Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

31
“A morte que anima a vida: etnografia dos conflitos em torno de terras para viver e para morrer na África do Sul contemporânea” Antonádia Borges (DAN/UnB) - [email protected] Os eventos de 2007 Estávamos na sala de jantar da Senhora Mbatha (cerca de 70 anos). Há pouco nós entrevistávamos o advogado do LEGAL AID OFFICE a respeito dos processos de restituição de terra. Ele esclarecera que parte considerável dos processos são movidos por ex-moradores de zonas rurais, compulsoriamente banidos para as locations urbanas nos anos 60. A Sr. Sibongile era uma dessas pessoas. Vivera até pouco tempo em Madadeni. Mudara-se para o centro de Newcastle depois que sua filha, tornada juíza de direito, comprara-lhe uma casa confortável em um bairro de classe média – outrora exclusivo para brancos. Mangaliso pensou em Sibongile quando eu lhe pedi ajuda: queria me aproximar das periferias urbanas na África do Sul, em especial na região de Kwazulu-Natal, que aos meus olhos parecia menos explorada que os arredores de Cape Town e Johannesburg. Ele, líder do Landless Peoples Movement (LPM) morara em Madadeni, trabalhara como motorista de van (em inglês se diz taxi). Seu retorno às casas de barro aonde nascera, ao curral (kraal) em Ingogo, ocorrera aproximadamente quando se intensificou seu envolvimento com a luta do LPM (como indica a pesquisa de Marcelo Rosa). Apesar do afastamento pessoal da vida na cidade, Mangaliso pensara na Senhora Sibongile como a pessoa ideal para me encaminhar para a vida em Madadeni. Senhora Sibongile Mbatha NO CITAR SIN LA DEBIDA AUTORIZACIÓN DEL AUTOR. La difusión de este texto está restringida a su lectura y debate en el marco del Seminario Permanente del Centro de Antropología Social del Instituto de Desarrollo Económico y Social (IDES)

Transcript of Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Page 1: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

“A morte que anima a vida: etnografia dos conflitos em torno de terras para viver e para morrer na África do Sul contemporânea” Antonádia Borges (DAN/UnB) - [email protected]

Os eventos de 2007

Estávamos na sala de jantar da Senhora Mbatha (cerca de 70 anos). Há pouco nós

entrevistávamos o advogado do LEGAL AID OFFICE a respeito dos processos de

restituição de terra. Ele esclarecera que parte considerável dos processos são movidos por

ex-moradores de zonas rurais, compulsoriamente banidos para as locations urbanas nos

anos 60. A Sr. Sibongile era uma dessas pessoas. Vivera até pouco tempo em Madadeni.

Mudara-se para o centro de Newcastle depois que sua filha, tornada juíza de direito,

comprara-lhe uma casa confortável em um bairro de classe média – outrora exclusivo para

brancos.

Mangaliso pensou em Sibongile quando eu lhe pedi ajuda: queria me aproximar das

periferias urbanas na África do Sul, em especial na região de Kwazulu-Natal, que aos meus

olhos parecia menos explorada que os arredores de Cape Town e Johannesburg. Ele, líder

do Landless Peoples Movement (LPM) morara em Madadeni, trabalhara como motorista

de van (em inglês se diz taxi). Seu retorno às casas de barro aonde nascera, ao curral (kraal)

em Ingogo, ocorrera aproximadamente quando se intensificou seu envolvimento com a

luta do LPM (como indica a pesquisa de Marcelo Rosa). Apesar do afastamento pessoal da

vida na cidade, Mangaliso pensara na Senhora Sibongile como a pessoa ideal para me

encaminhar para a vida em Madadeni.

Senhora Sibongile Mbatha

NO CITAR SIN LA DEBIDA AUTORIZACIÓN DEL AUTOR. La difusión de este texto está restringida a su lectura y debate en el marco del Seminario

Permanente del Centro de Antropología Social del Instituto de Desarrollo Económico y Social (IDES)

Page 2: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Ela foi extremamente gentil. Convidou-nos para ir à sua casa. Enquanto comíamos

sanduíches, na hora do almoço, Mangaliso e ela lembravam-se de mortes e enterros. O

assunto surgira a partir do envolvimento particular de cada um dos dois com este tema, ao

longo de uma vida intensamente marcada por morte e por culto aos ancestrais (e isso, não

apenas porque a literatura assim o diz).

Sibongile Mbatha liderava um grupo de restitution claimants que aguardava o dia

em que o governo lhes devolveria a fazenda que lhes fora tomada após o GROUP AREA

ACT, no final dos anos 60. Dentre os membros desse grupo havia um senhor que fora

impedido, após o fim do apartheid, de depositar as lápides sobre o túmulo de seus parentes

mortos. O fazendeiro, dono das terras, que aceitara o enterro, já não permitira mais a

entrada dele e de sua família na área para a realização de funerais e sequer para cerimônias

de cultos aos ancestrais. Os expulsara do local armando uma emboscada, torturando-os

com requintes de crueldade.

Fotos do Sr. Mabaso com as lápides, usadas como evidência pela Sra. Mbatha.

Mais de 10 anos de espera para depositá-las sobre os túmulos

O fazendeiro evitava, como muitos outros, que novas evidências do enraizamento

da população negra fossem colocadas em sua terra. Seu temor justificava-se da seguinte

maneira: os burial sites eram documentos ativos, capazes de determinar o curso de um

processo de restituição de terras (Cf. Peirano). Nos fundos do pátio da casa do Sr. Mabaso

– localizada em uma township chamada Osizweni (em Zulu: um lugar para receber ajuda),

para onde foram deslocados há mais de 40 anos – as lápides resistiam, mais do que o velho

homem, à passagem do tempo.

