ANOREXIA NOS BLOGS PRO-ANA ENTRE 2005-2014: … · textos e hipertextos nos weblogs nos permite...

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ANOREXIA NOS BLOGS PRO-ANA ENTRE 2005-2014: DOENÇA OU ESTILO DE VIDA? UM BREVE ESTUDO HISTORIOGRÁFICO ALVES, Reynaldo José Loio 1 RESUMO O trabalho tem como objetivo investigar o contexto das representações socioculturais da anorexia nervosa, no início do século XXI, especificamente entre 2005 e 2014. Nas últimas décadas, a sociedade apresenta uma forte tendência em cultuar a magreza como padrão de beleza, integrando à uma imagem de sucesso, poder e aceitação. São essas tendências que influenciam o desenvolvimento de preocupações nos adolescentes em relação às mudanças corporais inerentes a esse período de desenvolvimento. Assim, os adolescentes utilizam diversos métodos para emagrecer em busca do corpo idealizado. Sob a ótica da constituição do fenômeno sociocultural, os transtornos alimentares são quadros clínicos vinculados à modernidade, principalmente pelo avanço da mídia e dos meios de comunicação na alusão às práticas discursivas disciplinadoras em prol da imagem corporal magra e perfeita. Nesse sentido, torna-se relevante entendermos a questão da doença, a experiência do indivíduo e suas relações com o corpo, cultura e poder nesse ambiente da Web. Segundo Cordas e Claudino (2002) etimologicamente, a palavra anorexia provém do grego “an” ausência de, e “orexis”, apetite. Atualmente, o termo anorexia não é utilizado em seu sentido etimológico para a “anorexia nervosa”, visto que tais pacientes não apresentam perda real de apetite até estágios mais avançados da doença, mas sim uma recusa alimentar deliberada, com intuito de emagrecer ou por medo de engordar. Busca-se contextualizar o fenômeno da anorexia nervosa através dos discursos biomédicos, que a “patologizamcomo transtorno alimentar, já no campo sociocultural a produzem por metáforas que se personificam e se constituem de forma negociada, seja no entendimento como patologia ou como estilo de vida. Diante do exposto, este breve estudo historiográfico sobre essa doença introduz alguns aspectos do campo de análise de dois blogs Pro- ana enquanto fonte de pesquisa e à abordagem de história e historiografia digital que vem sendo debatida na história do tempo presente. Sendo assim, analisar-se-á conexões, tensões e rupturas sobre a temática, adentrando a produção científica sobre a doença e as postagens dos blogs, que articulam um campo de experiências compartilhadas entre as autoras “Anas”, principalmente, no que entendemos como a construção de fatores identitários: gírias, dietas, medicalização, entre outros. O referencial bibliográfico teve como base os artigos de periódicos como Scielo, dissertações e teses do banco da Capes. Palavras-chave: Anorexia, blogs, Pro-Ana, doença, estilo de vida, história. 1. INTRODUÇÃO Nos últimos tempos, a anorexia nervosa tornou-se objeto de pesquisa em diferentes especialidades, sobretudo na área de saúde. Porém, apesar de ser uma doença, caracterizada por um transtorno alimentar e inscrito na “Classificação Internacional de Doenças” CID-10 (2008), ela vem 1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS/COC-Fiocruz). Este paper foi escrito a partir de questões que estão sendo desenvolvidas no projeto da Dissertação, orientado pela Dra. Dilene Raimundo do Nascimento.

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ANOREXIA NOS BLOGS PRO-ANA ENTRE 2005-2014: DOENÇA OU ESTILO DE

VIDA? UM BREVE ESTUDO HISTORIOGRÁFICO

ALVES, Reynaldo José Loio1

RESUMO O trabalho tem como objetivo investigar o contexto das representações socioculturais da anorexia

nervosa, no início do século XXI, especificamente entre 2005 e 2014. Nas últimas décadas, a

sociedade apresenta uma forte tendência em cultuar a magreza como padrão de beleza, integrando à

uma imagem de sucesso, poder e aceitação. São essas tendências que influenciam o

desenvolvimento de preocupações nos adolescentes em relação às mudanças corporais inerentes a

esse período de desenvolvimento. Assim, os adolescentes utilizam diversos métodos para emagrecer

em busca do corpo idealizado. Sob a ótica da constituição do fenômeno sociocultural, os transtornos

alimentares são quadros clínicos vinculados à modernidade, principalmente pelo avanço da mídia e

dos meios de comunicação na alusão às práticas discursivas disciplinadoras em prol da imagem

corporal magra e perfeita. Nesse sentido, torna-se relevante entendermos a questão da doença, a

experiência do indivíduo e suas relações com o corpo, cultura e poder nesse ambiente da Web.

Segundo Cordas e Claudino (2002) etimologicamente, a palavra anorexia provém do grego “an”

ausência de, e “orexis”, apetite. Atualmente, o termo anorexia não é utilizado em seu sentido

etimológico para a “anorexia nervosa”, visto que tais pacientes não apresentam perda real de apetite

até estágios mais avançados da doença, mas sim uma recusa alimentar deliberada, com intuito de

emagrecer ou por medo de engordar. Busca-se contextualizar o fenômeno da anorexia nervosa

através dos discursos biomédicos, que a “patologizam” como transtorno alimentar, já no campo

sociocultural a produzem por metáforas que se personificam e se constituem de forma negociada,

seja no entendimento como patologia ou como estilo de vida. Diante do exposto, este breve estudo

historiográfico sobre essa doença introduz alguns aspectos do campo de análise de dois blogs Pro-

ana enquanto fonte de pesquisa e à abordagem de história e historiografia digital que vem sendo

debatida na história do tempo presente. Sendo assim, analisar-se-á conexões, tensões e rupturas

sobre a temática, adentrando a produção científica sobre a doença e as postagens dos blogs, que

articulam um campo de experiências compartilhadas entre as autoras “Anas”, principalmente, no

que entendemos como a construção de fatores identitários: gírias, dietas, medicalização, entre

outros. O referencial bibliográfico teve como base os artigos de periódicos como Scielo,

dissertações e teses do banco da Capes.

