    com que seja consistente uma mudana estimulada pelo juzo. Bhme deparou-

    se com o mesmo problema ao tentar fundir a teologia de Lutero e a sua intuio

    de liberdade neoplatnica. Ele podia faz-lo por estar de posse do

    incondicionado, de ter optado pela experincia da vontade ao invs da mera

    especulao sobre ela, e com isso abriu caminho para a revoluo metafsica do

    idealismo alemo e da posterior metafsica da subjetividade.

    Este despertamento mais propriamente um renascimento, na linguagem

    dos msticos, e o seu outro nome f. A f no , portanto, uma crena em

    contedos dogmticos ou histricos, podendo-se inclusive submeter estes

    crtica. Ela resume-se numa transformao do carter, numa deciso por

    assumir o controle da vida, ou melhor dizendo, dos contedos emotivos e

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    volitivos da alma, direcionando-os com zelo e devoo. Devotamento, alis, a

    palavra chave para a f verdadeira, pois ela no depende da crena em dogmas,

    alinhando-se, antes, como estado existencial. A sua relao com o divino deixa

    de ser terica para ser vital. A f viva uma postura de doao, ato livre de ofertadas foras, pensamentos, sentimentos e aes do indivduo. Desnecessrio dizer

    que a sua natureza existencial.2

    A f, ou renascimento, como tal exige muito mais do que uma adeso

    doutrina crist (ou, possivelmente, de outra religio). Ela leva a uma completa e

    voluntria transformao ntima, que no se resolve num instante, precisando

    ser sustentada com lutas e sacrifcio em longo prazo. Bhme est, assim, na

    linha dos pietistas que iniciaram um processo colossal de reviso doprotestantismo. Em oposio f que salva sem obras, e que j naquele primeiro

    sculo ps-reforma produziu uma certa complacncia moral, eles pregavam a

    necessidade da reforma ntima, a importncia do livre-arbtrio e da luta

    constante contra o mal moral.

    A religio de que trata Bhme, portanto, e lembrando que ele sempre

    acredita tratar do Cristianismo enquanto tal, s se compreende pela forma

    extremamente liberal da religio privada e restrita ao foro ntimo, mas que se

    reconhece tambm pela comunidade da f. Neste tocante especialmente

    interessante observar que nosso autor inclua nesta comunidade todas as almas

    piedosas, inclusive as votadas ao paganismo, judasmo ou islamismo.

    Esta teologia filosfica concentra-se, pois, no processo existencial da

    renovao pela f, independentemente de seu contedo dogmtico.

    Naturalmente, este processo no simples, e tanto os pensadores quanto os

    santos estiveram sempre cientes de que a transformao do carter envolve

    dificuldades dramticas.

    Retornando, pois, ao trplice aspecto da vontade, Bhme ressalta a

    dualidade inicial produzida no homem pela sua dupla natureza divino-terrena.

    Assim vivo eu em minha carne, no esprito deste mundo, e minhacarne serve ao esprito do mundo, e minha alma serve a Deus;minha carne nasceu deste mundo, e tem sua religio nas estrelase nos elementos, que moram nele e tem poder sobre o corpo, eminha alma foi renascida em Deus e vive em Deus.

    Pois a lei oculta da eterna natureza est escondida na natureza da

    manada [instinto]3

    , e uma grande priso, e comanda o mal daalma corprea.

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    E assim o homem paira entre bem e mal, e tem o seu inimigo emsi mesmo, no s fora de si, o que faz o diabo forte contra ele, ecapaz de o tentar de todas as maneiras... por isso as crianas deDeus so carregadores de cruz nesta vida (Bhme, 1923, p. 219-221).

    A este dualismo teolgico acrescenta-se o dom superior, a sntese e

    superao da oposio entre bem e mal, a vontade livre, o livre-arbtrio que o

    centro da vontade:

    Ento o homem movido e sustentado por duas vontades, masnele reside o centro, e ele tem a balana entre as duas vontades,como o mencionado, que o recupera para o reino de Deus, e cadaprato um agente, que faz conforme a alma permite. Ento a almaest no centro da balana, os sentidos so os anjos, que vo de

    um prato ao outro, e um prato o reino da maldade e da fria, ooutro o renascimento na fora de Deus para os cus (Bhme,1923, p. 226).