Page 3: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Sr. Mabaso mostra-nos as lápides, nos fundos do quintal de sua casa na cidade

Já Mangaliso recordava de eventos envolvendo morte e enterros porque se via às

voltas com um ritual muito delicado. Em 1995 sua amada esposa falecera em um acidente

de taxi. Desde então ele passou por diversas rupturas com a vida que levava ao lado da

esposa: deixou de trabalhar em empregos urbanos (ele próprio dirigira taxis), deixou de

morar na location (outro nome dados às townships), mudando-se com as filhas para

Ingogo, a área rural onde seu pai vivera. Ele recordava-se do mal-estar que sentira no dia

do falecimento de sua esposa: eles deveriam ter viajado juntos para Johanesburgo, mas ele

se atrasou. A sua angústia foi crescendo, sem que ele soubesse o motivo. Apenas quando

recebeu um telefonema, avisando da fatídica notícia, pôde dar um nome ao sentimento que

o torturava.

Naquela ocasião, como acontece atualmente em todo o país, após a morte o corpo

aguarda normalmente uma semana (nas casas funerárias especializadas), até a sexta-feira

seguinte ao falecimento, quando começa o velório propriamente dito: a noite de vigília

seguida do enterro no sábado.

No final do ano (2006), um vizinho de Mangaliso, veio lhe dizer que tinha recebido

a esposa dele em sonhos. Nos sonhos ela lhe dizia que o procedimento do enterro e o

rituais posteriores não foram suficientes para conduzi-la de seu local de morte ao túmulo.

Embora seu corpo estivesse junto aos dos ancestrais – apesar de todas as retaliações dos

fazendeiros donos da terra aonde ficam suas casas e curral – sua alma ou espírito vagava.

De alguma forma ela estava ainda – passados mais de dez anos – inquieta. Mangaliso

precisava, portanto, reconduzir, por meio de um ritual preciso, sua esposa ao lugar que lhe

era de direito.

Page 4: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Mangaliso e a fotografia de sua falecida esposa

Sibongile lembrava-se com alegria de sua infância na fazenda de seu pai, quando um

toque específico do sino anunciava o falecimento de algum morador da aldeia. Todos eram

dispensados do trabalho na roça e as crianças não precisavam ir à escola. Um marceneiro

do povoado construía um caixão rústico. Os vizinhos preparavam comida para a família em

luto que, em troca, retribuía oferecendo chá às condolências dos amigos e parentes.

O avô e avó maternos da Sra. Sibongile

Segundo os dois, hoje os funerais tornaram-se um negócio capitalista na África do

Sul. Qualquer um pode perceber a forte presença da morte na vida local. Basta abrir um

jornal e contar o número de anúncios nos classificados oferecendo venda ou aluguel de

tendas e todos os demais apetrechos necessários à realização das cerimônias dos finais de

semana ou ainda as inúmeras ofertas de seguros funerários que apelam - por vezes de

forma mórbida, por vezes de forma divertida – para que as pessoas sejam previdentes, que

não sejam “pegas de surpresa”.

Page 5: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Seção de obituários de um jornal local

Tirinha humorística:

- É o enterro de nosso vizinho amanhã.

- Você poder ir só, se quiser.

- Por quê?

- Ele já era. Obviamente nunca virá ao meu funeral!

Anúncio de seguro funeral

“Não espere que seja tarde demais!”

A justificativa comum para se esperar hoje em dia este tempo de uma semana para

velar e enterrar um defunto diz respeito à importância da presença de amigos e parentes ao

funeral. Todos os que morrem, podem se tornar ancestrais. Assim como o ancestral pode

ter um papel benfazejo na vida dos vivos, o contrário também acontece. Igualmente os

vivos que comparecem ao funeral – levando seus presentes, como cobertores e esteiras

para a família ou contribuindo com algum dinheiro para as despesas – podem ajudar no

percurso post-mortem do falecido. Em outros casos, o mal procedimento dos vivos – seja

por negligência ou por decisão deliberada - resultará em um processo degenerativo que

Page 6: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

atinge vivos e mortos, os familiares e os ancestrais. Diante de tão delicadas artimanhas do

destino, todos preferem não ousar e esperar o tempo que for necessário para que o maior

número possível de pessoas compareça aos funerais.

A diáspora interna, que se desenrolou ao longo do período do apartheid, desfez o

mundo idílico do qual se recordava Sibongile. Os parentes e vizinhos já não moram na

mesma aldeia. Já não é possível construir os caixões com as próprias mãos. Já não lhes é

mais permitido enterrar seus parentes no solo aonde viviam – hoje, terras de fazendeiros

brancos, alvo das políticas e lutas por restituição. Entretanto, para Sibongile o pior de tudo

isso é que ao longo da espera – pela chegada dos parentes, pelos recursos para pagar as

despesas funerárias, pela autorização do fazendeiro para deixar que o corpo seja depositado

no mesmo sítio onde jazem os outros ancestrais – as lágrimas secam1.

