Tesis defendida por Fátima Pérez Osuna y aprobada por el ...
ANA PAULA DOS SANTOS DE SÁrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270132/1/Sa_Ana... · 2018. 8....
Transcript of ANA PAULA DOS SANTOS DE SÁrepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/270132/1/Sa_Ana... · 2018. 8....
ANA PAULA DOS SANTOS DE SÁ
Autobiografia, crítica e ficção: o personagem-escritor em
Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas
CAMPINAS
2015
ii
iii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
ANA PAULA DOS SANTOS DE SÁ
Autobiografia, crítica e ficção: o personagem-escritor em
Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas
Dissertação de mestrado apresentada ao
Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas para
obtenção do título de Mestra em Teoria e
História Literária, na área de Teoria e Crítica
Literária.
Orientadora: Profa. Dra. Miriam Viviana Gárate
CAMPINAS
2015
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624
Sá, Ana Paula dos Santos de, 1988-
Sa11a S_aAutobiografia, crítica e ficção : o personagem-escritor em Roberto Bolaño e
Enrique Vila-Matas / Ana Paula dos Santos de Sá. – Campinas, SP : [s.n.], 2015.
S_aOrientador: Miriam Viviana Gárate.
S_aDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem.
S_a1. Bolaño, Roberto, 1953-2003 - Crítica e interpretação. 2. Vila-Matas,
Enrique, 1948- - Crítica e interpretação. 3. Literatura comparada - Chilena e
espanhola. 4. Metaficção. 5. Autobiografia na literatura. I. Gárate, Miriam,1960-. II.
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III.
Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Autobiography, criticism and fiction : the figure of the writer in Roberto
Bolaño and Enrique Vila-Matas
Palavras-chave em inglês:Bolaño, Roberto, 1953-2003 - Criticism and interpretation
Vila-Matas, Enrique, 1948- - Criticism and interpretation
Comparative literature - Chilean and Spanish
Metafiction
Autobiography in literature
Área de concentração: Teoria e Crítica Literária
Titulação: Mestra em Teoria e História Literária
Banca examinadora:Miriam Viviana Gárate [Orientador]
Wilson Alves Bezerra
Livia Fernanda de Paula Grotto
Data de defesa: 06-03-2015
Programa de Pós-Graduação: Teoria e História Literária
iv
v
vi
vii
AGRADECIMENTOS
À FAPESP, pela bolsa que possibilitou minha dedicação exclusiva aos estudos.
À Miriam, por todo o aprendizado (que não foi pouco!). Aos membros da banca de qualificação e da banca de defesa, pelas construtivas observações e “provocações”. Deixo um agradecimento especial à Livia Grotto e à Fernanda Alves, pela disposição em acompanhar, com muita atenção e dedicação, esta pesquisa desde a monografia.
A todos os funcionários do IEL, em especial aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação, Cláudio, Miguel e Rose, pelo bom humor, pela boa disposição em me ajudar sempre que precisei e, principalmente, pelo contagiante “corintianismo”.
A todos os funcionários e colegas (portugueses e estrangeiros) da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em Portugal, pela ótima recepção e por todo o auxílio e atenção no decorrer do meu intercâmbio. Aos docentes do Departamento de Estudos Comparatistas e Relações Interculturais e do Departamento de Estética Literária, pelas disciplinas enriquecedoras e por todas as conversas e reuniões extraclasse.
A todos os meus eternos amigos de Graduação, os “Letreiros”, pois sem eles todo esse caminho teria sido muito mais cansativo e, com certeza, um tanto sem graça.
Sei que estou sujeita a ser injusta ao citar nomes, mas seria impossível encerrar esses agradecimentos sem mencionar a gentileza, o carinho e todo o apoio, pessoal, acadêmico e gastronômico da Bruna; a doçura e o companheirismo da Malu, aquela que sempre consegue ler meus pensamentos; as longas (pessoais, virtuais, nacionais e internacionais) conversas com a Moniquinha; e a convivência, literalmente familiar, que tive com a Pati, da época de roommate até se tornar minha madrinha de casamento. À Michele, com quem eu aprendi o que é a amizade, pelas horas e horas sentadas estudando para o Vestibular da Unicamp, de certa forma, onde tudo isso começou.
À Mariangela, ao Flávio, à Leilane e ao Diego, pelas risadas nos almoços de domingo.
Por fim, a parte mais difícil, o agradecimento àquele sobre o qual eu não consigo escrever sem marejar os olhos, o meu Querido, e muito amado, Alex. Obrigada por acreditar em mim e me fazer acreditar. Obrigada por ser o meu companheiro em todos os momentos de travessia. Obrigada por ser aquele que mantém meus pés no chão ao mesmo tempo em que me encoraja a alçar voos mais altos. Ao seu lado eu experimento a certeza de estar seguindo por (e rumo a) um “buen camino”.
viii
ix
En Bolaño, el que no es poeta es padre, madre o
hermano de poeta, novia o novio de poeta, amigo,
amante oficial o amante secreto de poeta, heredero de
poeta, lector de poeta, editor de poeta, enemigo de
poeta, antídoto, víctima, proyecto de poeta… Dios
mío: ¿cómo voy a hacer para sobrevivir a esta
proliferación, esta explosión demográfica, esta
metástasis de poetas?
Alan Pauls, “La solución Bolaño”.
Narrar es como jugar al póquer:
hay que parecer mentiroso cuando se dice la verdad.
Ricardo Piglia, Prisión perpetua.
x
xi
RESUMO
Esta Dissertação tem por objetivo analisar o perfil e o papel do personagem-escritor em
dois romances do escritor chileno Roberto Bolaño (Estrella Distante, de 1996, e Los
Detectives Salvajes, de 1998) e em dois do espanhol Enrique Vila-Matas (El mal de
Montano, de 2002, e Doctor Pasavento, de 2005). Busca-se explorar os contornos da
figura do escritor que marca essas narrativas, com base em uma leitura atenta tanto aos
eventuais traços autobiográficos emprestados pelos autores a seus personagens-
escritores quanto ao tom ensaístico e ao retrato do campo literário esboçado a partir
desse veemente destaque dado ao ofício de escritor. O objetivo principal desta
Dissertação é observar quais são as posturas literárias desses personagens, o que eles
pensam e/ou têm a declarar sobre a literatura, e de que modo eles encaram e exercem a
atividade de escrita e de leitura. Vale mencionar, por fim, que se dá também atenção ao
longo deste trabalho à atual e recorrente associação das poéticas de Bolaño e de Vila-
Matas à denominada «autoficção», tendo em vista que classificar um texto como
autoficcional significa atribuir, muitas vezes, um papel de destaque à função e ao lugar
ocupado pelo personagem-escritor no que tange à presença da autobiografia do autor
dentro da ficção.
xii
xiii
ABSTRACT
This thesis aims to analyze the role played by the figure of the author in two novels of
the Chilean writer Roberto Bolaño (Estrella Distante, 1996, and Los Detectives
Salvajes, 1998) and in two books of the Spanish author Enrique Vila-Matas (El mal de
Montano, 2002, and Doctor Pasavento, 2005). It attempts to observe the importance of
the profile of this type of character as regards the traces of autobiography and the
essayistic tone which mark the stories of these two writers. In order to do that, it
discusses the possible relation between their Poetics and «autofiction» (a device directly
linked to the role played by the characters who represent the figure of the author), and
what the contours of the critical portrait of the literary field developed within their
fictions are. The main objective is to observe the literary postures of these characters, in
other words, how they deal with the writing activity and with the activity of reading as
well, and what they think and say about literature.
xiv
xv
SUMÁRIO
1. Introdução 1
2. O personagem-escritor e a «autoficção» 17
3. Os personagens-escritores de Bolaño e Vila-Matas 27
3.1. Que escritores somos nós? Juventude e comunidade literária em Roberto Bolaño 28
3.1.1. O narrador de Estrella Distante: Belano ou Bolaño? 28
3.1.2. O que Carlos Wieder revela sobre Arturo Belano? 37
3.1.3. Pelos «talleres de poesía» de Estrella Distante 46
3.1.4. O diário de García Madero em Los Detectives Salvajes ou “anotações sobre mexicanos perdidos no México” 53
3.1.5. Sobre o Real Visceralismo: uma comunidade possível? 64
3.2. Que escritor sou eu? Da enfermidade literária à morte do Autor: a trajetória dos narradores de Enrique Vila-Matas 83
3.2.1. Rosario Girondo e Andrés Pasavento: escritores à beira da loucura 83
3.2.2. El mal de Montano e Doctor Pasavento: identidades em crise ou autoficção? 113
4. Conclusões 127
Bibliografia 137
xvi
1
1. Introdução
Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas são exemplos de escritores
contemporâneos que obtiveram boa aceitação tanto do mercado quanto da academia. De
jornais a periódicos especializados, de grandes prêmios literários às prateleiras de best-
sellers, seus nomes fazem-se presentes. Autores de um número considerável de livros,
todos publicados em um curto período de tempo da década de 90 até 2012, somando-
se apenas romances e livros de contos, foram publicados 15 títulos de Bolaño (incluindo
obras póstumas) e 18 de Vila-Matas , ambos apresentam uma literatura sobre a
literatura. Amigos em vida, o escritor chileno e o espanhol se tornaram um rico e
importante corpus para a Literatura Comparada.
Ainda que muito estudados no Brasil e no exterior, são poucas as análises
voltadas à comparação de suas poéticas, prevalecendo pesquisas focadas ou nos textos
de Bolaño ou nos de Vila-Matas. Nas leituras comparadas que tratam das narrativas de
ambos, nota-se a predominância de uma abordagem abrangente, por meio da qual os
escritores surgem associados a outros nomes da narrativa latino-americana ou espanhola
contemporânea, como Sergio Pitol, Javier Marías, e outros.
Nesse cenário, a Dissertação de Mestrado de Antônio Carlos Silveira
Xerxenesky, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), defendida em
2012 sob o título “A literatura rumo a si mesma: Roberto Bolaño e Enrique Vila-
Matas”, revelou-se um estudo pioneiro no país. Assumidas as potenciais similaridades
entre o trabalho de Xerxenesky e esta proposta, vale mencionar que se entende como
positiva (e produtiva) a divergência observada entre o corpus fundamental das duas
análises, visto que Xerxenesky parte de livros que podem ser classificados como
catálogos de escritores, La literatura nazi en América (1996), de Bolaño, e Bartleby y
2
compañía (2000), de Vila-Matas, enquanto que esta pesquisa atenta-se a narrativas
facilmente associáveis ao gênero romance.
No que concerne a esta Dissertação, a escolha dos dois autores origina-se de
resultados obtidos em estudos anteriores. A partir da Monografia de Final de Curso
intitulada “Um passeio pela poética de Roberto Bolaño: a definição de literatura e do
ofício de escritor a partir do poema ‘Los Neochilenos’”1, defendida em 2011,
desenvolveu-se no fim do mesmo ano um projeto de Iniciação Científica de curta
vigência (Processo Fapesp nº 2011/06503-9), visando uma leitura comparada de caráter
introdutório dos textos de Bolaño e Vila-Matas2. As conclusões dessa breve pesquisa
destacavam muitos pontos passíveis de serem aprofundados, os quais serviram de base
para a presente proposta.
Não é difícil para um leitor das obras desses escritores compreender a
justificativa para tal comparação. Tanto o chileno quanto o catalão utilizam a literatura
como alicerce para suas histórias, destacando-a como fio condutor, tema e/ou
personagem. Um leitor mais assíduo, não restrito apenas aos textos ficcionais, em algum
momento se depararia com os próprios autores declarando (e/ou ironizando) essa
proximidade: “De hecho, me siento muy cercano a toda la obra del escritor chileno. Es
posible incluso que sea el escritor que más se parece a mí, o viceversa” (VILA-
MATAS, 1999, p. 74).
A pertença de ambos ao universo metaliterário é, portanto, frequentemente
reconhecida e reafirmada pela crítica, mas ainda carece de um olhar mais detalhado,
1 O trabalho encontra-se disponível para download na Biblioteca Digital da UNICAMP, no seguinte endereço: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=48537&opt=1>. 2 Parte dos resultados obtidos nessas pesquisas foi apresentada no XIX Congresso Interno de Iniciação Científica da UNICAMP (26/10/2011 a 27/10/2011) sob o título “Literatura, viagem e enfermidade: um passeio pela poética bolañiana”, trabalho este premiado com Menção Honrosa pelo Comitê Científico do evento (PIBIC/Pró-Reitoria de Pesquisa da UNICAMP).
3
principalmente no que tange à análise do papel desempenhado pela figura do escritor
em suas narrativas. Partindo da premissa de que “la figura del escritor no es un asunto,
es el dispositivo que gobierna la escritura, también en la dimensión del trazado de su
estructura” (POZUELO YVANCOS, 2010, p. 180), esta Dissertação pauta-se pelas
seguintes perguntas:
• Qual é o perfil dos escritores retratados por Bolaño e Vila-Matas? Há algo em
comum entre eles?
• O que esses personagens pensam ou declaram a respeito da literatura e do ofício
de escritor?
• Em relação a seus papéis dentro dos romances escolhidos, seria esse tipo de
personagem um elemento formal privilegiado para se estabelecer, problematizar
e/ou se ressaltar a relação entre autobiografia e ficção, conforme prevê,
atualmente, uma considerável parte da crítica, ou tal proximidade entre autor e
personagem-escritor teria outras implicações de ordem estética, como a
acentuação da porosidade entre a crítica do escritor (ou a exposição de sua
experiência literária) e sua ficção?
A fim de esboçar possíveis respostas, esta pesquisa conta com um corpus
composto de quatro obras: Estrella Distante (1996) e Los Detectives Salvajes (1998), de
Roberto Bolaño, e El mal de Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005), de Enrique
Vila-Matas. Esses romances, além de configurarem-se importantes títulos na trajetória
de seus respectivos autores, têm em comum o fato de serem protagonizados por
personagens cujas vidas são conduzidas a partir de suas relações com o ofício de
escritor. Em termos gerais, nota-se que o perfil de escritor presente nesses e em outros
livros de Bolaño tende a recuperar a imagem do escritor jovem, boêmio e marginal,
pertencente à América Latina das décadas de 70 a 90, enquanto que Vila-Matas,
apoiando-se em protagonistas mais velhos e imersos no campo literário do século XXI,
4
apresenta, usualmente, escritores em busca de uma identidade que fora perdida ao se
alcançar o prestígio quase nunca experimentado pelos personagens bolanianos. Trata-se,
portanto, de personagens antagônicos quanto ao ambiente (marginalidade versus
institucionalidade) e aos resultados perante o ofício de escritor (fracasso versus
reconhecimento).
Ao se reconhecer que na literatura contemporânea em espanhol muitos
caminhos levam a Borges, é possível concluir de antemão que o aspecto metaliterário do
universo ficcional de Bolaño e Vila-Matas não constitui um fato totalmente inovador
isso para não citar a metaficção já presente em Dom Quixote, de Cervantes, ou em
Tristam Shandy, de Sterne. É notório o diálogo entre suas poéticas e a
metaliteratura/metaficção comumente associada não apenas a Borges, mas a autores
mais recentes, como o também argentino Ricardo Piglia e o espanhol Javier Cercas ou,
para citar exemplos nacionais, os brasileiros Osman Lins e Silviano Santiago. Trata-se
de escritores pertencentes a um universo ficcional voltado à tematização do literário
sendo “tema” aqui entendido como um elemento de “função estruturante, que ordena,
gera e permite produzir o texto” (MACHADO & PAGEAUX, 2001, p. 90) , do qual
se originam textos marcados por uma “(pseudo)referencialidad autófaga-textual”
(CAMARERO, 2004, p. 46), uma referencialidade que transita do plano do
real/imaginário para o plano do signo, conforme sugere Jesús Camarero em
Metaliteratura. Estructuras formales literarias (2004). Ou, fazendo uso das palavras de
Linda Hutcheon, “ficções sobre ficções”, “that is, fiction that includes within itself a
commentary on its own narrative and/or linguistic identity” (HUTCHEON, 1991a, p. 1).
No que se refere ao foco desta pesquisa, cabe ressaltar um especial interesse
por elementos/construções metaficcionais que deem destaque ao retrato de instâncias
“extraliterárias” vivenciadas pelo escritor, como sua relação com o mercado literário,
5
seus posicionamentos políticos e/ou outros compromissos semelhantes. Nota-se,
inclusive, que os dois romances de Bolaño estudados nesta Dissertação afastam-se dessa
inscrição quase exclusiva ao plano do signo destacada por Camarero, o que explica a
inexistência, nessas narrativas, de reflexões acerca da própria ficção/de seu processo de
escrita. Ao contrário, predomina nos enredos do chileno precisamente esse olhar global
(/externo) ao ofício de escritor (descrição da trajetória profissional do personagem-
escritor, destaque à sua formação e às suas preferências literárias etc). Vila-Matas, por
sua vez, alterna-se entre as duas perspectivas, isto é: retrata com veemência tais esferas
“extraliterárias” ao mesmo tempo em que familiariza o leitor com comentários sobre a
própria construção dos textos.
Essa diferença entre o que seria a metaficção desenvolvida por Bolaño e a
desenvolvida por Vila-Matas coloca em relevo um aspecto comum a qualquer estudo
comparatista: as notórias similaridades entre duas ou mais poéticas acabam por ressaltar
também suas respectivas discrepâncias. De fato, em contraposição a Bolaño, há na
poética de Vila-Matas uma constante necessidade de se discorrer sobre a obra em
andamento em síntese, é desenvolvida uma “(...) auto-referencia a un texto que se
está haciendo mientras lo leemos” (POZUELO YVANCOS, 2010, p. 179).
Em Nascissistic Narrative: the Metaficcional Paradox, livro publicado em
1980 por Linda Hutcheon, pesquisadora focada no estudo da atual “consciência formal
na arte”, esse tipo textual é discutido a partir do conceito de “narrativa narcisista”, sendo
o adjetivo uma referência ao caráter especular da narrativa e não a seus respectivos
autores. O “paradoxo” presente no título de sua obra faz referência à condição do leitor
ante um texto metaficcional: trata-se de um tipo de narrativa que força o leitor a afastar-
se do texto, exigindo que este reconheça seu estatuto artístico, ao mesmo tempo em que
lhe atribui o papel de cocriador (HUTCHEON, 1991a, p. 5). O paradoxo do texto, por
6
sua vez, é descrito da seguinte forma: “the text’s own paradox is that it is both
narcissistically self-reflexive and yet focused outward, oriented toward the reader”
(ibid., p. 7).
Aproximando-se das categorias propostas por Hutcheon3, Vila-Matas
dialogaria com a metaficção que a pesquisadora classifica como “diegeticamente
autoconsciente”, ou seja, uma metaficção pautada, sobretudo, em uma consciência
narrativa esboçada por meio de comentários dirigidos ao leitor e/ou explicações acerca
da construção do texto4. Servem de exemplo as insistentes declarações de desconforto
do narrador de El mal de Montano (2002) sobre a proximidade de seu diário com as
formas do romance: “Viajé a Chile un día antes de que acabara el siglo y fui a ese país
sin este diario que se estaba volviendo novela (...)” (VILA-MATAS, 2002, p. 40); “Me
he dicho que había llegado la hora de ponerle un poco de actualidad a este diario y que
éste no se pareciera tanto a una novela” (ibid., p. 53). Ou também os questionamentos
de Doctor Pasavento, ao repensar sua condição de escritor na obra homônima:
Creo que no debo hablar eternamente como si fuera ese tipo de narrador moderno que tantas veces escribe desde una ciudad sin nombre. Ya terminó el tiempo en que las novelas, cuanto más
3 Linda Hutcheon apresenta em seu estudo posterior A poetics of postmodernism: history, theory, fiction, publicado em 1987, uma nova categoria de metaficção, as “metaficções historiográficas”, romances que “instalam, e depois indefinem, a linha de separação entre a ficção e a história” (HUTCHEON, 1991b: 150). 4 Em Nascissistic Narrative: the Metaficcional Paradox, Linda Hutcheon destaca duas principais modalidades metaficcionais: as supracitadas metaficções diegeticamente autoconscientes e as metaficções linguisticamente autorreflexivas, sendo estas menos vinculadas a uma consciência narrativa e mais a um jogo linguístico que ressalta a obra (e seus limites) enquanto signo/linguagem. No decorrer do livro, Hutcheon discorre minuciosamente sobre a possibilidade de ambas as categorias desenvolverem-se de modo explícito ou implícito, expandindo suas classificações, apresentando assim subdivisões que, por ora, extrapolam os fins desta Introdução. Com base na linha tênue que define as classificações da autora, pode-se concluir que Borges serve de exemplo para os dois tipos de metaficções: aproxima-se do primeiro caso ao inserir, em meio às narrativas, comentários como os que introduzem e encerram “Tema del traidor y del héroe”(1994) – exemplo repetidamente citado pela própria pesquisadora –, e dialoga com o segundo através de descrições como as presentes em “La Biblioteca de Babel” (1941), carregadas de símbolos linguísticos e figuras de linguagem. Aqui, dá-se destaque à primeira modalidade por se tratar do ponto que, por vezes, aproxima a estrutura narrativa de Vila-Matas a de Borges.
7
artísticas eran, más llenas estaban de personajes que llegaban a ciudades que no tenían nombre. No, ya basta. Yo no estoy escribiendo aquí una novela, pero siento la misma responsabilidad que si la estuviera escribiendo (VILA-MATAS, 2005, p. 57).
Com base nessas considerações e nos trechos acima citados, percebe-se o
tipo de vínculo que a escrita de Vila-Matas estabelece com a metaficção. Entretanto, é
preciso ter em conta que um olhar global aos elementos fundadores de sua poética faz
emergir uma advertência: embora presente, essa atenção dada ao processo de leitura e
de escrita nas ficções de Vila-Matas divide um importante espaço com as frequentes
reflexões acerca da identidade do escritor que marcam suas histórias. Em outras
palavras, a leitura dos dois romances do espanhol permite notar que a ideia de uma
“obra haciéndose” (POZUELO YVANCOS, 2010, p. 179) dá constantemente lugar, em
seus enredos, à representação de um “escritor haciéndose”, de um personagem-escritor
que busca e/ou questiona a si mesmo, motivo pelo qual suas narrativas, dialogando
novamente com as de Bolaño, configuram-se um amplo retrato de diferentes instâncias
do cenário literário contemporâneo, não se limitando a uma reflexão restrita ao plano do
signo nos romances do chileno a ideia de um “escritor haciéndose” pode ser
associada tanto ao retrato dos caminhos percorridos por seus personagens para
tornarem-se escritores, quanto à gradual descoberta (feita, concomitantemente, pelo
narrador e pelo leitor) das personalidades e biografias dos “escritores-enigmáticos” que
marcam muitas de suas histórias, como o poeta-assasino Carlos Wieder, de Estrella
Distante (1996), e a poetisa mexicana desaparecida Cesárea Tinajero, de Los Detectives
Salvajes (1998).
Antes de dar início à análise aprofundada desses e de outros personagens-
escritores de Bolaño e de Vila-Matas, faz-se necessário mencionar que, ao ter como
foco o personagem-escritor, a proposta aqui apresentada aproxima-se de trabalhos
8
contemporâneos atentos ao que se revelaria nos dias de hoje um possível “retorno do
Autor”, dada a frequente presença da figura do escritor nas narrativas contemporâneas.
Trata-se de pesquisas que têm reavivado discussões acerca do papel e do lugar da
entidade narrativa, do nome de assinatura na capa do livro, da imagem pública do
escritor etc. Como esclarece Linda Hutcheon, tal “retorno” não deve ser interpretado
como uma recuperação da concepção romântica de autor, que o reconhece como o
portador e a origem de todo o significado, mas como uma reaparição atrelada a certo
reposicionamento de sua figura no ato de enunciação:
The Romantic “author”, as originating and original source of meaning may well be dead, as Roland Barthes argued years ago, but his position – one of discursive authority - remains, and increasingly is the focus of much contemporary literature and also much theoretical debate. (...) In today’s metafiction, the artist reappears, not as a God -like Romantic creator -, but as the inscribed maker of a social product that has the potential to participate in social change through its reader. (...) No longer to believe in the manipulating “author” as a person is to restore the wholeness as the act of the énonciation: the “author” becomes a position to be filled, a role to be inferred, by the reader reading the text (HUTCHEON, 1991a, pp. xv-xvi).
Em seu famoso ensaio de 1967, “A morte do Autor”, Barthes defende
fundamentalmente que “o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor”
(BARTHES, 1988, p. 70). Em sua concepção, “o escritor moderno nasce ao mesmo
tempo em que o seu texto” (ibid., p. 68), de modo que, com o fim do “império do
Autor”, desde Mallarmé, sua figura não mais serviria de explicação ou assumiria a
função de origem da obra. Trata-se, linguisticamente, do emergir de um sujeito da
enunciação em detrimento do reconhecimento da pessoa do autor (67). Foucault, por
outro lado, com “O que é um autor?” (1969), chama a atenção para a “função autor”,
alegando que o nome do autor, não sendo “exatamente um nome próprio como os
outros” (FOUCAULT, 2006, p. 273) visto que “mais do que uma indicação equivale
a uma descrição” (ibid., p. 272) , é dotado de uma função discursiva. Segundo sua
9
visão, não se trata de resgatar sua figura como a origem do texto, mas de aceitá-la como
um complemento do discurso, uma vez que “o anonimato literário não é suportável para
nós” (ibid., p. 276). Conforme sugere a citação de Hutcheon, a hipótese de um “retorno
do Autor” através das/nas ficções contemporâneas não aponta para a recuperação do
autor como um “deus”, mas parece fundamentar-se tanto no reforço do caráter
performativo da escrita já assinalado por Barthes, quanto em um constante jogo com as
diferentes instâncias da “função autor” defendida por Foucault. Como resultado desse
“fenômeno”, multiplica-se na atualidade um tipo de romance, geralmente híbrido, que
aposta simultaneamente em estratégias que obscureçam os contornos e limites da voz
narrativa, fragmentando-a, e em elementos que a associem ao seu maior referente
externo, a pessoa do autor.
Recorrendo novamente a Borges, tem-se com o texto “Borges e yo” (1960)
um exemplo claro dessa condição por vezes paradoxal da voz narrativa na literatura
contemporânea. A oposição de um “eu” narrador a um “outro” chamado Borges
apresenta uma voz narrativa que “nasce”, fazendo uso do termo de Barthes, junto com o
texto, ao mesmo tempo em que se observa uma referência à bagagem extratextual que o
nome Borges carrega consigo, visto que, segundo Foucault, o nome de um autor
“manifesta a ocorrência de um certo conjunto de discursos, e refere-se ao status desse
discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura” (FOUCAULT, 2006, p. 273).
O excerto abaixo esclarece que, longe de uma menção gratuita, o “Borges” descrito
sugere uma referência à imagem pública/mítica do escritor argentino, a uma imagem
construída/encenada que o aproxima da figura do ator; trata-se do escritor que está nos
dicionários em contraste ao escritor que é apenas o “eu” de um texto, o “eu”
simplesmente escritor:
10
Al otro, a Borges, es a quien le ocurren las cosas. Yo camino por Buenos Aires y me demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar el arco de un zaguán y la puerta cancel; de Borges tengo noticias por el correo y veo su nombre en una terna de profesores o en un
diccionario biográfico. Me gustan los relojes de arena, los mapas, la tipografía del siglo XVIII, las etimologías, el sabor del café y la prosa de Stevenson; el otro comparte esas preferencias, pero de un modo
vanidoso que las convierte en atributos de un actor. Sería exagerado afirmar que nuestra relación es hostil; yo vivo, yo me dejo vivir, para que Borges pueda tramar su literatura y esa literatura me justifica (BORGES, 1996, p. 186)5.
A exemplo de Borges, também Bolaño e Vila-Matas optam por brincar com
as fronteiras que, a princípio, separam a pessoa do autor de sua voz narrativa e de seus
personagens, ainda que o façam de modo menos incisivo que o argentino. Os jogos
narrativos usualmente desenvolvidos pelos dois escritores tendem a tratar questões
relacionadas à figura autoral de forma mais sutil, afastando-se, com frequência, da
acentuada e declarada autoconsciência que rege “Borges y yo”. Mesmo nos contos em
que Bolaño faz menção a seu nome próprio os quais são brevemente discutidos na
próxima subseção , ele o faz a fim de, discretamente, identificar/nomear a um dado
personagem e não para dar início a um denso discurso autorreflexivo dentro de sua
ficção. No entanto, ao se considerar o advento da internet nas últimas décadas, somado
à crescente espetacularização promovida pela indústria editorial na contemporaneidade,
percebe-se que Bolaño e Vila-Matas vivenciam com ainda mais intensidade que Borges
as consequências (literárias e de outra ordem) da exposição e da exaltação da figura
pública do escritor, estas já tão bem ironizadas pelo argentino em 1960. Trata-se de
autores muitas vezes “assombrados” pelo maior referente externo de seus textos (a
pessoa/ o nome do autor), dada a rápida e recorrente propagação de informações
(verídicas ou inventadas) divulgadas a respeito de suas biografias e de seus textos.
5 Grifo meu.
11
Sabe-se que nos dias de hoje não são raras as ocasiões em que o leitor
conhece em detalhes a vida e personalidade de um determinado autor. Barthes já
criticara em “A morte do autor” (1967) a exacerbada importância conferida à “pessoa”
do autor, de modo que junto ao anúncio de sua “morte”, pretendido por seu ensaio, vê-
se a admissão de que a figura do escritor ainda reinava “nos manuais de história
literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos periódicos, e na própria
consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao seu diário intimo, a pessoa e a
obra” (BARTHES, 1988, p. 66). Trata-se de um fenômeno não apenas igualmente
válido para a atualidade, mas que vem sofrendo um gradual agravamento desde a
década de 70, período imediatamente posterior à publicação de “Borges y yo”. Junto a
um bom êxito de vendas, os escritores, incluindo Bolaño e Vila-Matas, deparam-se com
uma proporcional participação em eventos e feiras literárias, além de diversos convites
para entrevistas (para TV, jornais, revistas e internet) etc. Como bem assinala Alberca
(2007, pp. 24-25), ao deixar para trás a posição de relevância e prestígio social do
século XIX, o escritor perde seu caráter heroico e passa a ter um valor mercantil, que,
paradoxalmente, o coloca em evidência ao mesmo tempo em que o “democratiza”,
tornando-o uma figura “banal”.
Atenta ao atual alcance dos “gêneros biográficos midiáticos” (blogs,
entrevistas, redes sociais, entre muitos outros), Leonor Arfuch (2010, p. 15) faz uso do
termo “espaço biográfico” para referir-se tanto a modelos biográficos clássicos quanto
a gêneros discursivos atuais, muitos deles relacionados à indústria cultural; em sua
opinão, trata-se de “um espaço comum de intelecção dessas diversas narrativas” (ibid.,
p. 37). Defendendo, em diálogo com Bakhtin, a impossibilidade de identificação entre
“autor e personagem, nem mesmo na autobiografia, porque não existe coincidência
entre a experiência vivencial e a ‘totalidade artística’” (ibid., p. 55), Arfuch contesta as
12
formulações de Lejeune e Starobinski e justifica a importância de se pensar os gêneros
biográficos na contemporaneidade a partir do conceito de “espaço biográfico” em
detrimento de modelos narrativos e pactos de leitura rígidos:
Na impossibilidade de chegar a uma fórmula “clara e total”, de distinguir com propriedade, para além do “pacto” (de Lejeune) explicitado, entre formas auto e “heterodiegéticas”, entre, por exemplo, autobiografia, romance e romance autobiográfico, o centro das atenções se deslocará então para um espaço biográfico, onde, um tanto mais livremente, o leitor poderá integrar as diversas focalizações provenientes de um ou outro registro, o “verídico” e o ficcional, num sistema compatível de crenças. Nesse espaço, podemos acrescentar, com o treinamento de mais de dois séculos, esse leitor estará igualmente em condições de jogar os jogos do equívoco, das armadilhas, das máscaras, de decifrar os desdobramentos, essas perturbações de identidade que constituem topoi já clássicos da literatura (ARFUCH, 2010, p. 56).
Os apontamentos de Arfuch sobre a entrevista midiática, gênero
privilegiado ao longo de sua análise, fornecem bons subsídios para o entendimento do
contexto ao qual Bolaño e Vila-Matas pertencem. Nas palavras da pesquisadora, “entre
os territórios biográficos que a entrevista conquistou, há um privilegiado: o dos
escritores (...), aos quais, paradoxalmente, se solicita um suplemento de outra voz”
(ibid., p. 209). Em síntese, nota-se uma correlação entre perguntas de cunho profissional
e íntimo que tendem à “construção compartilhada de uma narrativa pessoal” do
entrevistado (212), necessária, por sua vez, à configuração (mercadológica) da imagem
pública (ou mito) do autor. Ao buscar por esta “outra voz”, a entrevista hoje seria
caracterizada pela tentativa de se conhecer o “além da obra”. Com base nesses pontos,
Arfuch discorre sobre o porquê de a entrevista nada assegurar quanto à identidade do
escritor, ainda que esteja atualmente imersa em um espaço biográfico:
Como em qualquer tipo de entrevista, e por mais especializada que seja, haverá uma construção recíproca do personagem, entrevistador e entrevistado, uma apresentação muito cuidadosa de si - não em vão são compartilhados um saber sobre o poder e a significação do dizer e do mostrar -, uma previsível barreira interposta entre narração e
13
intimidade, mesmo quando abundam anedotas (ARFUCH, 2010, p. 217).
O caso de Bolaño e Vila-Matas serve de exemplo para muitas das
observações feitas por Arfuch. O conhecimento, tanto por parte dos leitores quanto por
parte dos críticos e pesquisadores, dos eventuais pontos de contato existentes entre as
experiências biográficas de ambos e alguns episódios de suas narrativas tem como
principal fonte as declarações proferidas (ou as “narrativas pessoais construídas”) em
entrevistas:
- ¿Has formado parte de algún grupo poético semejante al «real-
visceralismo» de Los detectives salvajes?
RB: Sí, sí. El infrarrealismo. Mario Santiago, un poeta mexicano, y yo lo fundamos en México, en el año 74 o 75, ya no me acuerdo. Que es lo que está detrás del real-visceralismo de Los detectives salvajes. El infrarrealismo. Que fue un movimiento totalmente dadaísta, anarquista, y con el que nos divertimos como chinos. Editamos revistas, como Correspondencia Infra, Rimbaud, vuelve a casa, y cosas así (Bolaño apud GRAS MITAVET, 2000, p. 55).
- Precisamente, a partir de la publicación de Los detectives salvajes,
el lector de tus novelas suele considerar el personaje Arturo Belano
como un alter ego tuyo, ¿aceptas esta lectura, consideras Arturo
Belano como una de tus máscaras?
RB: En cierta forma. Es un alter ego en el sentido de que hay cosas que le pasan a él que a mí me han ocurrido. Pero en otros casos, no, por supuesto. Como cualquier alter ego. Es decir, un alter ego es lo que uno querría ser, pero también es lo que uno se ha salvado de ser. Yo me salve de ser Arturo Belano, y hubiera querido ser también en algún otro momento Arturo Belano. Por lo demás, muchísimas cosas en común (ibid., p. 62).
Diferentemente de Bolaño, que reage com naturalidade frente a perguntas
que buscam verificar um suposto contato entre ficção e realidade, Vila-Matas revela
certo incômodo quando confrontado à mesma espécie de indagação:
(...)
VM: Ahora que lo pienso: siempre que termino una novela, las preguntas de los periodistas giran alrededor de si me ha ocurrido o no aquello que escribí.
14
- ¿Es muy pesado eso?
VM: Sí, casi que dejarías de escribir para no tener que contestar esa pregunta (risa). ¿Y si hubiera pasado de verdad, qué? Hay una escritora amiga de Franzen que a esa pregunta siempre dice que hay en su novela un 17 por ciento de autobiográfico. En las mías el porcentaje se eleva al 27, que es un número shandy (Vila-Matas apud
MERUANE, 2013, s/p).
Os excertos recuperados indicam a necessidade de se observar em que
medida a exposição midiática de Bolaño e de Vila-Matas pode exercer influência na
leitura de suas obras. A inscrição desses escritores no chamado “espaço biográfico”
implica em um alerta de cautela em relação a leituras que visem comparar os autores a
seus personagens-escritores, de modo a se evitar que suas declarações públicas
funcionem como uma espécie de prova de verificabilidade.
Partindo, portanto, da hipótese de que o personagem-escritor surja como o
principal elemento desencadeador de tais discussões em torno do referido “retorno do
Autor”, configurando-se uma das origens/justificativas para essa revisão do papel e do
lugar do autor e da mídia no cenário literário, bem como dos contornos da relação da
obra com seu exterior na contemporaneidade, espera-se que a análise aprofundada desse
tipo de personagem forneça subsídios não apenas para um melhor entendimento das
narrativas de Bolaño e Vila-Matas, mas que contribua tanto para os debates vigentes
quanto para o estudo da figura do escritor em romances de outros escritores
contemporâneos.