Palavras-chave: Anorexia, blogs, Pro-Ana, doença, estilo de vida, história.

1. INTRODUÇÃO

Nos últimos tempos, a anorexia nervosa tornou-se objeto de pesquisa em diferentes

especialidades, sobretudo na área de saúde. Porém, apesar de ser uma doença, caracterizada por um

transtorno alimentar e inscrito na “Classificação Internacional de Doenças” CID-10 (2008), ela vem

1Mestrando do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS/COC-Fiocruz). Este paper

foi escrito a partir de questões que estão sendo desenvolvidas no projeto da Dissertação, orientado pela Dra. Dilene

Raimundo do Nascimento.

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sendo defendida pelos adolescentes como um estilo de vida. Nos dias atuais, a sociedade apresenta

uma forte tendência em cultuar a magreza como padrão de beleza, integrando a uma imagem de

sucesso, poder e aceitação. São essas tendências que influenciam o desenvolvimento de

preocupações nos adolescentes em relação às mudanças corporais inerentes ao período de seu

desenvolvimento, como deposição de gordura nos quadris, aumento de peso, abdômen e forma do

corpo de um modo geral. Diante disso, observa-se um esforço exagerado na busca do peso ideal, na

crença de que serão mais admirados e valorizados, assim utilizam diversos métodos para emagrecer

em busca do corpo idealizado. Nesse sentido, os blogs são utilizados para disseminar as práticas da

anorexia e cultuar a magreza como padrão de beleza. (BITTENCOURT & ALMEIDA, 2013).

Estes blogs, nomeados de “pro-ana”, são páginas da internet que oferecem orientações de

como emagrecer sem sofrimento e com rapidez (ALMEIDA E GUIMARÃES, 2015). Contudo,

estas práticas podem favorecer o desenvolvimento de transtornos alimentares. Sob a ótica da

constituição deste fenômeno sociocultural, os transtornos alimentares se apresentam como quadros

clínicos vinculados à modernidade. Na medida em que se tem o avanço da mídia e dos meios

de comunicação na alusão às práticas disciplinares ao corpo, em prol da imagem corporal magra e

perfeita, torna-se relevante entendermos a questão da doença, da experiência do indivíduo e suas

relações com o corpo, cultura e poder (BRANCO; HILÁRIO; CINTRA, 2006).

Diante do exposto, este estudo possui relevância acadêmica e social, pois tem como objetivo

investigar o contexto das representações socioculturais da Anorexia Nervosa através de uma análise

da “cultura identitária” de adolescentes, do sexo feminino, que utilizam os blogs pro-ana no Brasil

no início do século XXI, especificamente entre 2005 e 2014. A pesquisa se baseou na análise de

algumas postagens de dois blogs e que nos permitiu traçar essas representações: o blog Pro Ana

Sempre, não se encontra ativo e possuí postagens entre 2006 e 2008, encontra-se disponível no link

http://ana17mia.zip.net/, e o blog Iniciando…Anna e Mia, que se encontra com postagem ativa em

2016, teve início em 2009 e encontra-se disponível no link http://alfa-anna-mia.blogspot.com.br/.

Quanto ao perfil de autores dos blogs Pro-ana presentes nesta discussão, não há total clareza

sobre a identificação, idade e o contexto socioeconômico. Sendo assim, podemos afirmar que o

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emprego da terminologia de que as autoras dos blogs são adolescentes, deve ser utilizada como

cautela, mas isso não restringe a observação de que esse “anonimato” traz alguns fatores e relatos

que nos permitem identificar características e semelhanças com o público atingido pelo fenômeno.

Conforme nos mostra Michel de Certeau (1982 apud Garcia 2015, p.4) a questão do “não-dito”, nos

apresenta a possibilidade de questionamentos sobre as fontes, a importância do encontro ou do não-

encontro de alguma informação problematiza o silêncio das fontes, ou seja, este silêncio é tão

importante quanto o encontro de vestígios que podem criar versões do dito. Neste caso, a alusão de

textos e hipertextos nos weblogs nos permite contextualizar o quadro dessas “blogueiras” como

sendo, de adolescentes ou jovens, do sexo feminino, que possuem meios de acesso à internet, é

possível contextualizar que devido ao número restrito de pessoas que possuíam acesso ao

computador e à internet na década de 2000, as usuárias dos blogs pertenciam potencialmente, ao

contexto socioeconômico da classe média.

A proposta do trabalho é discutir a anorexia como evento social de importância significativa

no contexto histórico-social, visto que a doença se apresenta como um fenômeno crescente no

mundo contemporâneo, principalmente, em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Desse

modo, é importante citar a realidade da anorexia em países como Argentina, Brasil e Estados

Unidos, que possuem índices elevados de incidência de transtornos alimentares, principalmente, em

relação à grande exposição e influência dos meios de comunicação na “defesa/propagação” de certo

discurso de beleza. Essa preocupação com a imagem corporal perfeita e inatingível representada

pela magreza, tem ocasionado uma busca incontrolável para se alcançar o corpo perfeito, levando o

indivíduo a grandes prejuízos biopsicossociais, até há casos de mortalidade. Este estudo demonstra

a importância da temática no contexto brasileiro na última década, pois nesse período ocorreu um

boom de debates acerca da doença no meio médico-científico, na mídia e na sociedade.