Após o fim do apartheid, os túmulos transformaram-se em documentos, em índices

da ancestralidade das famílias na região das fazendas de onde foram expulsas; o quê, na

maioria das vezes, indicava também a propriedade de uma terra que lhes foi usurpada. O

acordo tácito entre brancos e negros, que permitia a realização das cerimônias funerárias,

começou a ruir. Os fazendeiros brancos – em especial aqueles filhos dos velhos fazendeiros

- já não mais permitem os enterros ou qualquer outra cerimônia.2 Em torno dessa recusa,

uma série de eventos marca a atuação de movimentos sociais como aquele liderado por

Mangaliso Khubeka – o Landless Peoples Movement.

1 A observação de Sibongile Mbatha diferencia-se totalmente do julgamento que Scheper-Hughes (1992) faz da morte sem lamento no nordeste brasileiro. Para a antropóloga, a rotinização da morte teria tornado as mães sobretudo insensíveis à perda de suas crianças. A Sra. Mbatha sugere que o tempo transcorrido entre a morte e o enterro da pessoa falecida não permite que o luto seja expresso em situação cerimonial em concomitância com os sentimentos pessoais – de perda, de sofrimento – que emergem em cada individuo quando da notícia da morte. Haveria, em seu olhar, um descompasso entre o ritmo social vivido pessoalmente e o ritmo imposto pelo negócio da morte na AFS contemporânea. Para a Sra. Mbatha os sujeitos foram usurpados, destituídos de suas lágrimas. Ao contrário de Erik Bähre (2007), ela não os encara como frios calculistas, dispostos preponderantemente a fazer dinheiro à custa dos mortos e de sua família. É importante ainda notar que, conforme o relato que segue, nos tempos em que viviam na fazenda, antes da remoção para a location, as pessoas conhecidas de Sra. Mbatha apoiavam-se mutuamente no instante mesmo da morte. Hoje, com a diáspora interna provocada pelo apartheid, inúmeras variáveis concorrem para que os parentes de um morto consigam se reunir para os serviços funerários. Durante esse tempo de espera, é possível conjecturar, os sujeitos sofrem as conseqüências, os abalos da morte em um ambiente menos povoado por pares solidários. Em suma, fica-se bastante sozinho até o momento em que ocorre a reunião de todos os que querem, precisam, podem celebrar o velório. Esse intervalo de tempo, com a possibilidade de introspecção talvez responda em parte pelo fenômeno descrito por Sra. Mbatha como um “secar de lágrimas”. Esta minha última observação deriva de uma inspiração alcançada quando da leitura de Paul Radin sobre os funerais Winnebago. 2 Aqui faço um paralelo com caso sul-africano com aquele da África Ocidental (caso dos Manjaco, estudados por Gable, 2006). Lá, mesmo que sem os corpos (que ficam nos locais para onde aconteceu a migração, como Paris ou Lisboa), os rituais funerários acontecem. Para o autor, a morte, ou melhor, o enterrro, é o momento da repatriação daqueles que partiram (:390). Já no caso sul-africano, cada funeral impedido significa o eterno desterro.

Page 7: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Mangaliso dedicou-se ao movimento com afinco após a morte de sua esposa.

Entretanto, apesar de todo seu envolvimento e feitos heróicos, não se considerava

satisfeito. Havia problemas em sua vida – sobretudo sob a forma de inveja – que o

atormentavam. Naqueles dias, ao localizar a fonte de sua intranqüilidade na falta de

quietude vivida pelo espírito de sua esposa, Mangaliso parecia mais esperançoso: se ela

descansasse em paz, talvez ele também voltasse a ter alívio para os seus males. Por isso

mobilizou todos os recursos possíveis para o ritual: pediu emprestado o carro de um primo

próspero para ir ao local do enterro; abateu uma cabra, em suma, cumpriu suas obrigações.

Uma das ações de maior repercussão midiática do LPM ocorrera há uns poucos

anos. Naquela altura os membros do movimento ajudaram a restituir o corpo de uma

jovem ao local de enterro de seus ancestrais. A exumação do cadáver de Gertrude Zondi

do cemitério na township e a sua recondução às tumbas tradicionais foi uma vitória do

movimento contra a recusa do fazendeiro.

Exumação de Gertrude Zondi

Posterior enterro de Gertrude Zondi

A política dos funerais é de extrema importância no contexto dos land affairs sul-

africanos. Para esses eventos convergem elementos oriundos de espaços sociais distintos

(e.g. bruxaria no sentido lato, HIV/AIDS, dispersão das famílias, o culto de ancestrais etc.),

cuja combinação inaudita pode configurar situações de profundas e diversas emoções,

anseios e performances.

Page 8: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Faço um parêntese para enfatizar que nós fomos a enterros em praticamente todos

os sábados ao longo de nosso trabalho de campo.

Obviamente, nem todos os enterros que acontecem aos sábados, transformam-se

em palcos de manifestações políticas. Por essa razão farei uma breve exposição de três

casos distintos, por nós presenciados: o do Sr. Khubeka, da jovem Doris e da jovem

Nomusa.

O enterro de Khubeka

Khubeka era um primo de Mangaliso que também tinha em torno de cinqüenta

anos. Viviam próximos, na cidade rural de Ingogo. Diferentemente de Mangaliso, seu

primo continuara no negócio do taxi. Ao contrário daqueles que aguardam pelo desenrolar

dos processos de restituição de terras, como Sibongile, o falecido Khubeka conseguira

comprar do fazendeiro branco as terras que um dia pertenceram à sua família. Na fazenda

vivia sua primeira esposa. Era ali que ele criava seu gado, que víamos ser tangido para lá e

para cá durante o seu funeral.