O título dado a esta Dissertação, “Autobiografia, crítica e ficção: o
personagem-escritor em Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas”, anuncia o caminho
de pesquisa percorrido. Ainda que os dois escritores sejam analisados separadamente na
seção “3. Os personagens-escritores de Bolaño e Vila-Matas”, e comparados de
forma mais direta em “4. Conclusões”, busca-se desenvolver em ambos os casos uma
leitura igualmente atenta aos eventuais traços autobiográficos emprestados pelos autores
15
a seus personagens-escritores, bem como ao tom ensaístico e ao retrato do campo
literário esboçado a partir desse veemente destaque dado ao ofício de escritor. No que
tange especificicamente à questão da presença da (auto)biografia de Bolaño e de Vila-
Matas nas narrativas escolhidas, julga-se necessário dar atenção à atual e recorrente
associação de suas poéticas à denominada «autoficção», por se tratar de um artifício
diretamente vinculado ao papel exercido pelo personagem-escritor. Parte-se da premissa
de que classificar um texto como autoficcional significa atribuir, muitas vezes e na
mesma medida, um papel pré-determinado ao personagem-escritor, isto é, o papel de
identificação/rememoração do respectivo autor/de sua (auto)biografia. Devido a isso,
expõem-se na seção “2. O personagem-escritor e a «autoficção»” os pressupostos
teóricos que norteam a perspectiva aqui adotada, e que, portanto, regem a abordagem
feita ao longo da análise dos romances.
Vale mencionar, por ora, que, em detrimento de propostas que deem
demasiada importância à presença da autobiografia na narrativa contemporânea, esta
análise converge para um diálogo com perspectivas teóricas da produção literária latino-
americana recente, que repensam a relação da obra com seu exterior na atualidade por
outros caminhos, que não a autoficção. Ao encontro das ideias de Ana Cecilia Olmos,
interpreta-se o hibridismo de gêneros observado nos quatro romances escolhidos como
uma “transgressão” associada a “políticas de escritura contemporâneas que arriscam
formas estéticas críticas” (OLMOS, 2011, p. 12), as quais assumem a ficção como “un
espacio propicio para poner en escena el diálogo entre la palabra creativa y la reflexión
crítica sobre ella” (OLMOS, 2009, p. 7).
Em seu artigo “Discursos de la subjetividad: La crítica de los escritores”
(2007, p. 43), Olmos chama a atenção para três estratégias que permitem identificar a
dupla crítica-ficção em narrativas da literatura argentina atual: (1) “la crítica literaria
16
evoca el universo de las ficciones”, (2) “la ficción hace del discurso crítico su
materia narrativa” e, por fim (3) “el discurso crítico asume su condición ficcional”.
Enquanto em suas abordagens há o predomínio de um olhar às ocorrências (1) e (3) na
literatura latino-americana contemporânea, em textos de autoria da chilena Diamela
Eltit, do argentino Luis Gusmán e do brasileiro Osman Lins, este estudo associa a
Bolaño e Vila-Matas a estratégia (2), dando destaque à seguinte questão: qual é a
importância do perfil, da postura, e dos testemunhos e devaneios dos personagens-
escritores das narrativas de Bolaño e Vila-Matas enquanto “operadores” (ou instâncias)
do discurso crítico na ficção? Ou, à luz de José María Ponzuelo Yvancos (2010, p. 30),
o que essa “voz reflexiva”, “que comúnmente conocemos asociada al ensayo”, e que
atualmente é cedida pelos autores a seus narradores, tem a dizer?
Com base nessas formulações, busca-se elucidar o porquê da advertência de
que se tratando de Bolaño e Vila-Matas, dado o lugar sempre reservado ao personagem-
escritor, é tênue a linha que separa um possível “falar de si” de um “falar de/sobre
literatura”.
17
2. O personagem-escritor e a «autoficção»6
Roberto Bolaño Ávalos nasceu em 1953, em Santiago do Chile, viveu sua
adolescência no México e regressou a seu país de origem no ano do Golpe Militar
(1973), com o propósito de apoiar os ideais socialistas do presidente Salvador Allende.
Após ser preso devido à sua atuação junto à Unidade Popular, retornou ao México, de
onde partiria definitivamente para a Espanha, em 1977. Na mesma década, antes de
mudar-se para a Europa, fundara junto ao poeta Mario Santiago o Movimento
Infrarrealista, um “dadá à la mexicana” segundo palavras do escritor chileno. Embora o
fracasso do grupo tenha sido rapidamente assumido, ele é mantido até hoje por alguns
de seus ex e novos membros, conforme indica a web site oficial do Infrarrealismo7.
Bolaño publicou seu primeiro livro, Consejos de un díscipulo de Morrison a
un fanático de Joyce, em 1984, em coautoria com o espanhol A. G. Porta. Antes dessa
data é possível encontrar publicações isoladas em periódicos, desde poemas e
manifestos literários até artigos críticos. A parte mais significante de sua produção
centra-se em seus últimos dez anos de vida, de 1993 a 2003, com destaque para um dos
romances analisados nesta Dissertação, Los Detectives Salvajes (1998), pelo qual o
autor recebeu em seu ano de publicação o “Premio Herralde” e no ano seguinte o
“Premio Internacional de Novela Rómulo Gallegos”, inscrevendo-se definitivamente
entre os nomes mais importantes da prosa contemporânea em língua espanhola. Desde
sua morte, decorrente de um problema hepático, publicaram-se três romances póstumos,
em parte inacabados, 2666 (2004a), El tercer Reich (2010) e Los sinsabores del
6 O presente capítulo deu origem ao artigo “Todo lo cercano se aleja. Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas, da autoficção ao espaço biográfico”, aceito pela revista portuguesa Diacrítica (Braga) para compor um dossiê especial sobre Literatura em Língua Espanhola, a ser publicado no número correspondente ao ano de 2014, ainda no prelo. Trata-se de um texto que aborda/sintetiza parte da discussão desenvolvida ao longo pesquisa, composto, inclusive, por alguns excertos e argumentos desconsiderados na versão final da Dissertação. 7 <www.infrarrealismo.com>.
18
verdadero policía (2011). De acordo com pessoas próximas, Bolaño intensificou seu
trabalho ao descobrir a doença, a fim de garantir a estabilidade financeira de sua família.
Nascido em Barcelona em 1948, Enrique Vila-Matas possui uma biografia
consideravelmente distinta à de Bolaño. Distante dos problemas financeiros enfrentados
pelo autor chileno durante toda a vida, o espanhol cursou Direito e Jornalismo, esteve
na África cumprindo com o serviço militar obrigatório, e residiu fora de sua cidade natal
apenas por dois anos, durante a década de 70, período em que viveu em Paris. Suas
primeiras publicações foram Mujer en el espejo contemplando el paisaje (1973) e La
asesina ilustrada (1977), sendo a primeira pouco comentada e não reconhecida pela
crítica, e a segunda a estreia do caráter metaficcional que permearia muitos textos
futuros do escritor. Já Historia abreviada de la literatura portátil (1985) é tido como
seu livro de consagração. Com El viaje vertical (1999), seu único romance de vertente
mais realista, Vila-Matas é também agraciado com o “Premio Internacional de Novela
Rómulo Gallegos”. Embora nunca tenha morado no continente americano, o autor
declara ter grande afinidade com sua literatura.
Vila-Matas mantém atualmente uma média de publicação de dois livros por
ano. Entre suas produções, destacam-se Bartleby y compañía (2001), El mal de
Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005), eleitas sua “Catedral Metaliteraria” pelo
editor espanhol Jorge Herralde. Seus últimos romances, como Dublinesca (2010) e Aire
de Dylan (2012), indicam que Vila-Matas continua seguindo pelo mesmo caminho,
mantendo o escritor, a escrita e o leitor como alicerces de seus enredos.
Um breve olhar às biografias dos autores é suficiente para se constatar que
muitos episódios de suas vidas fazem-se presentes nas narrativas. A sequência de
romances Estrella Distante (1996a), Los Detectives Salvajes (1998) e Amuleto (1999)
traçam para o personagem Arturo Belano uma trajetória quase idêntica à vivida pelo
19
autor chileno: da prisão após o Golpe Militar a suas passagens pelo México, da
fundação de um movimento de poesia marginal à sua doença hepática, muito do escritor
é emprestado a seu alter ego. Vila-Matas, por sua vez, distribui entre seus narradores, a
maior parte deles nascidos em Barcelona, em 1948, muitas das lembranças de sua estada
em Paris, além de inseri-los frequentemente em conferências/eventos literários
efetivamente ocorridos e vinculá-los a nomes de pessoas reais, como, por exemplo, ao
mencionar a falta que o narrador de Doctor Pasavento (2005), Andrés Pasavento,
declara sentir por Bolaño: “(...) pensé en la intensidad de la ausencia, desde hacía medio
año, del escritor Roberto Bolaño, que, tres semanas antes de morir, a finales de junio, se
había reunido com escritores latinoamericanos en el Monasterio de La Cartuja de
Sevilla” (VILA-MATAS, 2005, pp. 84-85).
A análise mais minuciosa desse uso da realidade para compor a ficção
permite notar que tais episódios pessoais, geralmente relatados em suas entrevistas,
alcançam esferas ainda menos conhecidas pelos leitores, entre eles o fato de Bolaño ter
sido funcionário de um camping na Espanha e de Vila-Matas ir com frequência a
Portugal, bem como assumir grande afetuosidade pelo país. Na segunda parte de Los
Detectives Salvajes (1998), no depoimento da inglesa Mary Watson sobre Belano, tem-
se um relato referente aos dias em que ela e seus amigos hospedaram-se no camping
onde o protagonista trabalhava; já nos romances de Vila-Matas, incluindo os dois
analisados nesta Dissertação, os narradores viajam com frequência para cidades
portuguesas intimamente conhecidas pelo escritor.
Em suma, a partir das breves ocorrências aqui listadas, entre outras
possíveis, comprova-se que os dois autores servem-se de traços autobiográficos para
compor o perfil de seus personagens-escritores. Eis a origem da associação de seus
romances à «autoficção». De fato, ao retratar jovens poetas marginais com anseios
20
vanguardistas, pertencentes à América Hispânica dos anos 70, Bolaño parece, por vezes,
discorrer sobre sua própria história tem-se como claro exemplo a notória
proximidade entre o Movimento por ele fundado, o Infrarrealismo, e o Real
Visceralismo retratado em Los Detectives Salvajes (1998). Vila-Matas, por outro lado,
contextualizando seus enredos nos dias atuais e no continente europeu, apresenta por
meio de seus protagonistas a imagem de um escritor de condição semelhante à
experimentada por ele atualmente: um autor já maduro e consagrado, dividido entre a
escrita e os compromissos e deveres profissionais inerentes a ela.
A palavra “autoficção” surge pela primeira vez no romance Fils, publicado
em 1977 pelo escritor e crítico literário francês Serge Doubrovsky. Desde então, muitas
são as tentativas de definição por parte da academia, principalmente com base em
análises centradas em questões de ordem estética.
Al contrario de la autobiografía, explicativa y unificante, que quiere recuperar y volver a trazar los hilos de un destino, la autoficción no percibe la vida como un todo. Ella no tiene ante sí más que fragmentos disjuntos, pedazos de existencia rotos, un sujeto troceado que no coincide consigo mismo (Doubrovsky 1977 apud POZUELO YVANCOS, 2010, p. 12)8.
Ciente do predominante interesse da academia pelo assunto, o pesquisador
espanhol José María Pozuelo Yvancos, em Figuraciones del yo en la narrativa. Javier
Marías y Enrique Vila-Matas (2010), chama a atenção para o contexto de publicação do
livro de Doubrovsky, Paris dos anos 70, em detrimento de uma leitura exclusivamente
formal/estrutural do neologismo, destacando assim pontos ocasionalmente ignorados
pelos estudiosos do tema. Em primeiro lugar, o pesquisador ressalta o fato de o termo
“autoficção” aparecer poucos anos após Le pacte autobiographique, de Philippe
Lejeune, texto publicado originalmente em 1973, que na ocasião definira a
8 Tradução do francês feita por Pozuelo Yvancos.
21
autobiografia como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de
sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história
de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 15)9. Em seguida, Pozuelo Yvancos
relembra também a publicação, em 1975, da controversa e famosa autobiografia de
Roland Barthes [“uno de los maestros de Doubrovsky” (POZUELO YVANCOS, 2010,
p. 14)], intitulada Roland Barthes par Roland Barthes, uma autobiografia recheada de
fotografias, e estruturalmente fragmentária, anacrônica e em terceira pessoa, muito
distante, portanto, do modelo formulado por Lejeune. Por fim, encerrando sua síntese
do contexto no qual Serge Doubrovsky encontra-se ao escrever e publicar Fils, o
espanhol cita “la crisis del personaje como entidad narrativa” (ibidem) postulada anos
antes pelo Nouveau Roman como um fator a ser considerado ao se pensar a obra em
termos gerais, nota-se que Doubrovsky atribui à sua autoficção a voz de um sujeito
fragmentado, contrastando-a ao caráter unificante e linear da autobiografia , e acaba
por utilizar a expressão “contra-autobiografía” para se referir à autoficção (ibid., p. 19).
Embora Pozuelo Yvancos acerte em destacar que muitos trabalhos sobre o
tema não reconhecem a relevância do contexto de origem do verbete, e que, portanto,
acabam por conferir-lhe uma atualidade excessiva motivo pelo qual o pesquisador
associa a autoficção a um atual “fenómeno de las tardías recuperaciones de conceptos
teóricos” (POZUELO YVANCOS, 2010, p. 12) , a teoria de Lejeune é com
frequência ponto de partida para se distinguir a autoficção da autobiografia.
Independentemente das críticas e questionamentos já levantados sobre “o
pacto autobiográfico” lejeuneano, há um consenso quanto ao mérito de Lejeune em dar 9 Atualmente encontra-se traduzido para o português apenas o primeiro capítulo de Le pacte
autobiographique, capítulo este de título homônimo. Ainda que o livro original em francês faça parte da bibliografia desta pesquisa, opta-se priorizar, sempre que possível, a citação do texto traduzido. Desse modo, todas as passagens retiradas do primeiro capítulo da obra correspondem aqui à referência “Lejeune (2008)”, ou seja, à tradução, enquanto que menções ao segundo capítulo em diante são acompanhadas da referência “Lejeune (1975)”, correspondente, por sua vez, ao texto original em francês.
22
início a uma reflexão em torno de possíveis parâmetros básicos para se pensar o gênero.
Buscando eximir-se de ser acusado de propor um formalismo radical, o francês reitera
ao longo de seu tratado que as características listadas para a autobiografia não são
necessariamente rigorosas, estando sujeitas a variações, de acordo, por exemplo, com o
estilo de cada autor. Porém, é precisamente no ponto que Lejeune considera fundador e
particular ao gênero autobiográfico que se fundamentam os debates sobre a
conceituação de autoficção: “a relação de identidade entre o autor, o narrador e o
personagem” (LEJEUNE, 2008, p. 15). Segundo ele, além de estabelecer e assegurar o
“pacto autobiográfico”, tal relação é também responsável pela concomitância de um
“pacto referencial”, visto que tanto a autobiografia quanto a biografia “se propõem a
fornecer informações a respeito de uma realidade externa ao texto e a se submeter,
portanto, a uma prova de verificação” (ibid., p. 36).
No que concerne aos recentes estudos acerca da autoficção10, a crítica é
unânime em afastá-la do “pacto referencial” ao qual a autobiografia está sujeita,
isentando-a da supracitada “prova de verificação”. Nas palavras do espanhol Manuel
Alberca, trata-se de um tipo textual regido por “la verdad de las ficciones”, uma verdade
“de orden y coherencia estéticas” (ALBERCA, 2007, p. 285), diferentemente do gênero
autobiográfico, que, conforme esclarece o autor, pode chegar até mesmo a uma vertente
10 A Tese de Doutorado de Vicent Colonna, intitulada L’autofiction. Essai sur la fictionalisation de soi en
litterature (1989) e desenvolvida sob supervisão de Gérard Genette, é tida como o primeiro grande trabalho sobre o tema. Comparada à perspectiva de J. Lecarme, de cunho mais formalista, sintetizada em seu ensaio “Autofiction: un mauvais genre?” (1994), nota-se por parte de Colonna uma definição mais abrangente - o pesquisador descreve três tipos distintos de autoficção: “referencial-biográfica”, “reflexivo-especular” e “figurativa” -, de modo que até mesmo as narrativas de autores como Dante e Cervantes encaixam-se em sua conceituação. Trata-se de uma abordagem muito questionada atualmente, mas que é vista como uma precursora de grande importância, justamente por ampliar as perspectivas em torno da autoficção. No que diz respeito a esta Dissertação, entende-se que discutir a teoria de Colonna excede os objetivos por ora traçados, tendo em vista que trabalhos mais recentes, como os de José María Ponzuelo Yvancos e Manuel Alberca, partem precisamente de uma interpretação já amadurecida dos primeiros indícios teóricos encontrados na referida Tese, além do fato de ambos privilegiarem um corpus em língua espanhola - incluindo Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas. A proposta de J. Lecarme também é aqui mencionada de acordo com sua relevância para os trabalhos dos espanhóis.
23
jurídica, consequente de seu compromisso com a verdade. Segundo Alberca, na
autoficção a transparência da autobiografia dá lugar à “aparencia de transparencia”
(ibid., p. 131). Por outro lado, ao se pensar o papel do nome próprio dentro de textos
autoficcionais, os pesquisadores dividem-se: de um lado, abrangendo a maioria dos
trabalhos recentes, entre os quais se insere o de Alberca, encontram-se os que não
atribuem ao compartilhamento do nome do autor um lugar fundamental, aceitando como
matriz do texto autoficcional um forte tom autobiográfico; de outro, com destaque para
Pozuelo Yvancos, e paralelamente aos critérios formulados por Lejeune para a
autobiografia, estão os que defendem a relação de identidade nominal também para a
autoficção, não como garantia de um pacto de verdade (impossível de ser estabelecido
na ficção), mas como uma forma de distinção entre este tipo de narrativa e demais
textos marcados por indícios autobiográficos.
Para embasar seu posicionamento, Pozuelo Yvancos elege a definição de J.
Lecarme como a melhor fundamentada: “un relato cuyo autor narrador y protagonista
comparten la misma identidad nominal y cuyo intitulado genérico indica que se trata de
una novela” (Lecarme 1993 apud POZUELO YVANCOS, 2010, p. 17). O argumento
central do espanhol em favor da importância do nome do autor gira em torno da origem
dos atuais equívocos interpretativos notados por ele em pesquisas sobre o tema: ou
considera-se que qualquer vestígio autobiográfico dá lugar à autoficção, ou pensa-se que
a “figuración del yo” só é admissível por meio de uma intensa relação extratextual, por
meio da autobiografia, esquecendo-se que ela pode ser estritamente ficcional. Nesse
ponto, a coincidência do nome do autor e do narrador/personagem enquanto premissa
para que um texto, “cuyo intitulado genérico indica que se trata de una novela”, seja
lido como autoficcional indicaria uma alternativa para se evitar tais confusões.
24
Manuel Alberca também ressalta a importância do papel que a identidade
nominal tem para autoficção, desvinculando-a da possível bagagem de informações
biográficas sobre o autor que o leitor possa vir a ter, mas com uma particularidade: na
visão do espanhol, o vínculo entre o narrador e/ou personagem e o nome da capa do
livro pode ser firmado tanto de forma explícita quanto implícita; ou seja, trata-se de uma
identidade “visible o reconocible” (ALBERCA, 2007, p. 31), igualmente ao que prevê
Lejeune para a autobiografia Lejeune insiste na relevância de uma identificação
explícita, mas esclarece que em determinadas autobiografias a falta do nome no interior
da obra é suprida com o desenvolvimento do texto. A tese de Alberca postula que a
autoficção determine um «pacto ambíguo», consequente de sua particularidade de não
pertencer nem ao pacto romanesco nem ao pacto autobiográfico, mas precisamente à
tensão fronteiriça entre esses dois espaços narrativos.
O impasse de José María Pozuelo Yvancos e Manuel Alberca no que diz
respeito ao lugar e ao papel reservado à aparição do nome próprio dentro de textos tidos
como autoficcionais resume a maior divergência observada em trabalhos dedicados ao
tema. Em relação à perspectiva que melhor dialoga com a leitura aqui desenvolvida,
considera-se fundamental relembrar que, atento aos princípios basilares de Le pacte
autobiographique, o romance de Doubrovsky surge como uma resposta às restrições de
ordem estética que Lejeune impõe ao romance, em especial à ideia de que a
coincidência entre o nome do autor e do narrador/personagem exatamente a
estratégia adotada em Fils excluiria, por si só, a hipótese de ficção (LEJEUNE, 2008,
p. 30). Em Fils, Doubrovsky contesta e ironiza, portanto, a famosa janela deixada em
branco em Le pacte autobiographique:
25
(LEUJEUNE, 1975, p. 28 – grifo meu).
Com base nesses aspectos da origem do termo, esta Dissertação entende a
identidade nominal explícita como a forma mais eficaz de se ressaltar as singularidades
da autoficção se comparada a outros textos híbridos. Nesse sentido, este trabalho busca
mostrar que, para além da ausência de uma referência nominal a Bolaño ou a Vila-
Matas nos romances aqui analisados, a recuperação de experiências pessoais dos
escritores, tal como é realiza nessas ficções, contribui, preponderantemente, para um
retrato crítico de seus contextos literários e para o embasamento de discursos sobre
certos universos literários, e não para a configuração de uma escrita que desestabilize ou
questione a fronteira entre a obra e o seu exterior, entre o narrador e a pessoa do autor.
Em outras palavras, nota-se nessas narrativas um “falar de literatura” em detrimento de
um “falar de si” de seus autores.
A justificativa central para a adoção de tal premissa pauta-se no argumento
de que mais do que dialogar com a autobiografia trata-se de romances marcados por
pontos de contato entre crítica e ficção. Longe de negar o uso de experiências
26
vivenciadas pelos autores na configuração de seus personagens-escritores, ressalta-se o
«caráter literário» dessas experiências, uma vez que este determina a recuperação crítica
que Bolaño e Vila-Matas fazem de suas vivencias literárias por meio da ficção. Tendo
em vista que classificar um texto como autoficção significa atribuir, na mesma medida,
um papel pré-determinado ao personagem-escritor, isto é, o papel de identificação e
rememoração do respectivo autor/de sua (auto)biografia, julga-se necessário repensar ao
longo desta Dissertação as eventuais associações de tal artifício a alguns dos
personagens-escritores de Roberto Bolaño e de Enrique Vila-Matas.
27
3. Os personagens-escritores de Bolaño e Vila-Matas
A figura do escritor aparece nas narrativas de Roberto Bolaño e Enrique
Vila-Matas basicamente sob suas formas: ou através da transformação de um escritor
real em personagem, como a aparição de Octavio Paz em Los Detectives Salvajes
(1998), de Bolaño, e a de Robert Musil em El mal de Montano (2002), de Vila-Matas,
ou por meio da construção de personagens-escritores apócrifos. Com exceção dos
apontamentos relacionados à autoficção, os quais convergem para uma reflexão acerca
do lugar da referencialidade externa na composição de determinados personagens, esta
Dissertação despende especial atenção à segunda categoria. Nesse sentido, o termo
“personagem-escritor” abrange, segundo os critérios aqui estabelecidos, personagens
inventados que exerçam o ofício de escritor, sejam eles identificados como poetas ou
romancistas.
Considerando a variedade de personagens que compõe alguns dos romances
escolhidos, julga-se necessário priorizar a análise dos narradores de cada romance, de
modo a delimitar um objeto de pesquisa comum. Trata-se de uma escolha natural no que
concerne aos dois romances de Vila-Matas, haja vista seus narradores configurarem-se
os únicos personagens-escritores de grande relevância para os enredos. Quanto a
Bolaño, em contra partida, nota-se um particular destaque à ideia do escritor enquanto
membro de um grupo, o que exige uma leitura atenta em igual medida ao papel de tais
comunidades literárias que perpassam seus enredos vale mencionar que em Los
Detectives Salvajes (1998) a presença da comunidade literária, representada pelo Real
Visceralismo, traz implicações para o próprio conceito de narrador/narração, já que
fornece uma polifonia de vozes à história.
28
Opta-se, por fim, pela análise individual de cada autor, primeiro a de Bolaño
e depois a da Vila-Matas, tendo em vista apresentar a análise comparativa na seção
reservada às conclusões deste trabalho.
3.1. Que escritores somos nós? Juventude e comunidade literária em
Roberto Bolaño 3.1.1. O narrador de Estrella Distante: Belano ou Bolaño?
As memórias do narrador de Estrella Distante (1996a) englobam um
período de cerca de 20 anos, de 1971/1972, quando, aos 18 anos, Belano conhece o até
então poeta autodidata Alberto Ruiz-Tagle, até a década de 90, quando, tardiamente, o
já revelado Carlos Wieder é punido pelos crimes que cometeu durante o regime militar
de Pinochet. Comparativamente às declarações de Juan García Madero, narrador de Los
Detectives Salvajes (1998), percebe-se na narração de Belano um maior esforço para
ater-se aos fatos, uma frequente preocupação em distinguir o que é opinião do que é
factual. Entretanto, também fica claro em Estrella Distante certa imprecisão narrativa
inerente ao ambiente da ditadura, contexto em que as notícias sobre pessoas e
acontecimentos tornam-se, usualmente, escassas e duvidosas. Devido a isso, é comum o
narrador interromper seus relatos com algum tipo de advertência ao leitor, como “A
partir de aquí mi relato se nutrirá básicamente de conjeturas” (BOLAÑO, 1996a, p. 29)
ou “Todo lo anterior tal vez ocurrió así. (...) Pero tal vez todo ocurrió de otra manera.
Las alucinaciones, en 1974, no era infrecuentes” (ibid., p. 92).
Luego hablamos de los amigos a quienes no habíamos visto desde hacía días, haciendo las conjeturas típicas de aquellas horas, los que seguro estaban presos, los que posiblemente habían pasado a la clandestinidad, los que estaban siendo buscados (BOLAÑO, 1996a, p. 27).
29
Do início ao fim de Estrella Distante, o narrador reconhece em seu amigo e
confidente Bibiano O’Ryan uma fonte privilegiada de informações, principalmente
devido a sua obsessão por Ruiz-Tagle/Wieder: “Mientras tanto no olvidaba a Carlos
Wieder y juntaba todo lo que aparecía sobre él o sobre su obra con la pasión y la
dedicación de un filatelista” (BOLAÑO, 1996a, p. 52-53). Trata-se de um
reconhecimento frequentemente anunciado ao leitor, através de comentários similares a
“En la carta donde me explicó estas cosas (carta escrita muchos años después) Bibiano
decía que (...)” (ibid., p. 17). É importante ressaltar, porém, que, embora nitidamente
obsecado por Wieder, Bibiano utiliza-se de suas qualidades detetivescas também para
obter e fornecer notícias a respeito dos demais personagens da trama, principalmente no
período posterior ao Golpe, como ilustra o comentário do narrador após tomar ciência
do paradeiro de Diego Soto: “La noticia apareció en los periódicos de Cataluña, un
suelto muy breve, pero yo me enteré por una carta de Bibiano, muy extensa, casi como
el informe de un detective” (ibid., p. 80). Vale destacar que em determinados trechos,
especialmente nos correspondentes à emissão de opiniões, é possível observar o uso do
pronome “nós” seguido por “(Bibiano y yo)”, uma escolha lexical notoriamente
consequente da grande afinidade do narrador com o personagem.
Antes do Golpe e do exílio transformarem a amizade dos dois personagens
em uma intercâmbio epistolar, a convivência entre eles era marcada pelas idas aos
talleres de literatura ou a outras reuniões de cunho cultural, de modo a ocuparem o
tempo que, a princípio, deveriam dedicar à Faculdade de Letras, local onde estudavam:
“Los asiduos al taller de Stein no iban al taller de Soto y viceversa, salvo Bibiano
O'Ryan y yo, que en realidad compensábamos nuestra inasistencia crónica a clases
acudiendo no sólo a los talleres sino a cuanto recital o reunión cultural y política se
hiciera en la ciudad” (BOLAÑO, 1996a, p. 21). Precisamente por fugirem à regra e
30
transitarem pelos dois talleres, Belano e O'Ryan ficam imediatamente intrigados pela
figura de Ruiz-Tagle, até então o único poeta a frequentar, como eles, os dois
ambientes.
A respeito de Bibiano O'Ryan, recupera-se em diferentes passagens sua
intenção de publicar uma antologia composta pelos poemas dos jovens frequentadores
dos dois talleres, nas palavras do narrador “una antología de jóvenes poetas de
Concepción que ningún periódico publicaría” (ibid., p. 22). Apesar de demonstrar certo
menosprezo pela ideia de Bibiano, Belano declara que caso seus textos não fossem
incluídos em tal publicação, a amizade “se hubiera roto probablemente al día seguinte”.
Além das antologias, ganha destaque entre os projetos do jovem poeta seu anseio por
escrever um livro cujo conteúdo rememora, indiscutivelmente, La literatura nazi en
América (1996b), de Roberto Bolaño:
A veces Bibiano me explicaba sus proyectos: quería escribir en inglés fábulas que transcurrirían en la campiña irlandesa, quería aprender francés, al menos para poder leer a Stendhal en su propia lengua, soñaba con encerrarse dentro de Stendhal y dejar que pasaran los años (aunque él mismo, contradiciéndose en el acto, decía que eso era posible con Chateaubriand, el Octavio Paz del siglo XIX, pero no con Stendhal, nunca con Stendhal), quería, finalmente, escribir un libro, una antología de la literatura nazi americana. Un libro magno, decía cuando lo iba a buscar a la salida de la zapatería, que cubriría todas las manifestaciones de la literatura nazi en nuestro continente, desde Canadá (en donde los quebequeses podían dar mucho juego) hasta Chile, en donde seguramente iba a encontrar tendencias para todos los gustos (BOLAÑO, 1996a, p. 52).11
Embora a autoria de um livro com traços em comum com La literatura
nazi... seja atribuída a Bibiano, é certo que Bolaño empresta grande parte de sua
biografia ao próprio narrador e não ao seu melhor amigo. Da prisão no sul do Chile aos
períodos vividos no México, França e Espanha após o Golpe de Pinochet, até a doença
hepática experimentada no fim de sua vida, muito do escritor chileno ecoa na história do
11 Grifo meu.
31
narrador de Estrella Distante. Observa-se, todavia, que o “eu” de Belano constrói-se
mais a partir de uma relação de alteridade frente ao Outro do que de um tom
confessional que poderia advir da primeira pessoa do singular ou de um possível
destaque dado a aspectos de sua biografia. Nota-se que o personagem se dá a conhecer
justamente quando opta por discorrer sobre sua amizade e sobre seus pontos em comum
com Bibiano, bem como sobre a nebulosa relação estabelecida com Ruiz-Tagle/Wieder,
ainda que não se trate de relações desenvolvidas com o mesmo peso e com a mesma
medida. Apesar de Bibiano assumir um papel determinante no que diz respeito ao
entendimento do perfil e do contexto vivido pelo jovem poeta, principalmente no início
do romance, é certo que a relação conflituosa de Belano com o poeta-aviador configura-
se o ponto central do desvelamento de sua personalidade e de seus dilemas pessoais.
Antes de explorar os contornos do conflito identitário estabelecido entre
Belano e Wieder, é interessante observar e discutir os argumentos que levaram/levam
alguns pesquisadores a destacarem o narrador de Estrella Distante como um elemento
fundamental na suposta construção autoficcional do romance. Para além das ocorrências
(de cunho autobiográfico) supracitadas, ressalta-se com frequência nesses trabalhos (ver
Alberca [2007], Chihaia [2010] e Perera San Martín [2005]) o conteúdo da famosa nota
introdutória que Bolaño insere no livro. Por meio dela, o autor institui um narrador
dúbio: Arturo Belano (seu alter ego e personagem recorrente de seus textos)/o próprio
escritor chileno. De acordo com a nota, e dado que o romance origina-se do último
capítulo do livro de Bolaño que o antecede, La literatura nazi en America (1996b),
Belano não ficara satisfeito com o texto anterior do autor um texto cuja história fora
narrada pelo personagem a Bolaño , o que deu início à escrita de Estrella Distante:
(...) Arturo deseaba una historia más larga (...). Así pues, nos encerramos durante un mes y medio en mi casa de Blanes y con el
32
último capítulo en mano y al dictado de sus sueños y pesadillas compusimos la novela que el lector tiene ahora ante sí. Mi función se redujo a preparar bebidas, consultar algunos libros, y discutir, con él y con el fantasma cada día más vivo de Pierre Menard, la validez de muchos párrafos repetidos (BOLAÑO, 1996a, p. 11).
A partir de uma clara menção a Borges, Bolaño coloca-se na condição de
ouvinte, mas não transfere totalmente a autoria do livro a seu alter ego, quase que
descrevendo uma obra feita a quatro mãos dos dois romances analisados, esta é a
única passagem em que Bolaño recorre a um dos recursos mais utilizados por Vila-
Matas para confundir, “à la Borges”, sujeito da enunciação e sujeito do enunciado: trata-
se da metaficção definida nos termos de Linda Hutcheon (1991a) como “diegeticamente
consciente”, marcada, entre outros elementos, por comentários/justificativas ao leitor.
Vale mencionar também que o chileno opta por apresentar o personagem
como Arturo B. ao invés de Arturo Belano depois, faz menção apenas ao primeiro
nome, Arturo, como consta no trecho acima transcrito , causando no leitor uma
impressão comparável à experimentada por um leitor de Franz Kafka ao se deparar com
um de seus personagens “K.”. De acordo com a leitura desenvolvida por esta
Dissertação, em ambos os casos, tanto em Bolaño, quanto em Kafka, a familiaridade
percebida pelo leitor nos nomes dos personagens não é considerada suficiente para se
questionar o estatuto ficcional das obras, nem indica um pacto de leitura particular,
ainda que seja difícil um leitor permanecer indiferente à provocação dos autores.
Na visão de Manuel Alberca (2007), mais do que uma provocação, a grafia
do nome do narrador, ora com um sobrenome de mesma inicial do autor factual (B.), ora
com um sobrenome homofônico (Belano/Bolaño), funciona como um alerta quanto ao
caráter autoficcional do texto que o leitor está prestes a descobrir. Conforme
mencionado na seção anterior desta Dissertação, a autoficção determinaria um «pacto
ambíguo», o qual viria associado, sobretudo, a uma confusão em torno da figura e do
33
papel do narrador e não da estrutura narrativa como um todo: “la propuesta y la práctica
autoficcional (...) se fundamentan de manera más o menos consciente en confundir
persona y personaje o en hacer de la propria persona un personaje, insinuando, de
manera confusa y contradictoria, que ese personaje es y no es el autor” (ALBERCA,
2007, p. 32).
Precisamente da constante “confusão” entre Roberto Bolaño e Arturo
Belano um personagem que “adquiere uma presencia plurifuncional” (Promis 2003
apud CHIHAIA, 2010, p. 149), haja vista sua reincidência em diversos títulos de
Bolaño, como Llamadas telefónicas (1997), Los Detectives Salvajes (1998), Amuleto
(1999), entre outros , surgem diferentes perspectivas de leitura para se entender
melhor o lugar ocupado por esse personagem-escritor na ficção do autor chileno. Apesar
de dialogar com Alberca, inclusive por meio de citações diretas ao seu trabalho, Matei
Chihaia interpreta que, ao optar por um heterônimo em detrimento do uso de seu nome
próprio, Bolaño apresenta em Estrella Distante o autor como “un sujeto alienado, casi
un fantasma” (CHIHAIA, 2010, p. 149): “en «Arturo Belano» no se refuerza la
identidade productiva, sino que deriva hacia una experiencia de sueño y transgresión”
(147). Em sua visão, existe uma significante diferença entre as autoficções dotadas de
uma identificação nominal explícita e as que carecem dela: enquanto no primeiro caso o
nome do autor serve para evocar uma forma de compromisso artístico e político
Chihaia vale-se das páginas finais de La literatura nazi en América (1996b) para
exemplificar tal categoria, dado que nelas o nome “Bolaño” é explicitamente grafado
, no segundo observa-se uma subversão da identidade da obra; trata-se, em suma, da
“oposición entre el autor que se afirma, y el autor que se pierde por la escritura” (ibid.,
p. 151). Em comum, ambas partilhariam o “pacto ambíguo” postulado por Alberca.
34
Além do prólogo de Estrella Distante, a prisão do narrador mencionada no
segundo capítulo destaca-se como um dos elementos mais simbolicamente recuperados
para se endossar a leitura do romance como uma autoficção.
Por aquellos días, mientras se hundían los últimos botes salvavidas de la Unidad Popular, caí preso. Las circunstancias de mi detención son banales, cuando no grotescas, pero el hecho de estar allí y no en la calle o en una cafetería o encerrado en mi cuarto sin querer levantarme de la cama (y ésta era la posibilidad mayor) me permitió presenciar el primer acto poético de Carlos Wieder, aunque por entonces yo no sabía quién era Carlos Wieder ni la suerte que habían corrido las hermanas Garmendia. Sucedió un atardecer - Wieder amaba los crepúsculos - mientras junto con otros detenidos, unas sesenta personas, matábamos el aburrimiento en el Centro La Peña, un lugar de tránsito en las afueras de Concepción, casi ya en Talcahuano, jugando al ajedrez en el patio o simplemente conversando (…) (BOLAÑO, 1996a, p. 34).
De fato, assim como Belano, Bolaño confirma ter sido preso logo após o
Golpe. Porém, em uma de suas declarações sobre o assunto, o autor ressalta a
propagação de informações desencontradas envolvendo tal episódio:
- (...) Pero te detuvieron. RB: Me detuvieron, pero un mes y medio después (del Golpe), en el sur. - Y te ayudaron a escapar unos compañeros.