No que tange a narrativa histórica, a análise se relaciona com os debates realizados no

campo da História das doenças, onde justificamos o estudo e salientamos a importância da temática

e a complexidade dos fatores que determinam essa doença. Com base nos argumentos de Anita

Lucchesi (2013), buscamos através do material da fonte analisada, introduzir um olhar

metodológico amplamente debatido na escrita da história do tempo presente e da historiografia

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digital, o qual nos permite adentrar nos discursos das autoras dos blogs Pro-ana, cujo a ferramenta

textual e comunicacional se dá por meio de textos e hipertextos presentes nas mídias digitais e na

internet, tornando-se um desafio ao “fazer histórico” contemporâneo.

A metodologia utilizada neste artigo tem como pressupostos os debates realizados pela

abordagem da historiografia das doenças, com foco na história sociocultural, não obstante é

importante introduzir alguns aspectos presentes nos debates da História e Historiografia Digital,

principalmente os que tange o “olhar” sobre a fonte. Realizamos um estudo de caráter exploratório,

foi feito um levantamento dos blogs no período de maio a julho de 2016, utilizamos a ferramenta de

pesquisa do Google com as palavras-chave (Blog Pro-ana e anorexia), o qual encontramos um total

de nove blogs dentre os de maior acesso listado pela ferramenta, optou-se por dois que possuíam

postagens em mais de um ano conforme o recorte temporal do trabalho, visto que na maioria dos

blogs só haviam postagens em um ano específico. Após a coleta das postagens publicadas nesses

sites, buscamos entender a amplitude da anorexia no cotidiano desses jovens e analisá-las

confrontando com os discursos e saberes médico-científicos na contemporaneidade. Desse modo,

através das postagens no ambiente da web foi possível se aproximar do modo como esses jovens

vivenciam a experiência da Ana e os elementos discursivos das mensagens para entender os fatores

identitários e a defesa das práticas como estilo de vida. Portanto, a análise dos dados se deu através

da leitura das mensagens postadas nos blogs, nas quais fomos destacando aspectos que se repetiam,

a fim de criar eixos de análise que permitiram discutir características da experiência dessas jovens.

2. HISTORICIDADE DAS DOENÇAS, CORPO E INDIVÍDUO

No que tange a discussão da historicidade da saúde e das doenças, é importante demarcar

alguns aspectos da abordagem pretendida, a qual busca aproximar-se da dimensão de História e

Historiografia digital presentes nos debates atuais da área. Entende-se que o objeto em análise

permite explorar os aspectos socioculturais, considerando a articulação de conceitos e fatores que

caracterizam a doença enquanto fenômeno social, tal como a dimensão social presente na produção

e difusão do conhecimento médico-científico. Aprofundando o debate, percebemos que as relações

entre história, saúde e doença nas últimas duas ou três décadas tivera um lugar importante na

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historiografia contemporânea. Trata-se da descoberta da doença como objeto de reflexão por parte

das ciências sociais e humanas, revelando-se como um dos novos temas analisados e consolidando-

se como parte dos recorte em estudos históricos (ARMUS, 2013).

A conceituação de doença engloba aspectos multifacetados que dialogam em torno da sua

definição, com base nas ideias de Rosenberg (1977), a doença nos serve como diagnóstico do

social, ou seja, a doença desempenha o papel de ajudar a enquadrar debates sobre a sociedade e

política social. A doença tornou-se, em alguma medida, a ocasião e a agenda para a preocupação do

discurso contínuo de inter-relação da política do Estado, da responsabilidade médica e da

culpabilidade individual. Segundo Rosenberg, precisamos saber mais sobre a experiência individual

da doença, da influência da cultura sobre as definições de doença e da doença na criação da cultura.

A abordagem histórico-social envolve saberes e práticas que superam o processo de saúde-

doença. Sendo assim, a representação social da anorexia e os seus determinantes são compilados

por fatores socioculturais, que se articulam pela inter-relação do indivíduo e da sociedade. Os

argumentos que buscam embasar a escolha da abordagem de historiografia sociocultural se dão pelo

foco voltado à experiência do doente e do adoecimento. Acerca deste campo de experiência, o

antropólogo francês Marc Augé (1984), nos mostra que “o grande paradoxo da experiência da

doença é que ela é tanto a mais individual quanto a mais social das coisas” (Augé, 1984 apud

HERZLICH 2004, p. 384).

O conceito em torno da noção de pessoa precisa ser contextualizado no processo histórico-

social contemporâneo, dentro dos limites desta investigação, a questão do corpo (representação,

interpretação e atuação) se torna importante, seja no campo da individualidade e/ou da coletividade,

seja pelos aspectos culturais expressos nos sistemas de significados simbólicos da sociedade

consumo. Uma das vertentes de estudos recentes sobre o corpo é caracterizada pela preocupação

com o embodiment.2 Refletindo os argumentos de Silva (2005), a noção de pessoa é um conceito

2 A discussão de embodiment, apresentada por Erika Fischer-Litche pode contribuir para a reflexão à respeito da relação

do corpo com sua representação, interpretação e atuação. Exemplos de utilização do conceito se dá por estudos

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útil na compreensão da relação entre transtornos alimentares e embodiment. Ao adotar essa noção

para compreender nossas próprias categorias culturais de pensamento, evitamos reificá-las, podendo

relativizá-las e compreendê-las como elementos simbólicos constitutivos de uma dinâmica cultural.