    E tambm nesta passagem, que complementa a obra sobre os Trs

    princpios da essncia divina:

    V homem, como s mundano e por isso mesmo celestial, em umapessoa misturados, e carregas a imagem do mundano e tambmdo celestial em uma pessoa: e ento tu s de fonte maligna, ecarregas a imagem do inferno em ti, que brota da fria de Deus...

    Mas Jesus Cristo te devolveu ao centro, e te ps de novo na possedo fio da balana... Agora tu colocas os teus sentidos no prato quete apraz, teu corpo um campo, tua alma o semeador, e os trsprincpios da essncia de Deus so as sementes. O que tua almasemeia, cresce no teu corpo, e a colheita tua (Bhme, 1923, p.227).4

    A revelao de que Jesus nos pe no centro, representando o despertar da

    conscincia divina do homem, equivale de Plotino, de que a alma deve buscar

    em si mesma um centro de onde pode enxergar a sua unidade com Deus. Diz

    Plotino:

    Quando a Alma chega a conhecer a si mesma, v que seumovimento no se d em linha reta (exceto quando ela sofre umaruptura), mas que o movimento conforme a sua natureza comoum crculo ao redor de algo no de algo exterior, mas de umcentro a partir do qual provm o crculo. Ento, essa Alma semover ao redor desse centro do qual ela provm e dependerdele, dirigindo-se para esse centro para o qual todas as almasdeveriam se dirigir, mas para o qual s as almas dos deuses sedirigem de maneira contnua. justamente por se dirigirem paraeste centro que elas so deuses, e o que coincide com este centro

    Deus (Plotino, 2007, p. 136).

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    Esta , alis, uma temtica que se repete na tradio da psicologia mstica

    de Plato e seus seguidores, bem como de diversos msticos cristos.

    A dialtica entre os opostos toma aqui o vulto de uma constelao moral. A

    mesma necessidade metafsica que criou o princpio das trevas, dando origem ao

    Universo, criou no reino da natureza uma balana, um fio de navalha para as

    suas criaturas. Mas a semelhana da criatura, imago Dei, para com o Criador

    maior que toda a necessidade formal de separao, e por isso o homem est na

    posse de uma liberdade absoluta na escolha entre o bem e o mal. Se um bem e

    um mal constitutivos so necessrios, se esta eterna luta entre a impulso para

    o Cu e a atrao para a Terra so essenciais economia da natureza, a

    liberdade da vontade interior, incondicionada, o extraordinrio, o divino nohomem. O monismo da liberdade tem de apresentar-se como um dualismo em

    face da dicotomia do mundo.

    Toda a teodiceia e a cosmologia metafsica envolvidas nesta viso de

    mundo requerem exposio parte, mas pode-se adiantar que as heranas

    evidentes do neoplatonismo, da alquimia e da teologia protestante se

    combinaram de modo a produzir esta nova viso da mstica que acabamos de

    apresentar. E ela a verdadeira estrela teolgica e filosfica do trabalho de

    Bhme, pois com ela a liberdade individual posta no centro da vida crist. Se a

    prpria mstica que o pice da fenomenologia espiritual est escorada na

    iniciativa livre, como realizao ao invs de recepo, ento tanto o conhecimento

    quanto a graa de Deus esto na dependncia do esforo. O saber guarda

    grmens de atividade transcendental, j que a viso depende mais da potncia

    espiritual do que da natureza do objeto, e a graa da renovao pela f se radica,

    igualmente, na autonomia do sujeito. Na medida em que este pensamento

    teologia e mstica, ele est em plenas condies de dialogar com a filosofia que

    estava para surgir.

    4. Sofiae misterium

    A ambivalncia entre a experincia passvel de racionalizao, ligada

    natureza, e a que s pode ser encarada em seu aspecto incognoscvel e

    indeterminado, ligada profundidade do esprito, tem sua justificao no

    desdobramento da realidade a partir do incondicionado; a saber, dividido eminterior e exterior.