RB: Unos compañeros de liceo. Estuve detenido ocho días, aunque poco, en Italia, me preguntaron: ¿qué le pasó a usted?, ¿nos puede contar algo de su medio año en prisión? Y eso debe al malentendido de un libro en alemán donde me pusieron medio año de prisión. Al principio me ponían menos tiempo. Es el típico tango latinoamericano. En el primer libro que me editan en Alemania me ponen un mes de prisión; en el segundo, en vistas que el primero no ha vendido tanto, me suben tres meses; en el tercer libro a cuatro meses, en el cuarto libro a cinco meses y, como siga, todavía voy a estar preso (Bolaño apud ÁLVAREZ, 2005, pp. 37-38).
Para entender a origem da confusão descrita pelo autor, o conceito de
“espaço biográfico” discutido na Introdução da Dissertação revela-se esclarecedor.
Juntos, o reconhecimento de seus textos e a rápida exposição midiática de Bolaño
contribuíram para a crescente construção de um mito. Nesse contexto, notou-se, ou
35
melhor, (ainda) nota-se um especial interesse, tanto por parte do mercado editorial
quanto por parte dos leitores, pela imagem de um escritor latino-americano marginal e
militante, fracassado e vítima do regime militar chileno; em certa medida, deseja-se que
Bolaño seja Belano como bem assinala Parrine (2010, p. 11): “Se o testemunho
(ficcional) de Bolaño não coincide exatamente com a sua própria vida, ele parece se
ajustar perfeitamente às expectativas norte-americanas em relação ao que ele deveria ser
– donde deriva seu sucesso absoluto frente aos leitores deste país”. Desse modo, não é
de se espantar que, aos primeiros rumores de aproximação entre obra e biografia, sua
prisão tenha ganhado repercussão. Eis que a prisão de Belano torna-se a prisão de
Bolaño (e vice-versa).
Um efeito sintomático dessa indistinção entre o valor da biografia esboçada
através de entrevistas e o valor da biografia utilizada na ficção é a falta de consenso
entre os pesquisadores quanto ao nome a ser atribuído ao narrador de Estrella Distante
trata-se, obviamente, de um efeito agravado, principalmente, pelo teor do prólogo
aqui discutido. Entre os estudos que compõem a bibliografia desta Dissertação, observa-
se que Christian Andrés Soazo Ahumada (2012), por exemplo, refere-se ao narrador
como “Bolaño”, enquanto que Chiara Bolognese (2010) opta por “Arturo B.”, e
Jeremías Gamboa Cárdenas (2008) identifica-o como um narrador anônimo.
No que tange à leitura desenvolvida por esta Dissertação, o narrador de
Estrella Distante é reconhecido como “Arturo Belano”. Trata-se de uma escolha
condizente com um dos principais argumentos que rege esta análise: o de que tal
personagem-escritor não assume o papel de encenar a biografia de Bolaño, mas
apresenta uma biografia apócrifa ainda que inspirada em algumas, ou, talvez muitas,
experiências pessoais do respectivo autor que serve para retratar o perfil e o destino
de muitos jovens de uma mesma geração. A partir disso, cabe uma reflexão: quantos
36
leitores de Estrella Distante relacionariam, sem um aviso prévio, a prisão do narrador a
um fato vivenciado pelo autor do livro, em decorrência de sua postura política no
contexto do Golpe Militar? É preciso ter-se em conta que os leitores não
necessariamente conhecem a biografia do autor, salvo sua nacionalidade e faixa etária,
embora muitos outros dados de sua história possam ser encontrados com facilidade na
internet, por exemplo. Reconhecendo o pacto estabelecido por Bolaño com seu leitor em
Estrella Distante como sendo genuinamente ficcional, e não autoficcional/ambíguo,
percebe-se que a veracidade do episódio da prisão torna-se irrelevante, pois Arturo
Belano surge como um entre tantos jovens presos pelo regime. Se algo de especial ou
particular pode ser observado no período em que Belano é mantido na cadeia, é o valor
simbólico de ter sido nesse espaço que ele assistira pela primeira vez a uma
apresentação aérea de Carlos Wieder, bem como o valor estético da rememoração do
trauma histórico e coletivo que dá forma a tal encenação. Preso e, portanto, silenciado
pelo regime, o jovem poeta inclina-se para o céu a fim de acompanhar a paradoxal
revolução da poesia chilena, feita por mãos manchadas de sangue. Em síntese, não se
observa em tal passagem a exploração da prisão enquanto experiência do indíviduo,
visto que, além de o narrador não se preocupar em fornecer detalhes ao leitor a respeito
de sua posterior saída da prisão no capítulo seguinte, Belano interrompe seus
comentários sobre a repercussão das apresentações aéreas de Wieder para informar
apenas que: “Poco antes yo había salido del Centro La Peña, en libertad sin cargos,
como la mayoría de los que por allí pasamos” (BOLAÑO, 1996a, pp. 46-47) , o
contato de Belano com outros detentos, em especial (e exclusivamente) com o “louco”
Norberto, decorre também da apresentação artística de Wieder, a qual inquietara os que
se encontravam no pátio do centro de detenção.
37
Essa insistência em nos convencer da proximidade - e até identidade - entre vida e obra, em acentuar o caráter (pretensamente) testemunhal, autobiográfico ou autorreferencial de textos que não o são explicitamente, é mais uma prova da extensão do espaço biográfico contemporâneo, enquanto ancoragem obsessiva - e tranquilizadora? - numa hipotética unidade do sujeito (ARFUCH, 2010, p. 235).
O fato de esta Dissertação contrariar leituras que, como as de Manuel
Alberca e Matei Chihaia, interpretem Estrella Distante como autoficção não significa
negar o mérito do conteúdo de suas formulações. A ideia de que a autoficção venha
acompanhada de um pacto de leitura específica, no caso o “pacto ambíguo”
conceitualizado por Alberca, representa um importante amadurecimento teórico na área.
Também Chihaia acerta em descrever a dualidade narrativa instaurada pelo prólogo de
Bolaño como a construção da figura de um autor “que se pierde por la escritura”.
Entretanto, é preciso ter em conta que destacar o caráter autoficcional de um texto
significa também ressaltar o papel determinante da biografia de seu autor na construção
de um personagem-escritor, o que, definitivamente, não se aplica a Estrella Distante.
Talvez, se Bolaño optasse por chamar seu narrador de “Bolaño”, a explícita presença de
seu nome dentro da narrativa poderia induzir o leitor a suspeitar da possibilidade de
autor e narrador dividirem alguns dados pessoais disso, poderia surgir
questionamentos como: O personagem foi preso, o personagem é “Bolaño”... Será que
isso também aconteceu com Roberto Bolaño?. Sob essa perspectiva, conclui-se que
enquanto o pacto autobiográfico lejeuneano assegura a “certeza” quanto ao que é lido, o
pacto autoficcional, pautado na reincidência do nome próprio, asseguraria a certeza da
dúvida; precisamente a dúvida que não se faz presente no romance de Bolaño.
3.1.2. O que Carlos Wieder revela sobre Arturo Belano?
A figura encenada por Carlos Wieder sempre ocupou um significante
espaço na fortuna crítica de Roberto Bolaño. Trata-se, evidentemente, de um
38
personagem fundador para o eixo narrativo de Estrella Distante (1996a), um
personagem que, em meio a aparições e ocultações, faz jus ao título dado ao romance:
brilha em um horizonte distante, feito uma estrela, chamando a atenção do leitor ao
mesmo tempo em que dele se afasta.
Entre o protagonismo e o obscurecimento, a história de Wieder toca por
diversas vezes a história do próprio narrador. Guiado inicialmente por motivações
pessoais fundamentalmente, pelos vínculos instituídos entre Wieder e alguns de seus
amigos e colegas, como as irmãs Garmendia , Belano narra em Estrella Distante o
caminho e os questionamentos que o conduziram até o poeta-aviador. Ainda que o
desfecho de tal investigação mostre-se, ao menos aparentemente, satisfatório, visto que
ao final da narrativa Belano descobre, a pedido de um policial, o paradeiro de Carlos
Wieder, observa-se que o desenrolar de sua busca tem mais a função de acentuar o
mistério que envolve o poeta-aviador do que a de fornecer eventuais esclarecimentos ao
leitor. Ou seja: localizar (fisicamente) não implica no romance o desvendar de sua
figura e o fim de seu mistério.
A respeito do foco desta Dissertação, considera-se relevante explorar quais
são os fundamentos, as experiências e/ou os conceitos literários (e/ou de outra ordem)
que direcionam as opiniões e os juízos do narrador acerca do poeta-aviador, haja vista
tratar-se de um aspecto menos abordado pela crítica se comparado à análise do papel de
Carlos Wieder. Cabe já mencionar que se adota, nas próximas subseções, a mesma
perspectiva em relação ao papel de Cesárea Tinajero em Los Detectives Salvajes, isto é:
opta-se, nos dois casos, por dar destaque ao significado e à importância dessas figuras
enigmáticas enquanto peças-chave na trajetória de determinados personagens-escritores
presentes nos romances, e não por leituras que assumam a análise de seus perfis como
única ou principal finalidade.
39
Os julgamentos de Arturo Belano em torno do até então Alberto Ruiz-Tagle
têm início com certa desconfiança quanto à sua eventual condição de autodidata,
juntamente com o destaque dado às diferenças existentes entre o perfil do poeta e o dos
demais frequentadores dos talleres, em sua maioria estudantes universitários:
Sobre ser autodidacta en Chile en los días previos a 1973 habría mucho que decir. La verdad era que no parecía autodidacta. Quiero decir: exteriormente no parecía un autodidacta. Éstos, en Chile, a principios de los setenta, en la ciudad de Concepción, no vestían de la manera en que se vestía Ruiz-Tagle. Los autodidactas eran pobres. Hablaba como un autodidacta, eso sí. (…) En una palabra, Ruiz-Tagle era elegante y yo por entonces no creía que los autodidactas chilenos, siempre entre el manicomio y la desesperación, fueran elegantes (BOLAÑO, 1996a, p. 14).
Las diferencias entre Ruiz-Tagle y el resto eran notorias. Nosotros hablábamos en argot o en una jerga marxista-mandrakista (la mayoría éramos miembros o simpatizantes del MIR o de partidos trotskistas, aunque alguno, creo, militaba en las Juventudes Socialistas o en el Partido Comunista o en uno de los partidos de izquierda católica). Ruiz-Tagle hablaba en español. Ese español de ciertos lugares de Chile (lugares más mentales que físicos) en donde el tiempo parece no transcurrir. Nosotros vivíamos con nuestros padres (los que éramos de Concepción) o en pobres pensiones de estudiantes. Ruiz-Tagle vivía solo, en un departamento cercano al centro, de cuatro habitaciones con las cortinas permanentemente bajadas, que yo nunca visité pero del que Bibiano y la Gorda Posadas me contaron cosas, muchos años después (cosas influidas ya por la leyenda maldita de Wieder), y que no sé si creer o achacar a la imaginación de mi antiguo condiscípulo. Nosotros casi nunca teníamos plata (es divertido escribir ahora la palabra plata: brilla como un ojo en la noche); a Ruiz-Tagle nunca le faltó el dinero (ibid., p. 16).
Guardadas as ironias comuns à escrita de Bolaño, as primeiras suspeitas do
narrador, embora fundamentadas, servem tanto de contextualização (do ambiente inicial
da narrativa, do perfil de Ruiz-Tagle etc.) quanto de alerta para o incômodo que a
imponente presença de Alberto Ruiz-Tagle causara em Belano e em seu amigo Bibiano
O'Ryan. Contaminado pelo ciúme e pela inveja, sendo estes decorrentes da rápida e
bem-sucedida relação estabelecida entre o poeta autodidata e as irmãs Garmendia, o
narrador não tarda a assumir a imparcialidade que perpassa suas impressões: “En
40
realidad, todas las suposiciones que podíamos hacer en torno a Ruiz-Tagle estaban
predeterminadas por nuestros celos o tal vez nuestra envidia. Ruiz-Tagle era alto,
delgado, pero fuerte y de facciones hermosas” (BOLAÑO, 1996a, p. 15).
Em termos gerais, Alberto Ruiz-Tagle surge nos talleres de poesía como
uma figura antagônica ao perfil de aspirante a poeta usualmente encontrado nesses
ambientes. Além do contraste entre a sua marcada masculinidade (/segurança) e a
inexperiência amorosa/sexual de Belano, também seu equilibrado e maduro
comportamento ao longo dos encontros literários destoava dos fervorosos e habituais
ataques que os jovens poetas costumavam dirigir uns aos outros.
Com base nessa lista de discrepâncias, seria possível concluir que o
romance caminha para um permanente distanciamento dos dois personagens. Somado à
diferença de suas personalidades e trajetórias, o distanciamento físico experimentado
após o Golpe acentua ainda mais essa impressão, tratando-se, portanto, de uma leitura
válida. Porém, um olhar mais aprofundado aos contornos da narração de Belano coloca
em evidência traços de um elo “perturbadoramente íntimo”, como bem descreve
Pinheiro (2014, p. 191). Observa-se, assim, algo de inquietante nessa aparente distância
que não permite ignorar a inesperada expressão utilizada por Belano ao deparar-se com
Wieder no final da narrativa: “Entonces llegó Carlos Wieder y se sentó junto al
ventanal, a tres mesas de distancia. Por un instante (en el que me sentí desfallecer) me vi
a mí mismo casi pegado a él, mirando por encima de su hombro, horrendo hermano
siamés (…)” (BOLAÑO, 1996a, p. 152)12.
En el juego de caracterizaciones sobre la base de “tipos” de artista históricos en la tradición del vanguardismo, las posiciones aparentemente antagónicas de Carlos Wieder y el narrador son las que cifran el universo como juego de alternancias entre dobles opuestos
12 Grifo meu.
41
y siameses penosamente unidos a un mismo cuerpo. (...) Debajo de las diferencias que la novela aparentemente traza entre estos dos personajes que se estarían separando cada vez más, se oculta un acercamiento progresivamente más estrecho (GAMBOA CÁRDENAS, 2008, p. 215-216).13
No desenvolvimento de sua argumentação, Jeremías Gamboa Cárdenas
esclarece que Belano e Wieder têm em comum o fato de representarem, ainda que
antagonicamente, os dois caminhos possíveis que um artista de ética vanguardista
poderia seguir em um país como o Chile, “totalitario y núcleo explosivo de un éxodo”
(GAMBOA CÁRDENAS, 2008, p. 221). Na posição de “vanguardista decadente” e de
“artista bohemio”, o narrador opta pelo mutismo e abandona a literatura já na parte
final de Estrella Distante, ambientalizada nos anos 90, Belano declara: “Vivía solo, no
tenía dinero, mi salud dejaba bastante que desear, hacía mucho que no publicaba en
ninguna parte, últimamente ya ni siquiera escribía. Mi destino me parecía miserable”
(BOLAÑO, 1996a, p. 130). Carlos Wieder, por outro lado, converte-se, nas palavras de
Gamboa Cárdenas, em um “poeta oficial futurista del régimen”, que abraça o “nuevo
nacionalismo auspiciado por el régimen militar” (GAMBOA CÁRDENAS, 2008, p.
212), aproximando-se, por diversas vezes, da figura do “dandy”. Em síntese, o poeta-
aviador afirma-se em Estrella Distante como uma projeção antinômica da posição
supostamente assumida por Belano, e também por Bibiano O’Ryan, dentro da sociedade
chilena: “la del joven artista associado a una generación políticamente comprometida y
adscrita a una herencia cultural proveniente de la vanguardia europea y
latinoamericana” (ibidem).
Apoiando-se nas formulações do italiano Renato Poggioli acerca da práxis
vanguardista, Gamboa Cárdenas interpreta essa oposição entre o artista dandy e o artista
bohemien encenada pelos dois personagens como “manifestaciones iguales y
13 Grifo meu.
42
contradictorias de un estado de ánimo idêntico y de una misma situación social”
(Poggioli 1946 apud GAMBOA CÁRDENAS, 2008, p. 217). Trata-se, em certa
medida, de uma disparidade da qual Belano encontra-se ciente, e que justifica as
opiniões veementes taxativas por ele proferidas. Ao contrapor seu ideal de escritor
engajado ao horror e às demais particularidades que definem a postura literária de
Wieder, o narrador vai, pouco a pouco, situando-o dentro ou fora do que ele próprio
(Belano) entende por literatura. Em sua conversa com a personagem Gorda Posadas, por
exemplo, Belano a advertira de que, ao contrário do que sugeria a poetisa, Ruiz-Tagle
não chegaria a revolucionar a poesia chilena, visto que ele nem ao menos era “de
esquerda” (BOLAÑO, 1996a, p. 25). Vintes anos após esse episódio, quando ele é
procurado por Abel Romero, investigador muito interessado pelo paradeiro de Wieder, e
“uno de los policías más famosos de la época de Allende” (ibid., p. 121), o personagem
volta a reafirmar suas convicções, ao fazer questão de enfatizar para o policial que, em
sua visão, “Carlos Wieder era un criminal, no un poeta” (ibid., p.126).
Apesar de serem poucas as valorações explícitas de Belano a respeito de
Wieder e de sua produção artística, pode-se notar com facilidade uma contradição entre
o conteúdo radical de suas falas e algumas das atitudes reveladas ao longo do romance.
Wieder desestabiliza o narrador ao fazê-lo repensar constantemente as possíveis
relações da Estética com a Ética e com a Política. Se por um lado Belano vê-se quase
que obrigado a condenar o lado criminoso e cruel do poeta-aviador, de outro o
personagem depara-se com uma incômoda admiração e curiosidade: “En cualquier caso,
en ese tiempo Ruiz-Tagle había desaparecido para siempre y sólo teníamos a Wieder
para llenar de sentido nuestros días miserables” (BOLAÑO, 1996a, p. 52). A maior
prova disto está na totalidade da obra que o leitor tem em mãos, pois ao mesmo tempo
em que Belano abdica da escrita de poemas, abandonando o que ele mesmo entende por
43
“literatura”, ele transforma suas memórias, em especial as que dizem respeito à história
de Wieder, em sua maior produção literária. Ironicamente, o narrador interessa-se mais
pela biografia do poeta transgressor, uma história portadora de “algo más” (BOLAÑO,
1996a, p. 130), do que pelo caminho convencional, e ético, trilhado por ele e por seus
jovens amigos.
Tal como ocorre em La literatura nazi en América, a dificuldade não reside em denunciar os vínculos infames tecidos com a ditadura ou com grupos neonazistas por Wieder para explicar com suficiência o terror de seus atos. O desafio se impõe nos momentos em que essas ligações são cortadas em justeza a seu próprio projeto estético (PINHEIRO, 2014, p. 191-192).
Fazendo uso da expressão de Pinheiro, o “desafio” de Belano em Estrella
Distante consiste em romper com seu (juvenil e ingênuo) paradigma literário e permitir-
se enxergar que são múltiplos os vínculos entre arte e experiência histórica
(AHUMADA, 2012), que além de uma literatura que une vida e arte existe também
aquela que se une à morte. A declaração que abre o capítulo 9, penúltimo do romance,
esboça a desilusão que essa tomada de consciência causara no narrador, o qual relaciona
o encerramento de sua busca por Wieder ao fim de um contato com o “mar de merda da
literatura”: “Esta es mi última transmisión desde el planeta de los monstruos. No me
sumergiré nunca más en el mar de mierda de la literatura. En adelante escribiré mis
poemas con humildad y trabajaré para no morirme de hambre y no intentaré publicar”
(BOLAÑO, 1996a, p. 138).
Arturo Belano é procurado pelo policial Abel Romero no capítulo 8, e narra
o desenvolvimento de sua investigação e a posterior localização de Carlos Wieder nos
capítulos 9 e 10, os últimos do romance. Sobre esse episódio, chama a atenção o fato de
o policial ter escolhido o narrador, e não seu colega Bibiano O’Ryan, para ajudá-lo nas
investigações. Romero justifica-se alegando que “Bibiano parece conocer muy bien al
44
señor Wieder, pero cree que usted lo conoce mejor” e que “para encontrar a un poeta
necesitaba la ayuda de otro poeta” (BOLAÑO, 1996a, p. 126). A partir dessa passagem,
percebe-se que as obsessões de O’Ryan e de Belano pelo poeta-aviador possuem
diferenças entre si. O primeiro poeta pode ter sido, de fato, a fonte da maioria das
informações acerca de Wieder fornecidas na primeira parte da narrativa, porém, o
desfecho da história destaca Belano como um de seus maiores leitores, como um dos
maiores conhecedores de sua poética. Daí advém a segurança de encarar os periódicos
disponibilizados por Romero como um rico material de pesquisa. Eis, então, que ao
colocar as mãos em um texto do poeta desaparecido, não lhe restaram dúvidas: “Era el
humor terminal de Carlos Wieder. Era la seriedad de Carlos Wieder” (BOLAÑO,
1996a, p. 143).
Para entender melhor esse conflito de e entre perfis que marca a escrita de
Roberto Bolaño, Chiara Bolognese (2010) divide seus personagens em três categorias.
De acordo com sua perspectiva, o narrador de Estrella Distante poderia ser considerado
um “letraherido derrotado”, isto é, um tipo de escritor “marginado y adicto a la
literatura” (BOLOGNESE, 2010, p. 466) Bolognese empresta a palavra
“letraherido” de Bolaño, que em um dado momento utilizara-se de tal expressão para
definir, nos termos supracitados, a seus personagens. Trata-se de personagens-escritores
que “en su desasosiego y desubicación con respecto a la realidad, se crean mundos
alternativos poblados por literatos” (ibidem), a fim de encontrar na literatura, ou em
projeto literário específico, uma salvação vital. Nesse “mundo alternativo”, codividem
espaço com os “letraheridos derrotados” outras duas figuras comuns no universo
bolaniano: a do “fantasma de escritor”, isto é, escritores reais ficcionalizados, como
Parra, Neruda e os estridentistas, e a do “escritor-fantasma”, representado por figuras
ficcionais que “parodian o refutan a los grandes maestros de todos los tiempos”
45
(BOLOGNESE, 2010, p. 466). Ainda que Carlos Wieder seja inspirado em uma
referência real, a o poeta Raúl Zurita, ele, assim como Cesárea Tinajero, de Los
Detectives Salvajes (1998) e Benno von Archimboldi, de 2666 (2004a), serve de
exemplo da segunda categoria.
Estos aspectos son algunos de los temas que constituyen el territorio
Bolaño: un mundo donde el hombre es víctima de una sociedad vacía, que aniquila toda razón de vida y lo condena a un futuro incierto. En este contexto, casi siempre es una ocasión literaria la que empuja a los protagonistas a salir de la apatía para buscar un cambio en sus vidas, aunque luego este cambio no logre solucionar su malestar. En Bolaño, el proceso de la búsqueda de la identidad ha ido configurando un recorrido en la exclusión en la que se mueven sus letraheridos derrotados (BOLOGNESE, 2010, p. 466).
Focado em questões similares às discutidas por Bolognese, Edmundo Paz
Soldán adverte que, paralelamente a alguns modelos de escritores, a ficção de Bolaño dá
também espaço à presença de “antimodelos”, sendo estes fundamentalmente
representados (1) pela figura do escritor que se adapta às regras da indústria cultural e
(2) pela do escritor que se deslumbra pelo poder (PAZ SOLDÁN, 2008, p. 26). Wieder,
nesse caso, encenaria o segundo “antimodelo”.
“Escritor-fantasma” e “antimodelo”: o que, afinal, a figura encenada por
Carlos Wieder revela sobre o narrador?
Se a postura transgressora do poeta-aviador opõe-se a alguém, ela o faz a
Arturo Belano o qual, é válido lembrar, encarna a condição experimentada por
muitos jovens que viveram os regimes ditatoriais na América Latina. Acompanhar a
história de Wieder significa acompanhar em paralelo a história de um “letraherido
derrotado”, a história de um jovem poeta desiludido, oprimido e exilado que se
transforma em um adulto melancólico. Assim, os 20 anos que definem a distância
temporal de sua narração revelam, de forma sutil, a gradual mudança de um olhar
ingênuo e idealizador, da juventude, para um olhar melancólico, da maturidade. No
46
entanto, e ao encontro da leitura que Paula Aguilar faz de Nocturno de Chile (1999), a
figura do escritor melancólico representada por Arturo Belano remete a uma postura
“neutra” ou “inoperante”, já que não se resume a um “conformismo passivo”
(AGUILAR, 2008, p. 140). Juntas, a memória, a escrita e a melancolia que regem sua
narração, configuram-se “acontecimientos de búsqueda y elaboración de significación”
(ibid., p. 141). Nesse sentido, a incapacidade do narrador de posicionar-se frente ao
horror ocasionado pela presença da ditadura nos círculos literários diferentemente de
Wieder que opta por promover uma revolução (ainda que às avessas) na poesia chilena
não deixa de ser uma quebra com determinados preceitos da arte comprometida, mas
nem tão pouco é isenta de valor, visto que o seu aparente abandono da literatura dá
lugar a uma importante revisitação e releitura desse passado historicamente traumático.
“Víctima de una sociedad vacía, que aniquila toda razón de vida y lo
condena a un futuro incierto”, conforme assinala Bolognese no trecho supracitado,
Arturo Belano vê na biografia de seu “antimodelo”, na procura por esse “escritor-
fantasma”, uma alternativa para se vencer o sentimento de “apatia” que dele se
apoderara depois do Golpe, bem como um modo de impedir que os cruéis vínculos que
a História pode estabelecer com a história da arte se percam no esquecimento. Falar de
Carlos Wieder é, portanto, falar sobre a própria formação literária e tomada de
consciência de Arturo Belano.
3.1.3. Pelos «talleres de literatura» de Estrella Distante
Um número significante de trabalhos sobre Estrella Distante atenta-se aos
contornos da presença da memória no romance. Sobre essa questão, entende-se como
premissa básica a ideia de que, mesmo partindo de uma experiência individual, o
romance converge para o relato de um trauma coletivo (ALVAREZ, 2008). Não se trata
47
de negar a subjetividade inerente à relação de alteridade que o narrador tece com Carlos
Wieder, mas de reconhecer a amplitude de seus relatos. Por que, afinal, Belano desvia-
se de seu foco narrativo e dedica os capítulos 4 e 5 às histórias dos personagens Juan
Stein e Diego Soto, respectivamente, de modo a ter que iniciar o capítulo 6 com os
dizeres: “Pero volvamos al origen, volvamos a Carlos Wieder” (BOLAÑO, 1996a, p.
86)?
Ao narrar o desfecho de Stein e Soto após o Golpe, Belano expande o já
aqui referido jogo “de alternancias entre dobles opuestos y siameses penosamente
unidos a un mismo cuerpo” postulado por Gamboa Cárdenas. Unidos pelo fato de
dirigirem talleres de literatura em um dos momentos políticos mais críticos e violentos
do Chile, os personagens, assim como Belano e Wieder, optam por adotar atitudes
inversas, condizentes cada qual com a ideologia de seu respectivo taller. Porém, tendo
em vista a condição de líderes por eles avocada, faz-se necessário fugir de leituras que
reduzam tais episódios à narração de duas biografias, pois, diferentemente de Los
Detectives Salvajes, que conta com o protagonismo de um movimento/grupo literário
específico (o Real Visceralismo), em Estrella Distante a noção de comunidade literária
ganha evidência precisamente por meio das passagens ambientadas em «talleres de
literatura» nos anos que antecedem o Golpe de Pinochet. Ou seja, detrás desses
personagens-escritores encontra-se um conjunto de poetas da cidade de Conceição,
preponderantemente “entre diecisiete y veintitrés años” (BOLAÑO, 1996a, p. 13), que
se identifica com seu perfil, que partilham de suas ideias e posturas.
Siempre estaban juntos (aunque nunca vimos a uno en el taller del otro), siempre discutiendo de poesía aunque el cielo de Chile se cayera a pedazos, Stein alto y rubio, Soto bajito y moreno, Stein atlético y fuerte, Soto de huesos delicados, con un cuerpo en donde ya se intuían redondeces y blanduras futuras, Stein en la órbita de la poesía latinoamericana y Diego Soto traduciendo a poetas franceses que en
48
Chile nadie conocía (y que mucho me temo siguen sin conocer) (BOLAÑO, 1996a, p. 74).
Juan Stein, nascido em 1945, professor de Literatura e diretor do taller em
que circulavam, segundo o narrador, os melhores poetas ou “prospectos de poetas”
(BOLAÑO, 1996a, p. 21), é apresentado como um jovem cuja história de vida fora tão
“desmesurada como el Chile de aquellos años” (ibid., p. 56), do Chile nos tempos do
Golpe Militar. No início da descrição da personalidade e trajetória de Stein, o narrador
dá destaque à sua filiação literária, composta, fundamentalmente, por Nicanor Parra,
Ernesto Cardenal, “como la mayoría de los poetas de su generación”, e Jorge Teillier e
Enrique Lihn, para em seguida esboçar uma lista de divergências entre seus gostos
literários e as preferências partilhadas pelo narrador com seu amigo Bibiano: enquanto
estes apreciavam poetas como Jorge Cáceres, Rosamel del Valle e Anguita, Stein
gostava de Pezoa Veliz, Magallanes Moure, Pablo de Rokha e Neruda, nomes, por sua
vez, muito desprezados pelos primeiros. Quanto à sua vida pessoal, menciona-se o fato
de ele ter publicado dois livros com tiragem de 500 exemplares cada, ser judeu, pobre e
sobrinho do general soviético da Segunda Guerra Mundial Iván Cherniakovski. Entre as
especulações sobre o seu paradeiro após o Golpe, o narrador relata possíveis
participações de Stein em pequenas guerrilhas, baseado em notícias selecionadas por
Bibiano.
De “terrorista chileno” a combatente em Angola e membro de guerrilhas
guatemaltecas, nicaraguenses e salvadorenhas, até um suposto envolvimento no
assassinato dos responsáveis pela morte de Roque Dalton “Stein probablemente
hubiera matado con sus propias manos (...) a los responsables de la muerte de Roque
Dalton. ¿Cómo conciliar en el mismo sueño o en la misma pesadilla al sobrino de
Cherniakovski, el judío bolchevique de los bosques del sur de Chile, con los hijos de
49
puta que mataron a Roque Dalton mientras dormía, para cerrar la discusión y porque así
convenía a su revolución?” (ibid., p. 69) , o desencontro de informações a respeito de
Stein, já tido como morto pelo narrador e por Bibiano, configura-se apenas um entre
muitos elementos da narrativa que ilustram o cenário de um Chile pós-Golpe.
Una tarde Bibiano y yo nos acercamos a su casa. Teníamos miedo de llamar a la puerta porque en nuestra paranoia imaginábamos que la casa podía estar vigilada e incluso que podía abrirnos la puerta un policía, invitarnos a pasar y no dejarnos salir nunca más (ibid., p. 65).
Entendendo que “el taller literario materializa en la obra la vitrina desde la
cual se puede mirar la tradición literaria chilena en estrecha conexión con sus raíces
históricas” (AHUMADA, 2012, p. 118), o pesquisador Christian Andrés Soazo
Ahumada enxerga na figura de Juan Stein uma síntese da utopia revolucionária
encarnada por muitos jovens poetas chilenos na década de 70. Ao vincular-se a uma
postura norteada por ideias vanguardistas de unir estética e política, Stein representaria
uma concepção de literatura “que encontraba en las calles su mejor espacio de creación”
(ibid., p. 114). Para embasar seus apontamentos, Ahumada chama a atenção para o
episódio em que Stein escreve uma carta de reprovação a Parra, um de seus poetas mais
admirados, devido a uma pontual divergência entre suas posturas ideológicas:
Coincidíamos (el narrador y Bibiano) en los ya mencionados Parra, Lihn y Teillier, aunque con matices y reservas en algunas parcelas de su obra (entre la indignación y la perplejidad, escribiera una carta al viejo Nicanor recriminándole algunos de los chistes que se permitía hacer en aquel momento crucial de la lucha revolucionaria en América Latina; Parra le contestó al dorso de una postal de Artefactos diciéndole que no se preocupara, que nadie, ni en la derecha ni en la izquierda, leía, y Stein, me consta, guardó la postal con cariño) (…) (BOLAÑO, 1996a, p. 57).
Para além da passagem supracitada, é importante reconhecer que a leitura de
Ahumada parece resumir, com grande êxito, muitas das afirmações/descrições feitas
pelo próprio narrador ao longo do romance, como a de que Stein “aparecía y
50
desaparecía como un fantasma en todos los lugares donde había pelea, en todos los
lugares en donde los latinoamericanos, desesperados, generosos, enloquecidos,
valientes, aborrecibles, destruían y reconstruían y volvían a destruir la realidad en un
intento último abocado al fracaso” (BOLAÑO, 1996a, p. 66). Nas considerações finais
de seus apontamentos acerca do personagem, Ahumada dá destaque ao que seria um
possível paralelo entre sua história pessoal e a história da vanguarda artística e
revolucionária da década de 60 e início de 70 no que tange a certo obscurecimento e
esquecimento dessa época histórica. De uma biografia marcada por fortes ideais
políticos, incluindo até mesmo participações em guerrilhas e em um assassinato, restam
acerca da trajetória e do desfecho de Stein apenas as dúvidas e as especulações feitas
pelo narrador e seu amigo Bibiano. Tendo em vista o contexto histórico ao qual Estrella
Distante se refere, o caminho trilhado Juan Stein coloca em relevo que, no campo
literário, “la experiencia dictatorial significó un quiebre en la figura del escritor
comprometido y de los ideales utopistas; un reposicionamiento frente a maestros y
pares; y una revisión de los vínculos entre literatura y política” (AGUILAR, 2008, P.
127).
Também desaparecido após o Golpe, Diego Soto, diretor do taller instalado
na Faculdade de Medicina, apresenta um perfil de escritor distinto ao de Juan Stein no
que se refere à sua falta de engajamento frente a questões da esfera social entende-se,
portanto, o porquê de os dois talleres assumirem-se rivais, nas palavras do narrador, “en
la ética y en la estética” (BOLAÑO, 1996a, p. 20).
Ao contrário da postura estético-política radical atribuída a Stein, Belano
descreve Soto como um mero simpatizante do Partido Socialista, “pero sólo eso,
simpatizante, ni siquiera un votante fiel, yo diría que un izquierdista pesimista”
51
(BOLAÑO, 1996a, p. 74), e colecionador de inimigos devido à sua “indiferença e
inteligência”.
¿Cómo era posible que ese indio pequeñajo y feo tradujera y se carteara con Alain Jouffroy, Denis Roche, Marcelin Pleynet? ¿Quiénes eran, por Dios, Michel Bulteau, Matthieu Messagier, Claude Pelieu, Franck Venaille, Fierre Tilman, Daniel Biga? ¿Qué méritos tenía ese tal Georges Perec cuyos libros publicados en Denoël el huevón pretencioso de Soto paseaba de un lado a otro? (ibidem).
Segundo o narrador, Soto ressurge exilado na Europa, passa pela Alemanha
e pela França, sempre exercendo (ou ao menos tentando exercer) a atividade de
tradução, sobretudo do francês para o espanhol, de escritores como Sophie Podolski,
Fierre Guyotat e Georges Perec. Entre as informações mais precisas, no “triste folklore
del exilio — en donde más de la mitad de las historias están falseadas o son sólo la
sombra de la historia real —”, está a de que sua condição financeira era cada vez
melhor, que ele se casara com uma francesa, tivera filhos e que além de continuar a
publicar em revistas de poesia latino-americanas, também frequentava talleres de
literatura em Amsterdã.
Según Bibiano (que mantenía un intercambio epistolar con él más o menos fluido), no es que Soto se hubiera aburguesado sino que siempre había sido así. El trato con los libros, decía Bibiano, exige una cierta sedentariedad, un cierto grado de aburguesamiento necesario, y si no mírame a mí, decía Bibiano, que a otra escala -trabajo en la zapatería, cada vez más asquerosa o cada vez más entrañable, no lo sé bien, vivo en la misma pensión- hago (o me dejo hacer) más o menos lo mismo que hace Soto. En una palabra: Soto era feliz. Creía que había escapado de la maldición (o al menos eso creíamos nosotros, Soto, me parece, nunca creyó en maldiciones) (BOLAÑO, 1996a, p. 75).
De acordo com a última notícia que chega ao narrador, Diego Soto morrera
esfaqueado ao se envolver em uma briga com jovens neonazistas que atacavam uma
mendiga na estação ferroviária de Perpignan, quando voltava de um Colóquio sobre
Literatura e Crítica Hispano-americana em Alicante.
52
Um olhar atento aos elementos que acabam por opor o taller de Stein ao
taller de Soto, oposição esta devida fundamentalmente aos diferentes perfis de seus
diretores, permite notar, por parte de Bolaño, uma escrita composta por certo jogo em
torno de estereótipos literários/políticos. Enquanto a reivindicação de uma filiação
literária fortemente latino-americana e o ativismo político ganham espaço na Faculdade
de Letras (taller de Stein), a predileção pela literatura francesa e por uma concepção
mais “burguesa” de cultura, bem como por uma atividade de escrita mais “sedentária”,
fazem-se presentes na Faculdade de Medicina (taller de Soto). Considerando que,
novamente ao encontro das ideias de Ahumada, os romances de Bolaño sustentam-se
recorrentemente em um imaginário narrativo “donde Latinoamérica resulta ser un
protagonista decisivo, un télon de fondo que perfunde y semantiza diferentes
ramificaciones del universo fictivo de sus textos” (AHUMADA, 2012, p. 14), pode-se
interpretar a especial atenção dispensada em Estrella Distante (1996a) às biografias de
Stein e Soto — há no livro um capítulo dedicado a cada personagem — como um
caminho necessário para o desenho completo do contexto ao qual o romance faz
referência, haja a vista a importância e a representatividade das posturas rememoradas
através desses personagens-escritores.