Nos dias atuais, os pesquisadores da história das doenças no Brasil têm se debruçado sobre

eventos patológicos específicos, não só em busca de sua caracterização, do ponto de vista da

História das Ciências, como também do que poderíamos chamar de sua fenomenologia, isto é, o

modo de sua incidência em determinados momentos e locais (NASCIMENTO, 2014). Tendo como

norte o campo da representação social da doença e adoecimento, busca-se entender o fenômeno da

anorexia na contemporaneidade, levando em conta o escopo do conhecimento biomédico e as

experiências partilhadas pelas defensoras da Ana como estilo de vida.

3. ADOLESCÊNCIA: IMAGEM CORPORAL E O IDEAL DE BELEZA MAGRA.

Na contemporaneidade, a sociedade apresenta uma forte tendência em cultuar a magreza

como padrão de beleza, integrando a uma imagem de sucesso, poder e aceitação. A necessidade de

alcançar o ideal de mulher, magra, ativa e feminina, as estimula no desenvolvimento da anorexia.

Esse padrão de beleza é transmitido culturalmente através dos programas de televisão, das revistas e

propagandas, que estabelecem indiretamente quais as regras e normas deverão ser adotadas pela

mulher moderna. Ao mesmo tempo criticam a gordura e a obesidade, com a justificativa da ideia de

saúde, associada com condenação da preguiça, da gula e da perda de controle (BITTENCOURT &

ALMEIDA, 2013).

A historiadora Mary Del Priori (2000), em sua análise acerca das transformações do corpo

feminino no Brasil, aponta as inter-relações entre as mudanças socioculturais e o cuidado da mulher

destinado ao seu corpo. O processo intensificado no século XX, se deu com a introdução e estímulo

da prática desportiva para o combate do “ócio” e os “hábitos mundanos” da juventude, o

lançamento de certos produtos de beleza que começavam a ser industrializados e a inovação dos

antropológicos, questões da composição do corpo, crenças e práticas relacionadas ao nascimento, puberdade e morte,

doenças e os procedimentos para sua cura, técnicas corporais, etc.

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saldos e liquidações permitia às camadas urbanas médias adotar a roupa de gente rica. Desenhava-

se um padrão de comportamento e beleza calcado na aparência física.

Os argumentos de Marisol Marini (2012) demonstram como o corpo magro tem sido

valorizado e almejado no ideário contemporâneo. A anorexia denuncia, com certa radicalidade, a

busca desse ideal, seja ele qual for, o de que ossos à mostra é a promessa de aceitação social e

felicidade plena. Nesse sentido, a moda e a mídia têm papel de destaque, ao incentivarem, cada vez

mais, a exibição de corpos magros e esbeltos, ditando-os como verdadeiros padrões de beleza. Tem-

se a imagem como personagem principal deste cenário, já que é utilizada como sustentação do

interesse do outro e também de si mesmo.

Buscando evidenciar uma das possibilidades interpretativas na relação entre indivíduo,

psique e imagem corporal, os argumentos de Nasio (1995 apud. CONTI; BERTOLIN; PERES,

2010) apresentam o indivíduo e o seu psiquismo como foco de atenção. Para Nasio, se existe um

“eu” (indivíduo-psiquismo), este é resultado do efeito que o “outro” (seus pares e grupo social) tem

sobre ele, ao preço da imagem criada acerca de si próprio ser constituída no “outro” e pelo “outro”,

ficando, assim, primordialmente alienada neste. Partindo-se dessa ideia, as ações aplicadas pela

mídia são eficazes na manipulação do comportamento do adolescente, visto que o desejo do

adolescente se expressa na medida em que se identifica com o desejo do “outro” que, no caso,

poderiam ser as mensagens, ideias e imagens promovidas pela mídia. Sendo assim, é possível

compreender os motivos pelos quais os jovens, mesmo cientes da interferência da mídia em relação

ao corpo, pouco alteram suas atitudes em relação ao mesmo, pois, estão voltados ao desejo do outro.

4. ANOREXIA NERVOSA: DEFINIÇÃO E SABERES MÉDICO-CIENTÍFICOS

Segundo Fernandes (2006 apud ALMEIDA; GUIMARÃES, 2015) a anorexia enquanto

patologia passou a ter importantes descrições clínicas no século XIX. Eles se referem a dois relatos

publicados nesse período. O primeiro de William W. Gull, publicado em 1868, na

Inglaterra, que apresentou o quadro clínico de três pacientes entre 14 e 18 anos, e atribuiu ao

fenômeno relatado o nome de apepsia histérica. A partir de 1874, passou a empregar o termo

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anorexia nervosa. O segundo relato, de Ernest-Charles Lasègue, foi publicado em 1873, na França,

o pesquisador publica um texto sobre anorexia no Archives Générales de Médecine. Neste, Lasègue

descreve o quadro clínico da doença que permanece válido ainda na atualidade. O médico francês

destaca informações sobre o manejo do tratamento, principalmente sobre a relação do doente com o

terapeuta e com a família. Deste modo, foi a partir desses dois relatos desses autores que a anorexia

passou a se compor como um objeto de estudo no âmbito médico.