Aquele fora sem dúvida o enterro mais suntuoso que presenciamos. A família

contratara uma empresa especializada chamada Doves. Havia duas tendas montadas. Uma

capaz de abrigar 100 pessoas, onde ocorrera a vigília na noite anterior. Outra para mais de

1000 pessoas, onde aconteceram as homenagens ao corpo presente. Estava por lá gente de

toda procedência. O espectro dos tipos que prestavam condolências dava conta da

amplidão de relações de Khubeka em vida e ofereciam uma espécie de mural do cotidiano

que conhecíamos na região de Kwazulu-Natal: os amigos da cooperativa de taxi, o

fazendeiro branco que lhe vendera a terra e depois viera a lhe pedir um empréstimo para se

livrar da bancarrota, os parentes da roça, os parentes da cidade, a esposa da roça, as esposas

mais jovens da cidade, os carros modernos e luxuosos, as bicicletas enferrujadas e os

calçados gastos sujos da poeira das estradas. Os discursos, como costumam ser, enalteciam

as qualidades daquele homem que se fora de forma tão repentina – após ter sofrido um

ataque cardíaco. Os discursos oficiais das autoridades das igrejas presentes (independentes)

eram do mesmo teor.

Mangaliso trabalhou incessantemente neste dia como Mestre de Cerimônias. Ele,

que costuma ser auxiliado em tarefas logísticas por outros companheiros do movimento,

via-se às voltas com toda sorte de detalhes e problemas prosaicos: desde as cadeiras e os

lugares corretos para acomodar os que chegavam ao que se ia comer após o enterro.

Page 9: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Repetindo e pensando sobre a teoria da Senhora Sibongile, toda aquela pompa não

garantiu que sequer uma lágrima fosse derramada. A não ser as de Mangaliso. Ele repetira

em seu discurso de despedida a mesma cena emocionada que costumava lhe arrebatar nos

enterros promovidos com a intervenção política do LPM. As suas lágrimas, que até então

assumíramos como exclusivamente políticas, tinham adquirido um sentido a mais.

O enterro de Doris

Doris Dlamini era uma jovem de quase trinta anos, solteira, mãe de uma criança.

Ela trabalhara em uma granja de frangos até o momento em que sucumbiu à “doença”

(alguns de nossos amigos, em suas traduções, aventavam a possibilidade de “a doença” ser

decorrente de HIV/AIDS, deixando claro que naquele momento ninguém declarava

publicamente este tipo de apreciação).

O caso de Doris mobilizava os sentimentos coletivos porque o fazendeiro, dono

das terras aonde ela vivia com seus pais, proibira o seu enterro. Embora os pais de Doris

trabalhassem ainda hoje para o fazendeiro, o dono das terras havia se manifestado

contrário ao funeral em seus domínios.

Uma, das diversas matérias jornalísticas, sobre o caso Doris

O conflito se passava em Lions River, uma localidade próxima à cidade na qual o

LPM tem sua principal base de atuação e também seu escritório central. O enterro de Doris

transformou-se rapidamente em uma bandeira do movimento. Os apoiadores – militantes e

funcionário da Associaton for Rural Advancement (AFRA), ONG que oferece suporte

logístico ao movimento - encabeçaram uma discussão pública, com debates na rádio local

contra o Departamento de Land Affairs. Nos jornais, diariamente, publicavam-se notícias

sobre o desenrolar das negociações. A situação era bastante tensa e, após um acordo

firmado em bases não muito sólidas com o governo local, foi garantido o enterro de

Doris3. Desconfiados e temerosos, os membros do LPM decidiram convocar seus

3 Por bases não muito sólidas deve-se entender uma certa desconfiança que andava de mãos dadas com uma série de rumores: sobre a possibilidade de o governo não garantir o enterro, sobre a chance de o fazendeiro se lançar com milícias privadas contra os manifestantes etc.

Page 10: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

militantes para comparecerem ao enterro. Dizia-se àquela altura que o enterro aconteceria,

mesmo que à força.

No dia do enterro, um sábado, o clima era de euforia e tensão. Os carros

precisavam passar em frente à sede da fazenda, cruzar uma ponte e atravessar uma estrada

em péssimas condições para chegar ao homestead da familia Dlamini. Em frente às

choupanas de barro, muitos carros da polícia indicavam o espírito belicoso da negociação

que se travara até aquele ponto. Diversos veículos de outros órgãos oficiais do governo

também sugeriam a dimensão político-governamental para a qual a morte de Doris se

encaminhara.

Uma tenda – capaz de abrigar 100 pessoas – estava armada ao lado das casas de

barro. Os homens, longo à entrada, cavavam a sepultura. Escutava-se o canto das mulheres

que, dentro da casa redonda, velavam o corpo de Doris. Somei-me a essas mulheres,

enquanto Marcelo Rosa observava a movimentação dos que ficaram no lado de fora, em

sua maioria, membros do LPM. De dentro da casa redonda, o som vindo do megafone,

com palavras de ordem e cantos políticos dos tempos de “struggle”, isto é, dos tempos das

manifestações contra o apartheid, tornavam a situação ainda mais pungente.

Depois que todos os líderes religiosos adentraram a casa redonda, as últimas

palavras sagradas foram lidas. O caixão foi encaminhado da casa redonda para a casa aonde

Doris vivia: era sua despedida. Logo em seguida, Doris foi depositada no interior da grande

tenda. Atrás do caixão, uma mesa dava lugar às autoridades. O próprio Ministro regional

dos Land Affairs estava presente, indicando a importância capital daquele evento.