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    O idealismo alemo recebe indubitavelmente esta herana, apesar de

    apenas Schelling e Hegel fazerem referncias, ainda assim discretas, a Bhme. A

    origem insondvel de Deus o indeterminado (Ungrund).5Este tem uma dupla

    origem: no instinto expresso pelo Antigo Testamento em relao sacralidade, ena filosofia mstica de Plotino. Conforme este ltimo, no h nem mesmo um

    lugar para ele (o indeterminado), pois ele no tem necessidade de uma base ou

    fundo no qual apoiar-se... De fato, se ele anterior ao movimento e ao

    pensamento, no que poderia pensar? (Plotino, 2007, p. 133). Nesta mesma

    disposio escreve Bhme: O indeterminado no possui vida, mas a partir desta

    qualidade toda a vida nasce: o indeterminado no possui movimento ou

    sensao, e assim tambm encontra-se o nada na eterna vontade de Deus; sobre

    estes fundamentos no se sabe nada, e nada se deve pesquisar, pois que ele nos

    turva(Bhme, 1923, p. 309).

    Do outro lado da ambivalncia est a convico emprico-racional de que

    Deus esprito. Mas, esta viso espiritual s pode ocorrer aps a criao, no

    contato misericordioso com suas obras (Esprito Santo). a partir da obra que

    reconhecemos em Deus um esprito absoluto, onipresente, onisciente,

    misericordioso, etc.;6e afora os atributos perceptveis na Providncia atuante na

    natureza no se pode saber nada de Deus.

    semelhana de Plotino,7 o Uno silencioso e incognoscvel revela a sua

    prpria unidade, no pela sua raiz primeira, que est intocada, mas porque

    perpassa todos os existentes, porque tudo que se revela como seu

    desdobramento e aponta para ele como causa e essncia.8No no-fundamento

    anterior no h como distinguir ou conceituar, e esvaziam-se os atributos de

    bom e mau, existente no existente, assemelhando-se Ele ao nada.

    Ele o todo e o nada, ele uma vontade nica, onde subsiste omundo e toda a criao, tudo nele sem princpio, tudo tem omesmo peso, ele no luz nem escurido, (porque no h o queiluminar ou escurecer), seno o eterno Um. Esta mesmainfundada, intocada, inatural e incriada vontade, que Uma e notem nada diante de si ou atrs de si, que em si mesma somenteUma, que como o nada e o tudo: Este chama-se e o Deuseterno, que se toca e se encontra a si mesmo, e Deus nasce deDeus... (Bhme, 1923, p. 355).

    Desta vontade sem fundamento surge, ento, a trindade, igualmente una e

    eterna, mas no mais incognoscvel e impenetrvel, porque j se formou adiferena:

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    Assim a vontade sem fundamento se chama Pai, a vontade tocadae nascida do indeterminado chama-se Filho, ento ele o ente dono-fundamento, que faz do no-fundamento um fundo. E a sadada vontade infundada, pelo Filho que est tocado, ou ente,chama-se Esprito: assim ele conduz o seu ente tocado para fora

    de si, na trama e na vida da vontade... Este trs seres em seunascimento so de toda a eternidade... (Bhme, 1923, p. 356).

    Metafsica e teodiceia esto aqui imbricadas em simbiose completa.

    Enquanto Deus assume o papel metafsico de causa e sustento do mundo,9

    teologicamente, fica evidente que o papel de Deus como causa sui desprovido

    de sentido no momento anterior criao, j que o ser um criador uma

    condio que depende do ato de criar. Falar de Deus como Criador, como

    princpio e fundamento do mundo, falar exclusivamente de seu papel nomundo, e no de sua essncia ntima.

    Motivos da teogonia, da teosofia, da metafsica e da filosofia da natureza se

    misturam, nem sempre de modo claro e qualificado, tornando as distines de

    conceitos uma tarefa rdua. Ainda assim, possvel compreender o aparato

    terico como um todo e retraar todas estas influncias e objetivos

    programticos, especialmente nas leituras posteriores, atravs das quais o

    emaranhado disciplinado segundo moldes tcnicos. graas a estes

    comentadores que se pode elaborar, ao menos provisoriamente, uma posio de

    Bhme diante dos problemas atuais de demarcao.