As diferentes concepções e práticas médico-científicas, que incluem saberes da medicina,

nutrição, psiquiatra, psicologia e psicanálise, compõem um dos “campos” de saberes especializados

sobre os transtornos alimentares e, visam problematizar questões voltadas às “demandas da cultura”

e ideais de beleza, saúde e cuidados de si na atualidade, bem como a constituição da subjetividade e

modos de subjetivação de pessoas diagnosticadas por essas patologias (MARINI, 2012).

É importante salientar, que há inúmeros “campos” que designam concepções e saberes em

torno da (psico)patologia anorexia nervosa e que apresentam diferentes visões sobre sua

conceituação. Desse modo, o trabalho visa demonstrar que se trata de campos que incluem saberes

médico-científicos e que produzem conhecimento sob a ótica de diferentes abordagens, práticas e

interpretações. Como foi tratado por Ludwig Fleck (2010), em Gênese e desenvolvimento de um

fato científico, as investigações médico-científicas se resultam de processos que articulam

elementos histórico-culturais partilhados de forma coletiva. O autor ressalta o conhecimento

científico, como um processo “sistêmico” de interação entre homens (dentro de um coletivo) e da

natureza.3 Este conhecimento estabelece o que será um fato, de modo que se dá por um complexo

processo social, onde interagem teorias, práticas e as diferentes possibilidades de abordá-las, dentro

de diferentes coletivos de pensamento.4 Com a emergência do paradigma médico e da racionalidade

3Conceito de Fleck presente em Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Entende-se coletivo de pensamento

como, a comunidade de pessoas que trocam pensamentos ou se encontram numa situação de influência recíproca de

pensamentos, tendo em cada uma dessas pessoas, um portador do desenvolvimento histórico de uma área de

pensamento, de um determinado estado do saber e da cultura, ou seja, de um estilo específico de pensamento. 4A abordagem de Fleck, nos permitiu uma possível releitura sobre a produção de conhecimentos e saberes médico-

científicos acerca dos transtornos alimentares, que se dá por diferentes coletivos e estilos de pensamento e,

principalmente, no que tange a anorexia enquanto doença social e historicamente localizada, a qual se constitui com a

“etiologia” diferenciada, conforme descrita por áreas da psiquiatria, psicologia, psicanálise, nutrição, antropologia, etc.

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científica, o discurso médico-psiquiátrico sobre a anorexia nervosa passa a predominar a partir do

século XX.

Na década de 1970, surgiu os primeiros critérios diagnósticos da anorexia nervosa. Russel,

psiquiatra inglês, contribuiu com suas observações para que houvesse um consenso sobre o que

caracterizaria a psicopatologia central da anorexia nervosa: a preocupação excessiva com a forma e

peso corporais, ou ainda, a recusa alimentar acompanhada da intenção de emagrecer. Esse autor

concluiu também que a expressão psicopatológica da anorexia nervosa estaria sujeita a variar com a

época e a cultura e que o desejo de emagrecer seria um aspecto recente da motivação anoréxica. Na

verdade, a preocupação com o peso e a forma física permanece como aspecto central no diagnóstico

psiquiátrico clínico da anorexia nervosa até os dias atuais (GOULART, 2003). Nas décadas de

setenta e oitenta, ressurgem outras leituras, nomeadamente uma delas é a perspectiva feminista, que

descreve a anorexia como forma de protesto social das mulheres. Influenciadas pela análise

sociocultural e das relações patriarcais, pelas teorias psicanalíticas e pelo existencialismo, as teorias

feministas focaram-se nos aspectos sociais, familiares e políticos da vida das mulheres.

Para Bittencourt & Almeida (2013), os transtornos alimentares são qualificados na visão

biomédica como distúrbios psiquiátricos caracterizados por alterações do padrão alimentar e por

distorções relacionadas com os alimentos e com o peso corporal, tendo como consequências efeitos

adversos sobre o estado nutricional. São doenças que comprometem adolescentes e jovens adultos,

de ambos os sexos, levando a prejuízos biopsicossociais e ao aumento da morbimortalidade. A

coexistência de tantas teorias sobre as doenças, dá origem a diversos sistemas de classificação,

dentre os quais se destacam o DSM-V (2013) e o CID-10 (2008), que classificam a anorexia

nervosa quando ocorre uma perda de peso acentuada à custa de restrições alimentares muito

rigorosas, associada a uma distorção grave da imagem corporal. Além da perda de peso, são

verificadas alterações fisiológicas em consequência desse regime alimentar, como a amenorreia.

5. BLOGS PRO-ANA: A CONSTRUÇÃO DE UM ESTILO DE VIDA

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Os transtornos alimentares são distúrbios que sucessivamente encontram-se presentes na

sociedade, mas que vem crescendo muito nas últimas décadas, devido às mudanças na organização

social, nas relações interpessoais e dos indivíduos com o corpo. As pessoas com anorexia criam um

mundo próprio por meio de comunidades, de blogs e sites da internet. Nesses espaços, estes jovens

expressam seus sentimentos, desejos, ideias, vontades e reforçam atitudes, ao divulgarem dicas,

estratégias e lições de como sustentar comportamentos específicos relacionados a esses transtornos.

Dessa forma, aparecem os movimentos pro-anorexia (pro-ana), bem como as comunidades nas

redes sociais, com este mesmo fim (BITTENCOURT & ALMEIDA, 2013).