Bandeiras do LPM e do MST (do Brasil) foram dispostas atrás das autoridades políticas e

religiosas4. Os depoimentos de louvor à falecida eram intercalados por cantos religiosos

entoados preponderantemente pelas mulheres das irmandades e igrejas presentes. Aos

poucos, os líderes políticos tomavam a palavra. Era notável a diferença de tom entre uma e

outra fala, entre o depoimento familiar dos que conheciam Doris e daqueles que

transformaram a jovem morta em um símbolo da luta política contemporânea na AFS.

4 As bandeiras do Brasil remetiam a um intercâmbio entre os movimentos dos dois países. Em ao menos três ocasiões, militantes do MST foram para a África do Sul, compatilhar sua experiência com os companheiros locais. Igualmente, membros do LPM estiveram no Brasil, sobretudo nas diversas edições do FSM (Fórum Social Mundial) em Porto Alegre.

Page 11: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Mangaliso: lágrimas para Doris

Encerrados os confrontos, o corpo de Doris foi conduzido em cortejo para o lugar

de seu sepultamento. À beira da sepultura, mais uma vez, misturavam-se as vozes de

protesto com as palavras ora amenas ora efusivas dos líderes religiosos que zelavam pela

condução de Doris para junto de seus ancestrais.

Enterro de Doris Dlamini, ocorrido em Lions River

Quando a sepultura já estava coberta, começou a função do almoço. Alguns

comiam os alimentos preparados pelas mulheres para o público comum. Outros, em sua

maioria homens da família, foram agraciados com pedaços de carne de gado assada – carne

vinda do sacrifico necessário à ocasião.

Os frutos políticos do enterro foram colhidos ainda na semana seguinte. Um dos

jornalistas presentes publicou uma matéria dizendo que os manifestantes do LPM

conclamavam a multidão para diversos gritos beligerantes – dentre esses: “Viva Mugabe!

Viva!” e “morte ao fazendeiro”, “fazendeiros são cães”. A ONG que orienta as ações do

movimento e administra uma considerável soma de recursos financeiros ficou apreensiva

com a notícia, publicando na imprensa uma nota de esclarecimento. Os companheiros que

entoaram os cantos de guerra foram devidamente punidos por seus feitos estranhos ao

espírito de conciliação que se tenta construir à força na AFS, desde o fim do apartheid;

alguns chegando a perder os seus empregos.

Page 12: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

O enterro de Nomusa

Embora o enterro de Doris tenha reanimado o espírito das lutas políticas dentro do

LPM, a repercussão negativa da beligerância dos ativistas gerou uma espécie de cisão no

grupo.

Nomusa faleceu neste período. Ela era igualmente jovem, solteira, mãe de uma

menina de 10 anos ou menos. Nomusa trabalhava como agente comunitária de saúde e

deixou seu trabalho quando “a doença” tirou-lhe todas as forças. A jovem trabalhava em

uma região de plantation de cana-de-açúcar, notória pelos abusos cometidos pelos

fazendeiros locais contra os trabalhadores negros. Ela vivia com seus pais em uma dessas

fazendas. Todos os membros de sua família trabalhavam nas lavouras de cana, à exceção

dela. Por essa razão, o fazendeiro não permitiu que o corpo de Nomusa fosse enterrado em

seus domínios.

O caso assemelhava-se muito ao de Doris. No entanto, sem o envolvimento ativo

dos empregados da ONG (que movimentaram a imprensa, que geraram debates com os

líderes do governo), os militantes do movimento ficaram abandonados à própria sorte.

Vela, nosso amigo, morador da região e líder jovem do movimento (diga-se de

passagem, a partir do argumento de Marcelo Rosa, um líder jovem com mais de 35 anos),

viu-se boicotado. Todos os seus pedidos de ajuda foram negados. Não havia recursos para

o enterro, lhe diziam na ONG. Sequer camisetas vermelhas, armazenadas na sede da

AFRA, lhe foram doadas para vestir as pessoas que comparecessem ao enterro.

Vela não se deixou esmorecer pelos empecilhos que surgiam de todos os lados.

Conseguiu reunir o dinheiro necessário para alugar uma van que serviria para transportar

alguns companheiros vindos de longe. A família encarregou-se do aluguel da tenda, da

comida para todos – no dia da vigília e no dia do enterro. Vela conseguiu ainda ter com a

oficial do departamento de land affairs e garantir o direito de enterrar Nomusa a despeito

das ameaças feitas pelo fazendeiro.

Ainda assim, com tudo orquestrado, Vela estava apreensivo: de que adiantava

tamanha mobilização se aquele enterro não teria qualquer repercussão? Se aquele enterro

não se transformaria em mais uma das bandeiras de luta do LPM? Para Vela, a

oportunidade de angariar a simpatia e o engajamento de sua vizinhança estava sendo

desperdiçada. Os moradores da região há muito desconfiavam da atuação do movimento,

inquirindo-o sempre: “o que há de tão especial com vocês do LPM, que vão a tantos

encontros, viajam para lá e para cá e nunca trazem qualquer benefício para a nossa região?”.

Page 13: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Nós quando chegamos, não vimos nenhum vestígio de que um enterro aconteceria

por ali. Mesmo Mangaliso ficou desolado com a situação. Vela estava no meio da mata,

cavando junto com os outros homens a cova onde Nomusa seria enterrada. O fazendeiro

circulava com sua 4X4, procurando amedrontá-los. Meia dúzia de mulheres se somava à

mãe em luto, sob a tenda pequenina, ao lado do caixão de Nomusa. Vela havia estendido

uma bandeira do LPM na lona da tenda, próxima ao caixão.