    5. Teosofia, filosofia e teologia msticas

    A teosofia, definio mais pacfica do pensamento de Bhme, est na

    berlinda entre a metafsica e a mstica. De um lado ela pressupe uma

    gnoseologia natural com escalas incompreensveis razo; numa forma msticade interpretao das escrituras, o conhecimento que depende dos olhos e

    ouvidos do esprito. De outro lado, pressupe a tentativa de sistematizar este

    acesso ao conhecimento de Deus; e a necessidade de relacion-lo ao

    conhecimento ordinrio do mundo e do ser exige um trato metafsico mais ou

    menos consciente.

    Como sabedoria de Deus, ou acerca de Deus, a teosofia subsiste no fio de

    navalha entre f e razo, estando restrita ao crente erudito no saber mundano e

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    revelado. No de impressionar que os seus proponentes acreditem encontrar-se

    numa condio muito especial, que permite esta sntese.

    No caso especfico de Bhme, Deus concentrava a totalidade deste mrito,

    tendo despertado o sapateiro atravs de uma iluminao espontnea. E apesar

    de todas as alegaes quanto necessidade dos mritos pessoais, de esforo

    paciente e ininterrupto, a uma espcie de eleio, em ltima anlise, que se

    devem os privilgios de poder entrar no centro da natureza e vislumbrar o seu

    mvel ntimo.

    Liberdade e graa se conciliam, portanto, num mesmo movimento: Dar-

    se- aquele que tem(Mateus 13.10-14; ou Marcos 4.24-25) e queles a quem

    muito foi dado, muito ser cobrado (Lucas 12.47-48; ou Joo 9.39-41). Destaforma, a ascenso na escala da teosofia no possvel sem a eleio de Deus

    para uma misso intelectual e de f, ao mesmo tempo em que esta eleio de

    Deus justificada pelos mesmos critrios que o Deus de Abrao no escolhe

    tarefeiros indignos, nem deixa de deles exigir uma dedicao a toda prova.

    A teosofia toma por isso o papel de vrtice do composto filosofia-teologia. O

    saber no se resume esfera da revelao, dependendo do esforo individual e de

    uma percepo qualificada, mas acessvel a todos. Tampouco se resume

    investigao racional vulgar, pois exige em acrscimo a ela uma sensibilidade e

    comprometimentos espirituais profundos. As tarefas da filosofia e da teologia

    continuam a ser essenciais e absolutas em suas respectivas reas de atuao,

    muito embora ambas sejam vazias e estreis na ausncia da teosofia. Esta prov

    o esquema sintetizador do conhecimento e da vivncia, na qualidade de

    orientadora e garantidora da concretude do conhecimento. Em outras palavras, a

    sabedoria da teosofia a sabedoria daqueles que esto cheios do Esprito Santo,

    o que por sua vez, considerando-se que este estado voluntrio, no desvia ouno pretende desviar as disciplinas tuteladas pela teosofia de suas exigncias

    crticas. Embora se trate de um saber sobre a vontade, o que guarda todas as

    dificuldades de uma legtima psicologia profunda, a teosofia est longe de ser um

    campo de elementos inexprimveis e incognoscveis.

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    6. Psychologia vera

    De posse do saber de si, e ciente de que somente o fomento da luz

    espiritual pode levar a termo o conhecimento que de outra forma seria mundano,

    no pode o homem prosseguir em nenhum empreendimento precedente ao da

    reforma ntima. Isto porque, se o esprito originalmente fora volitiva e

    dinmica, saber e ao se identificam; nem a especulao pode remontar fonte

    que a precede, nem as obras da lei logram o desiderato da iluminao.

    imprescindvel o autoencontro, tarefa duplamente intelectual e tica, em sentido

    espiritual. E para que a ipseidade se descubra e atualize numa forma plenificada,

    ela precisa criar um novo saber e saber como, o que e por que cria.