O Weblog, ou sua abreviatura de blog, é uma página da web, com entradas datadas em que

os conteúdos armazenados aparecem numa ordem cronológica inversa, mantendo, em sua dinâmica,

as últimas atualizações no topo da página. Sendo uma espécie de ‘log’, ou seja, registro, atualização

e manutenção são acessíveis e necessitam de poucos conhecimentos específicos, o que contribui

para a disseminação de ideias e de trocas de experiências. Segundo Ribeiro (2008), privilegiar os

blogs como campo de investigação, significa atentar para a dimensão imaginária que tal campo

implica, na medida em que pode orientar-nos em direção a uma compreensão da imagem que essas

meninas guardam de si e dos outros e a qual tem sempre como destino a exibição.

Segundo Bittencourt & Almeida (2013), os weblogs surgiram no início dos anos 2000 nos

EUA e na Inglaterra. Os blogs Pro-ana são movimentos que defendem a anorexia como um estilo de

vida, no qual a restrição alimentar é assumida com o objetivo de alcançar um padrão corporal de

magreza extrema e funcionam como uma ferramenta de comunicação e interação no campo da

internet. Esses são amplamente conhecidos como “diário de rede” e, no caso do fenômeno pro-ana,

essas páginas pessoais funcionam como uma rede de comunicação, que trazem narrativas e relatos

da Ana como ente personificado tanto no campo virtual quanto no real.

Os blogs Pro-ana são páginas da internet nas quais os indivíduos interagem com outras

pessoas, que se identificam com o tema e acreditam que a anorexia seja um estilo de vida. Esses

blogs tratam a anorexia nervosa por meio de uma visão positiva, cooperando para a adesão e

manutenção de dietas, práticas de restrição alimentar e criação de um comportamento anoréxico.

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Trata-se de diários virtuais, em que o autor fala de sua rotina, divulga pensamentos, publica vídeos

e músicas sobre o tema em questão, com o objetivo de oferecer orientações de como se tornar ou

permanecer anoréxico. Vale lembrar que esse comportamento adotado pelos membros é visto como

um estilo de vida. Além disso, os usuários podem trocar informações, contar suas experiências,

socializar os “deslizes” ou “recaídas” e as técnicas que utilizam para “enganar” a fome. A postagem

de imagens de pessoas extremamente magras é utilizada pelo autor da página como um modelo a

ser seguido. Através desses sites, muitos jovens expõem o sofrimento e o sacrifício pelo qual se

submetem para alcançar um ideal de beleza criado pela sociedade. Dessa forma, essas comunidades

virtuais funcionam como diários eletrônicos em que os usuários podem registrar suas tentativas de

sucesso ou fracasso para manter o comportamento anoréxico (ALMEIDA, & GUIMARÃES, 2015).

O trabalho apresentará narrativas provenientes do fenômeno pro-anorexia em blogs

brasileiros de 2005 e 2014. Os registros textuais e visuais nos permite explorar o campo simbólico

das representações, discursos e conexões do fenômeno. As postagens, utilizadas como fonte, nos

permite relacionar o campo das representações socioculturais como parte integrante das

experiências pro-ana no ciberespaço, seja como estilo de vida ou doença. Vale citar uma narrativa

no blog que retrata o entendimento sobre a anorexia, segundo a autora do Blog Iniciando… Anna e

Mia, na postagem que tem o título “Dicionário Anna e Mia”, datada de 31/12/2011.

“Anorexia: Vem do latim. Significa sem fome. É um distúrbio alimentar (do ponto de vista

médico) e psicológico. Do ponto de vista anoréxico, a anorexia é um estilo de vida em que a

pessoa come muito pouco, apenas o suficiente para sobreviver, passa às vezes dias sem

comer e gosta de um estilo de magreza como ideal de beleza. Nós, anoréxicos (as)

“apelidamos” nossa amiga de Anna ou Ana” (http://alfa-anna-mia.blogspot.com.br/).

A definição das possíveis categorias interpretativas e analíticas dos discursos produzidos nos

grupos dos blogs Pro-ana está intimamente ligada ao corpo e seus usos no contexto histórico-social

contemporâneo. Os blogs são ambientes em que podemos observar os indivíduos modernos

exercendo algum “direito de propriedade” sobre seus corpos, práticas e usos, o qual incidem na

criação de novas identidades corporificadas, em que se relacionam diversos elementos da

experimentação desse corpo “real” e “virtual”, desde o auto modelamento da imagem corporal à um

padrão massificado de beleza magra, até o (in)sucesso na própria construção do eu (SOUZA, 2014).

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As postagens trazem uma série de recursos textuais e visuais, é comum a vinculação de

vários recursos para reforçar os ideais pro-ana. No campo textual, utilizam-se poesias e relatos

cotidianos sobre práticas diversas. A expressão de sentimentos e sensações tende a variar conforme

as circunstâncias contextuais e estão relacionadas ao complexo campo biopsicossocial que estão

envoltas estas blogueiras. Podemos perceber textos que trazem discursos motivacionais,

depressivos, inspiradores e eufóricos. Um exemplo se dá pela poesia, postada no blog

http://ana17mia.zip.net/, datada de 29/10/06, onde se explicita o sentimento de tristeza desta autora:

“Minha vida tem de ser sofrida/De nada valem os acertos/Não consigo melhorar/É como se

eu não aprendesse nada/Cometo os mesmos erros/Não me canso de errar/Procuro uma trégua

e não encontro/ Como se o destino fosse um porto/Acessível no alem mar/Esse local existe

mas não há veiculo/Que este corpo físico/Consiga transportar/O único caminho é a

morte/Que caso eu tenha sorte/Ira me confortar”.