Se por um lado o romance de Bolaño não se restringe à apresentação de um
único posicionamento estético-político, passando tanto pelo retrato de poetas
pertencentes a uma esquerda engajada quanto pelo de escritores ligados a uma espécie
de esquerda “não praticante”, ou quase apolíticos, de outro se nota um consenso sobre o
fim trágico, ou à derrota, reservado aos adeptos dessas diferentes posturas. Mesmo sem
assumir o ativismo político e a postura proativa de Juan Stein, optando assim por uma
atividade literária mais “pacata”, dividido entre serviços de tradução e participações em
eventos literários, Diego Soto acaba assassinado por um grupo de neonazistas ao voltar
53
de um Colóquio sobre Literatura e Crítica Hispano-americana. O que a princípio não se
configuraria uma atividade de risco, principalmente se comparada às guerrilhas nas
quais, supostamente, Stein se envolvera, dá espaço a uma grande ironia: Soto, um poeta
que até então se mantivera distante de posturas estéticas/políticas radicais acaba
tornando-se vítima de uma, a neonazi.
“Ante todo, cabe preguntarse: ¿qué se entiende realmente por un taller
literario?” (HEKER, 1993, p. 193). A escritora argentina Liliana Heker alega que a
variedade de perfis que marcou, e ainda marca, os coordenadores desses espaços na
América Latina impede que se encontre um critério unificador. Para a escrita de Estrella
Distante, Bolaño parece valer-se da consciência de tal “impedimento” não apenas como
uma fonte de inspiração, mas nela encontra o princípio norteador de toda a narrativa: os
jovens no Chile não foram apenas um no período ditatorial, foram muitos e com
destinos múltiplos. Daí a importância da relação especular de Stein e Soto.
3.1.4. O diário presente em Los Detectives Salvajes ou “anotações sobre mexicanos
perdidos no México”
O diário de Juan García Madero apresentado na primeira e terceira parte de
Los Detectives Salvajes (1998) restringe-se ao relato de pouco mais de três meses,
correspondentes ao período em que o narrador, na ocasião com 17 anos, fez parte do
Real Visceralismo: de 2 de novembro de 1975 a 15 de fevereiro de 1976. Ao contrário
do escritor bem-sucedido que dá voz ao diário presente em El mal de Montano (2002),
de Enrique Vila-Matas, os relatos de García Madero dão a conhecer um jovem
universitário aspirante a poeta, imerso em uma fase de descobertas. Imaturo e ingênuo
não apenas em aspectos pessoais, mas também “virgem de literatura”, o personagem vê
no Movimento Real Visceralista a oportunidade de pertencimento a um grupo,
independente dos reais significados que isso possa vir ter. A respeito da estrutura de Los
54
Detectives Salvajes, nota-se que a segunda (e maior parte) do romance, composta por
mais de quarenta depoimentos acerca de Arturo Belano e Ulises Lima, e encarada à
primeira vista com estranheza pelo leitor devido à interrupção brusca do diário, forma-
se, precisamente, de episódios e informações não registradas nas anotações de García
Madero, seja pela posterioridade temporal dos fatos registrados nesse capítulo (se
comparado à datação do diário do personagem), seja pelo desconhecimento do narrador
de fatos ocorridos ainda no período em que fizera parte do Movimento.
O primeiro episódio registrado no diário refere-se à visita de Arturo Belano
e Ulises Lima ao taller de poesía dirigido pelo personagem Julio César Álamo, na
Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México,
momento em que García Madero conhece os fundadores do Real Visceralismo e torna-
se mais um dos jovens recrutados pelo Movimento. Nota-se em seu relato o desconforto
causado por tal visita, motivo pelo qual a inicial postura diplomática de Álamo não
tardara a dar lugar a um recíproco afrontamento: “Los real visceralistas pusieron en
entredicho el sistema crítico que manejaba Álamo; éste, a su vez, trató a los real
visceralistas de surrealistas de pacotilla y de falsos marxistas” (BOLAÑO, 1998, p. 15).
Partindo em defesa de Belano e Lima, García Madero, que até então não conhecia os
dois poetas, decide confrontar o diretor do taller com mais uma de suas frequentes
perguntas sobre poesia:
En ese momento decidí poner mi grano de arena y acusé a Álamo de no tener idea de lo que era un rispetto; paladinamente los real visceralistas reconocieron que ellos tampoco sabían lo que era pero mi observación les pareció pertinente y así lo expresaron; uno de ellos me preguntó qué edad tenía, yo dije que diecisiete años e intenté explicar una vez más lo que era un rispetto; Álamo estaba rojo de rabia; los miembros del taller me acusaron de pedante (uno dijo que yo era un academicista) (ibid., p. 16).
55
A tensão associada à referida ocasião condiz com a descrição atribuída pelo
narrador ao taller de Álamo: tratava-se de um ambiente inóspito, sem margem para
amizades, marcado pelas críticas severas e gratuitas constantemente dirigidas por seu
diretor aos poemas dos frequentadores. Para além de certa antipatia, García Madero
pauta-se precisamente na suposta carência de conhecimentos técnicos/teóricos sobre
poesia por vezes revelada por Álamo para desqualificar os apontamentos e as
apreciações literárias do diretor:
Por otra parte no puedo decir que Álamo fuera un buen crítico, aunque siempre hablaba de la crítica. Ahora creo que hablaba por hablar. Sabía lo que era una perífrasis, no muy bien, pero lo sabía. No sabía, sin embargo, lo que era una pentapodia (que, como todo el mundo sabe, en la métrica clásica es un sistema de cinco pies), tampoco sabía lo que era un nicárqueo (que es un verso parecido al falecio), ni lo que era un tetrástico (que es una estrofa de cuatro versos) (BOLAÑO, 1998, p. 14).
A partir do embate desencadeado pela presença dos real visceralistas,
García Madero troca as idas ao taller de poesía de Álamo por encontros, nem sempre de
caráter literário, com os jovens que conhece em decorrência de sua entrada no
Movimento de Belano e Lima. Ainda que em Los Detectives Salvajes a rememoração do
ambiente dos talleres literarios restrinja-se a essa passagem do romance, ela dá a
conhecer importantes aspectos da personalidade de García Madero, além de colocar em
relevo algumas das diferenças estabelecidas entre este romance e Estrella Distante
(1996a).
Em termos gerais, a postura adotada pelo narrador frente a Álamo revela
uma visão de literatura pautada mais em uma valorização da teoria literária do que na
experiência de leitura propriamente dita. Trata-se de uma atitude que, mais do que
inconveniente, dá início ao retrato de um aspirante a poeta veemente ingênuo, autor de
um diário marcado por descrições muitas vezes exageradas, românticas e/ou idealizadas
56
sobre a vida e sobre a literatura. Dividindo-se entre sua tendência à normatização e seus
impulsos juvenis, García Madero expressa ora um incômodo pela ausência de regras
que validassem a sua inclusão no Movimento motivo pelo qual ele passa a registrar
os títulos dos livros usualmente carregados pelos real visceralistas, na tentativa de
estabelecer um elo comum através das leituras; “Más tarde encontramos con Ernesto
San Epifanio, que también llevaba tres libros. Le pedí que me los dejara anotar”
(BOLAÑO, 1998, p. 29) , ora uma satisfação plena ocasionada pelo simples
sentimento de pertença: “Hablamos de poesía. Nadie ha leído ningún poema mío y sin
embargo todos me tratan como a un real visceralista más. ¡La camaradería es
espontánea y magnífica!” (ibid., p. 29).
A contextualização histórica que Liliana Heker (1993) faz em torno da
função e do lugar ocupado por talleres literarios na Argentina de 70 e 80 fornece alguns
subsídios para se pensar a presença desses espaços nas narrativas de Bolaño. Heker
rememora que no final de sessenta e início de setenta a Argentina encontrava-se
propícia a criações/publicações, devido, fundamentalmente, à grande proliferação de
revistas literárias e pelo aumento do interesse das editoras pela literatura nacional, a
qual passa a ser encarada como um “bom negócio”. Com o Golpe de 1976, decreta-se o
fim desse até então ambiente favorável, momento em que os talleres transformam-se em
uma espécie de refúgio para dois perfis de escritores: de um lado, os aspirantes, que
“navegaban en una nebulosa, totalmente solitarios y desorientados” (HEKER, 1993:
189), e, de outro, escritores já amadurecidos que buscavam, em meio à crise econômica,
formas alternativas de sobreviver de seu ofício. Nesse contexto, os talleres enquanto
locais de propagação da cultura multiplicam-se quase que clandestinamente, afirmando-
se como um “acontecimiento marginal” (ibidem).
57
Acerca dos romances de Bolaño aqui analisados, não é possível falar de um
retrato fiel do quadro descrito por Liliana Heker, haja vista em Estrella Distante, por
exemplo, o Golpe militar contribuir para o fim dos talleres literarios e não para a sua
proliferação. Porém, ainda que imune à opressão e à censura do contexto ditatorial, é
possível relacionar a figura encenada por García Madero aos jovens que recorriam a
esses encontros literários por sentirem-se desorientados, jovens que não sabiam como
conectar-se com seus pares. Trata-se de um personagem-escritor que vê no acesso a um
grupo o caminho para a construção de sua própria identidade literária.
Como bem assinala Heker, não apenas os talleres configuravam-se espaços
de trocas entre os jovens escritores, mas também os cafés, antes do Golpe de 70,
afirmavam-se como um frequente ponto de encontro. Não é de se estranhar, então, que o
contexto no qual Bolaño insere Los Detectives Salvajes no México de 70, um país
que se inseria definitivamente na globalização , essas seletas reuniões literárias deem
lugar à vida boemia, onde cafés e bares tornam-se ponto de referência para se encontrar
poetas. Diferentemente dos jovens poetas de Estrella Distante (1996a), que, assim como
todos os escritores que vivenciaram a ditadura na América Latina, viram-se obrigados a
repensar suas atividades, a revisar os vínculos entre literatura e política (AGUILAR,
2008, p. 127), os personagens-escritores de Los Detectives Salvajes (1998) parecem
assumir que “la legitimidad de la labor simbólica del escritor depende enteramente de su
actividade vital” (COBAS CARRAL & GARIBOTTO, 2008, p. 169), ecoando, com
grande dose de utopia, o indissociável vínculo entre arte e vida postulado pelas
vanguardas.
Em relação aos relatos de García Madero, essa indistinção entre vida
boemia e atividade literária, essa falta de um lugar (em seus diversos sentidos) para os
real visceralistas, somada ao olhar ingênuo e fortemente subjetivo de sua narração,
58
conduz o leitor do romance a uma constante dúvida quanto à precisão de seus
apontamentos, devido, por exemplo, a afirmações como: “Precisamente una de las
premisas para escribir poesía preconizadas por el realismo visceral, si mal no recuerdo
(aunque la verdad es que no pondría la mano en el fuego), era la desconexión transitória
con cierto tipo de realidad” (BOLAÑO, 1998, p. 19-20).
En efecto, el único texto que aparece en la novela producido por un miembro del grupo – el diario de García Madero – pertenece a un personaje que apenas puede dar cuenta de las líneas básicas del movimiento, que participa periféricamente de sus aventuras y que, en rigor, jamás tiene la certeza de su identidad como realvisceralista. Rastrear la concepción poética del movimiento se vuelve así una tarea difícil, llena de núcleos que quedan sin resolución: el relato de García Madero se construye a partir de una mirada marginal por la que se cuelan oblicuamente ciertas pistas en torno del realvisceralismo (COBAS CARRAL & GARIBOTTO, 2008, p. 168).
É curioso observar que uma das maiores consequências trazidas por esta
“mirada marginal” que Cobas Carral e Garibotto atribuem à narração de García Madero
é o excesso de registros sobre sua iniciação sexual em detrimento de reflexões mais
aprofundadas a respeito de sua iniciação literária. Se por um lado o abandono do curso
de Direito servira para que o narrador passasse a ler e a escrever mais e livremente
“Hoy no fui a la universidad. He pasado todo el día encerrado en mi habitación
escribiendo poemas” (BOLAÑO, 1998, p. 18) , de outro se verifica um maior
interesse pelas novas experiências proporcionadas pela boemia: “Esta mañana he
deambulado por los alrededores de la Villa pensando en mi vida. El futuro no se
presenta muy brillante, máxime si continúo faltando a clases. Sin embargo lo que me
preocupa de verdad es mi educación sexual” (ibid., p. 23).
Entre os relacionamentos “amorosos” de García Madero, destaca-se
principalmente a sua relação com Rosario, funcionária do “Encrucijada Veracruzana”
(ou “el bar de Bucareli”), principal ponto de encontro dos real visceralistas, e o seu
59
envolvimento com a jovem poetisa e pintora María Font, cuja casa também servia de
espaço para as reuniões do grupo. Nota-se que as diferentes profissões e condições
sociais (e intelectuais) experimentadas pelas personagens acabam por definir o tipo de
relação que o narrador estabelece com cada uma delas. Com Rosario, observa-se um
relacionamento de caráter essencialmente sexual, marcado por certo comodismo por
parte do personagem, que, no desenrolar da relação, chega a ser sustentado e cuidado
por ela:
Hoy he ido a la oficina de mi tío y se lo he dicho: —Tío —le dije—, estoy viviendo con una mujer. Por eso no voy a dormir a casa. Pero ni usted ni mi tía se tienen que preocupar porque sigo yendo a la facultad y pienso sacar la carrera. Por lo demás estoy muy bien. Desayuno bien. Como dos veces al día. Mi tío me miró sin levantarse de su escritorio. — ¿Con qué dinero piensas vivir? ¿Has encontrado trabajo o te mantiene ella? Le contesté que aún no lo sabía y que de momento, en efecto, era Rosario la que pagaba mis gastos, por lo demás muy frugales (BOLAÑO, 1998, p. 100). Sin novedad. La vida parece haberse detenido. Todos los días hago el amor con Rosario. Cuando ella se va a trabajar, escribo y leo. Por las noches salgo a dar vueltas por los bares de Bucareli. A veces me paso por el Encrucijada y las meseras me atienden el primero. A las cuatro de la mañana vuelve Rosario (cuando tiene el turno de noche) y comemos algo ligero en nuestro cuarto, generalmente cosas que ella ya trae preparadas del bar. Luego hacemos el amor hasta que ella se duerme y yo me pongo a escribir (ibid., p. 116).
Contrariamente à María Font, o interesse de Rosario por García Madero
advém de sua condição de poeta, ainda que a garçonete assuma-se incapaz de entender
os poemas do narrador. Não se importando com a qualidade ou com o conteúdo de seus
textos, Rosario e suas colegas de trabalho encaram o ofício de escritor como uma
profissão de prestígio social, com grande potencial para o sucesso:
Echamos a andar en dirección a Reforma. Rosario me tomó del brazo al cruzar la primera calle y ya no me soltó.
60
—Quiero ser como tu mamá —dijo—, pero no me malinterpretes, yo no soy una puta como la Brígida esa, yo quiero ayudarte, tratarte bien, quiero estar contigo cuando seas famoso, mi vida. Esta mujer debe estar loca, pensé, pero no dije nada, me limité a sonreír (BOLAÑO, 1998, p. 89). Después de acompañar a Rosario hasta las puertas del Encrucijada Veracruzana (todas las meseras, incluida Brígida, me saludan efusivamente, como si me hubiera convertido en alguien del gremio o de la familia, todas convencidas de que llegaré a ser alguien importante en la literatura mexicana), mis pasos me llevaron sin un plan preconcebido hasta Río de la Loza, hasta el hotel La Media Luna, en donde se hospeda Lupe (ibid., p. 104-105).
Embora o relacionamento com Rosario configure-se o compromisso mais
concreto vivido pelo personagem, as anotações de seu diário põem constantemente em
relevo seus sentimentos por María Font. Descrita muitas vezes como “hostil” e
“indiferente”, a jovem artista assume uma postura mais independente do que a de
Rosario, optando por manter com o narrador uma amizade marcada pelo sexo casual.
Sendo também poeta e conhecedora de literatura, a personagem enxerga em García
Madero apenas mais um aspirante a escritor inserido em seu círculo social, afastando-se,
portanto, da ideia romantizada (e ingênua) de Rosario sobre os poetas. Percebe-se que
esses aspectos da personalidade de María Font contribuem para que o jovem sinta-se
inseguro em sua presença, o que, por sua vez, o aproxima de Rosario.
Sobre as personagens femininas de Bolaño que perpassam os dois romances
aqui analisados, vale mencionar a similaridade entre os papéis de María Font e de sua
irmã Angélica e o das irmãs gêmeas Verónica e Angélica Garmendia de Estrella
Distante (1996a) no que concerne ao retrato da sexualidade, dos desejos e da
imaturidade dos jovens poetas que perpassam as duas histórias. Nota-se, a título de
comparação, que a falta de malícia e o rápido encantamento das Garmendia por Alberto
Ruiz-Tagle em Estrella Distante dialoga com o ambiente dúbio e obscuro do Chile pré-
Golpe, funcionando, em certa medida, como uma metáfora da desilusão experimentada
61
por muitos jovens nesse contexto, enquanto que as artistas de Los Detectives Salvajes,
mais experientes e ousadas sexualmente do que os rapazes ressalta-se na narrativa
que María Font era aficionada (e fortemente influenciada) pelos textos de Marquês de
Sade, além de ter por melhor amiga uma prostituta, Lupe , e portadoras de uma visão
menos idealizada do amor/relacionamentos, incorporam, às vezes ironicamente, os
primeiros rumores feministas a fazerem-se presentes no grande DF mexicano de 1970.
Después María se puso a hablar del Movimiento Feminista y citó a Gertrude Stein, a Remedios Varo, a Leonora Carrington, a Alice B. Toklas (tóclamela, dijo Lupe, pero María no le hizo el menor caso), a Única Zurn, a Joyce Mansour, a Marianne Moore y a otras cuyos nombres no recuerdo. Las feministas del siglo XX, supongo. También citó a Sor Juana Inés de la Cruz (BOLAÑO, 1998, p. 51).
María Font, Angélica Font y Laura Jáuregui (la ex compañera de Belano) pertenecieron a un movimiento feminista radical llamado Mexicanas al Grito de Guerra. Allí se supone que conocieron a Simone Darrieux, amiga de Belano y propagandista de cierto tipo de sadomasoquismo (ibid., p. 77).
Igualmente a muitas das caracterizações presente no romance, a suposta
postura feminista das poetisas constrói-se preponderantemente por meio da afirmação
de García Madero. Dito em outras palavras, não se reconhecem ao longo da narração
atitudes que legitimem nem que deslegitimem, diga-se de passagem, o perfil a
elas conferido. Diferindo em certa medida de Estrella Distante, os posicionamentos
políticos e/ou ideológicos presentes em Los Detectives Salvajes, como o “ser feminista”
ou “de esquerda”, instauram-se em grande medida no plano discursivo, e não
necessariamente através da trajetória pessoal dos personagens. De acordo com Juan
Villoro, Bolaño concede pouco interesse ao mundo subjetivo de seus personagens,
desenvolvendo com frequência uma escrita que “no depende de la introspección sino del
recuento de los datos” (VILLORO, 2008, 18). Em relação especificamente ao “ser
escritor” nota-se em Los Detectives Salvajes um retrato natural de “poetas sem obras”,
62
isto é, desvincula-se a imagem do escritor de sua respectiva produção escrita. O leitor
reconhece estar diante de personagens-escritores, ainda que nenhuma prova documental
(produção escrita) lhe seja apresentada ou minuciosamente descrita.
Si te fijas, incluso la idea fundamental del detective salvaje es la idea del poeta sin obra. La idea del que investiga la realidad por métodos ilegales y que hace de su vida una obra de arte. La estética del detective salvaje se encuentra en la forma en que vive. No en lo que escribe ni en lo que genera y, en este sentido, los visceral-realistas serían más poetas de la vida que poetas de la obra (VILLORO, 2013, p. 68).
Para dar continuidade à análise até aqui desenvolvida, faz-se necessário
relembrar o título do capítulo atribuído por Bolaño à primeira parte do diário de García
Madero: “1. Mexicanos perdidos en México (1975)”. Entre as possíveis interpretações
para a presença de adjetivos plurais no anúncio de uma escrita que, a princípio,
configurar-se-ia individual e íntima, está o fato de o perfil do narrador ser composto por
muitas das características comuns aos jovens poetas (real visceralistas ou não)
retratados ao longo de Los Detectives Salvajes. Apesar de, inicialmente, revelarem-se
válidas leituras que tendam a contrapor o perfil de García Madero ao perfil dos
fundadores do Real Visceralismo, no sentido de que o primeiro encenaria a figura do
jovem ingênuo e inexperiente enquanto os segundos representariam a segurança e a
maturidade usualmente esperadas em líderes, o transcorrer da narrativa caminha para o
esboço de um elo comum, não apenas entre o narrador, Belano e Lima, mas entre todos
os personagens-escritores ficcionalizados por Bolaño, devido à natureza errante de suas
jornadas.
A orfandade assumida por García Madero logo na primeira página de seu
diário, a qual condiciona a natureza de seu relacionamento com Rosario, personagem
que o acolhe de forma maternal após sua saída da casa dos tios, materializa e anuncia a
orfandade metafórica (literária) que atinge toda a geração de escritores de Los
63
Detectives Salvajes. A obsessão pela figura de Cesárea Tinajero surge como um reflexo
da determinação de Arturo Belano e Ulises Lima em “saldar cuentas con los mitos que
los precedieron, para poder luego entrar libres en una nueva época existencial y
creadora, para poder partir de cero” (BOLOGNESE, 2010, p. 471). Uma vez rebelados
contra “o império” de Octavio Paz e de Pablo Neruda (BOLAÑO, 1998, p. 30), os real
visceralistas libertam-se de seus predecessores ou, dito de outro modo, assumem
suas orfandades literárias , e expressam, principalmente a partir da radical oposição à
figura de Paz, o desejo de criar algo “distinto y totalmente nuevo” (BOLOGNESE,
2010, p. 467).
“Perdidos no México”, os poetas de Los Detectives Salvajes abandonam o
lápis e o papel e fazem da própria busca pela literatura (ou por sua “mãe” literária) seus
projetos literários. Tornam-se “poetas sem obra”, pois, no romance, o ofício de escritor
não privilegia nem tampouco se resume à produção de textos. Dentro desse cenário, o
leitor não demora a perceber que a imprecisão dos relatos de García Madero acerca dos
real visceralistas configura-se muito mais do que uma simples consequência de sua
recém chegada ao grupo. Para além da falta de convívio e de intimidade com esses
poetas, o narrador depara-se a todo o instante com jovens escritores tão imaturos e
desprovidos de uma identidade literária quanto ele. Ou seja, tanto quanto a falta de
onisciência de seus relatos, decorrente de sua posição de narrador personagem, percebe-
se no diário de García Madero uma imprecisão de informações fortemente determinada
pela intempérie que envolve seus novos colegas. Longe, portanto, de contribuir para a
definição da identidade literária do narrador, o Movimento de Belano e Lima apresenta-
lhe uma comunidade de escritores igualmente ingênua, órfã e “perdida”, que poucas
certezas tem de si própria.
64
A busca por uma identidade literária revela-se, assim, um dos elementos-
chave de Los Detectives Salvajes. Semelhante ao que acontece em Estrella Distante,
bem como em outros títulos de Bolaño, como 2666 (2004a), desenrola-se “una
búsqueda que parte de los orígenes, de una crisis de referentes que se concreta con
frecuencia en la orfandad (real y literaria, individual y colectiva) de muchos de sus
personajes” (TENA, 2010, p. 5). Ainda que fadados ao fracasso, os jovens de Los
Detectives Salvajes não deixam de mover-se, mesmo estando conscientes de que essa
viagem (“iniciática, circular ou de ‘un verdadero descenso a los infiernos’”, como
descreve Tena) possa não ter fim nem sentido. Para anunciar essa epopeia às avessas,
ninguém melhor do que um genuíno aspirante a poeta, portador de um olhar tão inquieto
e curioso quanto o leitor da própria obra, alguém que, assim como ele, tem diante de si
um mundo inteiro para ser descoberto. Talvez seja por isso que Bolaño escolha a voz de
García Madero, e não a outro personagem, para iniciar e encerrar sua história.
3.1.5. Sobre o Real Visceralismo: uma comunidade possível?
“Como contar uma história enquanto se conta outra?”, pergunta Ricardo
Piglia (2004, p. 90) em seu ensaio “Teses sobre o conto”. Trata-se de uma questão que,
para os fins da leitura aqui desenvolvida, permite pensar produtivamente a possível
função narrativa e estética exercida pela primeira parte do diário de García Madero ao
se considerar a totalidade de Los Detectives Salvajes (1998).
Em primeiro lugar, e independentemente da qualidade e da quantidade de
informações fornecidas pelo narrador, é justo afirmar que o capítulo cumpre com a
função de introduzir os personagens e a história (aparentemente) nuclear do romance.
Dentro de suas limitações, García Madero deixa o leitor a par da busca de Arturo
Belano e de Ulises Lima por Cesárea Tinajero, e dá a conhecer tanto o Real
65
Visceralismo quanto alguns de seus possíveis membros. Ainda que a aparição
inesperada dos depoimentos que formam o segundo capítulo possa causar certo
desconforto no leitor, este não tarda a notar um ar familiar no conteúdo desses relatos,
bem como no nome de parte de seus autores. Cada uma a seu modo, as vozes presentes
no capítulo “Los detectives salvajes (1976-1996)” discorrem sempre sobre o Real
Visceralismo e seus respectivos fundadores, e/ou sobre a poetisa por eles procurada. Em
síntese, nota-se que a narração do aspirante a poeta fornece ao leitor os subsídios
mínimos para se encarar o quebra-cabeça que compõe o capítulo “Los detectives
salvajes (1976-1996)”, jogo este responsável por preencher, inclusive, grande parte das
lacunas deixada pelo diário.
A segunda interpretação para o papel dos relatos iniciais de García Madero
inspira-se em um paralelo com as ideias de Piglia acerca do gênero conto: afastando-se
do que seria o eixo narrativo de Los Detectives Salvajes, isto é, a busca por Cesárea
Tinajero, tão anunciada e destacada nas mais diversas sinopses e resumos distribuídos
pelas editoras, os primeiros registros do narrador parecem inserir uma segunda história
no romance, a história dos detetives selvagens, Arturo Belano e Ulises Lima, e dos
demais membros do Real Visceralismo.
Analisando a totalidade do romance a partir das formulações de Piglia, o
protagonismo direcionado à figura e ao paradeiro de Cesárea Tinajero pode ler lido
como a “história visível” de Los Detectives Salvajes, daí o destaque a ela reservado no
âmbito de divulgação do livro. Porém, fugindo dessa lógica, García Madero, ao dedicar-
se quase que exclusivamente à investigação e à tentativa de entendimento do Real
Visceralismo e, em consequência, da figura de seus fundadores, parece construir uma
nova história, a qual Piglia denominaria “história secreta”, que passa a ser narrada de
modo paralelo à história da busca de Belano e Lima. Ao encontro da afirmação de Luis
66
Veres (2010), Bolaño acrescenta à busca policial dos moldes canônicos múltiplas
buscas implícitas “que el lector capta en otro estrato de significación”:
(…) la búsqueda del sentido, la búsqueda de una redefinición de lo literario, la búsqueda de quién es cada uno, la búsqueda de la significación de la vida, de esa dispersión de la trama mediante sucesos anodinos que se entremezclan en una enrevesada red de complejidades, de secretos que no se explicitan y que guían las voluntades de los personajes, lo cual logra perturbar al lector que cree moverse continuamente en la inseguridad, porque no hay respuestas para nada (VERES, 2010, s/p).
Seria arriscado defender com muito rigor a proximidade entre as propostas
do ensaio de Piglia e a estrutura narrativa de Los Detectives Salvajes, no entanto, em
termos gerais, o ponto fundamental dessa analogia é ressaltar que concomitantemente à
procura por Tinajero instaura-se uma procura velada (e especular) pelos próprios
detetives selvagens e seus colegas de geração. Tendo em vista que a real convivência de
García Madero com os dois personagens inicia-se apenas na segunda parte do diário,
capítulo “III. Los desiertos de Sonora (1976)”, os registros feitos em sua primeira parte
servem preponderantemente para se construir um mistério em torno desses poetas, haja
vista o teor especulativo e fantasioso que acompanha as indagações e curiosidades do
narrador.
No início do romance, García Madero afirma que Arturo Belano e Ulises
Lima utilizavam o termo “pandilla” para referir-se ao grupo e que o roubo de livros
configura-se uma prática comum entre seus membros. Lee Harvey Oswald, periódico
com apenas dois números publicados, fora o título dado à primeira (e única) revista real
visceralista, financiada por Lima e diagrama pelo pai das irmãs Garmendía, Joaquín
Font. Quanto à filiação literária de Belano e Lima, observa-se em decorrência da
única ocasião em que o narrador consegue tomar nota dos títulos por eles carregados
67
a influência de nomes da literatura de origem francesa, ou de expressão francesa no caso
da belga Sophie Podolski, distante, em grande parte, do cânone literário:
Los libros que llevaba Ulises Lima eran: Manifeste electrique aux paupiers de jupes, de Michel Bulteau, Matthieu Messagier, Jean-Jacques Faussot, Jean-Jacques N'Guyen That, Gyl Bert-Ram-Soutrenom F.M., entre otros poetas del Movimiento Eléctrico, nuestros pares de Francia (supongo). Sang de satin, de Michel Bulteau. Nord d'eté naitre opaque, de Matthieu Messagier.
Los libros que llevaba Arturo Belano eran: Le parfait criminel, de Alain Jouffroy. Le pays ou tout est permis, de Sophie Podolski.
Com exceção dessas e de outras informações pontuais, a maior parte dos
relatos de García Madero é marcada por contradições e desencontros. Pode-se destacar
como exemplo a passagem em que o narrador afirma-se preocupado com a hipótese de
ser expulso do Real Visceralismo, devido aos supostos “cortes” de membros que Lima e
Belano estariam promovendo na ocasião. Trata-se de um episódio irônico e caricato que
contrasta a acentuada valorização de García Madero com o descrédito que os demais
membros expressam ter pelo Movimento:
No lo sabe. Se reafirma en su primera opinión: una locura temporal de Arturo Belano. Luego me explica (aunque esto yo ya lo sé) que Bretón acostumbraba a practicar sin ninguna discreción este deporte. Belano se cree Bretón, dice Requena. En realidad, todos los capo di famiglia de la poesía mexicana se creen Bretón, suspira. ¿Y los expulsados qué dicen, por qué no forman un nuevo grupo? Requena se ríe. La mayoría de los expulsados, dice, ¡ni siquiera saben que han sido expulsados! Y a aquellos que lo saben no les importa nada el real visceralismo. Se podría decir que Arturo les ha hecho un favor (BOLAÑO, 1998, p. 101).
Essa incessante afirmação-negação do Real Visceralismo, junto à constante
ausência de Belano e Lima, torna obscuro tudo o que García Madero ouve e registra a
respeito deles: seriam os dois personagens poetas ou vendedores de drogas, como
sugere o personagem Pancho Rodríguez? “Arturo Belano” e “Ulises Lima” seriam, de
68
fato, seus verdadeiros nomes? Ou, conforme declara María Font, o segundo chamar-se-
ia “Alfredo Martínez”? Quanto à investigação supostamente por eles empreendida:
motivação literária, obsessão gratuita ou mera invenção? Cesárea Tinajero, um nome
que significava tanto para esses detetives selvagens e tão pouco para os demais
membros do Real Visceralismo, trata-se de uma pessoa real ou de um fantasma de suas
cabeças?
É precisamente pelo obscurecimento instaurado pela escrita subjetiva de
García Madero que os depoimentos listados no segundo capítulo de Los Detectives
Salvajes ganham relevância. Trata-se de vozes que ampliam a história, devido não
somente às novas informações e dados que fornecem, mas à abrangência cronológica
desses registros, que vão de 1976 a 1995.
De acordo com os fins deste trabalho, merecem especial atenção em “II. Los
Detectives Salvajes (1976-1996)” as declarações proferidas ou diretamente relacionadas
aos membros do Movimento. Para se identificar os personagens que efetivamente
possam ser reconhecidos como tal, frisa-se a importância da disposição de García
Madero em esclarecer, na primeira parte de sua escritura íntima, quais de seus novos
colegas reconhecem-se como real visceralistas. Entre as respostas vagas e/ou repulsivas
obtidas pelo narrador, pode-se destacar Felipe Müller, Jacinto Requena, Xóchitl García,
Rafael Barrios, Pancho Rodríguez, Ernesto San Epifanio e as irmãs Angélica e María
Font como os principais membros do grupo proposto por Belano e Lima, devido mais à
intensa convivência estabelecida entre esses jovens poetas, do que a um positivo
autorreconhecimento dessa condição ou à partilha de posturas ou ideais comuns. As
irmãs Font, por exemplo, afirmam, e reafirmam no segundo capítulo, sua não
identificação com o Real Visceralismo “Me importan un carajo los real visceralistas”
(BOLAÑO, 1998, p. 36), diz María a Madero; “No participé en las actividades de los
69
real visceralistas. No quería saber nada de ellos” (174), declara Angélica em seu
depoimento , porém, sua proximidade do grupo, somada à ausência de pressupostos
básicos que determinem com precisão o significado de ser/se tornar um real visceralista,
impede que essas personagens sejam excluídas da história do Movimento.
Os depoimentos datados de 1976 até 1980 dividem-se entre relatos atentos
aos passos dados por Belano e Lima antes de partirem em busca de Tinajero pelo
deserto de Sonora, e declarações sobre as implicâncias de suas idas à Europa França
e Espanha, respectivamente após o trágico assassinato da poetisa.
Em relação aos registros que esclarecem a origem do Movimento e,
portanto, do interesse dos real visceralistas pela poetisa desaparecida, destacam-se os de
Amadeo Salvatierra, ex-estridentista, um poeta decadente que deixa Belano e Lima a
par da relação estabelecida entre o Estridentismo e o Realismo Visceral fundado por
Tinajero, e que lhes mostra o único poema publicado pela poetisa. O depoimento de
Salvatierra, datado em janeiro de 1976, é dividido em 13 partes, sendo estas
cuidadosamente intercaladas aos depoimentos assinados pelos demais entrevistados, de
modo que seu discurso abre e encerra o capítulo. No lugar de apresentar ao leitor um
único e extenso discurso de Salvatierra, Bolaño transforma o desvelamento de Tinajero
em uma peça-chave para o processo de (re) historização promovido pelo romance
(AHUMADA, 2012). Desse modo, as entradas assinadas pelo personagem funcionam
como lembretes ao leitor, excertos que não o deixam esquecer da revisão crítico-
literário que o conjunto de vozes ali reunidos acabam por desencadear. Quanto a Belano
e Lima, por sua vez, nota-se nas falas de Salvatierra que a decisão de buscar a Tinajero,
bem como de “homenageá-la” através de seu Movimento, surge nos poetas mais por um
ímpeto juvenil e menos por uma admiração de cunho literário. Pouco eles conhecem
70
sobre sua obra e história, salvo as divagações de um velho poeta decadente; trata-se,
contudo, do suficiente para motivá-los a partir rumo a Sonora.
Além de Amadeo Salvatierra, descobre-se que os dois poetas também se
encontraram, antes de 1976, com Manuel Maples Arce, representante máximo do
Estridentismo, e com Carlos Monsiváis, importante escritor e crítico literário, também
mexicano, bastante dedicado a questões sociais e políticas. Por meio dessas referências
a escritores de grande relevância, e que realmente existiram, Bolaño reforça o caráter
utópico e entusiasta que envolve as figuras de Belano e Lima, valendo-se da
espontaneidade e agressividade das opiniões de Maples e Monsiváis. Qualificando-os de
jovens “entusiastas” e “ignorantes”, Maples expressa mais paciência ao comentar o
desenrolar da entrevista e, mesmo qualificando-os de entusiastas e ignorantes, apenas
conclui serenamente que “Todos los poetas, incluso los más vanguardistas, necesitan un
padre. Pero éstos eran huérfanos de vocación. Nunca volvió” (Bolaño, 1998, p. 177).
Monsiváis, por outro lado, dispensa qualquer tipo de compreensão e é severo em seus
julgamentos: segundo ele, os dois jovens poetas não passavam de “dos perdidos,
extraviados”, sem argumentos de peso nem originalidade em suas colocações,
obstinados somente em “en no reconocerle a Paz ningún mérito, con una terquedad
infantil” (ibid., p. 160).
A inconsistência e a marginalidade observadas na história de origem do
Real Visceralismo, as quais, de algum modo, alertam quanto ao fracasso iminente,
ganham maior proporção após a tragédia envolvendo Cesárea Tinajero. Diferentemente
dos desaparecimentos periódicos e inexplicáveis mencionados no diário de García
Madero, interpretados pelo personagem Jacinto Requena como um comportamento
lúmpen, “el lumpenismo: enfermedad infantil del intelectual” (BOLAÑO, 1998, p. 181),
a mudança de Belano e Lima para a Europa afirma-se como um prolongado e declarado
71
distanciamento do Real Visceralismo. Aos poucos, seus membros vão anunciando a
dissolução à qual o grupo já estava fadado desde seu nascimento, e reafirmando a
existência de uma descrença generalizada.