    Investigar toda esta mecnica e os seus resultados o trabalho do mstico,e ele constitui uma espcie prpria de psicologia, no sentido de um estudo

    introspectivo dos contedos empricos da conscincia. Mais precisamente uma

    psicologia neoplatnica dos opostos, incrementada e completada pela

    honestidade e persistncia da introspeco crist. Este seria, provavelmente, na

    opinio de Bhme, o papel de uma fenomenologia da religio, se ele tivesse de

    definir o substrato concreto a partir do qual esta ltima toma corpo na vivncia

    humana.

    Toda a experincia religiosa est circunscrita a este centrodo esprito, do

    qual partem saber e agir; analogamente, tudo o que a religio tem a oferecer s

    pode ser efetivamente concebido pelo homem renovado por este processo, cujo

    ponto culminante a responsabilidade absoluta da transformao no do

    comportamento, mas da prpria essncia.

    Quem no quiser ou no for capaz de empreender esta transformao do

    carter, segundo muitos filsofos um elemento imutvel, permanece no apenas

    alheio ao conhecimento fundamental da natureza espiritual do sujeito, como se

    condena escravido que esta ignorncia acarreta, uma vez que a crena na

    incapacidade de reconstruo do carter impede automaticamente o esforo

    concentrado e enrgico necessrio sua realizao. Quanto mais o estado

    momentneo do carter tomado como natureza inaltervel, mais os seus

    contedos se perpetuam, reforando esta mesma impresso. Bhme diagnosticou

    este problema com preciso, definindo como anseio o modo subconsciente do

    hbrido, intelecto-vontade e magia, o seu modo desperto.

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    Assim faz-se do anseio o modelo da tua vontade, e engravida-te ati mesmo, do que pode advir treva ou mcula tua vontade, o quea vontade no queria ter, mas sim o anseio... Vontade ao.Anseio o desejo. O desejo s a conscincia da vontade de queela pode ser bem ou mal. No tem existncia, pois s a vontade

    mesma que planta razes no inferno ou no cu, e no o desejo...

    Assim no te permite cegar e constranger a tua liberdade a partirde um anseio, mas faa com que ele se transforme nos vermelhosraios da luz incandescente da majestade: E isto uma gloriosa eelevada alegria na liberdade (Bhme, 1923, p. 281-282).

    Frank Ferstl (2001) desenvolveu uma categorizao para o processo de

    tomada de conscincia da vontade, que se aproxima muito do idealismo. Ele deu-

    se o trabalho de reunir todas as referncias palavra vontade na obra de

    Bhme e buscou referi-las a estados psicolgicos, terminando por apresentaruma muito apropriada estrutura qudrupla da fenomenologia da conscincia.

    (No confundir com a estrutura tripla da vontade em sentido teolgico-metafsico,

    exposta pelo prprio Bhme), dentre as muitas e distintas acepes que o tesofo

    emprega. Portanto, a primeira poderia ser categorizada como o movimento

    original da vida ou da alma. Este primeiro impulso incausado, eclode

    literalmente do nada e no possui objetivo. como uma nsia de algo. Quem

    conhece a fundo esta instncia tem a revelao de que a vontade a fonte do ser.

    No momento em que esta vontade imagina objetos aos quais se prender, ela

    compara coisas na imensido de diversidades conflitantes. Raciocinando sobre o

    que lhe apraz, a vontade se desdobra em livre-arbtrio. A terceira vontade o

    egosmo, que se forma inevitavelmente na relao da alma consigo mesma. A

    conscincia de que eu sou a fonte da minha prpria vontade (e tanto a ao como

    a satisfao desta vontade) suficiente para gerar egosmo. A quarta forma de

    vontade s se desenvolve com muito esforo e o desapego, o oposto e a

    superao do egosmo. Com o desapego o Eu no quer nada para si, e pode

    mesmo esquecer-se de si, porque o aspecto objetual do sujeito se perde diante do

    alargamento de horizontes em que a vontade pode se expandir. O desapego

    libertao do egosmo, que insacivel fonte de todos os males da decepo

    prpria e do abuso contra os outros. (Isto apesar de sua origem natural e

    necessria.)