Por outro lado, são utilizados imagens nos blogs, as fotografias e os lemas compõem parte

importante das chamadas thinspirations, ou seja, as inspirações de magreza postadas na rede. Frases

como “se é saboroso, está tentando te matar”, “um minuto na sua boca, a vida toda no seu quadril”,

“O que me nutre também me destrói “e “um corpo imperfeito reflete uma pessoa imperfeita”

demonstram uma profunda insatisfação com o corpo que possuem e a obsessão pelo que o corpo

pode vir a se tornar, seguindo este estilo de vida. Frases como essas, viram títulos de blogs, posts,

comunidades e são mescladas a fotografias de pessoas magras em vídeos motivacionais

compartilhados (REIS, s.d). Podemos citar um trecho que aborda a identificação do que seria os

blogs pro-ana, segundo a visão da autora do Blog Iniciando… Anna e Mia, a postagem com título

“Dicionário Anna e Mia” de 31/12/2011: “Ana blogs: são nossos diarinhos virtuais onde postamos

nosso perfil (falso é claro, já que não podemos ser identificadas) e nossa dieta, nossos sentimentos,

fotos de inspirações, nossos sonhos, nossos dias, nossas dificuldades, dicas, incentivos.” Acessado

em 28/05/2016: http://alfa-anna-mia.blogspot.com.br/.

Podemos entender por incorporação de práticas, um conjunto de ações possivelmente

“realizadas” e compartilhadas pelas autoras e partidárias das ideias pro-anorexia. Desse modo,

destacam-se como assuntos recorrentes nas postagens, o repúdio a gordura corporal real ou

imaginária, as práticas de jejuns e de restrição alimentar, as purgações, a contagem de calorias

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ingeridas, a utilização de fármacos para inibir o apetite e outros para causar o efeito de laxante.

Além disso, são compartilhadas dietas, dicas e truques de como burlar a atenção de familiares,

amigos e profissionais de saúde, a fim de manterem suas práticas em segredo.

6. LIÇÕES DE HISTÓRIA: DOENÇA OU ESTILO DE VIDA?

Segundo Dilene Raimundo do Nascimento (2014) “entendemos por forma de representação

um conjunto de imagens, sentimentos, configurações plásticas ou literárias, bem como de

valorações, por meio do qual, apesar de seus diferentes modos de manifestação, doenças específicas

vêm sendo, ao longo do tempo, representadas nas mentalidades coletivas”. Sendo assim, analisou-se

o fenômeno da anorexia por meio da representação social da doença levando em conta a definição

patológica no campo biomédico e as experiências compartilhadas nos blogs em defesa desse estilo

de vida. Esta questão nos remete a uma reflexão de que essa doença carrega diferentes significações

pelo indivíduo e coletividade e, que variam conforme o contexto histórico-social, sendo atualmente

“produto” da articulação de fatores socioculturais ligados ao corpo, indivíduo e cultura.

A análise partiu do pressuposto de que a compreensão dos transtornos alimentares para essas

jovens é diferente do conhecimento médico-científico. A questão que se pretendeu discutir aqui não

foi apenas a diferença entre a visão biomédica e científica e como as jovens vivenciam a

experiência da doença, a partir da sua história, crença, cultura, e assim por diante. A questão é mais

ampla, visto que para essas pessoas não há uma enfermidade em jogo. A proposta buscou

evidenciar as diferentes concepções sobre esses transtornos e, compreender a diferença entre os

discursos biomédicos sobre anorexia e a visão que as jovens têm sobre essas práticas que se

apresentam como um estilo de vida possível. Desse modo, foram analisadas quatro narrativas

textuais, observadas em dois blogs, que definem algumas práticas como construção identitária nos

diários de redes pro-ana. Além disso, outros aspectos chamam atenção para construção e

experimentação desta identidade, como por exemplo, a utilização de pulseiras de uma determinada

cor para identificar as praticantes da Ana, observou-se a comunicação por meio de gírias,

expressando termos incorporados que constituíram um dicionário de Ana/Mia. Outros fatores

caracterizam essas práticas, como a divulgação de uma pirâmide que idealiza os tipos de alimentos

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e bebidas para as Anas, além de relatos sobre dietas, uso de medicamentos, disposição de metas,

tabelas de índice de massa corporal (IMC) e de peso ideal.

As postagens podem ser classificadas em três eixos centrais de análise na construção da

representação social do fenômeno: campo textual, visual e experiencial. As publicações trazem uma

série de recursos a fim de reforçar os ideais pro-ana, dentre eles, imagens de modelos, artistas e

vídeos; no campo textual, utiliza-se relatos sobre as práticas Ana, gírias, dietas, medicamentos,

códigos e truques, que visam socializar estratégias para manutenção do baixo peso e alternativas

para ludibriar os familiares em relação à alimentação. No campo das experiências, citamos alguns

fatores percebidos na “adesão” e “defesa” dos ideais pro-anorexia, expressos por símbolos de

exaltação e de autoafirmação entre as partidárias e praticantes da Ana. Vários exemplos retratam a

importância de “códigos” na incorporação e conexão das práticas, como nos casos relatados, as

siglas descritas: Semi-NF (dieta com poucas calorias), No Food (ficar sem comer), Low Food

(comer pouco), que definem diferentes “estágios” de restrição alimentar e de calorias. Podemos

exemplificar na postagem acessada em 28/05/2016: http://ana17mia.zip.net/ , datada de 29-03-07:

“Ah novidade estou trabalhando, assim pelo menos penso menos em comida! Hj 29-03 até

q meu dia foi bom, pelas minhas contas, não comi mto só 2 coisas caloricas q não podia ter

comido. Café da Manhã:1 clube social integral, Depois umas 2:00 horas da tarde comi um

pouco de amendoim japones e qndo foi umas 18:00 comi um pacote de bolacha tortinha da

adria. E agora são 20:54 e não vou comer mais nada. E vou fazer umas 2 horas de bicicleta

hj...e abdominais… Estou com 49 kilos pra 1.60(obesa) mais issu por pouco tempo.”