Rafael Barrios declara que depois da partida de Belano e Lima, os real
visceralistas fizeram “tudo” o que podiam, “pero nada salió bien” (BOLAÑO, 1998, p.
214). Nota-se que Bolaño utiliza-se do depoimento do personagem para reforçar a sátira
que marca o retrato da literatura de vanguarda apresentado em Los Detectives Salvajes,
uma vez que entre o “tudo” ao qual Barrios faz referência listam-se tentativas de se
fazer “escritura automática, cadáveres exquisitos, (...), escritura a dos manos, a tres
manos, escritura masturbatoria, (...), poesía conversacional, antipoesía, (...), poesía
eléctrica (Bulteau, Messagier), poesía sanguinaria (tres muertos como mínimo) (...)”
(ibidem), entre muitas outras. Ainda que jocosa, a postura descrita por Barrios revela
um resquício de visão utópica e de postura proativa da qual aos poucos os real
visceralistas vão se afastando.
A mudança no teor dos quatro depoimentos fornecidos (em 1976, 1979,
1982 e 1985) pelo personagem-escritor Jacinto Requena exemplifica essa
transformação. Até o início da década de 80, mesmo com a suspeita de que o fim do
Real Visceralismo estivera próximo “Cuando se marcharon a Sonora intuí que el
grupo estaba en vías de desaparecer. Vaya, como si la broma estuviera agotada. No me
pareció una mala idea” (BOLAÑO, 1998, p. 186) , Requena expressava em suas
falas e posturas uma espécie de fidelidade ao grupo, bem como um interesse pelos
destinos de seus fundadores e pelas memórias do Movimento. No relato de 1979, ao
comentar “explosão” editorial ocorrida após a partida de Ulises Lima, o poeta, em
conversa com o personagem Ernesto San Epifanio, declara que se recusaria a participar
(caso viesse a ser convidado) da antologia poética elaborada por um escritor contrário
72
ao Real Visceralismo, Ismael Humberto Zarco, simplesmente porque ele, Jacinto
Requena, também era um real visceralista: “si ese cabrón no mete a Ulises, pues que
tampoco cuente conmigo” (BOLAÑO, 1998, p. 275). Por fim, desprendendo-se de sua
ideologia, o personagem inicia seu último depoimento, o de 1985, com a afirmação de
que, para a maioria, Lima “había muerto como persona y como poeta” (ibid., p. 366).
Em um relato bem mais breve do que primeiros, nos quais seus conhecimentos acerca
do grupo e de seus fundadores são narrados em detalhes, Requena comenta
rapidamente, e, de certo modo, friamente a visita de Lima ao México. No encerramento
de sua fala percebe-se a perda do interesse que estivera tão presente nas declarações
anteriores: “Después pasó mucho tiempo antes de que lo volviera a ver. Yo intentaba
moverme en otros círculos, tenía otros intereses, tenía que buscar trabajo, tenía que
darle algo de dinero a Xóchitl, también tenía otros amigos” (367). Já em 1981, ao
descrever a última reunião dos real visceralistas (encontro, segundo lhe disseram, “igual
que una película de zombis”), María Font registrara em seu depoimento os seguintes
dizeres de Jacinto Requena: “El real visceralismo está muerto, deberíamos olvidarnos de
él y hacer algo nuevo” (319).
Com exceção de duas histórias de Belano rememoradas por Felipe Müller,
os relatos dos real visceralistas cessam na década de 80. Curiosamente, nota-se nos
registros datados na década de 90 uma predominância de nomes até então não
mencionados em Los Detectives Salvajes, em especial os de personagens-escritores
(apócrifos) que estiveram presentes na “Feria del Libro” de Madri, ocorrida em julho de
1994. Um breve olhar ao conteúdo de suas falas explica a ausência dos real
visceralistas: trata-se de um conjunto de escritor bem-sucedidos, que gozam da fama e
guiam-se pelas regras impostas pelo mercado.
73
Aurelio Baca, único nome citado nos relatos que precedem a Feira de
Madri, destacado neles como “el gran novelista madrileño” (BOLAÑO, 1998, p. 476),
transforma seu depoimento em uma micro autobiografia literária, assumindo-se
consciente de que não fora um escritor transgressor, que correra demasiado riscos, e
reconhecendo com tranquilidade suas “limitações”. Pere Ordóñez, por sua vez, comenta
a mudança de postura dos escritores hispanofalantes, antes revolucionários, agora uma
espécie de mercenários, que “no reniengan de nada o sólo reniegan de lo que se puede
renegar y se cuidan mucho de no crearse enemigos o de escoger a éstos entre los más
inermes” (ibid., p. 485). Já Julio Martínez Morales, Pablo del Valle e Marco Antonio
Palacios, discorrendo sobre “el honor de los poetas” e enfatizando a todo o momento
suas condições de escritores de êxito, descrevem o caminho para se tornar um escritor
de sucesso e para se manter como tal: “un escritor debe parecer un articulista de
periódico” (487); “Hay que mostrarse fuerte. El mundo de la literatura es una jungla. Yo
pago mi relación con la cartera con unas cuantas pesadillas, con unos cuantos
fenómenos auditivos. No está mal, lo acepto” (487); “Disciplina y un cierto encanto
dúctil, ésas son las claves para llegar a donde uno se proponga. (...) Encanto, o encanto
dúctil: visitar a los escritores en sus residencias o abordarlos en las presentaciones de
libros y decirles a cada uno justo aquello que quiere oír”; “Un consejo: no criticar nunca
a los amigos del maestro” (488).
Essas e as duas últimas vozes que compõem o conjunto entrevistado na
Feira de Madri, a de Hernando García León e a do depressivo e enfermo Pelayo
Barrendoáin, o “loco más célebre de la llamada poesía española” (495), chamam a
atenção para o processo de mercantilização da literatura e para o modo como alguns
escritores adaptaram-se (ou sucumbiram?) a ele, reavivando assim os conflitos entre
Ética e Estética também enfrentados pelos personagens de Estrella Distante. O
74
silenciamento dos real visceralistas, essa total perda de espaço, materializa precisamente
as consequências da postura por eles adotadas antes e perante essa mudança ocorrida no
cenário literário. Ainda que o depoimento de Guillem Piña, registrado em 1995, forneça
a informação de que Arturo Belano conseguira publicar alguns romances, trata-se de um
êxito acompanhado por certo temor de que a sua falta de apadrinhamento literário, isto
é, a inexistência de um autor de renome que o defenda, dê aos críticos a oportunidade de
tirar o mérito de seus textos. Movido por esse receio, Belano desafia o famoso crítico
literário Iñaki Echavarne para um duelo, no sentido literal do termo, protagonizando
uma das cenas mais inusitadas do romance.
La feria del libro, como institución característica del nuevo orbe literario, escenifica el montaje presente en la industria editorial. Pero en el contexto descrito en “Los detectives salvajes”, resulta ser el epílogo lapidario de la receta del “buen” escritor, de aquel que sabe astutamente adaptarse a los tiempos, a los “nuevos” tiempos, subiéndose oportunamente al carro de la “victoria” (AHUMADA, 2012, p. 76).
Ao encontro da observação de Ahumada, Mireia Companys Tena sintetiza
bem o significado da abrangência cronológica de Los Detectives Salvajes. Trata-se, em
sua visão, do retrato do “fracasso cíclico” ao qual se converteu o sonho real viceralista
de encarnar a vanguarda literária:
(…) en los años veinte con el estridentismo y con la desaparición de Cesárea Tinajero; en los setenta mediante el sueño frustrado de esos poetas “perdidos en México”; y en los noventa con un panorama literario lamentable, con Ulises Lima y Arturo Belano desaparecidos y con una extrema mercantilización de la literatura que tiene como máximo exponente la Feria del Libro de Madrid de 1994 (TENA, 2010, p. 63).
Um grupo que se inicia como uma “broma” e que se afirma como uma
“pandilla”, de fato não teria lugar na Feira do Livro de Madrid. Muitos são os
depoimentos que antecipam esse caminho rumo ao esquecimento. Rafael Barrios, que
75
em 1976 tentava exaustivamente salvar o Real Viceralismo, em 1982 passa a assumir
uma postura de resignação: “Sólo sé que en México ya no nos conoce nadie y que los
que nos conocen se ríen de nosotros (somos el ejemplo de lo que no se debe hacer) y tal
vez no les falte razón” (BOLAÑO, 1998, p. 345). Os que antes faziam planos de
sequestrarem a Octavio Paz, como uma ação simbólica de rebeldia literária, ao
cruzarem-se com ele anos depois em um encontro, diga-se de passagem,
protagonizado por um breve diálogo entre Paz e Lima, no qual o real visceralista
demonstra uma profunda tristeza ao falar do Movimento , nada fazem, ficam inertes,
conforme relata Clara Cabeza, suposta secretária de Paz, em depoimento dado em 1995.
Terminam, assim, ironizados por seu maior “rival”:
(…) hace muchos años, Clarita, un grupo de energúmenos de la extrema izquierda planearon secuestrarme. No me diga, don Octavio, dije yo y me puse a temblar otra vez. (...). Pero tal vez la cosa no iba por ahí, tal vez sólo se trataba de una broma. Vaya bromita, dije yo. Lo cierto es que nunca intentaron el secuestro, dijo él, pero lo anunciaron a bombo y platillo, y así llegó a mis oídos. ¿Y cuando usted lo supo, qué hizo?, dije yo. Nada, Clarita, me reí un poco y luego los olvidé para siempre, dijo él (BOLAÑO, 1998, p. 507).
Belano, “suicida” desaparecido na África e alternando-se entre diversos
trabalhos para sobreviver durante o período em que residiu em Barcelona; Lima
dependendo da ajuda de amigos para viver em Paris, posteriormente desaparecido na
Nicarágua no período de da Revolução, e em seguida perdido em Israel; muitos foram
os desencontros envolvendo os fundadores do Movimento e seus eventuais seguidores
até se chegar a um total afastamento. Vinte anos depois, restam as informações
recolhidas por Ernesto García Grajales, “el único estudioso de los real visceralistas que
existe en México y, si me apura, en el mundo” (ibid., p. 550). Ao elencar a seu
interlocutor o destino de cada um dos real visceralistas, o estudioso é categórico em
dizer que, entre poetas falecidos e que abandonaram a poesia, o nome Juan García
76
Madero nada lhe traz à memória, e que, com certeza, ele nunca pertencera ao grupo,
colocando novamente em xeque a validade do diário do aspirante a poeta. Porém,
paradoxalmente, é apenas por meio da segunda parte de seu duvidoso diário que o leitor
tem acesso aos detalhes que marcaram a factual busca por Cesárea Tinajero. García
Madero, em uma condição paralela a dos personagens que dão forma à polifonia que
rege o segundo capítulo, afirma-se na última parte de Los Detectives Salvajes como a
única testemunha dos passos dados por Belano e Lima no decorrer de sua investigação,
uma investigação por livros, periódicos e bibliotecas, com o mesmo caráter literário da
busca empreendida pelo narrador de Estrella Distante. À semelhança do fim
experimentado por Carlos Wieder, na ocasião a poetisa também “no tenía nada de
poética” (BOLAÑO, 1998, p. 602), não remorava a figura idealizada por seus
perseguidores.
Cesárea Tinajero, del mismo modo que Carlos Wieder, se presenta siempre como una ausencia, una leyenda, un mito, un fantasma, un vacío. Una vez más, sólo tenemos noticias de ella a través de la voz del resto de personajes (sobre todo de Amadeo Salvatierra), que la construyen, en principio, como una figura desdibujada y mítica, ese referente literario que debe convertirse en la madre mitológica del realismo visceral, pero que acaba reflejando, tras su encuentro y sobre todo tras su muerte, el fracaso de la utopía literaria y del proceso modernizador de la vanguardia latinoamericana (TENA, 2010, p. 120).
Apesar de o termo “escritor-fantasma”, já sugerido por Bolognese, dar conta
de descrever o significado de figuras como as de Wieder e de Tinajero nas obras de
Bolaño, percebe-se algo fantasmagórico também nos jovens poetas de Los Detectives
Salvajes, como se os real visceralistas surgissem como “espectros de escritores”, que
vagueiam sem destino pelo México, sedentos por alcançar uma identidade literária. Do
início ao fim do romance não se sabe ao certo se o Real Visceralismo de fato existira ou
se fora um fruto do delírio coletivo de um grupo de escritores. Uma comunidade
77
possível? Sim, mas não se pensada sob a perspectiva da existência de um ethos ou de
ideais conscientemente e formalmente partilhados; trata-se, ao contrário, de algo que
poderia ser descrito como a reunião quase que acidental de uma experiência coletiva,
conforme sugere as palavras da personagem Laura Jáuregui, ex-namorada de Belano,
apresentadas em um dos primeiros depoimentos do segundo capítulo do romance:
“cuando nos dimos cuenta que no era una broma, algunos, por inercia, creo yo, o por
que de tan increíble parecía posible, o por amistad, para no perder de golpe a tus
amigos, le seguimos la corriente y nos hicimos real visceralistas, pero en el fondo nadie
se lo tomaba en serio” (BOLAÑO, 1998, p. 149).
Essa comunidade pressentida por Bolaño só é possível, paradoxalmente, no exílio constante, tal como o autor entende esse termo: não no sentido de um outro território, mas no esforço permanente de abandonar os lugares próprios que vão se oferecendo, seja (n)o lar, (n)a terra-natal, (n)a infância, "sua" língua, "sua biblioteca" e, inclusive, a si mesmo (...). O percurso que vemos delineado não é a transmissão de um conteúdo ou legado, sinalizando a necessidade de recuperar a comunhão de poetas que um dia se chamaram real-visceralistas ou, ainda, estridentistas. Isso seria reincidir numa comunidade de seletos (...) Não se trata de rearmar um sociedade gangsteril, mas de transformar os acidentes e as fatalidades do caminho em parte de uma canção - não é isso afinal que entrevemos em Amuleto? (PINHEIRO, 2014, p. 205).
Não é à toa que antes mudar-se para a Europa, Arturo Belano convence o
editor Lisandro Morales a publicar sua “antología definitiva de la joven poesía
latinoamericana” (BOLAÑO, 1998, p. 207), composta exclusivamente por poemas de
“amigos”. Ao elegir esse “rigoroso” critério de seleção, o personagem reafirma antes de
sua simbólica partida que “el realvisceralismo, más que un movimiento capaz de
convertirse en la cabeza de la vanguardia poética de Latinoamérica, es el sueño literario
de una pandilla de poetas latinoamericanos ‘perdidos en México’” (COBAS CARRAL
& GARIBOTTO 2008, p. 177). Talvez, como interpreta Laura Jáuregui, o Real
Visceralismo não tenha passado de “una carta de amor” (BOLAÑO, 1998, p. 149)
78
dedicada pelo apaixonado Arturo Belano à sua amada, à sua amada e a todos os jovens
poetas de sua geração.
Antes de encerrar esta seção, faz-se necessário tecer breves comentários
sobre os eventuais pontos de contato estabelecidos entre o Real Visceralismo e o
Infrarrealismo, fundado por Bolaño em 1974/1975, “uno de los paralelismos más
destacados entre su experiencia vital y literaria y su producción novelística” (TENA,
2010, p. 154). No decorrer dos estudos que deram origem a esta Dissertação,
precisamente no que diz respeito ao projeto de Iniciação Científica intitulado “Roberto
Bolaño e Enrique Vila-Matas: uma leitura comparada” (Processo Fapesp nº
2011/06503-9), foi possível observar que grande parte dos personagens-escritores de
Bolaño assumem uma postura muito próxima dos pressupostos presentes nos manifestos
do Movimento Infrarrealista. Apesar de se tratarem de textos de natureza documental,
observa-se que neles são anunciados muitos dos conceitos literários que permeiam sua
poética, especialmente a partir da década de 90.
Com o artigo “Roberto Bolaño y sus comienzos literarios: El infrarrealismo
entre realidad y ficción” (2009), Chiara Bolognese publica o primeiro trabalho voltado a
uma atenta análise de possíveis vestígios infrarrealistas nas ficções de Bolaño,
sobretudo em Los Detectives Salvajes, com atenção ao diálogo entre os ideais do
Movimento e a postura defendida pelo Estridentismo mexicano. Ao encontro dos
trabalhos que associam esse romance à «autoficção», não é difícil relacionar o
Infrarrealismo fundado no México da década de 70 por Bolaño e seu grande amigo
Mario Santiago ao Movimento Real Visceralista dos personagens Arturo Belano e
Ulises Lima, também fundado na mesma data e local, pois, como bem assinala
Bolognese (2009, p. 138), é certo que “Bolaño utilizó muchos episodios de su primera
‘época rebelde’ para armar su ficción”. Entretanto, não podendo ser resumido a um
79
retrato autobiográfico de Bolaño, a presença dos ideais infrarrealistas surge em tal
romance como parte do retrato de um grupo, representando diversos jovens poetas
latino-americanos da década de 70.
Assinado por Bolaño, “Déjenlo todo, nuevamente” (1976) ou “Primer
Manifiesto Infrarrealista”, o primeiro manifesto do Movimento é segundo Bolognese
(2009, p. 132) um texto que “evidencia que las ideas que darían forma al proyecto
literario del autor ya estaban delineadas desde sus primeros versos y planteamientos
teóricos”. Nele, além de anunciar explicitamente a proximidade do grupo ao movimento
peruano Hora Zero, Bolaño deixa claro o caráter marginal do Infrarrealismo, que em
contraposição à “maquinaria cultural” da “clase dominante”, reivindica um “acontecer
cultural vivo” (BOLAÑO, 1976, p. 53), um poeta que “meta” a cabeça “en todas las
trabas humanas” (ibid., p. 53). A afirmação de que “Nuestra ética es la Revolución,
nuestra estética la Vida: una-sola-cosa” (ibid., p. 56), somada às ideias revolucionárias
que marcam todo o manifesto, bem como à declarada defesa de uma poesia que
“subverta a realidade”, é destacada por Bolognese como um anúncio da filiação
surrealista do Infrarrealismo. Entretanto, é preciso ter-se em conta a ressalva de Andrea
Cobas Carral: se é verdade que o Infrarrealismo concordava com o Surrealismo no que
se refere a um ideal de “ação poética”, é também válido advertir que ao defender a
“necesidad de bucear en la conciencia del hombre y conmover a partir de allí, su
cotidianeidad” o movimento de Bolaño afastava-se de ideia da escrita automática,
inconsciente, característica das obras surrealistas (COBAS CARRAL, 2005, s/p).
Nos outros dois manifestos do Movimento, “Manifiesto Infrarrealista”, de
Mario Santiago e “Por un arte de vitalidad sin limites”, escrito por José Vicente Anaya,
ambos sem o registro da data de publicação, é ressaltado o afastamento do grupo de
80
qualquer institucionalização ou conceito elitista e/ou limitado de arte – “¿QUÉ
PROPONEMOS? NO HACER UN OFICIO DEL ARTE” (SANTIAGO, s/d, p. 37).
(…) nosotros nos negamos seguir el juego institucional de la “CUL - ¿cul no es un prefijo de origen francés? - TURA” que implica la teoría y práctica de los grupúsculos academicistas y sectas reduccionistas que bregan en el poder editorial y que con sus esquemas se vanaglorian de una absoluta corrección sobre lo que “la belleza debe ser” (ANAYA, s/d, p. 44).
Em relação aos indícios dos pensamentos infrarrealistas na poética de
Bolaño, as similaridades entre os cenários que compõem Estrella Distante e Los
Detectives Salvajes merecem destaque. Com ênfase em encontros literários de jovens
poetas boêmios, seja em bares e cafés ou nos talleres promovidos por estudantes, os
dois romances retratam um vestígio vanguardista associado à premissa, também
infrarrealista, de unir vida e literatura, fato que justifica o enfoque dado a suas
experiências de vida em detrimento de uma descrição de suas produções escritas.
Para além do paralelismo entre o Real Visceralismo e a comunidade literária
retrata em Los Detectives Salvajes, o protagonismo de Arturo Belano surge novamente
como o argumento determinante para se pensar o romance como uma autoficção.
Entretanto, a primeira objeção que se pode levantar acerca dessa perspectiva de leitura
surge da identidade e do papel assumido pelo (s) narrador (es) nessa narrativa. Em Los
Detectives Salvajes, Belano surge apenas como personagem, não assumindo a função de
narrador em nenhum momento da narrativa “E, aliás, esse “ele”, ou seja, esse não-eu,
não é sequer Roberto Bolaño. É Arturo Belano” (PARRINE, 2010, p. 3). Trata-se da
ruptura com um dos pressupostos basilares da autoficção, a identificação entre autor,
narrador e personagem
Conforme discutido anteriormente, tanto os registros do diário de Garcia
Madero, que compõem a primeira e a terceira (e última) parte do romance quanto os
81
depoimentos dos diferentes personagens inseridos na segunda seção do livro tornam
duplo o mistério do enredo, já que Belano e Ulises apresentam-se tão misteriosos
quanto o paradeiro e o destino da poetisa por eles procurada. Em síntese, e fazendo uso
das palavras da pesquisadora María Alejandra Gutiérrez Tovar, é possível afirmar que
há insistentemente em Bolaño “el enigma de un escritor que debe ser develado por
otros” (TOVAR, 2011, p. 269) além dos textos aqui estudados, a autora também
aborda em seu corpus o romance póstumo 2666 (2004a), no qual o papel de escritor
enigmático/ausente é conferido ao personagem-escritor Benno von Archimboldi.
Com base nesse aspecto, observa-se que o tom policial de seus textos funda-
se, com frequência, na dissociação entre escritor-narrador e escritor-protagonista, de
modo que a ausência da voz do segundo legitime a busca/investigação empreendida
pelo primeiro, assim como se observa também em Estrella Distante; em outras palavras,
tem-se o personagem-escritor, nesse caso, o escritor encenado por Belano em Los
Detectives Salvajes, como uma peça fundamental para a construção do mistério. Ao
encontro das conclusões da Tese de Tovar a respeito desses “autores secretos” (ibid., p.
102), entende-se nesta pesquisa que, embora em certa medida ausentes, “no hay una
ausencia total, porque al presentarse al autor como un enigma de alguna manera se
demuestra su presencia, aunque paradójicamente se haga desde la ausencia” (TOVAR,
2011, p. 102). É válido questionar, portanto, a suficiência da presença de Arturo Belano,
ainda que portador de diversas referências autobiográficas do autor chileno, para se
instituir (e se manter) uma leitura ambígua desse romance.
A pesquisadora brasileira Raquel Parrine, ao explorar as “estratégias
estéticas de Bolaño ao tratar da própria história pessoal” (PARRINE, 2010, p. 1)
fornece argumentos bastante consistentes e favoráveis à contestação de leituras que
deem uma exagerada importância à presença da autobiografia nas narrativas de Bolaño.
82
Parrine admite que, em se tratando do autor chileno, instaura-se, de fato, um
questionamento da “legitimidade” do que ele diz ser ficcional, pois “é difícil não
acreditar que aquilo realmente aconteceu” (ibid., p. 7). No entanto, segundo sua visão,
trata-se de um “derramamento do eu” que busca simplesmente criar o sentimento de
“lastro do real” (ibid., p. 9), principalmente a partir do “efeito-autor”: “a escritura,
assim, é vista como o veículo de construção de um “eu”, que leva ao derramamento
instável de uma personalidade que conferimos a Roberto Bolaño, mas que nunca
poderia ser ele” (1).
De acordo com os apontamentos registrados nas seções anteriores, esta
Dissertação questiona o caráter autoficcional atualmente atribuído aos romances que
compõem o corpus deste trabalho, pois parte de um conceito de autoficção pautado na
reincidência do nome do autor e da ambiguidade/desestabilização do pacto de leitura
por ele ocasionada perspectiva esta, diga-se de passagem, delineada com base no
contexto de origem do termo. Parrine, por sua vez, parte precisamente dessa definição
de autoficção para rememorar, à luz de Tununa Mercado (2009), que “o “eu” narrado
nunca é o “eu” narrador”, que a possibilidade de coincidência de autor e narrador é, por
si só, “uma questão falsa” (PARRINE, 2010, p. 5). Aproveitando a ressalva feita pela
pesquisadora, esclarece-se que a aparição do nome próprio dentro da ficção é aqui
entendida como uma estratégia portadora de imediatas consequências para o leitor.
Portanto, a perspectiva adotada nesta pesquisa também reconhece que “buscar marcas
biográficas na narrativa é uma questão sem questão” (ibidem), Nesse sentido, assumir a
autoficção como uma narrativa possível significa aceitar a possibilidade de um pacto
ambíguo, que não necessariamente induza o leitor a uma prova de verificação, mas que
consolide a sensação de dúvida ao longo de sua leitura. Bolaño causa isso, mas somente
aos que têm um mínimo conhecimento de sua biografia.
83
Mais do que autobiografia, o autor parece querer aproximar suas ficções de
uma “etnografia de la Vida Artística”, recheada de biografias de diversos escritores e
povoada de “espectros históricos” (PAULS, 2008, p. 331). De resto, as incessantes
discussões em torno da dupla ficção-realidade em Los Detectives Salvajes só
comprovam que,“de hecho, mediante esta novela Bolaño realiza plenamente el que era
uno de los principios esenciales del movimiento infrarrealista: la unión entre arte y
vida” (TENA 2010, p. 154).
3.2. Que escritor sou eu? Da enfermidade literária à morte do Autor:
a trajetória dos narradores de Enrique Vila-Matas 3.2.1. Rosario Girondo e Andrés Pasavento: escritores à beira da loucura
Ao se comparar o diário de García Madero com o diário de Rosario
Girondo, narrador de El mal de Montano (2002), de Enrique Vila-Matas, observa-se
uma mudança tanto no foco temático da narração quanto em sua estrutura. Opondo-se
ao perfil do narrador de Los Detectives Salvajes (1998), Girondo, assim como Andrés
Pasavento, de Doctor Pasavento (2005), rememora muitos aspectos da condição
experimentada por escritores bem-sucedidos no século XXI. Com anotações distantes
do tom de descoberta e inexperiência que marca o diário presente no romance de
Bolaño, os registros de Girondo revelam um escritor já maduro, por volta dos cinquenta
anos de idade, casado e envolvido em diversos compromissos profissionais (contratos
com editoras, participação em eventos, etc.) consequentes do bom êxito de suas
publicações. Como reflexo de sua relação obsessiva e doentia com a literatura, Girondo
dá forma a um diário voltado, quase que em sua totalidade, a reflexões acerca de sua
atividade de escrita e de sua condição de escritor.
84
Estruturalmente, El mal de Montano pode ser definido como um romance
em permanente processo de construção e desconstrução. Nota-se na narrativa uma
estética que se desenvolve em diálogo com o estado clínico de seu narrador, isto é, uma
estética marcada por transgressões e desvios condizentes com os delírios de um escritor
“enfermo de literatura”. Logo no início da narrativa, precisamente após o encerramento
do primeiro capítulo, este também intitulado “El mal de Montano”, o leitor é advertido
de que as primeiras cem páginas lidas, inicialmente apresentadas como o diário do
narrador, não correspondiam à realidade por ele vivida, mas sim a um romance de sua
autoria. Longe, porém, de resumir-se a uma mudança radical e definitiva de perspectiva,
a contraposição do capítulo-romance “El mal de Montano” ao que seria o “verdadeiro”
relato pessoal de Girondo anuncia e sintetiza o caráter metaficcional dos
questionamentos e dos movimentos narrativos que marcam todo o restante da obra.
Ainda que muito reveladora e esclarecedora para o leitor, a passagem da «versão I» para
a «versão II» da história de Girondo não determina o fim das reflexões do narrador em
torno da possível relação entre realidade e ficção, entre o texto e seu processo de
construção, haja vista sua enfermidade literária constituir-se, precisamente, de uma
constante indagação do estatuto e do lugar do literário em sua vida pessoal.
Ao contrário, portanto, do diário presente em Los Detectives Salvajes, o
qual pouca (ou nenhuma) atenção dirige à produção escrita de seus personagens-
escritores, El mal de Montano afirma-se como um romance excessivamente
autoconsciente. Enquanto para o jovem Juan García Madero o ato de escrever poemas
configura-se apenas uma entre tantas descobertas e experiências vitais não ocupando,
portanto, o rol de suas prioridades, nem consumindo parte significativa de seu tempo
, para um escritor maduro e consagrado como Rosario Girondo a impossibilidade de
exercer seu ofício torna-se um grande infortúnio, uma enfermidade a ser vencida. Desse
85
modo, divergindo da postura de remanescente vanguardista adotada pelo narrador de
Bolaño, nota-se em El mal de Montano um personagem-escritor que, ao ter vivido em
plenitude o literário, experimenta a união de arte e vida por um viés patológico-
obsessivo, sendo a literatura, ao mesmo tempo, a causa, o sintoma e a cura de sua
doença.
Descrevendo-se em um primeiro momento como um “enfermo del Mal de
Montano, ágrafo trágico y parásito literario” (113), Girondo livra-se de seu bloqueio
literário ainda em Nantes, mas não de sua obsessão pelo literário, a qual o persegue ao
longo de toda a narrativa. A partir do segundo capítulo, “Diccionario del tímido amor a
la vida”, o leitor é introduzido a uma espécie de “parasitismo literário” de mão dupla: de
um lado, arriscando uma cura definitiva para sua agrafia, o narrador afirma-se um
parasita literário de si mesmo “me transformé en un parásito literario de mí mismo al
decidir allí en la propia Coiffard (Nantes) que convertiría mis dolencias en los temas
centrales de una narración que marcaría mi retorno a la escritura” (ibid., p. 115) ; de
outro, movido pelo anseio de desenvolver/amadurecer a escrita de seu diário pessoal,
Girondo torna-se parasita literário de outros escritores-diaristas: “me fui después
construyendo una personalidad de diarista gracias a algunos de mis diaristas favoritos”
(VILA-MATAS, 2002, p. 213).
O capítulo-dicionário apresentado pelo personagem possui ao todo 15
entradas, todas indicando as datas e os locais de nascimento, e, quando necessário, os de
falecimento, dos respectivos diaristas. Apoiando-se em diários de escritores e artistas
diversos, como Franz Kafka, Fernando Pessoa, Salvador Dalí e Sergio Pitol, o narrador
passa a discorrer sobre sua vida pessoal e sobre seu estilo literário, com certa ênfase em
seu estado clínico-literário. Entre os nomes rememorados, ganha destaque o de André
Gide, visto que na subseção dedicada a tal escritor explora-se o conceito de “parasitismo
86
literário” de forma mais aprofundada, bem como se revelam detalhes do processo de
construção do romance “El mal de Montano”, e, portanto, da cura do inicial bloqueio
literário do narrador.
A diferencia de tantos mediocres diaristas que reparten prolijamente sus cuadernos como si fueran hojas parroquiales, la voz de Gide es un conjunto siempre de hojas esenciales, nunca confunde literatura con
vida literaria. Las páginas de su diario pueden leerse, además, como una novela – el transformó el género, fue pionero en el uso del diario
ficticio (…) (VILA-MATAS, 2002, p. 112).14
Além de acentuar o caráter metaficcional de El mal de Montano, a menção
ao termo “diário fictício” e a exaltação feita a André Gide por supostamente não
confundir literatura e vida literária colocam em relevo um dos grandes questionamentos
levantados pelo narrador no decorrer do romance: a (im)possibilidade da autobiografia
de um autor. Como falar de si uma vez que o parasitismo literário deixa tão pouco de
um possível “eu”?
No primeiro capítulo de Acto de presencia - La escritura autobiográfica en
Hispanoamérica (1996), intitulado “El lector con el libro en la mano”, Sylvia Molloy
discorre sobre o papel da “escena de lectura” nas autobiografias hispano-americanas,
um momento do relato em que, segundo Leonor Arfuch ao pensar o termo de Molloy,
“o autobiográfico recupera uma herança, uma filiação, ao mesmo tempo em que enuncia
seu pertencimento a uma ‘comunidade imaginada’ e, em certo sentido, escolhida”
(ARFUCH, 2010, p. 224). Partindo da frase “el joven con un libro en la mano”, presente
em Recuerdos de província, de Sarmiento, e usada por ele para identificar-se com
Hamlet, Molloy esclarece que ressaltar o ato de ler é uma prática frequente entre os
autobiográfos da América Hispânica desde os textos autorreferencias do argentino. Seja
por meio de citações verdadeiras ou falsas, empréstimos ou adaptações, “canibalizar
14 Grifo meu.
87
textos ajenos” (MOLLOY, 1996, p. 47), essa insistência na cena de leitura, ainda que
dotada de algumas particularidades no caso hispano-americano, como de certo tom
intelectual-ostentoso (ibid., p. 34), é assumida por Molloy, em termos gerais, como
ponto comum na autobiografia de qualquer escritor (ibid., p. 32).
“Si la biblioteca es metáfora organizadora de la literatura hispanoamericana,
entonces el autobiógrafo es uno de sus numerosos bibliotecarios, que vive en el libro
que escribe y se refiere incansablemente a otros libros” (MOLLOY, 1996, p. 27). A
frase “viver no livro que escreve e referir-se incansavelmente a outros livros”, se
retirada de seu contexto de origem, serve igualmente de síntese a grande parte, senão à
totalidade, dos personagens-escritores de Enrique Vila-Matas. A estrutura e o enredo de
El mal de Montano, em conjunto com o perfil do «escritor do século XXI» nele
retratado, são passíveis de serem interpretados, se vistos à luz de Molloy, como um
simulacro da figura do autobiógrafo-escritor.
Assumindo a condição de “el lector con el libro en la mano”, Rosario
Girondo, assim como também o faz Andrés Pasavento, aproxima seus escritos íntimos
de uma autobiografia literária, mais do que de uma autobiografia pessoal nos moldes
canônicos. Em comentário ao diário do escritor Cesare Pavese, o personagem diz
identificar-se menos com a escrita pessoal do italiano e mais com os diários de Gide e
de Gombrowicz, por exemplo, pelo fato de o primeiro diário estar “trágicamente
anclado en la vida” (VILA-MATAS, 2002, p. 178), enquanto que os segundos “lo
estaban en la literatura”, “que es un mundo autónomo, una realidad propia, no tiene
ningún contacto con la realidad porque es una realidad en sí misma” (ibidem). Falar de
si por meio da literatura transforma-se em uma via alternativa de escritura íntima em um
contexto em que a própria concepção de realidade/verdade é posta à prova. Desse modo,
o questionamento dos limites e dos contornos do diário, de um lado, e do romance, de
88
outro, tem como pano de fundo uma reflexão maior sobre a identidade do escritor. Qual
é, afinal, o “eu” de um escritor?
Para dar forma aos dilemas de Girondo, Vila-Matas abusa em El mal de
Montano de uma técnica familiar e originalmente nomeada por André Gide: a mise en
abyme. Indo além da questão da narrativa especular, marcada pelo diário fictício que
leva a outro diário fictício, pelo romance que leva a outro romance, El mal de Montano
abusa de “leituras em abismo”, isto é, leituras que anunciam outras leituras, conforme
prevê, em certa medida, o modelo de autobiografia já mencionado por Molloy. Destaca-
se, assim, o importante ensaio “Nota parásita”, que interrompe a seção reservada aos
apontamentos de Girondo sobre os diários de Gide. Nele, o narrador comenta o ensaio
“Segunda mano”, que integra El factor Borges (2000), livro, de fato, publicado por Alan
Pauls. Girondo esclarece que o texto de Pauls volta-se ao tema do “vampirismo
libresco” característico da literatura de Borges, partindo da crítica feita por Ramón Doll,
em 1933, a seu estilo literário. Na ocasião, Doll afirmara que o “parasitismo” de Borges
consistia em “repetir mal cosas que otros han dicho bien” (Doll 1933 apud VILA-
MATAS, 2002, p. 119). Ao concordar com a conclusão de Pauls de que, longe de
reprovar a crítica de Doll, Borges convertera a ideia de parasitismo em um programa
artístico próprio, Girondo, assumindo as devidas distâncias, reconhece certo diálogo
com o escritor argentino no que concerne a tal “modus operanti literario” (VILA-
MATAS, 2002, p. 121).
Nada tan confortante como esa idea de Pauls de que una importante dimensión de la obra de Borges se juega en esa relación en la que el
escritor llega siempre más tarde y lo hace para leer o comentar o traducir o introducir una obra o escritor que aparecen como primeros, como originales. Ya decía Gide que tranquiliza mucho saber que
original siempre es el otro (ibid., p. 124).15
15 Grifo meu.
89
Ao concordar com a ideia de um escritor que “chega sempre mais tarde”,
isto é, um escritor alheio ao conceito de origem, Rosario Girondo exalta, de certo modo,
a figura de escritor construída no e pelo texto em detrimento da imagem pública ou da
pessoa do autor. Percebe-se então que, para o personagem, curar-se significa “acceder a
una comprensión de la literatura como patrimonio común” (OLEZA, 2008, p. 4),
romper com a noção romântica de autor, “romper con la concepción del texto literario
como propiedad privada de su autor, como fruto original de su ingenio individual, como
manifestación única y destinada a la eternidad de un estilo inconfundible” (ibidem).