Thandi, a mestre de cerimônias, aguardava-nos quando chegamos. Vestida com seu

uniforme de trabalho na lavoura, em breve ela passaria por uma transformação em suas

vestes e em sua voz: entoando cantos e conclamando os presentes, que se fizeram muitos

ao longo do dia, a se despedirem de Nomusa com palavras amigas.

Mangaliso perguntou-me o que fazer com as bandeiras do movimento que

trouxera. Sentia-se constrangido. Sugeri a ele que as estendesse no varal das roupas: uma

bandeira do MST e outra do movimento camponês do Moçambique se somavam a do

LPM.

Mangaliso: lágrimas para Nomusa

Aos poucos, talvez mais de cem pessoas tenham aparecido. No meio delas, as

bandeiras adquiriram uma força impressionante. Sendo empunhadas pelas jovens, ao longo

da plantação de cana-de-açúcar, em direção à matinha, aonde Nomusa descansaria, junto

dos seus.

Em nosso retorno fomos brindados com almoço. Pela primeira vez fomos servidos

com a carne do sacrifício, com pão tradicional, com a refeição normal (legumes diferentes,

picadinhos; carne picadinha com um tempero que lembra curry, saladinha de maionese e

arroz colorido com curcuma – tudo picadinho, para se comer com as mãos), com

sobremesa e, inclusive, com cerveja.

Vela estava radiante. Mangaliso, surpreso. Para os dois, sobretudo para o último,

que já tinha visto de tudo nesta vida, a luta (struggle) transformara-se em uma seqüência de

eventos grandiosos, intercaladas por momentos ordinários, aos quais já não davam mais

tanta importância.

Page 14: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Quando chegamos ao Brasil, recebemos um e-mail seu, dizendo que a comunidade

tinha se animado com aquele feito – ao contrário do que todos nós supúnhamos, mesmo

sem mídia, mesmo sem camisetas, aquele enterro teve sua repercussão. Quando saímos do

enterro, Thandi nos disse que a polícia estivera ali, com a intenção de reprimi-los, sob

ordem do fazendeiro. Os oficiais, ao ouvirem que o LPM estava por ali, deram marcha à ré.

Teriam dito: “com esses caras, nós não nos metemos”. O LPM era mais que os dois líderes

ali presentes, o LPM estava na cabeça de muita gente – inclusive na dos policiais. Naquele

dia não fomos somente nós – os antropólogos – que (re-)descobríamos a importância dos

mortos em nossas vidas.

Esteiras, Cobertores, Cantos e Bandeiras: lições do enterro de Nomusa

Os eventos de 2008

Quando voltamos para mais uma temporada de trabalho de campo na África do

Sul, no verão de 2008, nos deparamos com um documento que trazia estampada uma de

nossas fotografias, feita no ano anterior, durante o enterro de Doris em Lions River –

quando ações orquestradas pelo LPM e AFRA levaram o Estado a garantir que uma jovem

negra fosse enterrada nas terras de um fazendeiro branco, na qual seus pais trabalham e

vivem.

A publicação – uma espécie de dobradura – trazia ainda uma outra história que nos

era muito cara. Nossa amiga Sibongile Mbatha narrava sua incessante e até agora inócua

luta por reaver as terras que foram usurpadas de sua família nos anos 60.

O funeral e a luta da Sra. Mbatha eram dois dos principais eventos que haviam

marcado nossa pesquisa no ano anterior. Nos dois casos, nossos amigos se opunham a

fazendeiros brancos, tendo o Estado como árbitro da contenda. Dava-nos certo alívio

constatar que estávamos de fato discutindo lugares-eventos que eram de suma importância

também para nossos anfitriões. Ao mesmo tempo, entretanto, sentíamos certa apreensão

ao perceber que não aconteceram, ao longo de 2007, outras mobilizações de igual teor.

Esta primeira impressão não demorou a se desfazer. Thabo Manyathi, nosso amigo

que trabalha para a AFRA, convidou-nos para uma conversa que uma deputada (Barbara

Page 15: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Thomson) teria com a comunidade, em Dannhauser. Ao explicar-nos o objetivo da

discussão, nosso amigo comentou com ironia que ela iria até lá para “descobrir o que já

sabia” a respeito dos embates entre fazendeiros brancos e farm dwellers negros na região.

Este encontro transcorreu de maneira similar a muitos outros que acompanhamos:

uma mesa composta por autoridades se colocou a frente de um pequeno auditório. Os

membros da comunidade dirigiam à deputada (ANC) e à prefeita (IFP) seus comentários e

reivindicações.i Elas e outros políticos locais respondiam às questões de forma evasiva,

tentando contemporizar e afirmando que, como membros do parlamento ou como

governantes, precisavam governar para todos, ou seja, não podiam assumir explicitamente

uma militância contrária aos fazendeiros brancos. Para desespero dos presentes, foi

levantada a hipótese de se fazer um outro encontro, conclamando os fazendeiros brancos e

os policiais. Rapidamente os membros da comunidade conseguiram deixar claro o quanto

temiam as represálias e a violência da polícia – controlada por policiais brancos - e dos

“jagunços” dos fazendeiros (Mapogo).