Podemos explicitar os argumentos apresentados por Diego Armus (2013), acerca da

experiência da doença através da memória e como, a partir dela, podemos correlacionar às práticas

narradas nos blogs Pro-ana. Estes diálogos transpassam a compreensão dos saberes médico-

científicos tradicionais da doença e adentram no campo da historiografia sociocultural e na

experiência da doença e do adoecimento. Entendemos que as memórias constroem histórias

individuais conforme os indivíduos querem. No entanto, essas construções são provas de

experiências sociais. As memórias individuais podem ampliar o horizonte para explorar o seu lugar

na história individual e, se possível, num determinado grupo como um fenômeno social e cultural.

Não há dúvida que a doença é uma realidade no caminho de qualquer indivíduo, e que o doente, em

determinadas circunstâncias, pode ser discutido como um grupo, um grupo social.

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Sendo assim, evidencia-se o nível individual e/ou de membros de grupos sociais em

particular. Tratada como “doença”, cultural e historicamente inserida na sociedade industrial

avançada, com características de distribuição social peculiares, a atual configuração e amplitude da

anorexia define e denuncia o papel da cultura não apenas na constituição de ideologias e de

imagens, como também através da organização da família, da construção da personalidade, do

treinamento da percepção, atuando não apenas como contribuidora, mas como promotora dos

transtornos alimentares. A figura abaixo nos traz reflexões sobre as ambiguidades e sobreposições

da temática. Em alguma medida, os saberes biomédicos e as Pro-Ana partilham discursos

semelhantes, presentes na sociedade, principalmente no “repúdio” à gordura e à obesidade, ao passo

que a magreza tornou-se um elemento cultural e simbólico de sucesso e felicidade. As práticas Anas

representam certa “radicalidade” dos ideias culturais contemporâneos. A figura exemplifica a linha

tênue entre a definição da doença e a defesa do estilo de vida. Anorexia: doença ou estilo de vida?

Elaborado

pelo autor.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em conclusão, é importante pensarmos os fatores que produziram uma quantidade

considerável de blogs pro-ana e do número elevado de interações e acessos. A difusão e a

facilidade de acesso à internet nos últimos anos é um facilitador para sua propagação, mas não

podemos deixar de observar que a aparente liberdade moderna submete a sociedade ao controle,

onde o corpo é controlado pelo consumo, publicidade e moda que, entre outras coisas, legitimam as

“práticas anoréxicas” e o culto à magreza como um estilo de vida possível. Analisar as práticas

narradas e por vezes incorporadas pelas autoras nestes blogs, nos possibilita correlacionar fatores

que evidenciam uma linha tênue entre a experiência patológica e de estilo de vida. De antemão, não

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é intenção do trabalho “patologizar” e categorizar os relatos. O fato é que os transtornos alimentares

acabam por se tornar um estilo de vida se considerarmos que elas tomam atitudes semelhantes, têm

crenças semelhantes e praticam rituais baseados num mesmo objetivo, emagrecer, mesmo que esses

sejam motivados por causas diferentes.

Como observado em outros trabalhos, o fenômeno Pro-ana produz um duplo movimento: se

por um lado, adere a certos ideais de beleza, por outro, procura atingi-los por uma via que beira, e

talvez mesmo adentre, o campo da patologia. Analisando a amplitude da anorexia nervosa, para

além da etiologia da doença psicopatológica e, buscando romper com as abordagens tradicionais

voltadas ao conhecimento biomédico, podemos dizer que este breve estudo histórico nos permite

correlacionar a multiplicidade de fatores socioculturais e a representação social do fenômeno,

sobretudo, dando “voz” às memórias narradas, as experiências da doença e/ou do adoecimento e da

construção da identidade “online” e “offline”, ligadas as práticas e ao estilo de vida das “Anas”.

Portanto, se por um lado, há um padrão de magreza, por outro, assistimos à mídia e à ciência

incentivando o prazer oral, ao ofertarem as possibilidades do ‘comer bem’ e do ‘comer saudável’. E

nisso reside um movimento paradoxal, onde novas figuras do corpo vão sendo construídas pela

anorexia, bulimia e compulsão alimentar, já que esses ideais, muitas vezes, chocam-se com a

realidade corpórea de cada um. Os sujeitos, à mesa, veem-se imersos em sentimento de culpa,

quando o prazer oral escapa aos limites de padrões sociais exigidos, uma vez que o olhar do outro é

determinante nos destinos de seu gozo. Dessa forma, esse mesmo corpo, que é promessa de

perfeição, apresenta-se como alvo de padecimento (NEIVA, 2008). Para sintetizar o paradoxo

apresentado, citamos o trecho de um blog analisado por Bittencourt & Almeida (2013, p. 223),

“quando as anoréxicas são criticadas por seus comportamentos nesses espaços” elas rebatem que

não foram elas que criaram os padrões nos quais a gordura é vista como algo ruim. Defendem que a

sociedade trata mal e estigmatiza os gordos e que por isso não podem condená-las por tomarem

atitudes que as protejam deste estigma: “Aliás, não era eu quem ria dos gordos do colégio. Isso é

culpa da sociedade, que cria padrões, e depois, quando seguimos isso, nos chamam de loucos”.

7. REFERÊNCIAS

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