Buscando esboçar um amplo retrato do cenário literário contemporâneo e
das posições do autor na sociedade globalizada, o pesquisador Joan Oleza recorda que
nos dias de hoje o consumo de livros é acompanhado pelo consumo da própria figura do
autor ou pela reivindicação de suas “presencias literarias” (ibid., p. 17), algo similar à
idolatria comumente direcionada a pessoas famosas (atores, cantores, etc.). Trata-se
precisamente do contexto vivido por Rosario Girondo, um cenário, diga-se de
passagem, contrário à morte do Autor que seu diário aparentemente tenta exaltar.
Consciente desse “obstáculo” de cunho histórico, Vila-Matas faz de seu personagem-
escritor uma sátira da condição experimentada pelo escritor do século XXI, afastando-o
do “estrelismo” e/ou da intelectualidade que regem a imagem do escritor concebida pela
mídia. Ao narrar sua rotina diária, sua intimidade, Rosario Girondo afirma: “como
escritor, tal como puede apreciarse, llevo una vida de ama de casa” (VILA-MATAS,
2002, p. 139). Segundo o personagem, todos os dias transcorrem da mesma forma: pela
manhã, leitura de correspondências e e-mails enviados por editoras ou referentes a
convites para eventos; durante o dia, um tempo reservado à leitura e à tentativa de
escrita; e, por fim, já ao fim da tarde, a redação de um artigo para “ganarse la vida”
90
(ibid., p. 140) e a volta de Rosa, sua esposa, para casa, quando tais atividades passam a
dar lugar a momentos em frente à televisão. Viciado em “orfidal”, um tipo de
sedativo/tranquilizante, Girondo admite perceber “la grisura de su existencia de escritor
atado de por vida a su oficio y la monotonia de su tragedia cotidiana” (ibidem).
Esse repensar do papel do autor na criação literária, marcado pela
“deseroização” de sua figura e pela dissolução do “eu” em favor da literatura/obra, tal
como se promove em El mal de Montano, parte do reconhecimento (incômodo) de uma
possível coexistência de dois planos distintos: “el de la realidad-vida (en el paradigma
de lo conocido, experimentado, visible) y el de la irrealidad-ficción (en el paradigma de
lo desconocido, insólito, inventado, invisible)” (DIACONU, 2010, p. 141), sendo o
primeiro representado, a princípio, pelo gênero autobiográfico/diário, e o segundo pela
produção romanesca de Girondo. Considerando, em diálogo com Dana Diaconu, que
“borrar o superar límites es para Vila-Matas no sólo la modalidad adecuada para
producir buena literatura, sino el núcleo de su poética” (ibid., p. 148), entende-se a
obsessão do narrador por questionar essa suposta linha divisória entre «realidade-vida»
e «irrealidade-ficção»: como separar realidade e ficção em um ambiente permeado pela
literatura? Seria possível escrever um diário que não fosse fictício ou uma autobiografia
que não fosse literária? Como falar de literatura sem falar da vida, como falar da vida
sem falar de literatura?
Rosario Girondo encena tais dilemas ao longo de toda a narrativa, tanto ao
voltar-se à ficcionalização de sua própria história quanto ao sucumbir a essa ficção.
Nota-se que até o agravamento de sua doença, presente a partir do quarto capítulo, o
personagem mantém uma espécie de impostura revestida de sinceridade e
autoconsciência/autoafirmação, consequente, talvez, de sua tentativa frustrada de resistir
à obsessão doentia pelo literário. Enquanto na página 108, bem como repetida vezes nas
91
páginas subsequentes, Girondo encomenda-se “al dios de la Veracidad”,
comprometendo-se a fornecer “informaciones verdaderas” ao leitor, além de demonstrar
um significativo discernimento entre o que inventou e o que, de fato, faz parte de sua
vida, na página 197, mais precisamente no desenrolar de seu dicionário de escritores-
diaristas, o narrador admite a possibilidade de acabar “vencido por la verdad imposible”
(ibid., 197), chegando posteriormente à conclusão, nos capítulos finais, de que seu
diário “tiene algo de informe clínico” (213), isto é: não busca “la revelación de una
verdad”, mas informações sobre suas “constantes mutaciones” (239).
Fueron dos los consejos iniciales que Monsieur Tongoy me dio para esta conferencia, dos consejos que él juzgaba primordiales: 1) Que no descuidara el énfasis en la relación entre él y yo (…). 2) (…) que repitiera incluso la estructura de mi manuscrito barcelonés, pasando de la ficción a la realidad, pero sin olvidar que la literatura es invención, y que, como decía Nabokov, «ficción es ficción y calificar de real un relato es un insulto al arte y la verdad, todo gran escritor es un gran embaucador». (...) comparto com el monsieur la Idea de que el mundo ya no puede ser recreado como en las novelas de antes, es decir, desde la perspectiva única del escritor. El monsieur y yo creemos que el mundo se halla desintegrado, y sólo si uno se atreve a mostrarlo en su disolución es posible ofrecer de él alguna imagen verosímil (VIL-MATAS, 2002, pp. 221-222).
El mal de Montano traz para a ficção um discurso ensaístico regido por uma
estética antirrealista familiar aos conhecedores de Enrique Vila-Matas. É já declarada
sua forte oposição à tradição realista espanhola, ou, fazendo uso da descrição dada por
Juan Antonio Masoliver Ródenas a El mal de Montano, seu rechaço à “abstracta
definición de realismo frente a la lúcida definición de vanguardia” (MASOLIVER
RÓDENAS, 2002, p. 266)16. Na visão da pesquisadora Branka Kalenić Ramšak, o
escritor catalão “se siente heredero y en íntima relación con un tipo de escritura que no
16 Serve de exemplo a afirmação feita por Vila-Matas em entrevista concedida a Ignacio Echevarría: “Creo que mi escritura está mucho más cerca de la libertad narrativa de los escritores latinoamericanos y centroeuropeos que de la tradición realista de los escritores españoles” (Vila-Matas apud ECHEVARRÍA, 2000, p. 208).
92
puede calificarse como posmoderna” (RAMSAK, 2011, p. 159), o que o aproxima,
segundo a pesquisadora, da tradição da estética vanguardista do início do século XX.
Trata-se de um sentimento de (não) pertença transferido pelo autor a seu personagem-
escritor, que ao desenhar o mapa do “Mal do Montano da Literatura” situa a Espanha
em seu subúrbio, explicando que o país estabeleceria uma conexão submarina com um
território marcado pela “isla del Realismo”, “una isla en la que sus habitantes aplauden
apasionadamente todo lo que les parece arte verdadero y gritan: «¡Eso es realismo! ¡Así
es como son las cosas verdaderamente!» Los españoles son de esa clase de gente que se
cree que por repetir una y otra vez la misma cosa al final acaba siendo verdad” (65).
El enemigo al que hay que abatir es el realismo decimonónico (…). Vila-Matas tiene su ascendiente más en la crisis moderna de las artes mimético-representativas que en la reapropiación irónica y devaluadora de la tradición anterior que es característica del Posmodernismo. Dicho de otro modo, Vila-Matas resulta en sus premisas más u vanguardista histórico extemporáneo que un neovanguardista (…) (RÓDENAS DE MOYA, 2002, p. 289).
Se o diário do personagem deve ser entendido, afinal, como um “informe
clínico”, o terceiro capítulo de El mal de Montano, intitulado “Teoría de Budapest”,
capítulo em que se registra o que teria sido uma conferência proferida por Girondo em
um “Simpósio Internacional sobre o Diário Pessoal como Forma Narrativa”, ocorrido
em Budapeste, pode ser interpretado como um registro minucioso da piora gradativa de
seu quadro patológico. Mais do que uma mudança de postura ideológica frente ao
conceito de verdade/realidade, os excertos até agora destacados refletem uma vertente
específica de sua enfermidade: a relação perturbadora estabelecida entre o personagem e
sua criação ficcional. O conteúdo de tal conferência elucida de forma minuciosa os
contornos do paradoxo vivido por Girondo, que encontra na escrita literária uma cura e
um mal; “cura” ao livrar-se de seu bloqueio, “mal” ao acabar assombrado por seus
93
próprios personagens e história, conforme ilustram as consequências da composição do
cenário conferido à Ilha de Pico em “El mal de Montano”:
En la isla de Pico, en el interior de su imponente volcán, yo creí ver a unos incansables topos que trabajan noche y día, al servicio de los enemigos de lo literario. Creí verlos, los imaginé, sospeché que estaban ahí, los vi realmente… (…) La imagen, tal vez visionaria o simplemente intuitiva o real, se adentró con profundidad en mí. Estando como estaba, secuestrado mi pensamiento por la obsesión de que la literatura está amenazada y corre riesgos de extinción, aquella visión de los topos me afectó poderosamente. (…) Monsieur Tongoy, con Rosa sin poder oírnos, me dijo que de continuar yo obsesionado con lo que escribía y, sobre todo, obsesionado con la muerte de la literatura y disfrutando poco del viaje y del paisaje, se vería obligado a advertirle a Rosa que yo confundía lo que escribía con la realidad y que me creía don Quijote en las Azores (VILA-MATAS, 2002, p. 224-225).
A imagem dos “topos” da Ilha de Pico reaparece ao longo do romance como
uma menção metafórica a tais “inimigos do literário”. Cabe relembrar que no contexto
do romance escrito por Girondo, isto é, no primeiro capítulo de El mal de Montano,
Tongoy o aconselhara a desviar sua atenção de seus próprios males literários para
voltar-se ao “Mal de Montano da Literatura”, a fim de impedir a sua morte: “me pareció
–me parece- que no había sido nada mala la ideia de que dejara yo de preocuparme de
amortiguar la influencia de lo literario en mi vida y le prestara mayor atención a la
amenaza evidente que se cierne sobre la literatura en el mundo actual” (ibid., p. 62).
Devido a isso, Girondo assumira, na ficção por ele assinada, a missão de proteger a
literatura contra seus inimigos, “encarnando-a”, e tornando-se um “topógrafo del mal de
Montano” (68). Apesar de o narrador reafirmar insistentemente a natureza ficcional
desse combate, chegando até mesmo a chatear-se com Rosa e Tongoy pelo fato de
ambos não compreenderem que tal atitude restringia-se a uma postura adotada pelo
narrador de seu romance, os capítulos finais de El mal de Montano revelam um escritor
94
à beira da loucura, que perde gradativamente o discernimento entre o real e o
imaginado.
Em “El mal de Montano”, Girondo faz referência a “el fin de los libros, el
triunfo de lo no literario y de los escritores falsos” (VILA-MATAS, 2002, p. 62) e
afirma estar assumindo uma “responsable posición moral ante la grave situación de lo
verdaderamente literario en el mundo” (ibid., 67). Mais adiante, no terceiro capítulo da
obra, no desenvolvimento de sua explicação sobre os “topos” da Ilha de Pico, o
personagem retoma a discussão em torno da dicotomia “literatura verdadeira versus
literatura dos inimigos do literário”. Para ele, a primeira teria alcançado a categoria de
“duradera” (224), e a segunda, a “de los topos de Pico”, corresponderia àquela marcada
pela aparência, permeada por milhares, porém passageiras, obras no mercado.
A volta e o agravamento da enfermidade de Girondo retratados no
penúltimo capítulo do romance, “Diario de un hombre engañado”, culminam no
agressivo discurso e no radical julgamento por ele proferidos durante o Festival de
Literatura realizado nas montanhas suíças, sendo este, por sua vez, apresentado já no
capítulo final, “La salvación del espíritu”. É, portanto, nesse momento da narrativa que
sua teorização sobre os inimigos do literário passa a ganhar forma por meio de atitudes
e declarações, e que “la lucha por la salvación de la literatura contra su abartamiento y
mercantilización” (RÓDENAS DE MOYA, 2002, p. 286) passa a ordenar de modo mais
imponente o universo do romance, dando espaço a um “nuevo heroísmo caballeresco”
(ibid., 287). Em outras palavras, Rosario Girondo torna-se vítima do quixotismo até
então restrito a seu personagem.
A comienzos del siglo XXI, como si mis pasos llevaran el ritmo de la historia más reciente de la literatura, me encontré solitario y sin rumbo en una carretera perdida, al atardecer, en marcha inexorable hacia la melancolía. Una lenta, envolvente, cada vez más profunda nostalgia por todo aquello que la literatura había sido en otro tiempo se
95
confundía con la niebla a la hora del crepúsculo. Yo me veía como un hombre engañado. En la vida. Y en la arte. En el arte me notaba rodeado de odiosas mentiras, falsificaciones, mascaradas, fraudes por toda parte. Y además me sentía muy solo. Y cuando miraba lo que tenía frente a mis ojos veía siempre lo mismo: la literatura a comienzos del siglo XXI, agonizando (VILA-MATAS, 2002, p. 245). Me llevo la mano a la sien porque lo que no puede ser es que los topos trabajen también dentro de mi cerebro, inyectándome el mal de Teste (del latín testa, cráneo), un dolor agudo y furioso, espantoso, provocado por la apertura de galerías subterráneas en mi mente: una cuña de noventa grados, de metal ardiente, clavada a un lado de la cabeza. La cuña es la obra de arte de los enemigos de lo literario que dominan mi ciudad: analfabetos altivos, directores generales de editoriales que van perfilando el fondo negro de la Nada (…) Voy a resistir, necesito la literatura para sobrevivir y si es preciso la encarnaré en mí mismo, si es que no la estoy encarnando en estos momentos (ibid., p. 277).
A mudança de postura de Girondo vem acompanhada de uma explicação:
quando recebera o convite para o Festival, o narrador já não era “el rígido enfermo de
literatura de antes” (299). Ao repensar alguns dos princípios basilares da monótona
rotina que vivera durante tanto tempo, o personagem indaga-se acerca da validade desse
tipo de compromisso. Antes, motivava-lhe fazer o “apostolado de la lectura” por meio
de seu comparecimento a feiras do livro e eventos; agora, percebe-se indiferente frente
aos analfabetos e iletrados, devido, em grande parte, a seu “ódio” pelo mercado
editorial:
Que cada iletrado de este país haga lo que quiera, faltaría más. Por otra parte, odio a casi la humanidad entera y me paso el día poniendo bombas mentales a todos esos hombres de negocios que editan libros, los directores de departamento, los líderes del mercado, los equilibristas del marketing y los licenciados en economía (VILA-MATAS, 2002, p. 300).
Nota-se a partir dessas considerações que a ida de Rosario Girondo ao
festival suíço não é de todo harmoniosa. Incomodado com diversos aspectos de seu
universo profissional, o personagem chega até mesmo a pensar se a ida ao encontro não
seria mais produtiva se substituída pela imaginação do mesmo: “¿Merece la pena
96
emprender ese viaje tan largo sólo para volver y contar la inacabable serie de sucesos
raros que me habrán acontecido? ¿Y si me quedo en casa y simplemente los imagino?
¿Acaso no confío en mi imaginación? Es necesario que viaje hechos reales cuando
seguro que los que imagino en la cumbre del Matz son superiores?” (ibid., p. 229).
Inventada ou não, a participação do narrador no referido evento, “un
congreso literario más de los muchos que hay esparcidos por el mundo e la corrupción”
(311), marca o ponto mais crítico e delirante de sua enfermidade, de sua obsessão pelo
literário. Nele, Girondo não tarda a superar a inicial timidez causada pelo elevado
número de escritores estrangeiros, para posicionar-se severamente diante dos mesmos:
Cené con escritores que, de no estar muertos, me habrían parecido funcionarios. (…) Cené con los cretinos, escritores funcionarios de mierda, muertos. Esa raza de escritores, imitadores de lo ya hecho y gente absolutamente falta de ambición literaria, aunque no de ambición económica, son una plaga más perniciosa incluso que la plaga de los directores editoriales que trabaja con entusiasmo contra lo literario (VILA-MATAS, 2002, p. 310).
Domingo Ródenas de Moya destaca que ao longo de El mal de Montano,
Rosario Girondo situa-se entre dois problemas: o da poética do gênero e o do campo
literário atual, sendo este pautado “en la degradación en varios órdenes de la literatura,
en el orden creativo y en el editorial mercantil” (RÓDENAS DE MOYA, 2002, p. 284).
Em sua visão, Girondo é concebido para “representar la resistencia de la literatura (de la
high literature, claro, no de la faramalla editorial)” (287).
De fato, Rosario Girondo encarna a figura de um escritor contestador,
porém, é preciso se ter em conta que ele não o faz de forma linear nem heroica; ao
contrário, assume quase que um papel de “anti-modelo”. O amadurecimento de sua
reflexão acerca da impossibilidade de representar o mundo e dos perigos impostos pelo
mercado editorial à “boa literatura” o conduz à enfermidade literária, à loucura, e não a
uma atitude ou conquista louvável/de relevância para o campo literário. Através do
97
narrador de El mal de Montano, Vila-Matas retrata um escritor insatisfeito com o
cenário contemporâneo, mas que se vê inevitavelmente preso a ele. Logo no segundo
capítulo do romance, Girondo, ao debochar de alguns dos “escritores clientes” de Rosa,
recebe uma advertência de sua esposa que coloca em relevo certa dependência de seus
serviços de agente literária: “«Si sigues así, voy a dejar de representarte a ti»” (VILA-
MATAS, 2002, p. 135). Imerso e dependente do universo (editorial e mercantil) que
critica, resta ao personagem uma luta idealista, restrita ao “limbo de las ideas”
(RÓDENAS DE MOYA, 2002, p. 286).
Assim como Quixote, pode-se dizer que Rosario Girondo alcança seu
objetivo de “encarnar a literatura” ao assumir a identidade do escritor suíço Robert
Walser: “Entre resistentes falsos y resistentes auténticos, como si mis pasos llevaran un
ritmo antiguo y literario, comencé a extraviarme yo, Robert Walser, por aquella zona
oscura de niebla densa e infinita, comencé a marchar solitario y sin rumbo por la
caretera perdida” (VILA-MATAS, 2002, p. 313).
Muitos dos elementos que compõem o desfecho de El mal de Montano
servem de ponte para os leitores que decidam dar prosseguimento a suas leituras
vilamatianas: Robert Walser reaparece em Doctor Pasavento (2005) no papel de “héroe
moral” (VILA-MATAS, 2005, p. 15) do protagonista; os pensamentos e ensaios de
Montaigne são relembrados tanto no final do primeiro romance, quanto no início do
segundo. Descartando a possibilidade de uma mera “coincidência”, a leitura conjunta
dos dois livros permite observar uma repetição pensada e proposital de certos autores e
temas, como se o desejo de desaparecer de Andrés Pasavento tivesse como origem as
reflexões feitas por Rosario Girondo. “¿Como haremos para desaparecer?”. Trata-se da
epígrafe de El mal de Montano, uma frase de Maurice Blanchot que poderia facilmente
estampar as folhas iniciais também de Doctor Pasavento (2005), visto que na primeira
98
página deste romance, um personagem não identificado dirige a seguinte pergunta ao
narrador e protagonista Andrés Pasavento: “¿De donde viene tu pasión por
desaparecer?” (VILA-MATAS, 2005, p. 11).
O tema do desaparecimento do escritor começa a ganhar um significante
espaço na obra de Vila-Matas com a publicação de Bartleby y compañía (2000).
Instigado pela impossibilidade de escrever um segundo romance, o narrador Marcelo,
um secretário corcunda e solitário, sem sorte com as mulheres, dedica-se a catalogar os
“escritores do Não”, isto é, escritores que, assim como o escrivão de Melville, em
algum momento “preferiram não fazê-lo”, abandonando, por diferentes motivos, a
atividade de escrita. Entre os muitos nomes rememorados pelo personagem encontram-
se Rimbaud, Juan Rulfo, Salinger e, mais uma vez, Robert Walser.
Ainda que encarada como uma enfermidade, a “síndrome de Bartleby”, o
narrador de Bartleby y compañía não deixa de exaltar a renuncia à escrita como o
verdadeiro caminho para a escrita autêntica, como uma forma de se evitar que a
literatura seja condenada, nas palavras de Javier Cercas, a “la banalidad del
infantilismo” (CERCAS, 2000, p. 196).
Em El mal de Montano (2002), romance publicado após Bartleby y
compañía, o narrador de Vila-Matas repete o método utilizado por Marcelo: vence seu
bloqueio literário ao decidir escrever sobre o mesmo. Encenando em um primeiro
momento a recusa e a fuga do silêncio exaltado no romance antecessor, Rosario
Girondo, com o avanço de suas reflexões e de sua enfermidade, chega também à
conclusão de que o desaparecimento configura-se para o escritor um dos melhores
caminhos a se seguir. Em “Diario de um hombre engañado”, guiado por certa desilusão
em relação ao literário, conforme indica o título do capítulo, Girondo afirma ter
envelhecido vinte anos em dez dias ao conviver tão intensamente com uma literatura
99
que “andaba mal” (VILA-MATAS, 2002, p. 246). Anunciando que se “adentraría a la
irrealidad” devido à falta de sentido da realidade que estava vivendo (248), o narrador
empreende uma viagem de fuga sem sair de casa, perdendo-se em seus delírios,
afirmando-se ora Robert Walser ora Felipe Tongoy, caminhando pela “carretera
perdida” (265).
Desse emaranhado de pensamentos e alucinações, resulta o capítulo mais
ensaístico de seu diário, e um impasse sobre sua identidade: qual odisseia viver? A de
Ulises e Bloom, marcada pela reafirmação de uma identidade decorrente do retorno a
casa? Ou a do “hombre sin atributos”, personagem de Musil, que escolhe a mudança no
lugar da reafirmação, “avanzando y perdiéndose continuamente” (276), desaparecendo?
Dado que a escolha da primeira opção significaria uma volta à sua “perfecta vida
sedentária”, à monótona rotina aqui já mencionada, Girondo expressa o desejo de seguir
o modelo postulado por Musil, ainda que não se mova de seu sofá para dar cabo desse
objetivo.
Discordando pela primeira vez de André Gide, o narrador aproxima-se de
Franz Kafka para concluir o seu conceito de desaparição. Enquanto para Gide, segundo
consta em seu diário, escrever seria uma forma de não morrer, e, portanto, a garantia de
uma “imortalidad propia” (296), Kafka, na visão de Girondo, “se dirigia a la capacidad
de morir a través de la obra que escríbia” (297):
Prefiero la visión de Kafka a la de Gide, nuestro afán debería centrarse en la necesidad de desaparecer en la obra. Si miramos con atención al mundo de hoy tan en transformación, veremos que lo que hace falta no es permanecer en «la eternidad perezosa de los ídolos» (que decía Blanchot), sino cambiar, desaparecer para cooperar en la transformación universal: actuar sin nombre y no ser un puro
nombre ocioso. Hoy eres Girondo y mañana Walser y tu nombre verdadero se pierde en el universo, quieres acabar con los mezquinos sueños de supervivencia de los escritores, quieres inscribirte con tus lectores en un mismo horizonte anónimo donde estableceríais por fin
100
con la muerte una relación de libertad (VILA-MATAS, 2002, p. 297).17
Como já discutido, Rosario Girondo perde-se em sua loucura, sendo o seu
êxito em mudar de identidade uma consequência de seus delírios, do agravamento de
sua enfermidade, e não de uma conquista advinda de suas atitudes. Nesse cenário, a
epígrafe “¿Como haremos para desaparecer?” torna-se uma pergunta levantada e
problematizada pelo romance, mas não, de fato, respondida. Ao se pensar, porém, a
totalidade da obra de Vila-Matas, o excerto acima destacado ganha novos contornos. De
Bartleby a Montano a questão do desaparecimento do escritor sofre um gradual
amadurecimento, indo da listagem e exaltação dos escritores que experimentaram essa
experiência até uma reflexão sobre a importância de que tal atitude seja propagada; cabe
então a Pasavento, na condição de sucessor imediato dessa linhagem de “enfermos de
literatura”, a inevitável tarefa de levar a cabo essa missão. Girondo anuncia, portanto,
qual deve ser o foco do protagonista de Doctor Pasavento: desvencilhar-se do nome do
Autor, buscar o anonimato, algo que o narrador de El mal de Montano não chegara a
realizar.
Convertido en «una pieza mínima», seguí caminando por las calles de Herisau, y seguí pensando en lo agradable que era ser un escritor olvidado, ser póstumo en vida, no ver ya tu nombre en parte alguna, pues toda literatura –me dije– es una cuestión de nombre y nada más. Tener un nombre, la expresión lo decía todo. ¡Un nombre! Me dije que eso es lo único que al final queda de una persona y que uno se queda muy perplejo al ver que muchos escritores sufren y se atormentan por tan poca cosa (VILA-MATAS, 2005, p. 269).
“De pronto, decidí que debía dejarme de rodeos y desaparecer yo mismo.
Desaparecer, ése era el gran reto” (VILA-MATAS, 2005, p. 41).
Andrés Pasavento amadurece sua decisão de desaparecer ao longo do
primeiro capítulo do romance, “I. La desaparición del sujeto”. Irritado com o convite 17 Grifo meu.
101
que recebera para participar (novamente) de uma conferência sobre as relações entre
realidade e ficção “¡La realidad bailando con la ficción en la frontera! ¿Cuántas
veces había oído decir eso?” (VILA-MATAS, 2005, p. 17) , o personagem dá início a
seu plano de fuga ao desembarcar do trem que o conduzira à Sevilha, cidade do evento.
Ainda que se trate de um capítulo voltado, fundamentalmente, às reflexões de Pasavento
acerca do possível conteúdo a ser abordado na referida palestra, é precisamente a sua
desistência de comparecer ao evento, junto à posterior decisão de partir para Nápoles,
que anuncia o começo de sua viagem rumo a uma (ou a várias) nova (s) identidade (s).
Nesse capítulo introdutório, Pasavento apresenta-se como um escritor
relativamente conhecido em seu país, fato que o aproximara do “horror de la gloria
literaria” (ibid., 36). Com base nisso, é possível perceber em suas reflexões que seu
conceito de desaparecimento associa-se, em grande medida, a uma espécie de
anonimato, haja vista a exaltação de sua “escritura privada”, isto é, do diário/cadernos
de anotações apresentado ao leitor, como um caminho para a mudança de identidade:
Me convertí en un escritor que espero estar ahora librándome en este cuarto de hotel, escribiendo sólo para mí mismo. Encerrado aquí cuento la historia de mi viaje en tren a Sevilla y simultáneamente voy ensayando ideas que me sirven para estudiarme a mí mismo y a mis soledades. Creo que quién está escribiendo todo esto, con su frágil lápiz y rodeado de otros lápices y un buen número de afilalápices, ya no es exactamente el escritor de antes, el que había conseguido un hombre, una cierta fama, y que había comenzado a sentirse muy agobiado por haber atraído la atención de algunos lectores. Ahora soy un más que discreto literato escondido, un narrador de escritura privada que mira desde una ventana al vacío y al mal y sabe que si uno mira largo rato al abismo, el abismo acabará observándole a él también (ibid., p. 36).
As identidades assumidas pelo narrador a partir do segundo capítulo
inspiram-se em seu “héroe moral”, o escritor Robert Walser, alguém que, segundo o
personagem, “se desprendió del agobio de una identidad contundente de escritor,
substituyéndolo por todo por una feliz identidad de anónimo paseante en la nieve”
102
(VILA-MATAS, 2005, p. 47). Referência bastante familiar aos leitores assíduos dos
textos vilamatianos, o escritor suíço faz-se presente também nos escritos de Rosario
Girondo, ora exaltado por sua “ética de la subordinación” (VILA-MATAS, 2002, p.
120), ora por sua simbólica morte ao caminhar solitário pela neve nas redondezas do
manicômio de Herisau, onde permanecera internado por 23 anos. Nota-se, porém, que
em Doctor Pasavento o personagem-escritor de Vila-Matas proclama de modo ainda
mais veemente essa admiração, afirmando, entre outras coisas, que lhe atraía “la
extrema repugnancia que le producía todo tipo de poder y su temprana renuncia a toda
esperanza de éxito, de grandeza” (VILA-MATAS, 2005, p. 15). Em uma espécie de
tentativa de aproximar-se da história de seu herói, Pasavento atribui a duas das três
identidades por ele assumidas ao longo da narrativa a atividade da psiquiatria. A
influência da biografia de Walser na identidade dos médicos inventados por Pasavento
(Doctor Pasavento e Doctor Ingravallo) desencadeia, então, duas visitas do personagem
a clínicas psiquiátricas, sendo uma delas ao manicômio suíço onde Walser passara os
últimos dias de sua vida.
A escolha de Jakob von Guten, livro publicado por Walser em 1909, como
um dos romances preferidos tanto de Girondo quanto de Pasavento dialoga com a
poética que Vila-Matas instaura a partir desses romances. O título refere-se ao nome do
protagonista que dá forma a um diário sobre sua estadia no Instituto Benjamenta, um
instituto voltado à formação de jovens serventes/mordomos. Buscando a exaltação da
atividade subalterna, Jakob divide-se entre o repúdio à nobreza de seu berço e a, por
vezes irônica, exaltação do aprendizado da humildade. O romance traz, portanto, os
registros dos conflitos pessoais do narrador, que se vê em um “beco sem saída” ao
menosprezar os valores da sociedade abastada de sua época ao mesmo tempo em que
não consegue se adequar aos pressupostos de uma postura de servidão acrítica e cega.
103
O desejo de desaparecer de Girondo e de Pasavento traz consigo muito do
paradoxo vivido por Jakob. Em Doctor Pasavento, por exemplo, o leitor depara-se com
uma afirmação explícita dessa proximidade, quando Doctor Ingravallo, identidade que
se torna uma espécie de superego de Andrés Pasavento, dialoga com o narrador
referindo-se a ele como “Jakob” (página 210). Assim como o narrador de Walser, os
protagonistas de Vila-Matas revelam, também através de seus diários, um desejo de
afastar-se da esfera do reconhecimento, mas uma impossibilidade de experimentarem a
desaparição em sua totalidade. Em El mal de Montano, Girondo admite a dificuldade
dessa missão: “Dios, ¿cómo haremos para desaparecer? Estamos a unas distancias
inmensas de lograrlo. Pero yo pienso intentarlo” (VILA-MATAS, 2002, p. 291-292).
Em um de seus delírios, o personagem chega à conclusão de que, talvez, desaparecer
consista em “decir desaparición, quizá consista sólo en esto, en decir desaparición,
nunca desesperación” (ibidem). A postura de resignação de Rosario Girondo reflete-se,
para além de seu discurso, em suas atitudes: apesar de querer afastar-se dos holofotes do
campo literário, a última passagem do romance refere-se à sua participação em um
festival literário, um ambiente propício justamente ao convívio, à promoção e à
divulgação de escritores, ou seja, um péssimo lugar para se alcançar o desaparecimento
do escritor.
Em Doctor Pasavento, os títulos dados aos capítulos seguintes à introdução,
“II. El que se da por desaparecido” e “III. El mito de la desaparición”, sugerem que o
narrador do romance partilha com Girondo certa consciência sobre a impossibilidade do
desaparecimento voluntário do escritor. Se por um lado essa expectativa pode ser
confirmada pelo leitor a primeira página do romance já sugere essa consciência: “Me
acompañante deseaba saber de dónde venía esa idea de desaparecer que tanto anunciaba
yo en escritos y entrevistas, pero que no acababa nunca de llevar a la práctica” (VILA-
104
MATAS, 2005, p. 11) , por outro se nota que Pasavento trilha um caminho um pouco
distinto ao do protagonista de El mal de Montano, tanto ao fugir (literalmente) de uma
conferência literária quanto ao desenvolver um conceito de desaparecimento mais
atrelado à reclusão e à solidão do escritor e, consequentemente, à busca do
anonimato, à condição de “escritor secreto” , e menos restrito ao plano das ideias.
Ao assumir a identidade de “Doctor Pasavento”, o narrador passa a encarar
o isolamento proporcionado pelos quartos dos hotéis nos quais se hospeda, espaços
estes definidos como quartos “de los escritos o de los espíritus” (VILA-MATAS, 2005,
p. 113), como um aliado em seu intuito de voltar-se a uma escrita privada/pessoal. Em
sua visão, ele continua a ser um escritor, porém distante de uma concepção de escrita
atrelada ao trabalho, ao compromisso profissional. Adequado, portanto, aos ambientes
que encontra no desenrolar de sua “viaje de ocultación” (ibid., p. 75), e ciente de que
ninguém o procurava ou se dera conta de seu desaparecimento o que, em certa
medida, contraria suas expectativas: “no tengo el afecto (afecto profundo, que es el
único que para mi cuenta) de nadie” (74) , Andrés Pasavento decide outorgar a
legitimidade de sua nova identidade indo ao encontro do personagem Morante,
professor com o qual sua esposa o havia traído.
O primeiro encontro com Morante configura-se um evento importante para
o narrador, pois além de funcionar como uma possível validação do seu novo “eu”, o
personagem visitado encontrava-se internado em um sanatório próximo de Nápoles, ou
seja: mais do que comprovar sua capacidade de convencer uma pessoa de que ele não
era mais Andrés Pasavento e sim Doctor Pasavento, trata-se de assumir sua condição de
psiquiatra em um ambiente reservado a essa profissão. Da visita, merece atenção a
reação de Pasavento ao ser chamado de “Petronio” por Morante, que, em alusão ao
105
escritor romano homônimo, adverte-lhe de que a consciência do “eu” resumir-se-ia a
uma atividade neuroquímica. Incomodado, o narrador rebate:
Me quedé unos segundos bastante desarbolado. No había hasta allí para oír que me llamaba Petronio sino para consolidarme como doctor Pasavento. Por otra parte, andando como andaba yo algo obsesionado con la historia de la subjetividad en el mundo occidental y obsesionado también por consolidar mi personalidad de doctor, la sola posibilidad de que fuera cierto lo que Morante me decía –que un día no muy lejano pudiera ver mi nuevo yo convertido en un simple escombro neuroquímico-, no podía resultarme más frustrante. Sentí
que protestar era mi obligación y le dije a Morante que recordara
que para contestar la pregunta qué soy yo, Montaigne había
emprendido el estudio o, más exactamente, el ensayo de su
individualidad, intentando, al mismo tiempo, encontrar una regla
de vida, una ética; en una palabra, lo que el propio Montaigne llamana mi ciencia. Ésa, la dije a Morante, era la ciencia que seguía interesándome, y no aquella de la que me hablaba y que lo convertía todo en un lamentable potaje neuroquímico (VILA-MATAS, 2005, p. 109).18
O trecho acima ressalta um importante aspecto das reflexões de Andrés
Pasavento, igualmente presente nos registros de Rosario Girondo: a consciência do tom
ensaístico de seus textos e a respectiva predileção pelo gênero. No final de El mal de
Montano, Girondo usa o trocadilho “mal de Montaigne” para descrever outro aspecto de
sua obsessão literária: “me gusta ensayar, ensayo, hoy sólo ensayo” (VILA-MATAS,
2002, p. 290). Não sem motivo, a primeira passagem de Doctor Pasavento refere-se a
uma visita de Girondo ao Castelo de Montaigne, local onde o francês teria escrito seus
livros. Ao explorar o prédio, o narrador conclui que, assim como Descartes, Montaigne
contribuíra para a construção da subjetividade moderna através do isolamento. Em suas
palavras, pode-se considerar que “el sujeto moderno no surgió en contacto con el
mundo, sino en aisladas habitaciones en las que los pensadores estaban solos con sus
certezas e incertidumbres, solos consigo mismos” (VILA-MATAS, 2005, p. 12).
18 Grifo meu.
106
Também se recupera em Doctor Pasavento o nome de Laurence Sterne para
explicar, em partes, o papel ocupado pelo ensaio na narrativa. Reconhecido como um
bom leitor de Cervantes e Montaigne, elogia-se sua obra Tristam Shandy, publicada no
século XVIII, pela reinvenção do gênero “novela-ensaio”19. Assumindo-se atingido pelo
“cometa shandy”, Andrés Pasavento, ainda no primeiro capítulo, registra: “Me
fascinaba Sterne, con esa novela que apenas parecia una novela sino un ensayo sobre la
vida, un ensayo tramado con um tenue hilo de narración, lleno de monólogos donde los
recuerdos reales ocupan muchas vezes el lugar de los sucesos fingidos, imaginados o
inventados” (VILA-MATAS, 2005, p. 45).
Walser, Montaigne, Sterne. Partindo novamente da figura do “lector con el
libro en la mano”, Vila-Matas insere Andrés Pasavento em um caminho no qual o
desaparecer associa-se gradativamente ao apagamento do nome/da imagem do Autor, a
um repensar de sua subjetividade e, por fim, à solidão. No fundo, como consequência
das “leituras em abismo” características de sua poética, os autores e textos destacados
por este e outros personagens-escritores de Vila-Matas parecem sempre ecoar, em maior
ou menor grau, as ideias postuladas pelo autor da epígrafe registrada ainda em El mal de
Montano: Maurice Blanchot.
Em O espaço literário (1955), Blanchot reflete, entre outras questões,
acerca do significado da solidão para a arte. Segundo ele, a “solidão da obra” associa-se
ao afastamento daquele que a escreve, isto é, quem escreve é posto de lado, e o que resta
é uma obra “nem acabada, nem inacabada”, apenas uma obra que “é” (BLANCHOT,
2011, pp. 11-12). Cabe, portanto, ao escritor, na concepção de Blanchot, “quebrar o
vínculo que une a palavra ao eu” (ibid., p. 17) “a obra, em última instância, ignora-o,
19 Cabe relembrar que a obra de Sterne faz-se fortemente presente no romance Historia abreviada de la
literatura portátil (1985), livro que apresenta a “conspiração” ou “sociedade secreta shandy”.