    Werner Elert, em seu livro A mstica voluntarista de Jakob Bhme (Die

    voluntaristische Mystik Jakob Bhmes), tambm corrobora a impresso de uma

    dupla implicao entre vontade e intelecto, e da importncia do livre-arbtrio

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    para Bhme. Em sua interpretao, quando a imaginao passa do eu como

    objeto da vontade para a ao mesma, a vontade escapa do ciclo de retorno ao

    seu insacivel desejo, e tudo opera sem expectativa, sem angstia. A alma

    entende-se como sujeito, e a sua objetidade torna-se um fraco contorno, umamodulao sua, ao invs de uma priso (Elert, 1987). Em contradio com a

    ortodoxia luterana, este renascimento de responsabilidade pessoal. Deus s

    atua dialeticamente, no sentido em que a vontade individual deve harmonizar-se

    com a divina (Elert, 1987, p. 78).

    A palavra que Bhme prefere para este fenmeno da conscincia, de

    acordo com seu simbolismo alqumico, magia. Magia a melhor teologia, pois

    nela se funda e se encontra a mais pura f... Em suma: Magia a ao noesprito da vontade. Mistrio no seno a vontade mgica (Bhme, 1923, p.

    321). pelo mistrio da deciso intermediria entre vontade e intelecto que se

    esclarece toda a vida moral e religiosa. A magia o mistrio, e no tem ser,

    porque fronteira entre mente e liberdade. A magia no um ser, mas um

    esprito de anseio do ser(p. 318). A vontade toma de onde no h nada, ela

    senhora e conquistadora, e no um ser, mas impera sobre o ser, e o ser s a faz

    ansiar, como peculiar ao ser(p. 325).

    O intelecto s mostra vontade o que ela poderia empreender, e a faz

    ansiar, este o seu papel. Por si ele no possui nenhuma fora transformadora.

    Ele a forma, a organizao. A vontade o contedo que preenche os objetos

    dados no anseio. O anseio o caminho do mundo para a vontade, a forma como

    o esprito recebe os demais elementos do mundo, do ponto de vista da diviso

    que lhe prpria. Pode ser preenchido pelos sentidos, pela memria, pela

    inclinao das paixes ou pelo intelecto. Tudo que afeta a vontade anseio, e o

    homem s no tem anseio em relao aquilo que ignora ou despreza. A medida

    do anseio a afeio, o gosto, a significao que algo possui para o indivduo. Da

    o dever ele ser vigiado e dominado, para que a alma no se disperse de si mesma

    e de seus propsitos espirituais, alienando a vontade numa escravido entre os

    particulares. A vontade em atividade ao, e uma vez que tenha optado por um

    determinado anseio entre outros, somente outra vontade, individual ou da

    Providncia, pode det-la. A tica de Bhme prescreve, desta forma: O homem

    o princpio primeiro de suas prprias aes(Boutroux, 1908, p. 276).

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    Concluso

    a partir do pensamento de Jakob Bhme que se inicia em alto nvel o

    casamento entre a Reforma, originalmente teolgica, mas tendo logo produzido

    uma renovao filosfica, e o neoplatonismo, que por sua vez foi sempre o

    intermedirio entre a filosofia e a teologia.

    O valor desta sntese est no fato de ser a Reforma pautada em uma

    metodologia liberal, sem que a sua doutrina necessariamente o fosse, enquanto

    que o neoplatonismo, gozando justamente da posio contrria, constituiu-se

    como posio libertria, mas cuja metodologia pode variar entre a liberdade de

    suas verses crticas e o dogmatismo de sua, no menos comum, verso

    absolutista.

    Este encontro entre o mtodo e a doutrina liberais, apesar de todas as

    justas e necessrias ressalvas quanto s limitaes de poca, foram e seguem

    sendo inspirao para os esforos de conciliao entre religio, cincia e filosofia

    dentro dos altos padres de exigncia que cada uma destas disciplinas adquiriu

    com o advento da modernidade.