Os membros da comunidade narravam casos de toda sorte:

[...] fazendeiros que implantavam caçadas em suas fazendas (game farms),

sujeitando os moradores ao ataque de animais selvagens; represálias dos fazendeiros sobre

o pequeno espaço ocupado pelos farm dwellers, como o seqüestro do gado, o

envenenamento do pasto ou dos cães, corte da fonte de água, bloqueio de acesso aos

atalhos que levam para fora das fazendas e, por causa disso, crianças que deixam de ir à

escola; proibição de visitas; proibição de reparos nas casas danificadas com o passar do

tempo etc..

Todos os casos ressoavam em nossas cabeças e traziam à nossa frente diversas

situações de igual teor, vividas por outras pessoas que conhecêramos.

Havia, entretanto, um grupo um pouco maior que se destacou nesse encontro. Eles

traziam à tona o caso de um falecido membro de sua família – Senhor Khubeka. Este

homem falecera quando visitava familiares seus em uma township próxima a Bergville.

Seus parentes, moradores de uma fazenda em Normandien, gostariam que ele fosse

enterrado junto a outros parentes, no mesmo graveyard. O fazendeiro branco não permitira

o enterro, justificando que o homem morto já não mais trabalhava na fazenda. A família do

falecido acreditava que era um direito do morto ser enterrado na fazenda do proprietário

branco porque seu parente havia trabalhado naquela fazenda por mais de 12 anos no

passado. Enquanto a disputa transcorria no Tribunal, o corpo do falecido estava

depositado em um “mortuary”. As pessoas estavam preocupadas com o gasto e também –

Page 16: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

um tema recorrente naquele verão – com a degradação do cadáver, devido aos cortes de luz

vividos em todo o país. Nas palavras dos familiares, que reclamavam para a deputada, o

fazendeiro branco os estava impedindo de retirar o corpo do mortuary, temendo que a

família fizesse um enterro à força. A deputada – parecendo ingenuamente bem

intencionada – perguntou-lhes se eles tinham ido até a delegacia de polícia, denunciar tais

abusos. Os homens responderam-lhe prontamente que os policiais em posições de

comando são brancos, proprietários de terras na região. Ela, lamentava, dizendo ter

tomado ciência do caso apenas naquele momento.

Uma das lideranças do LPM da cidade (Dannhauser) tomou a palavra e reagiu às

tentativas de conciliação propostas pelos políticos da mesa. Para ele, o enterro seria feito de

qualquer jeito, mesmo que à força. Sipho Khumalo não se preocupava com as ameaças de

morte. Já se considerava morto, vivendo sob ameaça constante dos brancos, sem ter

mesmo direito à água. O burburinho tomou conta da sala. Todos queriam falar. Depois de

ouvir um pouco mais, a deputada fez um telefonema para o ministro local (Department of

Land Affairs). As mais de 50 pessoas que estavam presentes ficaram em absoluto silêncio

para ouvir a conversa entre a deputada e o ministro, transmitida pelo recurso de viva-voz

do telefone celular. O ministro usou de meios diversos para postergar a discussão. De

acordo com a conversa, os casos de conflito acerca de enterros de trabalhadores negros em

fazendas de brancos iam para a justiça e era preciso esperar as sentenças. Conflitos como

aquele – acerca do enterro do Senhor Khubeka, não diziam respeito a um crime. Não era

possível “tomar as leis em benefício próprio” (take the laws in our/in your own hand).ii

Desamparados diante de leis formuladas em uma língua e linguagem que não dominavam,

os homens e mulheres presentes naquele encontro lastimavam que o governo os deixasse

sem sombra para descansar.

No final daquela manhã, o rumor que se espalhara dizia que, a despeito da decisão

do magistrado (juiz), o enterro aconteceria ainda naquela semana, nem que fosse à força.

Estávamos em um sábado e a previsão geral era de que a sentença deveria sair na segunda-

feira e que portanto o enterro provavelmente aconteceria na terça-feira.

*

Infelizmente, a sentença do juiz não foi favorável à família dos farm dwellers.

Abordados com questões em inglês, alguns dos depoentes se dirigiram aos seus familiares

presentes na corte, pedindo ajuda para responderem (em isiZulu) às perguntas feitas pelo

juiz. Esse comportamento foi considerado na sentença como pouco confiável. O

Page 17: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

magistrado afirmava em seu texto que essa atitude dos parentes do morto na corte deixava

margem a dúvidas acerca da veracidade de suas declarações.

O Ato de Extensão da Segurança de Posse (ESTA – extension of security of tenure

act, 62 de 1997) diz explicitamente (5.5) que o “dono da terra pode permitir que os

occupiers enterrem pessoas na sua terra, mas o ESTA não dá aos occupiers o direito de

fazê-lo.” No caso em questão, assim como naquele ocorrido em Lions River, quando da

recusa do fazendeiro em permitir o enterro, um processo jurídico pode ser instaurado para

decidir se as razões do fazendeiro são pertinentes ou não.

*

Sem o direito de enterrar o Senhor Khubeka em Normandien, seus familiares

marcaram o funeral para o sábado daquela semana, em uma fazenda localizada entre

Ladysmith e Glencoe. Fomos instruídos por Sipho Khumalo sobre como chegar até lá. A

fazenda era da própria família Khubeka (de uma parte da família extensa) e havia sido uma

das primeiras (por volta de 1995) a ser restituída aos antigos proprietários negros, após o

fim do apartheid. Naquela terra sem brancos, tudo transcorreria em paz. Apesar da derrota

sofrida, alguns membros do LPM da região (de Dannhauser e New Castle), estavam

presentes, já sentados sob a tenda quando lá chegamos, no sábado que se seguiu à reunião

com a deputada.