107
encerra-se sobre a sua ausência, na afirmação impessoal, anônima, que ela é – e nada
mais” (13). Entretanto, feito isso, também a obra lhe impõe uma solidão, causando no
escritor um sentimento de “vazio” que se confunde, por vezes, com a sensação de que a
obra pode estar inacabada. Assim, a obra, mesmo não pertencendo ao escritor,
transforma-se, para quem a escreve, em um “trabalho ilusório” (13), uma vez que
escrever revela-se uma atividade “interminável, incessante” (17). Blanchot afirma então
que a mão que escreve atua como “a mão doente”, a mão “que nunca solta o lápis” (16),
enquanto que à outra pertence o domínio do escritor, sua capacidade de interromper a
escrita, de afastar o lápis.
Se a ideia de uma escrita incessante metaforizada pela imagem da “mão
doente” já fornece grandes indícios do por que de o nome de Maurice Blanchot ser
rememorado tanto pelo protagonista de El mal de Montano quanto pelo de Doctor
Pasavento, os apontamentos do ensaísta francês sobre o Diário do escritor esclarecem
ainda mais alguns aspectos da poética de Vila-Matas20. Em sua visão, o Diário, “esse
livro na aparência inteiramente solitário”, surge como uma alternativa ao renunciar de si
imposto pela obra, um retorno ao Eu até então apagado, sendo escrito com frequência
“por medo e angústia da solidão que atinge o escritor por intermédio da obra”
(BLANCHOT, 2011, p. 20). Também em O livro por vir (1959), tecem-se algumas
considerações sobre o gênero. No capítulo “O Diário íntimo e a narrativa” Blanchot
descreve o diário como uma “empresa de salvação”, salvação da escrita, salvação da
vida pela escrita, ou ainda salvação do “pequeno” ou do “grande” eu do escritor
(BLANCHOT, 2005, p. 274). Partindo da premissa de que “é tentador, para o escritor,
20 Apesar de Andrés Pasavento não apresentar um diário nos moldes canônico do gênero, fugindo até mesmo da cronologia comum a esse tipo de texto, nota-se que Doctor Pasavento compõe-se de anotações pessoais do narrador, inseridas em um determinado espaço de tempo – o período correspondente à sua busca por desaparecer. Ao longo do romance o personagem associa seus registros a um “caderno de notas” (VILA-MATAS, 2005, pp. 31, 175), além de negar categoricamente estar escrevendo um romance (ibid., 57).
108
manter um diário da obra que está escrevendo” (ibid., p. 276), questiona-se nesse ensaio
a viabilidade dessa escrita, sob a afirmação de que o diário do escritor acaba por tornar-
se um diário imaginário, e “imergindo-se, como aquele que escreve, na irrealidade da
ficção. E essa ficção não tem, necessariamente, relação com a obra que se prepara (...)”
(276-277).
Andrés Pasavento admite logo no segundo capítulo do romance a
“autonomia da obra” postulada por Blanchot, ainda que, nesse trecho, não faça
referência explícita ao ensaísta francês. Ao refletir sobre a oposição “fracasso versus
reconhecimento do escritor”, o narrador afirma que “una obra lograda vive su vida
propia” (VILA-MATAS, 2005, p. 124), mas contrapõe essa constatação à exagerada
atenção direcionada a seu autor, que de imediato passa a receber pedidos de autógrafos,
convites para comparecimentos em premiações, etc. Daí observa-se a origem de sua
obsessão (doentia e delirante) por assumir outra identidade através de outro nome
próprio: a escrita impessoal, “anônima” tal como descrita por Blanchot, exigiria, em sua
percepção, o literal alcance do anonimato por parte de quem escreve. Trata-se,
conforme exposto anteriormente, de uma crise identitária vivida também por Rosario
Girondo. Ecoando traços da escrita de Borges, os dois personagens-escritores de Vila-
Matas parecem dar forma a um palimpsesto, cujo texto submerso revelaria escritos
intitulados, respectivamente, “Girondo y yo” e “Pasavento y yo”. O trecho a seguir,
retirado de Doctor Pasavento, ilustra a reivindicação de um afastamento/de uma
diferenciação entre o “eu” que escreve e o “eu” usualmente associado à imagem pública
do escritor:
“«Vamos, doctor Pinchon, quisiera que me confirmara que a usted le molesta toda la parafernalia que rodea el mundo del escritor», me ha dicho ella. Podía no contestarle, pero he preferido hacerlo. «Comencé a escribir para aislarme», le he explicado, «primero para aislarme de la familia en los largos veranos en Port de la Selva. (...) Me hice escritor
109
para aislarme de la familia, para tener un trabajo solitario (…). Pero no contaba con las conferencias, por ejemplo. Yo no sabía que publicar un libro traía como consecuencia das conferencias, entrevistas, ser fotografiado, decir lo que piensas del éxito mundano, presentar los libros de los demás, firmar autográfos, exhibirse en público, declarare entusiasta de la tradición literaria de su país (a veces tan sólo para demostrar que uno era un patriota y un escritor cabal), ser aspirante a premios literarios a los que uno no aspira…» (VILA-MATAS, 2005, p. 305).
Ainda no que tange à presença de Blanchot em El mal de Montano e em
Doctor Pasavento, nota-se, sem grandes esforços, que o autor espanhol atribui a ambos
os personagens a “mão doente” postulada pelo francês. A escrita sem fim e sem freios
constitui-se para Montano e para Pasavento a única salvação da enfermidade causada
pela própria escrita. A exaltação das duplas híbridas diário-ensaio e romance-ensaio
expressa o meio-termo encontrado pelos personagens, cada um com suas
particularidades, para sobreviver a suas doenças, sem com isso abdicar de uma (mínima)
ética de escrita: concorda-se com Blanchot que a escrita da obra significa “passar do Eu
ao Ele” (2011: 25), logo, a escolha pelo diário/ensaio enquanto uma via alternativa à
solidão, ou ao vazio dessa tomada de consciência, configura-se, como postularam
Montaigne e Sterne, uma forma mais livre e, por que não dizer, poética de se pensar a
subjetividade, distante de uma postura simplesmente narcisista frente ao discorrer sobre
si e/ou sobre a obra. A escrita/busca incessante de Montano e Pasavento afirma, por fim,
que “o que atrai o escritor, o que impulsiona o artista não é diretamente a obra, é sua
busca, o movimento que o conduz a ela, a aproximação que torna a obra possível: a arte,
a literatura e o que essas duas palavras dissimulam” (BLANCHOT, 2005, p. 291).
Retomando o enredo de Doctor Pasavento, observa-se no segundo encontro
do narrador com Morante que a relação entre os personagens torna-se conflituosa. Indo
além da inveja e da raiva que o narrador afirma sentir por Morante, motivadas pela
similaridade entre sua história de vida e a biografia de Walser, Pasavento foge de seu
110
equilíbrio ao descobrir que, de fato, o interno lembrava-se de sua real identidade e
história. Nas palavras do protagonista, Morante, ou o “profesor maluco”, recordava-se
de tudo: de “mi penosas frases supuestamente ingeniosas en las entrevistas, mis misérias
cotidianas, mi alma mercantil, mi poca gracia en todo” (VILA-MATAS, 2005, p. 140).
Transtornado, Andrés Pasavento decide romper relações com Morante, o “voceador”
(irônico) de seu passado, e reaviva o seguinte questionamento: “¿Había yo realmente
desaparecido?” (ibid., p. 149).
A maior consequência da perturbação instaurada por seu contato com
Morante é o surgimento de sua terceira identidade: “Doctor Ingravallo”, nome inspirado
em um personagem do italiano Carlo Emilio Gadda, criado pela narrador para marcar a
fusão de suas duas identidades: a “real”, de Andrés Pasavento, e a do Dr. Pasavento.
Sua aparição representa no romance o início do agravamento de sua enfermidade, de seu
transtorno psicológico, visto que Girondo oscila entre o esforço de ser reconhecido
como Doctor Pasavento e certa crise pessoal desencadeada pelo incômodo de ver-se
rumo a uma identidade unitária e coesa. Em síntese, verifica-se em um primeiro
momento que, visando defender-se da inquietação gerada por Morante, Pasavento
decide desfazer-se totalmente de suas memórias e assumir “única y exclusivamente la
memoria del doctor Pasavento” (165), porém, observa-se em seguida que o personagem
não demora a perceber-se “horrorizado de tener una identidad tan compacta y única”, a
qual uma vez mais o recordava de que “la identidad es una carga pesadísima” (172)
cabe mencionar que para compor suas novas biografias, Girondo faz uso de “recuerdos
inventados”, estabelecendo um novo passado, em especial uma nova infância, para cada
um dos nomes que assume. Por isso, bem destaca o pesquisador Andrés Romero-Jódar
ao afirmar que a “viaje interior” de Pasavento, que passa por diferentes afirmações do
“eu”, não o leva ao simples “reconocimiento de la pluralidad de identidade”, já que isto
111
é, em sua visão, óbvio na narrativa desde o começo, mas o conduz ao “abismo interior
del sujeto”, ao esgotamento de si mesmo (ROMERO-JÓDAR, 2010, p. 257).
Desempenhando um papel próximo a de um superego, Doctor Ingravallo
passa aos poucos a ser encarado por Andrés Pasavento como uma “extraña y
monstruosa energía llamada Ingravallo” (VILA-MATAS, 2005, p. 204), que lhe sugere,
por exemplo, passar, como Walser, 23 anos em um centro psiquiátrico (ibid., p. 198).
Dessa terceira identidade, Vila-Matas constrói (mais) uma significante mise en abyme.
Embora Pasavento não chegue a trancar-se definitivamente em um manicônimo, o leitor
acompanha no terceiro capítulo de Doctor Pasavento o início de sua visita ao hospital
em que seu “herói moral” permanecera internado, espaço tido pelo narrador como sua
“Patagonia personal” (VILA-MATAS, 2005, p. 229), isto é, como seu mito pessoal da
desaparição/do fim do mundo. Na ocasião, em uma tentativa de convencer o diretor da
clínica de Herisau quanto à importância de permanecer alguns dias no local, Pasavento
recorre à figura de Doctor Ingravallo para justificar a sua presença no local.
Apresentando-se como Doctor Pasavento, o personagem alega estar escrevendo um
romance sobre um escritor e psiquiatra, chamado Doctor Ingravallo, que se dedica ao
estudo da vida e da obra de Robert Walser. A internação solicitada funcionaria,
portanto, como um laboratório para a escrita dessa ficção.
Além de Doctor Pasavento e Doctor Ingravallo, o narrador passa-se também
por “Doctor Pynchon” (ou “Pinchon”, em alusão à pronúncia latina), identidade
inspirada no nome do escritor Thomas Pynchon, outra figura recorrentemente exaltada
pelos personagens-escritores de Vila-Matas, por ter alcançado, assim como Walser, o
desaparecimento. Trata-se, segundo o narrador, de sua aparição “más noble” (VILA-
MATAS, 2005, p. 290), visto que chamar-se Pynchon equivale “a ser una persona de la
que no se sabe nada” (ibid., 371).
112
Firmada tal miscelânea de identidades, narra-se no último capítulo de
Doctor Pasavento um estado de delírio semelhante ao experimentado por Rosario
Girondo no final de El mal de Montano. Pouco a pouco, Andrés Pasavento perde-se em
meio a seus diversos “eus”, sucumbe à sua enfermidade (ou insanidade) literária,
encenando uma espécie de surto esquizofrênico. O cenário até então composto por
cidades de fatos existentes, como Sevilha, Herisau e Nápoles além de Paris com sua
famosa Rua Vaneau, um lugar tido pelo narrador como um “microcosmo”, sendo
frequentemente visitado e revisitado (física e psicologicamente) por Pasavento , dá
lugar à misteriosa Lokunowo, cidade marcada por uma clara alusão a diferentes
aspectos e espaços da capital portuguesa, Lisboa. Fruto das alucinações de Andrés
Pasavento ou não, é em Lokunowo que, em decorrência de suas idas a uma tertúlia de
psiquiatras e em suas visitas ao Doctor Humbol (escritor mais famoso da cidade),
Andrés Pasavento vê sua identidade ser posta à prova, ao ser pressionado por todos a
assumir um único e verdadeiro “eu”, a revelar seu “verdadero nombre” (VILA-
MATAS, 2005, p. 372): Pynchon? Pinchon? Pasavento? Em sua resposta final, dada nas
últimas páginas de Doctor Pasavento, nenhum “Pasavento”, nem o de Andrés, nem o do
psiquiatra-escritor, faz-se presente; o narrador encerra seus cadernos afirmando-se, “sin
más problema” (VILA-MATAS, 2005, p. 386), “Doctor Pynchon”, ainda que sua
“verdadera vida”, admite, seja vivida por “Ingravallo”.
Os desfechos de El mal de Montano e de Doctor Pasavento têm em comum
não apenas o protagonismo da loucura, a vitória da enfermidade literária sobre esses
escritores doentes, mas também a angustiante constatação de que, diante desse quadro
clínico-literário, nada mais resta além da escrita. Trata-se, guardadas as particularidades
de cada enredo, de escritores presos ao perigoso (e patológico) paradoxo da escrita que
fala sobre o parar de escrever, sobre o silêncio, a invisibilidade e a desaparição:
113
Seguiriá hablando de todo eso a la espera e toparse con fronteras jamás presentidas y hallar en ellas la tan anhelada fórmula para desaparecer el todo algún día. Quizá esa fórmula consista en decir desaparición, en nombrar la palabra, desaparición, quizá consista sólo en esto, en decir desaparición, nunca desesperación (VILA-MATAS, 2002, p. 291). A veces pienso que, de no haber tenido el suficiente coraje para llevar a cabo mi deseo de desaparecer como escritor y romper con todo, siempre me había quedado la consoladora posibilidad de llevar a cabo ese deseo escribiéndolo, siempre habría podido utilizar el poder que brinda la escritura de ficción para, aunque fuera sólo sobre el papel, convertirme en la persona que en la vida real no me atrevía a ser. Pero, por suerte, he tenido ese coraje y no ha sido necesario recurrir a la ficción (VILA-MATAS, 2005, p. 343).
A falta de coragem mencionada no excerto acima por Pasavento é também
experimentada por Girondo. Nas últimas páginas de El mal de Montano, o personagem
chega, na companhia de Musil, próximo ao abismo, ao vazio, mas não opta pelo salto,
apenas permanece parado, observando o horizonte. Pasavento, por sua vez, escreve sete
microrrelatos sobre tentativas de suicídio, os quais intitula “Siete tentativas suicidas”,
sem nunca cogitar a morte como uma saída para o seu almejado desaparecimento. Ao
contrário, apesar de não abandonarem totalmente a ficção, ambos recorrem ao diário, à
escrita pessoal. De novo, ecoa em Vila-Matas a voz de Maurice Blanchot: “acontece
que os escritores que mantêm um diário são os mais literários de todos os escritores,
mas talvez, precisamente, porque eles evitam o extremo da literatura” (BLANCHOT,
2011, p. 21).
3.2.2. El mal de Montano e Doctor Pasavento: identidades em crise ou autoficção?
Pensar a atual associação da poética de Vila-Matas à autoficção exige um
olhar prévio ao conhecimento que o escritor catalão expressa ter sobre essa vertente de
sua fortuna crítica, bem como, por vezes, sobre o próprio debate teórico desenvolvido
em torno de tal temática. Um olhar ao conteúdo das declarações públicas do espanhol
114
sugere que suas frequentes opiniões acerca do recurso autoficcional possam ter
exercido, e/ou ainda exerçam, alguma influência no recorrente interesse dos
pesquisadores pela provável relação estabelecida entre esta estratégia e seus romances:
- Siempre me he preguntado qué pensará Vila-Matas sobre esta forma
de escritura (la autoficción). ¿La practicará de forma consciente?
¿Verá en ella una forma de futuro para la novela?
VM: Aprecio del libro de Alberca - libro irregular, repetitivo después de las líneas que dedica a mis libros - que haya sabido tener en cuenta que ya en 1992 escribía yo autoficción muy conscientemente, aunque debo confesar que en aquel entonces desconocía por completo el término autoficción. En 1992 es cuando publiqué Recuerdos
inventados, libro cuyo mismo título lo dice todo. Me adelanté a muchos, que yo sepa (Vila-Matas apud ARROYO & FERNÁNDEZ, 2008, p. 201).21
VM: Considero – como decía Nabokov – que la mejor parte de la biografía de un escritor no es la crónica de sus aventuras, sino la historia de su estilo. Y mi estilo ha ido evolucionando lentamente hacia lo que algunos llaman la autoficción, que es un neologismo creado por el profesor y novelista francés Serge Doubrovsky en 1977. Hasta ahí todo lo que sé sobre la autoficción. Me sonrojo de pronto. Me doy cuenta de que debo pedir perdón, pues sé algunas cosas más sobre el tema. Ya ven ustedes cómo soy. Sin apenas darme cuenta, me había puesto ya a hacer autoficción. Sí, sé algunas cosas más. Sé, por ejemplo, que la autoficción es la autobiografía bajo sospecha. Y sé también que, muchos años antes de que oyera hablar de autoficción, escribí un libro que se llamo Recuerdos inventados, donde me apropiaba de los recuerdos de otros para construirme mis recuerdos personales. Todavía hoy sigo sin saber si eso era o no autoficción. El hecho es que con el tempo aquellos recuerdos se me han vuelto totalmente verdaderos. Lo diré más claro: son mis recuerdos (Vila-Matas apud HEREDIA, 2007, p. 16-17). 22
A obra insistentemente mencionada por Vila-Matas, Recuerdos inventados,
refere-se a um livro de contos, a primeira antologia pessoal do autor a obra reúne,
além de contos inéditos, textos de Nunca voy al cine (1982), Suicidios ejemplares
(1991) e Hijos sin hijos (1993). Entretanto, apesar de o título funcionar como uma boa
metáfora para se definir, “à la Vila-Matas”, a autoficção, são poucas as narrativas
21 Grifo meu. 22 Grifo meu.
115
incluídas nessa coletânea que poderiam induzir o leitor a questionar ou repensar o
caráter ficcional do pacto de leitura estabelecido. No que concerne à produção do
espanhol, são París no se acaba nunca (2003) e Dietario voluble (2008) as publicações
recorrentemente analisadas sob os preceitos da autoficção (ver Del Poza García [2009] e
Vaz da Silva [2013]). Porém, ao contrário do que sugere o conceito de autoficção desde
a menção de Doubrovsky, ou seja, um texto que se assume ficcional para então a todo o
momento subverter este estatuto, tanto París... quanto Dietario... apresentam-se como
relatos e posteriormente têm seu caráter de veracidade posto em prova, devido,
preponderantemente, ao estilo efabulador de Vila-Matas.
París no se acaba nunca é apresentado como um conjunto de relatos de
episódios que marcaram o período em que Vila-Matas viveu em Paris durante sua
juventude, e Dietario voluble como um livro correspondente ao conteúdo registrado no
caderno de anotações pessoais do autor de 2005 a 2008. O personagem e narrador é
Vila-Matas, e as porosas fronteiras entre realidade e ficção são destacadas já nas
sinopses que integram as contracapas dos livros:
París no se acaba nunca es una revisión irónica de los días de aprendizaje literario del narrador en el París de los años setenta. Fundiendo magistralmente autobiografía, ficción y ensayo, nos va contando la aventura en la que se adentró cuando, en una buhardilla de París, redactó su primer libro (VILA-MATAS, 2003 - excerto retirado da contracapa do livro). Dietario voluble abarca los tres últimos años (2005-2008) del cuaderno de notas personal de Enrique Vila-Matas. Al tratarse de un diario literario que se origina en la lectura, es una obra escrita desde el centro mismo de la escritura. (...) No se aleja, además, Dietario voluble de los procedimientos literarios más habituales en Vila-Matas, donde las diferencias estilísticas entre libros de ficción y colecciones de ensayos son cada vez menos relevantes y más fieles a una feliz consigna de literatura híbrida y fragmentaria en la que los límites siempre se confunden y la realidad baila en la frontera con lo ficticio, y el ritmo borra esa frontera (VILA-MATAS, 2008 - excerto retirado da contracapa do livro).
116
Leituras que explorem a proximidade entre essas histórias e a autoficção
possuem, portanto, fundamentos, porém, o predominante grau de referencialidade que
funda esses enredos se comparado a outras narrativas ambíguas coloca em relevo os
desafios de tal abordagem analítica. Ciente de que na obra vilamatiana certa “vacilação
interpretativa” por parte do leitor revela-se um lugar comum, independentemente de
haver ou não resquícios autoficcionais haja vista o hibridismo de gêneros e outros
jogos com a linguagem não se configurarem apenas marcas do estilo literário do autor,
mas a origem e base do mesmo , a pesquisadora Alba del Pozo García, em “La
autoficción en París no se acaba nunca de Enrique Vila-Matas” (2009), sugere uma
interpretação menos redutora sobre a autoficção que permeia alguns livros do escritor
espanhol, propondo uma “variante irónica” da autoficção: segundo ela, para além de um
“pacto ambíguo”, nota-se em Vila-Matas um “pacto irónico”, visto que “ante un
narrador tan irónico, un eventual pacto de lectura en clave biográfica se desautomatiza
completamente” (DEL POZO GARCÍA, 2009, p. 93).
Trabalhos como os de Del Pozo García chamam a atenção para uma
particularidade da autoficção relacionada a Vila-Matas, se contrastada a comumente
associada a Bolaño, por exemplo: falar em autoficção em Vila-Matas nem sempre
significa falar em autoficção nos termos de Doubrovsky, ou, até mesmo, na autoficção
hoje discutida pela academia. Observa-se que o recorrente uso da palavra “autoficção”
tanto por parte de Vila-Matas quanto do mercado editorial, o qual insiste em mencioná-
lo em resenhas e sinopses de textos do autor espanhol, convergiram para uma espécie de
apoderamento pessoal do termo, que passou a funcionar quase como uma “grife”,
tornando-se uma marca comercial que obteve boa aceitação entre seus leitores. Na
dúvida de como se definir esse hibridismo vilamatiano que transforma textos de cunho
117
autobiográfico em ficções e ficções em autobiografia, o neologismo de Doubrovsky
afirmou-se uma saída plenamente satisfatória.
Dana Diaconu reivindica a autoficção em seu ensaio sobre Vila-Matas sob a
alegação de que, “en su peculiar escritura”, o escritor elimina as fronteiras entre “los
(sub) géneros” (DIACONU, 2010, p. 147-148); Siridia Fuertes Trigal também recorre
ao termo para referir-se a mescla de gêneros frequente na narrativa de Vila-Matas, tido,
em sua visão, como um escritor de autoficções por compartilhar em seus romances dois
mundos distintos com seus leitores: “el de la realidad y el de la ficción, el de los hechos
factuales y el de la imaginación desbordante” (FUERTES TRIGAL, 2001, p. 98). A
partir desses e de outros exemplos, é correto afirmar que muitos dos trabalhos que
exaltam o caráter autoficcional de determinados romances de Vila-Matas não buscam
estabelecer, necessariamente, uma intensa relação entre a autobiografia do autor e o
perfil de seus personagens-escritores. Trata-se, no fim, de uma tentativa de nomear uma
escrita por si só inominável, e não de definir o papel exercido pela figura do escritor nas
narrativas do espanhol.
Observando, enfim, o possível lugar ocupado especificamente por El mal de
Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005) no universo autoficcional, percebe-se de
antemão que o fato de Vila-Matas fazer da busca, do repensar e/ou da fragmentação
identitária do escritor, bem como dos pontos de contato entre autobiografia e ficção, o
eixo narrativo desses enredos traz algumas particularidades a tal análise. No primeiro
romance, a problematização da possível relação entre realidade e ficção chega a tal
ponto que até mesmo o termo “autoficção” faz-se presente na reflexão:
(…) un escritor tal vez condenado, tarde o temprano – obligado por las circunstancias del tiempo que me ha tocado vivir – a practicar, más que el género autobiográfico, el autoficticio, aunque para que me llegue la hora de esa condena cabe esperar que me falte mucho, de momento estoy enzarzado en un entrañable homenaje a la
118
Veracidad, metido en un esfuerzo desesperado por contar verdades sobre mi fragmentada vida, antes de que tal vez me llegue la hora de pasarme al terreno de la autoficción, donde sin duda, si no me queda otra salida, simularé que me conozco más de lo que en realidad me conozco (VILA-MATAS, 2002, p. 124).23
Questionamento ou encenação? De que modo a autoficção comparece nos
texto de Vila-Matas?
Antes de se explorar algumas respostas, é válido ressaltar que ao privilegiar
falar do tempo corrente, e não de seu passado literário como o fez Bolaño, os dados
autobiográficos utilizados por Vila-Matas em seus romances sujeitam-se com mais
facilidade e frequência a uma, ainda que não intencional, “prova de verificação”. Em
outras palavras, o “espaço biográfico” no qual seus textos inscrevem-se conta com o
agravante de que muitos dos autores e situações mencionados pelo espanhol fazem
referência a pessoas, em sua maioria, ainda vivas e a eventos muito recentes e de grande
repercussão nos noticiários. O trecho retirado de um artigo de Domingo Ródenas de
Moya indica que, em concordância com esse cenário, a propagação da biografia de
Vila-Matas não se restringe, portanto, às afirmações por ele proferidas, mas abrange
também as informações fornecidas ou reunidas pelos pesquisadores e por seus colegas,
algo menos frequente na fortuna crítica de Bolaño:
Sería sencillo establecer conexión entre los viajes del escritor o sus compromisos profesionales y los desplazamientos y actividades de Girondo. (...) En una entrevista firmada por Bernardo Esquinca en Mural (Guadalajara) afirmaba: “Muchas de las cosas que me sucedían en la vida cotidiana mientras trabajaba en El mal de Montano las introduje con carácter de ficción dentro de mi libro”. (...) En noviembre de 2001, Vila-Matas participio en el simposio “El diario como forma narrativa” que se celebro en la Fundación Goytisolo del Puerto de Santa María, y allí expresó su interés por el ‘diario de ficción’ y anunció estar trabajando en un diario muy heterodoxo. El diario aludido era sin duda El mal de Montano (...) (RÓDENAS DE MOYA, 2002, pp. 282-283).
23 Grifo meu.
119
No aqui já referido El pacto ambíguo. De la novela autobiográfica a la
autoficción (2007), o pesquisador Manuel Alberca parte dessa reconhecida e anunciada
presença de traços autobiográficos para desenvolver sua argumentação e, assim,
justificar a inclusão de El mal de Montano e Doctor Pasavento na lista de autoficções
espanholas e hispano-americanas (do século XX e XXI) que encerra seu livro.
Em síntese, Alberca reconhece em seu estudo duas formas pelas quais o
“pacto ambíguo” característico, segundo ele, de textos autoficcionais pode ser
instaurado e, portanto, identificado: por meio do que ele denomina “ambiguidade
paratextual” ou através de uma “ambiguidade textual”.
Enquanto a “ambiguidade paratextual” manteria relação direta com a
identificação explícita do nome do autor na obra, a “ambiguidade textual” vincular-se-ia
ao que Alberca entende ser uma possível correspondência nominal implícita. A
primeira, tida como efêmera pelo espanhol, estabelecer-ia-se por meio do uso de
informações que rodeiam o livro, como a capa, o prólogo, etc., mas fundamentalmente
pelo nome de assinatura do autor, enquanto que a segunda coincidiria com a própria
construção narrativa, sendo, para o espanhol, “más profunda y continua” (ALBERCA,
2007, p. 175). Alberca destaca que no primeiro caso corre-se o risco de haver apenas um
comprometimento inicial da leitura, não garantindo assim uma “vacilación
interpretativa” (ibid., p. 33) constante no leitor. Em sua concepção, também se aceitam
como elementos constituintes de uma identidade nominal implícita o emprego das
iniciais do autor no nome de seus personagens, o emprego de anagramas e homofonias,
além da presença de um “anonimato sugestivo”, que consiste na fácil identificação do
autor a um personagem e/ou narrador apresentado sem nome argumento este aqui já
discutido na seção dedicada a Bolaño.
120
Ao acrescentar El mal de Montano e Doctor Pasavento em seu inventário de
autoficções, o pesquisador justifica-se preponderantemente com base no que reconhece
como uma ambiguidade construída a nível textual, haja vista os escritores-protagonistas
de El mal de Montano e Doctor Pasavento possuírem nomes sem nenhuma similaridade
ao do autor espanhol, impedindo que a ambiguidade ocorra a nível
paratextual/explicitamente.
Em El mal de Montano o nome do narrador não chega a ser informado ao
leitor, já que “Rosario Girondo” é explicitamente assumido pelo protagonista como um
pseudônimo, ou um “matrónimo” (VILA-MATAS, 2002, p. 125), por se tratar do
empréstimo do nome de sua mãe. Somado a isso, a identidade atribuída a esse
personagem no primeiro capítulo, momento em que o narrador se apresenta como
crítico literário e pai de um escritor enfermo chamado Montano, é posteriormente
desmentida Girondo explica que a história exposta no primeiro capítulo correspondia
a um livro de sua autoria, uma ficção, “la nouvelle en la que se entrelazan la ficción con
mi vida real” (ibid., p. 106) , momento em que o pseudônimo passa a ser assumido.
Na interpretação de Alberca (2007, p. 138), o fato de o “eu” do narrador e protagonista
ser apresentado como um espaço vazio nesse romance garante, junto aos dados
autobiográficos de Vila-Matas e discussões explícitas sobre o tema do duplo, a
identificação entre narrador, personagem e autor, exemplificando o que o pesquisador
entende por “anonimato sugestivo”. Com base nisso, afirma-se que El mal de Montano
desenvolve com clareza muitos aspectos comuns a textos autoficcionais, como o fato de
o “eu” típico desse tipo de narrativa oscilar “entre la carencia de una identidad propia y
la necesidad de auto-invención” (ALBERCA, 2007, p. 213). Vale citar que, colaborando
com a argumentação de Alberca, o texto que integra a contracapa de El mal de Montano
apresenta o romance da seguinte forma: “entre el diario íntimo y la novela, el viaje
121
sentimental, la autoficción y el ensayo, El mal de Montano nos propone el triunfo de la
literatura” (grifo meu).
Conforme discutido na seção anterior, o personagem-escritor de Doctor
Pasavento, desejoso por desaparecer, extrapola o desdobramento de identidade já
presente em El mal de Montano para adotar um comportamento à beira da
esquizofrenia, inventando para si distintas identidades. Em meio a tantas personalidades
associadas a Andrés Pasavento, torna-se difícil, portanto, identificar um pacto ambíguo
com base na reincidência do nome autor. Diferentemente de sua leitura de El mal de
Montano, Manuel Alberca não associa a Doctor Pasavento a ideia de um “anonimato
sugestivo”, pois neste romance fornece-se com prontidão aquele que seria o
“verdadeiro” nome do narrador. Porém, considerando a referida pluralidade de
identidades que marca Pasavento, Alberca explica que, assim como na maioria dos
relatos autoficcionais, há em Doctor Pasavento o retrato de um sujeito contraditório,
“un tipo de héroe que hace ostentación de su fragmentación y vulnerabilidad”
(ALBERCA, 2007, p. 279).
Em sua percepção, “el objetivo de hacerse invisible tras la propia identidad
es una de las metas de Vila-Matas en sus relatos” (ibid., p. 206); dito de outra forma,
para Alberca o uso de diferentes “máscaras” num mesmo personagem, ou esse “haz de
yos en movimiento” (ibid., p. 207), afirma-se como uma eficaz estratégia para o autor
esconder-se por detrás da própria identidade “en la autoficción la identidad del yo
narrativo y su autor resultan tan transparentes que podría pasar desapercebido, pues
nada mejor que esconderse tras la propria identidad que, al hacerse explícita, resulta
impenetrable” (205).
En fin, el héroe de la autoficción es un acabado ejemplo del neonarcisismo posmoderno que hace de la fragmentación y la falta de
122
unidad del sujeto un motivo contradictorio de estímulo al autoconocimiento y de necesidad de construirse un mito personal, un suplemento de ficción o viático que le ayude a transitar por el desierto del ser. Son personajes que cuanto más interés muestran en conocerse, cuanto más saben de si mismos, más frágiles y vulnerables se sienten (ALBERCA, 2007, p. 281).
Contra-argumentando a análise de Manuel Alberca, inclusive com menções
explícitas a seu livro, José María Pozuelo Yvancos observa mais uma peculiar
“figuración del yo” nos livros Vila-Matas do que um pacto autoficcional. Insistindo na
rememoração do contexto de origem do termo “autoficção”, Pozuelo Yvancos adverte
que o princípio de identidade nominal fora decisivo na resposta de Doubrovsky ao
“pacto autobiográfico” lejeuneano e que fadar a presença de uma voz pessoal à
autoficção é desconsiderar as múltiplas possibilidades dessa “figuración del yo”:
(...) este origen que sigue vinculando la autoficción a la identidad real biográfica coincidente entre personaje y autor (que es la constante inevitable sostenida en la definición de la categoría), ha permanecido como fondo implícito que ha hecho entender a la crítica que la representación del yo personal es asimilable a poseer un fondo autobiográfico o, dicho de otro modo, que el problema de la figuración del yo se resuelve principalmente en la relación entre el texto y la vida (que es solamente una de las posibilidades que la novela ha experimentado desde que existe). (...) tal presunción y énfasis en la correlación una relación texto-vida, ha reducido notablemente el panorama de posibilidades de representación de un
yo figurado de carácter personal, que no tiene por qué coincidir con la autoficción, ni siquiera cuando se establece como personal, puesto que la figuración de un yo personal puede adoptar formas de representación distintas a la referencialidad biográfica o existencial, aunque adopte retóricamente algunos de los protocolos de ésta (por semejanzas o asimilaciones que pueden hacerse de la presencia del autor) (POZUELO YVANCOS, 2010, p. 22).
Segundo Pozuelo Yvancos, é preciso ter-se em conta que o “eu” presente
em Vila-Matas e também nas narrativas do espanhol Javier Marías, outro escritor
analisado em Figuraciones del yo en la narrativa (2010) é mistificado de forma
consciente pelo autor (ibid., p. 29). Ainda que um tom pessoal seja reconhecido, há
nesses textos um “yo figurado” que ironiza a própria distancia entre autor e narrador.
123
Para o pesquisador espanhol, a única identidade reconhecível nos textos vilamatianos é
a identidade literária (ibid., p. 140) que o autor construiu para si mesmo através de seus
personagens, e não sua identidade factual. Nesse ponto, resume-se o eixo da
argumentação de Pozuelo Yvancos contra leituras que relacionem Vila-Matas a
autoficção: em sua visão, a porosidade das fronteiras genéricas característica dos
enredos do catalão inclina-se mais para um contato com os gêneros ensaísticos do que
para com a autobiografia; em suma, reconhece-se a presença de uma voz familiar vinda
de um “eu ensaístico” em detrimento do reconhecimento da identidade do autor
propriamente dita “de manera que figuraciones presentes en novelas o cuentos han
sido adelantadas en artículos, conferencias y ensayos, existiendo un trasvase continuo
entre una parcela de su producción literaria y la otra” (POZUELO YVANCOS, 2010, p.
144).
Expandido os apontamentos de Pozuelo Yvancos acerca de Vila-Matas para
o universo literário de Bolaño, pode-se afirmar que a voz reflexiva definida pelo
pesquisador perpassa grande parte da obra de ambos. Trata-se de uma voz “que
comúnmente conocemos asociada al ensayo”, mas que é concedida pelos autores aos
seus personagens (ibid., p. 30); “que le pertenece y no le pertenece al autor, o le
pertenece de una forma diferente a la referencial. Le pertenece como voz figurada”
(ibidem). As recorrentes referências a Robert Musil e Robert Walser, em Vila-Matas, e
a Enrique Lihn e Nicanor Parra, de um lado, e a Pablo Neruda e Octavio Paz, de outro,
em Bolaño apenas para citar alguns dos principais nomes , instigam o leitor a
perceber em suas narrativas um discurso literário marcado por certa linearidade, que
transforma suas obras em uma espécie de autobiografia literária dessa voz figurada
(“que pertence e não pertence ao autor”).
124
Em El Mal de Montano (2002) a origem da paralisia literária experimentada
pelo narrador no começo do romance é por ele interpretada como um “castigo”
decorrente do tema de seu último livro. Com uma clara referência a outro romance
publicado por Vila-Matas, Bartleby y compañía (2001), o personagem suspeita que
“estuviera recibiendo un castigo por haber escrito sobre los que dejan de escribir”
(VILA-MATAS, 2001, p. 109). Assim como em Estrella Distante (1996a) de Bolaño, a
citação de Vila-Matas dá margem à suspeita de uma dualidade narrativa, contudo, é
preciso ressaltar que se trata de exemplos fundamentalmente ligados a outro recurso
comum de suas poéticas: a intertextualidade. Ou seja, verifica-se mais a formação de
uma rede intertextual que rememora a voz narrativa/a figura do narrador de outros
textos (e contextos) do que uma explícita referência à figura do autor.
A reflexão desenvolvida nesta subseção busca, sobretudo, justificar o
motivo de as eventuais proximidades entre as trajetórias e os perfis de Rosario Girondo
e Andrés Pasavento e a biografia de Vila-Matas não serem aqui entendidas como
ocorrências suficientes para se assumir uma identificação entre autor e personagem.