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    1Este homem, porm, apesar das iluses de seu tempo, incrementou audaciosamente a aplicaoda qumica medicina A quimioterapia o uso do macrocosmo para curar o microcosmo. Ohomem , quanto ao corpo, um composto qumico; a doena uma desarmonia, no dos humoresde Galeno, mas dos constituintes qumicos do corpo De modo geral, a teraputica da pocadependia, para a feitura de remdios, do mundo vegetal e animal; Paracelso, hbil em alquimia,salientou as possibilidades curativas das matrias inorgnicas. Converteu o mercrio, o chumbo, oenxofre, o ferro, o arsnico, o sulfato de cobre e o sulfato de potssio em partes da farmacopeia;ampliou o emprego de tinturas e extratos qumicos; foi o primeiro a fazer a tintura de pio, a que

    chamamos ludano. / Chamou a ateno para os fatores profissionais e geogrficos da doena,estudou a tsica fibroide em mineiros e ligou, pela primeira vez, o cretinismo papeira endmica.Incrementou a compreenso da epilepsia e atribuiu a paralisia e as perturbaes da fala a males dacabea. Enquanto que a gota e a artrite eram aceitas como acompanhamentos naturais eincurveis da idade madura, Paracelso proclamava que eram curveis, desde que o diagnsticomostrasse que se deviam a cidos formados por resduos alimentares retidos demasiadamente noclon (Durant, 2002, p. 739).

    2 Segundo nossa perspectiva esta conceituao indistinguvel do que expe Paul Tillich emCoragem de Ser.

    3Nota do autor.

    4 Os trs princpios da essncia divina seriam Deus, Natureza e Homem. Mas estes nomes soapenas arquetpicos, pois na realidade cada elemento da natureza uma manifestao objetiva de

    uma daquelas potncias ideais, na linguagem figurativa da alquimia, conforme veremos mais tarde:Enxofre (o poder divino), mercrio (o poder das trevas, a queda) e sal (o princpio da elevao esuperao do mal pelo bem).

    5Seguimos aqui a orientao de Nikolas Berdiaeff (1945, p. 12) para a traduo de Ungrundcomoindeterminado, ao invs das possveis acepes como no fundamento, sem fundamento,infundado, etc. Conforme este autor, o Ungrundde Bhme no tem relao com a ideia de um vaziointelectual, comum mstica, mas est associado imprevisibilidade da Vontade de Deus. Aausncia de condicionamento e determinao, portanto, a figura que melhor representa aliberdade primeva, anterior Criao.

    6Romanos 1.20. Porque os atributos invisveis de Deus, assim o seu eterno poder como tambm asua prpria divindade, claramente se reconhecem, desde o princpio do mundo, sendo percebidospor meio das cousas que foram criadas.

    7Observe-se o comentrio de Giovanni Reale & Dario Antiseri em seu Histria da Filosofia(1990, p.340), sobre a originalidade do Uno plotiniano: Ora, h princpios de unidade em diversos nveis,mas todos pressupem um princpio supremo de unidade, que ele denomina precisamente de Uno.Plato j havia colocado o Uno no vrtice do mundo ideal, mas o concebia como limitado elimitante. Plotino, no entanto, concebe o Uno como infinito. Somente os naturalistas haviam faladode um princpio infinito, mas o concebiam na dimenso fsica. Plotino descobre o infinito nadimenso do imaterial e o caracteriza como potncia produtora ilimitada. E, consequentemente,como o ser, a substncia e a inteligncia haviam sido concebidos na filosofia clssica como finitos,Plotino coloca o seu Unoacima do ser, da substncia e da inteligncia. Esta interpretao, ns avalidamos integralmente no que toca a Jakob Bhme.

    8Plotino (2007). Todo o tratado Sobre a descida da alma nos corpos.

    9Aqui o conceito de causalidade incompatvel com a ideia mecnica, que se desenvolve numasrie temporal, devendo-se manter em mente a ideia de primazia na hierarquia metafsica.

    Recebido em 12/08/2011, revisado em 29/09/2011, aceito para publicao em07/11/2011.