Porém, cabe ressaltar, a título de encerramento, que se reconhecem nesta Dissertação os
perigos de se tratar com muito rigor um artífico inserido nos debates contemporâneos.
Admite-se, portanto, que o termo “autoficção” é ainda portador de um significado
múltiplo e cambiante, motivo pelo qual se fez preciso eleger e esclarecer com cuidado a
perspectiva que guia este estudo.
Na análise que a pesquisadora Ana Cecilia Olmos faz dos “limites da
autobiografia” na obra Mario Bellatin, por exemplo, ao atentar-se a diferentes
estratégias narrativas de aproximação do narrador à figura do autor, desde a presença de
enunciações subjetivas que prescindem da mediação da personagem (OLMOS, 2011, p.
14), até a ocorrência de personagens que não levam o nome do autor, mas que
125
escreveram um livro por ele publicado (ibid., p. 15), vê-se, sem qualquer alusão ao
termo autoficção, um destaque ao caráter ambíguo que permeia parte dos romances
desse escritor:
Esse jogo de posições enunciativas transgride as condições de possibilidade do gênero autobiográfico na medida em que desestabiliza as relações de identificação entre autor, narrador e personagem, fragmenta a sequência temporal do relato de vida e prescinde da garantia de veracidade do relato (OLMOS, 2001, p. 15).
Independentemente de as estratégias de Bellatin dialogarem com recentes ou
futuras concepções de autoficção, trabalhos como o de Olmos atestam que as atuais
discussões em torno desses textos “transgressores” tão abundantes nos dias de hoje não
estão fadadas a abordar o neologismo de Doubrovsky, seja pela falta de consenso
teórico ainda existente, seja pela escolha de afastar-se de definições mais restritas. A
leitura integral do artigo da pesquisadora permite notar que a falta de um
reconhecimento explícito entre seus apontamentos e certas correntes teóricas
direcionadas ao artifício autoficcional em nada deixa a dever para o entendimento da
relação entre autobiografia e ficção nos romances escolhidos, embora seu texto possa,
logicamente, despertar o interesse de outros pesquisadores pela relação de Bellatin com
a autoficção. Ao enfatizar o lugar ocupado pelo hibridismo genérico na
contemporaneidade, as formulações de Olmos juntamente a outras pesquisas de mesmo
enfoque indicam que, talvez, o grande desafio a ser vencido pela autoficção seja
precisamente o de classificar o que por si só constitui-se transgressor. Nesse sentido, é
possível que a autoficção nos escritos híbridos de Vila-Matas configure-se, somente,
mais um elemento do “paradoxo tipicamente vilamatiano” definido por Kelvin Falcão
Klein. Inserindo-se entre “a compreensão da vida que não leva à vida, a literatura que
busca a não-literatura e a busca que procura não achar” (KLEIN, 2009, p. 74), a
autoficção nos textos do catalão apresentar-se-ia justamente como a afirmação de um
126
“eu” que busca sua própria negação, isto é: a identificação entre autor e personagem em
Vila-Matas parece significar, com muita frequência, uma tentativa de se garantir o
afastamento mesmo dessas duas figuras, um caminho para se alcançar a inalcançável
morte do Autor.
127
4. Conclusões
El primer acto de la teoría del texto se cerraba con una indicación enfática que se convertiría en credo de la nueva crítica y la nueva ficción: Sale el autor. Unas décadas más tarde, sin embargo, el autor resurge de las cenizas, abandona el destierro al que la teoría lo había condenado, se traviste, se disfraza y regresa al texto transformado. Como el sujeto o la historia, la novela o la pintura, no se resigna a morir y corporiza en una criatura híbrida, mitad ficticia, mitad real, que confunde deliberadamente los pronombres y los géneros, y juega con los equívocos. Contrariando una de las tantas interdicciones modernas que el ímpetu vital del arte reexaminó, vuelve con ropas prestadas del personaje y el narrador. El nuevo acto de la teoría del texto se abre con una indicación desafiante: Entra el autor
(SPERANZA, 2008, p. 7).
Se na introdução deste trabalho julgou-se pertinente situar, ainda que
brevemente, os autores e romances escolhidos dentro de um provável cenário literário
contemporâneo reconhecido como “o retorno do Autor”, a concretização da leitura
inicialmente proposta permite perceber que mais do que reconhecer essa presença é
preciso questioná-la: mas, afinal, que Autor é este do qual fala Graciela Speranza e
tantos outros pesquisadores na atualidade? Quem é esta figura que protagoniza o “nuevo
acto de la teoria del texto”?
Apesar de não se configurar uma resposta em si mesma, o «personagem-
escritor» revela-se um dos elementos estéticos mais determinantes, senão o mais
determinante, na aparição desse fenômeno. Nele encontra-se muito da origem desse
renovado interesse pela entidade autoral. Por isso, e com base na análise apresentada
nesta Dissertação, é válido perguntar: Falar em “personagem-escritor” é falar sobre o
Autor?
Em relação aos romances de Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas aqui
estudados, não é possível fornecer uma única resposta. Ao se entender que a palavra
“autor” quando grafada em maiúscula (Autor) refere-se à entidade autoral, isto é, a uma
figura autoral genérica, não pré-determinada, a resposta para o caso de Vila-Matas seria
128
positiva. Diferentemente de Estrella Distante (1996) e Los Detectives Salvajes (1998),
que pouca atenção despendem à atividade de escrita dos personagens, nota-se em El mal
de Montano (2002) e Doctor Pasavento (2005) personagens-escritores que
problematizam e encenam o papel e o lugar da autoria, de modo que falar em Rosario
Girondo e Andrés Pasavento é também falar sobre o Autor. Agora, ao se pensar a
palavra “autor”, nesse caso com inicial minúscula, como uma menção aos autores
factuais dos romances, hoje muito expostos pela mídia e pelo mercado editorial, a
resposta para a pergunta anterior seriam duplamente negativa. A contestação do termo
«autoficção» promovida ao longo deste estudo teve por objetivo repensar a relação entre
os personagens-escritores das quatro narrativas e os dados autobiográficos a eles
emprestados pelos respectivos autores, de modo a atribuir um peso justo a essa
ocorrência. Nesse sentido, falar em “personagem-escritor” não significa, segundo o
escopo desta pesquisa, falar em Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas.
Observou-se através das análises dos romances que os evidentes vestígios
autobiográficos que compõem os perfis e as posturas dos personagens-escritores tanto
do chileno quanto do espanhol contribuem mais para a construção de um «tom
ensaístico», do que para a configuração de uma escrita inclinada ao plano confessional
ou íntimo. Percebe-se, em outras palavras, o uso de experiências fundamentalmente «de
caráter literário», que funcionam como peças-chave na composição de cenários e
contextos, também literários, específicos e coletivos em detrimento de uma eventual
busca de exaltação da individualidade ou da figura do autor. Trata-se de romances que
dialogam com o conceito de “obra estriada pelo exterior” proposto pela pesquisadora
Florencia Garramuño (2012): trata-se de textos nem opostos à experiência (autônomos)
nem reivindicadores do real (dependentes do social), mas que desconhecem e
desautorizam a diferenciação entre esses espaços, que não reconhecem suas fronteiras
129
(GARRAMUÑO, 2012, p. 240)24. À luz das formulações da pesquisadora, a experiência
observa nessas ficções de Bolaño e Vila-Matas constituir-se-ia uma “experiência
opaca”, ou seja, uma experiência narrada através dos “restos do real”, que não se
refere à experiência do factualmente vivido, mas à porosidade dessa narração.
Trata-se de um tipo de escrita que, apesar de tornar evidentes os restos do real que formam o material de suas explorações, desprende-se violentamente da pretensão de pintar uma “realidade” completa regida por um princípio de totalidade estruturante (GARRAMUÑO, 2012, p. 23).
Josefina Ludmer, em diálogo com Garramuño, enxerga na literatura latino-
americana contemporânea definida por ela como “lo que viene después de los años
60 y 70, después del boom latinoamericano que nos dejó los clásicos del siglo XX”
(LUDMER, 2010, p. 296) uma “desdiferenciación entre realidad y ficción”
consequente da “fusão” entre as mesmas promovidas por esses textos, um fenômeno ao
qual a autora dá o nome de “realidadficción”. Em sua interpretação, a “experiência
opaca” relaciona-se precisamente à ideia de uma realidade construída e ambivalente, em
certo sentido “cotidiana” “no se sabe si lo que se cuenta ocurrió o no, si los
personajes son reales o no” (ibidem) , oposta ao caráter absoluto de realidade que até
aos anos 70 era conferido à realidade histórica (ibidem). Trata-se, enfim, de ficções que
anulam binarismos que até então acompanhavam a literatura para além da oposição
entre realidade e ficção, Ludmer cita outros tipos de distinções que hoje perdem sentido,
como a diferenciação entre uma literatura social e uma literatura pura, por exemplo. Em
“Especie, especificidad y pertenencia” (2013), nota-se que Florencia Garramuño
24 Florencia Garramuño centra sua análise nos textos dos brasileiros Clarice Lispector, Ana Cristina César e Silviano Santiago, e nos dos argentinos Luis Gusmán e Juan José Saer. No que diz respeito a esta Dissertação, reconhece-se que os livros de Bolaño e de Vila-Matas dialogam preponderantemente com os pontos observados pela pesquisadora nos três últimos autores. Ainda que Garramuño não estabeleça uma distinção muito rigorosa entre teoria e análise descritiva, nota-se que as poéticas das escritoras brasileiras são as que mais se distanciam das do chileno e do espanhol.
130
explora a questão da “desdiferenciación” destacada por Ludmer ao discorrer sobre a
recente crise que envolve os conceitos de especificidade e propriedade do literário, “no
sólo porque géneros y tipos de discursos se transtocan y mezclan, sino sobre todo
porque esos textos funcionan en diferentes espacios y disciplinas” (GARRAMUÑO,
2013, s/p).
No que concerne ao entendimento do lugar da experiência nos romances de
Bolaño e de Vila-Matas aqui discutidos, os apontamentos de Graciela Ravetti acerca do
conceito de “narrativa performática” revelam-se mais uma importante perspectiva
sobre relação da obra com seu exterior na atualidade, sobre o lugar que a experiência
tem ocupado nesse tipo de ficção. Referindo-se ao sentido tanto cênico quanto político-
social do termo “performance”, uma das perguntas que o estudo de Ravetti busca
responder é: “Que acontece quando um objeto artístico - uma narração -, criado a partir
de pressupostos absolutamente ficcionais e até como completo simulacro, deixa entrever
as marcas de uma pulsão pessoal, um gesto autobiográfico?” (RAVETTI, 2002, p. 49)25.
Para a pesquisadora, entre os impulsos desse trânsito do privado (biografia) para o
público (representação ficcional) está a necessidade que certos escritores têm de
“instaurar novos valores que outorguem sentido ao presente”, por meio de uma
redefinição de contextos passados (RAVETTI, 2002, pp. 56-57). Entre os exemplos
mencionados por Ravetti, todos da produção literária argentina, estão Juguete rabioso
(1926), de Roberto Arlt, e El entenado (1983), de Juan José Saer.
É como se o esforço e a coragem que implica a exposição pessoal explícita, voluntária, tivessem menos o propósito de se autoconhecer e mais o de encontrar vias heurísticas para desvendar momentos historicamente relevantes ou pelo menos etapas históricas que
25 Parte do artigo de Ravetti volta-se à relação entre “paranoico e performático”, por entender a narração de comportamentos “transgressores quanto à norma vigente” uma contestação ao poder perfomativo do discurso oficial, daí o sentido político de “performance”. Trata-se de uma questão que foge dos fins desta Dissertação, não sendo, portanto, aqui destacada.
131
permitiram explosões energéticas de muita voltagem pela confluência do pessoal com o geral. A escrita performática, então, tem algo do trabalho do arquivista, do colecionador, do antologista e do tradutor, já que os textos e imagens valem como testemunhas de um tempo e de uma maneira de apreender esse tempo, e, então, dar testemunho dos sinais percebidos que acabam funcionando como mapas cognitivos, sentimentais, estéticos e, sobretudo, expressivos, tanto no que diz respeito a uma possível tarefa artística como a modos de vida (RAVETTI, 2002, p. 57).
Nem simulacro autobiográfico, nem romance histórico, nem autoficção: a
experiência parece comparecer nas narrativas de Bolaño e Vila-Matas, assim como nas
de um número considerável de autores da atualidade, por meio de vias alternativas, a
partir da “narração das próprias fraturas que constituem essa experiência histórica e
pessoal” (GARRAMUÑO, 2012, p. 39). Observa-se através de seus personagens-
escritores o que Florencia Garramuño descreve como sendo uma “desindividualização
de narrações e discursos”, consequente menos de uma valorização da “multiplicidade
de identidades cambiantes” e mais de um destaque dos diferentes vetores que perpassam
os sujeitos: “a história, experiências coletivas, ethos compartilhados, vozes que o
descentram” (ibidem).
Mas se, portanto, os personagens aqui destacados não são Bolaño e Vila-
Matas, quem são, afinal, esses personagens-escritores?
A título de comparação, a primeira distinção que se pode fazer entre a figura
do escritor retratada por Bolaño e a apresentada por Vila-Matas diz respeito aos
princípios que regem o ofício de seus personagens: enquanto no primeiro nota-se uma
preocupação mais voltada à relação entre «Estética e Política», no segundo dá-se uma
acentuada atenção aos pontos de contato entre «Estética e Ética».
Em Estrella Distante, Bolaño retrata o reposicionamento (político e social)
imposto pela Ditadura chilena aos poetas e aos aspirantes a poeta imersos naquele
contexto: de um lado, uma comunidade de personagens-escritores que simboliza o
132
fracasso mesmo da democracia, que ao manterem-se contrários ao regime tornam-se
vítimas do exílio, da violência, da marginalidade e/ou das guerrilhas; de outro, o
paradoxal triunfo ou “revolução” da literatura chilena, alcançado pelo poeta-aviador e
assassino Carlos Wieder. Também em Los Detectives Salvajes verifica-se, ainda com
mais intensidade, o retratado de escritores definidos mais por suas posturas e escolhas
do que pelo conteúdo de seus escritos. Apesar de distantes do horror vivido pelos jovens
do primeiro romance, os “real visceralistas” não se livram de um caminho rumo à
derrota e à desilusão, este representado inicialmente pela tragicômica morte de Cesárea
Tinajero e, posteriormente, pelo anúncio da mercantilização da literatura que alcança
um México recém-agregado à globalização.
Não seria equivocado concluir, em concordância com Ahumada, que as
categorias abordadas por Bolaño (exílio, marginalidade, desterritorialidade) “se
vinculan íntimamente con la construcción imaginaria y simbólica de la cuestión de ‘lo
latinoamericano’” (AHUMADA, 2012, p. 13). Porém, longe de uma abordagem
gratuita, trata-se de um estereótipo indissociável da relação entre arte e história colocada
em relevo por Bolaño “No existe en su obra la posibilidad de reducir el arte-literatura
a la realidad histórica, ni visceversa” (ibid.: 244). Relação esta, como bem assinala
Ahumada, mediada pelas figuras de Carlos Wieder e Cesárea Tinajero o pesquisador
fala em “función de mediación” (249) para referir-se a esses personagens , que na
condição de escritores ausentes desestabilizam, impulsionam e, em última instância,
materializam as ilusões e utopias dos jovens poetas bolanianos. “Poetas” no plural, pois
essa “rehistorización y renarración” (ibid., p. 250) diz respeito à história de grupos de
poetas desiludidos que viveram o ofício de escritor na América Latina da década de 70,
que precisamente por serem muitos, não caberiam no retrato de apenas um personagem-
escritor.
133
Demonstrando uma postura mais introspectiva e solitária, distante da
tentativa de pertencimento a uma comunidade (mesmo que imaginada, impossível ou
inexistente) encenada pelos personagens de Bolaño, os personagens-escritores de Vila-
Matas direcionam suas angústias para um repensar conflituoso e doentio de seus ofícios.
Ao gozar de um reconhecimento e de uma maturidade igualmente contrária ao perfil
atribuído aos poetas bolanianos, Rosario Girondo e Andrés Pasavento veem na literatura
uma doença e um remédio, tamanha a intensidade com que a vivenciaram. Enquanto os
jovens poetas de Estrella Distantes e Los Detectives Salvajes deslocam-se em busca de
uma identidade, os narradores de Vila-Matas empreendem viagens visando fugir ou
lutar contra uma identidade já instituída: a imagem pública e consagrada do escritor do
século XXI. Alheios aos fantasmas da ditadura ou da marginalidade, ambos apontam,
em maior ou menor grau, o mercado editorial (em todas as suas instâncias) como o
maior inimigo da literatura e do escritor. Girondo opta por lutar contra eles, ainda que o
faça apenas em seus delírios; Pasavento, dando forma às reflexões iniciadas por
Girondo, tenta pôr em prática seu plano de desaparecer.
Com base nesses breves apontamentos sobre a poética vilamatiana, as
duplas antagônicas não tardam em aparecer: Bolaño narra a poética do fracasso, Vila-
Matas as (trágicas) consequências do sucesso; Bolaño deixa em segundo plano o lápis e
o papel, em Vila-Matas, escrever configura-se uma atividade vital. Perdido entre o “eu”
público e o “eu” privado, entre o “eu” narrador e o “eu” personagem, Rosario Girondo
contraria a tranquilizadora e jovial premissa (de remanescente vanguardista) de unir
vida e arte que guia os jovens de Estrella Distante e Los Detectives Salvajes para voltar-
se incontrolavelmente à busca de uma resposta à já conhecida questão: Onde termina a
vida e começa a obra, onde começa a obra e termina a vida? Andrés Pasavento, por sua
134
vez, vê-se diante de um conflito que não teria sentido em uma poética firmada sob a
premissa da marginalidade do escritor: Como fazer para desaparecer?
O dilema vivido pelos narradores de Vila-Matas instaura-se, portanto, em
torno da relação da Estética com a Ética: como posicionar-se frente aos compromissos e
fatores impostos pelo mercado e pela mídia? Na era do culto à figura do escritor, o que
significa ser um “escritor de verdade”, o que é fazer “boa literatura”? Mais do que uma
reflexão, essa readequação a seus campos literários transforma-se em uma enfermidade,
em uma obsessão doentia: Girondo doente pela falta e depois pelo excesso de literatura,
Pasavento afetado psicologicamente pelas identidades que criara no intuito de
transformar-se em um “escritor oculto”.
Literatura e enfermidade. Trata-se de uma temática já abordada também por
Bolaño, em seu conhecido ensaio “Literatura + Enfermedad = Enfermedad” (2003).
Ironicamente, o escritor chileno descreve logo no início de seu texto uma cena que pode
soar familiar a muitos dos leitores de Vila-Matas: “Pongamos el siguiente caso. El
conferenciante va a hablar sobre la enfermedad (...). Sin embargo el conferenciante no
aparece y finalmente uno de los organizadores del evento anuncia que no podrá venir
debido a que, a última hora, se ha puesto gravemente enfermo” (BOLAÑO, 2003, p.
49). A brincadeira feita por Bolaño parece sintetizar, de fato, grande parte da poética
paradoxal que rege os romances do escritor espanhol. Ecoando o retrato feito nesse
ensaio, suas histórias apresentam, entre tantos exemplos possíveis, o escritor que
registra em seu diário uma palestra sobre o diário, o escritor que busca o silêncio por
meio da verbalização do silêncio, o enfermo de literatura que vê na literatura sua única
salvação... Chega, então, o momento em que o leitor questiona-se: que significado
possui esse “beco sem saída” vilamatiano?
135
No discurso proferido em Caracas em razão do recebimento do “Premio
Rómulo Gallegos” (1999) Bolaño afirmara que a literatura “es un oficio peligroso”
(BOLAÑO, 2004b, p. 36), que a escrita de qualidade consiste em “saber saltar al vacío”.
Não seria difícil cogitar que Rosario Girondo e Doctor Pasavento retratem, afinal, a
figura de escritor que chegou ao “borde del precipicio” citado por Bolaño e que
experimenta, então, alguns dos perigos desse fazer literário. A um passo do salto, ambos
parecem entender que o pulo final dessa metáfora nada mais é do que ter a coragem de
lançar-se no precipício que conduz à literatura mesma.
Para encerrar essas conclusões, vale destacar, por fim, o pessimismo e a
melancolia como um elo comum entre o retrato do escritor feito por Bolaño e por Vila-
Matas. Trata-se de personagens-escritores fadados ao fracasso ou à loucura, que
transitam sempre por caminhos, ora mais ora menos tortuosos. Ao leitor fica o exemplo
de Vila-Matas diante dessa catástrofe iminente: “«¿Regresará Dios cuando su creación
esté destruida?», se pregunta Elías Canetti. No lo sé, pero soy tan optimista que creo
que habrá escritores para contarlo” (VILA-MATAS, 2001, s/p).
136
137
BIBLIOGRAFIA
A. DOS AUTORES
BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2004a.
_______________. “Discurso de Caracas”, in.: BOLAÑO, Roberto. Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama, 2004b, pp. 31-39 [1999].
_______________. “Literatura + Enfermedad = Enfermedad”, in.: BOLAÑO, Roberto. El gaucho insufrible. Barcelona: Anagrama, pp. 49-59, 2003.
_______________. Putas asesinas. Barcelona: Anagrama, 2001.
_______________. Amuleto. Barcelona: Anagrama, 1999.
_______________. Los detectives salvajes. Barcelona: Anagrama, 1998.
_______________. Llamadas telefónicas. Barcelona: Anagrama, 1997.
_______________. Estrella Distante. Barcelona: Anagrama, 1996a.
_______________. La literatura nazi en América. Barcelona: Seix Barral, 1996b.
VILA-MATAS, Enrique. Dietario voluble. Barcelona: Anagrama, 2008.
___________________. Doctor Pasavento. Barcelona: Anagrama, 2005.
___________________. Bartleby e companhia, trad. Maria Carolina de Araújo e Josely Vianna Baptista, São Paulo: Cosac Naify, 2004.
___________________. París no se acaba nunca. Barcelona: Anagrama, 2003.
___________________. El mal de Montano. Barcelona: Anagrama, 2002.
___________________. “Discurso de Caracas”, 2001, s/p. Disponível em: <http://www.ddooss.org/articulos/textos/Enrique_Vila_Matas.htm>. Acesso em: 27/01/2015.
___________________. Hijos sin hijos, Barcelona: Anagrama, 1993.
___________________. Suicidios ejemplares, Barcelona: Anagrama, 1991.
___________________. Historia Abreviada de la literatura portátil. Barcelona: Anagrama, 1985.
___________________.Nunca voy al cine, Barcelona: Laertes, 1982.
B. SOBRE OS AUTORES
Livros e artigos
AGUILAR, Paula. “Pobre memoria la mía. Literatura y melancolía en el contexto de la postdictadura chilena”, in.: PAZ SOLDÁN, Edmundo; PATRIAU, Gustavo Faverón (Orgs.). Bolaño Salvaje. Barcelona: Editorial Candaya, 2008, pp. 127-144.
ALVAREZ, Carolina Ramírez. “Trauma, memoria y olvido en un espacio ficcional. Una lectura a Estrella Distante”, Atenea, n. 497, 2008, pp. 37-50.
138
BOLOGNESE, Chiara. “Viaje por el mundo de los letraheridos. Roberto Bolaño y la salvación por la escritura”, Anales de Literatura Hispanoamericana, vol. 39, 2010, pp. 465-474.
___________________. “Roberto Bolaño y sus comienzos literarios: El infrarrealismo entre realidad y ficción”, Acta literária, n. 39, 2009, pp. 131-140.
CERCAS, Javier (2000). “Vila-Matas contra el infantilism”, in.: HEREDIA, Margarita (Org.). Vila-Matas portátil: un escritor ante la crítica. Barcelona: Candaya, 2 ed., 2007, pp. 193-195.
CHIHAIA, Matei. “Bolaño y yo. Las dos caras de la auoficción en la obra de Roberto Bolaño”, in.: TORO, Vera; SCHLICKERS, Sabine; LUENGO, Ana (Orgs). La obsesión
del yo - la auto(r)ficción en la literatura española y latinoamericana. Madri/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 2010, pp. 141-154.
COBAS CARRAL, Andrea; GARIBOTTO, Verónica. “Un epitafio en el desierto: poesía y revolución en Los detectives salvajes”, in.: in.: PAZ SOLDÁN, Edmundo; PATRIAU, Gustavo Faverón (Orgs.). Bolaño Salvaje. Barcelona: Editorial Candaya, 2008, pp. 163-190.
COBAS CARRAL, Andrea. “‘Déjenlo todo nuevamente’: apuntes sobre el movimiento infrarrealista mexicano”, Letras.s5, 2005, s/p. Disponível em: <http://www.letras.s5.com/rb051105.htm>. Acesso em: 27/01/2015.
DEL POZO GARCÍA, Alba. “La autoficción en París no se acaba nunca de Enrique Vila-Matas”, Revista electrónica de teoría de la literatura y literatura comparada, n. 1, 2009, pp. 89-103.
DIACONU, Diana. “Más allá de los límites, en “el umbral mismo de ese mundo ulterior”. Hacia una poética narrativa de Enrique Vila-Matas”, Acta Iassyensia
Comparationis, 8/2010, pp. 140-148.
FUERTES TRIGAL, Siridia. “La transgresión genérica, emblema de la obra de Javier Marías, Enrique Vila-Matas e Ignacio Padilla”, Olivar, año 12 n. 16, 2011, pp. 95-108.
GAMBOA CÁRDENAS, Jeremías. “¿Dobles o siameses? Vanguardia y postmodernismo en Estrella distante”, in.: PAZ SOLDÁN, Edmundo; PATRIAU, Gustavo Faverón (Orgs.). Bolaño Salvaje. Barcelona: Editorial Candaya, 2008, pp. 211-236.
MASOLIVER RÓDENAS, Juan Antonio (2002). “El nuevo Don Quijote”, in.: HEREDIA, Margarita (Org.). Vila-Matas portátil: un escritor ante la crítica. Barcelona: Candaya, 2 ed., 2007, pp. 265-268.
OLEZA, Joan. “De la muerte del Autor al retorno del Demiurgo y otras perplejidades: Posiciones de autor en la sociedad globalizada”, I° Congreso Internacional de
Literatura y Cultura Españolas Contemporáneas, 2008, pp. 1-34. Disponível em: <http://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/trab_eventos/ev.345/ev.345.pdf>. Acesso em: 27/01/2015.
PARRINE, Raquel. “A ficção da ficção: derramamentos de um 'eu' em Roberto Bolaño”, Revista Línguas & Letras, vol. 11, n. 21, 2010, pp. 1-12.
139
PAULS, Alan. “La solución Bolaño”, in.: PAZ SOLDÁN, Edmundo; PATRIAU, Gustavo Faverón (Orgs.). Bolaño Salvaje. Barcelona: Editorial Candaya, 2008, pp. 319-334.
PAZ SOLDÁN, Edmundo. “Roberto Bolaño: literatura y apocalipsis”, in.: PAZ SOLDÁN, Edmundo; PATRIAU, Gustavo Faverón (Orgs.). Bolaño Salvaje. Barcelona: Editorial Candaya, 2008, pp. 11-32.
PERERA SAN MARTÍN, Nicasio. “Los narradores felisbertianos de Roberto Bolaño”, in.: MORENO, Fernando (Ed.). Roberto Bolaño: una literatura infinita. Poitiers: Université de Poitiers/CNRS, 2005, pp. 87-100.
RAMSAK, Branka Kalenić. “Otros caminos para la narrativa española actual: Vila-Matas y Compañía”, in.: ULASIN, Bohdan; VERTANOVÁ, Silvia (Orgs.). Nuevas
teorías, modelos y su aplicación en lingüística, literatura, traductología y didáctica en
los últimos 20 años - Actas de las II Jornadas de Estudios Románicos. Bratislava: Ana Press, pp. 151-162.
RÓDENAS DE MOYA, Domingo (2002). “La novela póstuma o el mal de Montano”, in.: HEREDIA, Margarita (Org.). Vila-Matas portátil: un escritor ante la crítica. Barcelona: Candaya, 2 ed., 2007, pp. 273-299.
ROMERO-JÓDAR, Andrés. “Reflexiones sobre la identidad con Doctor Pasavento de Enrique Vila-Matas”, Dicenda. Cuadernos de Filología Hispánica, vol. 28, 2010, pp. 247-265.
VERES, Luis. “Metaliteratura e identidad : Roberto Bolaño”, Amerika [Online], 3 | 2010, s/p. Disponível em: < http://amerika.revues.org/1644>. Acesso em: 27/01/2015.
VILA-MATAS, Enrique. “Bolaño en la distancia”, Letras Libres, n. 4, 1999, pp. 74-77.
VILLORO, JUAN. “Pasado y futuro del infrarrealismo” - Fragmento extraído de la entrevista a Juan Villoro titulada ‘La ironía de la soledad’, realizada por Alejandro Hermosilla Sánchez en el número 22 (Otoño 2008) de El Coloquio de los Perros, in.: Nada utópico nos es ajeno [Manifiestos infrarrealistas], León, Guanajuato: Tsunun, 2013, pp. 65-68.
________________. “La batalla futura”, in.: BRAITHWAITE, Andrés (Org.). Bolaño
por sí mismo – entrevistas escogidas, Santiago de Chile: Universidad Diego Portales, 2 ed., 2008, pp. 9-24.
Teses e Dissertações
AHUMADA, Christian Andrés Soazo. “Una historia ‘salvaje’: re-versión de la modernidad, vanguardia y globalización en la obra de Roberto Bolaño”. Tese de
Doutorado, Friburgo: Albert-Ludwigs-Universität Freiburg, 2012.
GUTIÉRREZ, Rafael. “Da literatura como um ofício perigoso: Crítica e ficção na obra de Roberto Bolaño”. Tese de Doutorado, Rio de Janeiro: PUC-RIO, 2010.
KLEIN, Kelvin Falcão. “Vozes compartilhadas: a poética intertextual de Enrique Vila-Matas”. Dissertação de Mestrado, Porto Alegre: UFRGS, 2009.
140
PINHEIRO, Tiago Guilherme. “Literatura sob rasura. Autonomia, neutralização e democracia em J. M. Coetzee e Roberto Bolaño”. Tese de Doutorado, São Paulo: USP, 2014.
TENA, Mireia Companys. “Identidad en crisis y estéticas de la fragmentariedad en la novela de Roberto Bolaño”. Tese de Doutorado, Barcelona: Universidad Autónoma de Barcelona, 2010.
TOVAR, María Alejandra Gutiérrez. “El enigma del personaje escritor en la narrativa hispanica posmoderna”. Tese de Doutorado, Charlottesville: University of Virginia, 2011.
VAZ DA SILVA, Anuska Karla. “Recortes sobre metaficção na literatura contemporânea”. Dissertação de Mestrado, Recife: UFPE, 2013.
XERXENESKY, Antônio Carlos Silveira. “A literatura rumo a si mesma : Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas”. Dissertação de Mestrado, Porto Alegre: UFRGS, 2012.
Entrevistas
ÁLVAREZ, Eliseo. “Las posturas son las posturas y el sexo es el sexo”, Revista Turia, junho de 2005, in.: BRAITHWAITE, Andrés (Org.). Bolaño por sí mismo – entrevistas
escogidas, Santiago do Chile: Universidad Diego Portales, 2 ed., 2008, pp. 34-45.
ARROYO, Susana; FERNÁNDEZ, Javier. “¿Viaje o literatura? (entrevista anticipatoria con Enrique Vila-Matas)”. Revista de Investigación y Crítica Estética, 2008, pp. 199-204.
GRAS MIRAVET, Dunia. “Entrevista con Roberto Bolaño”, Cuadernos
Hispanoamericanos, n. 604, ISSN 0011-250X, Madrid, 2000, pp. 53-65.
ECHEVARRÍA, Ignacio (2000). “Un escritor solemne es lo menos solemne que hay”, in.: HEREDIA, Margarita (Org.). Vila-Matas portátil: un escritor ante la crítica. Barcelona: Candaya, 2 ed., 2007, pp. 207-212.
HEREDIA, Margarita. “Autobiografia caprichosa”, in.: HEREDIA, Margarita (Org.). Vila-Matas portátil: un escritor ante la crítica. Barcelona: Candaya, 2 ed., 2007, pp. 15-18.
MERUANE, Lina. “Entrevista de Lina Meruane a Vila-Matas em La Revista BOMB”, Revista BOMB, 2013, s/p. Disponível em: <http://www.enriquevilamatas.com/entrBombLinaMeruane.html>. Acesso em 27/01/2015.
Manifestos infrarrealistas
ANAYA, José Vicente. “Manifiesto infrarrealista. Por un arte de vitalidad sin límites”, s/d, in.: Nada utópico nos es ajeno [Manifiestos infrarrealistas], León, Guanajuato: Tsunun, 2013, in.: pp. 43-50.
BOLAÑO, Roberto. “Déjenlo todo, nuevamente - Primer Manifiesto Infrarrealista”, 1976, in.: Nada utópico nos es ajeno [Manifiestos infrarrealistas], León, Guanajuato: Tsunun, 2013, pp. 51-62.
SANTIAGO, Mario. “Manifiesto infrarrealista”, s/d, in.: Nada utópico nos es ajeno
[Manifiestos infrarrealistas], León, Guanajuato: Tsunun, 2013, pp. 37-42.
141
C. BIBLIOGRAFIA GERAL
ALBERCA, Manuel. El pacto ambíguo. De la novela autobiográfica a la autoficción. Madri: Editorial Biblioteca Nueva, 2007.
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico – dilemas da subjetividade contemporânea, trad. Paloma Vidal, Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, trad. Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
__________________. O livro por vir, trad. Leyla Perrone-Moisés, São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BARTHES, Roland (1988). “A morte do autor”, in.: BARTHES, Roland. O rumor da
língua, trad. Mario Laranjeira, São Paulo: Editora Brasiliense, pp.65-70 [1967].
________________. Roland Barthes por Roland Barthes, trad. Leyla Perrone-Moisés, São Paulo: Editora Cultrix, 1977.
BORGES, Jorge Luis (1996). “Borges y yo”, in.: Obras Completas II (1952-1972), Buenos Aires: Emecé Editores, pp. 186-186 [1960].
CAMARERO, Jesús 2004. Metaliteratura. Estructuras formales literárias. Barcelona: Anthropos, 2004.
DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1997.
FOUCAULT, Michel (2006). “O que é um autor?”, in.: MOTTA, Manoel Barros (Org.). Ditos e escritos III - Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema, trad. Inês A. D. Barbosa, Rio de Janeiro: Forense Universitária, pp. 264-298 [1969].
GARRAMUÑO, Florencia. “Especie, especificidad, pertenencia”. E-misférica, vol. 10, 2013, s/p. Disponível em: <http://hemisphericinstitute.org/hemi/es/e101-ramos-multimedio-ensayo>. Acesso em: 27/01/2015.
_____________________. A experiência opaca – literatura e desencanto, trad. Paloma Vidal, Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012.
HEKER, Liliana. “Los talleres literarios”, Cuadernos hispanoamericanos, n. 517-519, 1993, pp. 187-194.
HUTCHEON, Linda. Narcissistic narrative: the metafictional paradox. Londres: Routledge, 1991a.
________________. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção, trad. Ricardo Cruz, Rio de Janeiro: Imago, 1991b.
LEJEUNE, Philippe. “O pacto autobiográfico” (excerto correspondente ao primeiro capítulo de Le pacte autobiographique [1973]), in.: NORONHA, Jovita Maria G. (Org.). O pacto autobiográfico. De Rousseau à internet, trad. Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, pp. 15-55.
_________________ (1975). Le pacte autobiographique. Paris: Seuil [1973].
LUDMER, Josefina. “Lo que viene después: una periodización”. Filología, ISSN 0071-495X. n. 1, pp. 295-300, 2010.
142
MACHADO, Alvaro Manuel; PAGEAUX, Daniel-Henri. Da literatura comparada à
teoria da literatura, 2ª ed., aumentada e revisada, Lisboa: Presença, 2001.
MOLLOY, Sylvia. Acto de presencia – La escritura autobiográfica en
Hispanoamérica, trad. José Esteban Calderón, México, D. F.: El Colegio de México/ Fondo de Cultura Económica, 1996.
OLMOS, Ana Cecilia. “Transgredir o gênero: políticas da escritura na literatura hispanoamericana atual”, Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 38. Brasília, julhodezembro de 2011, pp. 11-21, 2011.
_________________. “Los límites de lo legible. Ensayo y ficción en la literatura latinoamericana”, Crítica Cultural, v. 4, 2009, pp. 3-16.
_________________. “Discursos de la subjetividad: La crítica de los escritores”, in.: CASARIN, Marcelo; OLMOS, Ana Cecilia (Orgs). Ensayo[s] de narradores. Córdoba: Alción Editora, 2007, pp. 41-52.
PIGLIA, Ricardo. Formas Breves, trad. José Marcos Mariani de Macedo, São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
POZUELO YVANCOS, José María. Figuraciones del yo en la narrativa. Valladolid: Cátedra Miguel Delibes, 2010.
RAVETTI, Graciela. “Narrativas performáticas”, trad. Melissa Boechat e Karla Cipreste, in.: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia (Orgs.). Performance, exílio,
fronteiras – errâncias territoriais e textuais, Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2002, pp. 47-68.
SPERANZA, Graciela. “‘¿Dónde está el autor?’ Sobre el fantasmático regreso del autor a la ficción”. Otra parte, n. 14, 2008, pp. 7-12.