Éramos, como de praxe, os únicos brancos presentes. Sentamos junto aos

membros do LPM, cumprimentando aqueles que conhecíamos. Havia apenas um homem

em meio às mulheres do movimento: Sipho. Ele foi aos poucos nos apresentando à família

do Senhor Khubeka: aos homens, quando esses haviam acabado de cavar a sepultura. Ao

redor do futuro túmulo, alguns imitavam a si próprios, fingindo estarem cavando, para

aparecerem nas fotografias. As mulheres estavam ao redor de uma fogueira, cozinhando

para os convidados que ali estavam e para os que ainda chegariam. Nos funerais, as

mulheres costumam ter uma postura extremamente recatada e praticamente não trocaram

olhares conosco, enquanto os homens nos fizeram poucas perguntas sobre a situação dos

farm dwellers no Brasil, um tema sempre difícil de abordar. Sipho traduzia as palavras do

Senhor mais velho, irmão do falecido Khubeka: we are under pressure. Ele também se

referia à distância que separaria o Senhor Khubeka do local aonde deveria ter sido

enterrado. Sipho traduzia as nossas palavras aos homens ao redor da cova: eles vão

escrever Iripoti (report) sobre a situação dos sem terra na África do Sul.

Enquanto aguardávamos o início da cerimônia, via-se que as mulheres da família

estavam dentro da casa redonda, velando o morto. As pessoas que chegavam eram

Page 18: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

facilmente percebidas, pois o conjunto de casas ficava no alto de uma colina, de onde se

avistava a estrada de acesso. Depois de alguns membros da AFRA, além dos vizinhos,

chegou um outro grupo de militantes do LPM, mais jovens, vestindo as indefectíveis

camisetas vermelhas. Eram as camisetas que nos indicavam quem dentre os presentes era

do movimento. Dois homens vestidos de terno chamaram nossa atenção assim que

chegaram: eram os pastores/padres que conduziriam parte do ritual.

Fazia calor sob a tenda e muitos de nós estávamos do lado de fora, conversando

enquanto aguardávamos o início da cerimônia. Um carro e uma pick-up subiram pela

estrada de terra, chegando muito perto da tenda. Do carro desceram uma Senhora e alguns

jovens. Na pick-up estava o caixão. Naquele momento, percebemos a força de nosso

hábito, contrariando todas as evidências que tínhamos para perceber que o corpo do

Senhor Khubeka viria obviamente do mortuary, depois de mais de um mês de conflitos com

o fazendeiro.

Seu irmão tomou um ramo de ervas (Impepho) e um balde com água e aspergiu o

caminho que o caixão percorreria, da porta traseira da caminhonete, passando pela tenda,

até o interior da casa redonda. Chamava-nos atenção o fato de não haver cantos naquele

dia. Era possível associar o silêncio à ausência dos fiéis das Igrejas Independentes (Zion,

Shebe, Ethiopian e outras) que costumavam entoar hinos de louvor nas cerimônias em que

estivemos anteriormente. Quando o caixão foi retirado do carro, dois jovens encetaram o

cortejo, conduzindo duas cabras que seguiam à frente do Senhor (com quem faláramos à

beira do túmulo e que aspergira o caminho) e da Senhora que acabara de chegar no outro

carro que acompanhava a pick-up. O senhor sussurava uma espécie de ladainha inaudível.

Quando as cabras adentraram a casa redonda, seguidas do cortejo e do caixão, algumas

mulheres de dentro da casa redonda lançaram murmúrios e prantos. Do lado de fora

ouvíamos os louvores pronunciados pela família. Os pastores esperavam no lugar que lhes

fora destacado sob a tenda. Já havíamos percebido certo mal-estar a respeito do tempo que

os dois homens tinham para permanecer na cerimônia, por algum motivo, dava-se a

entender que eles não poderiam se demorar. E, só depois desses rumores, percebemos que

sua advertência se relacionava à tardia chegada do caixão.

Estávamos preparados para nos dirigirmos ao interior da tenda quando notamos

um carro de polícia que se aproximava. A cerimônia foi interrompida. Os homens saíram

da casa redonda para falar com os policiais. Ao seu lado se posicionaram os membros do

LPM. Os policiais disseram que haviam ido até a fazenda em Normandien, pois teriam

ficado sabendo que o enterro iria acontecer a despeito da decisão judicial. Chegando lá

Page 19: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

souberam do novo local e teriam vindo até ali para se certificarem de que estava tudo sob

controle. Os policiais pareceram satisfeitos com o que viram e foram embora.

Imediatamente, os homens da família trouxeram para a entrada da tenda as cabras

que há pouco haviam passado por ali. Divididos em dois grupos, sacrificaram as cabras. O

primeiro, de homens um pouco mais velhos, realizou a tarefa com destreza. Neste

momento, se dirigiram para nós, dizendo: Branco! Fotografe!iii Era a primeira vez que

assistíamos a um sacrifício. O segundo grupo, de homens jovens, se debateu com o

complexo procedimento e demorou um pouco mais a retirar a pele, os chifres, separar as

partes do corpo do animal, o sangue e as víscerasiv. Assim que o sacrifício terminou, fomos

chamados a entrar na tenda, para acompanhar as orações de despedida.

A memória viva dos enterros que acompanháramos em 2007 diferia absolutamente

da seqüência de atos que se descortinava à nossa frente. Estivéramos em enterros que

celebravam a vitória dos farm dwellers sobre os fazendeiros brancos. A longa espera da

família Khubeka não tivera o mesmo desfecho. Nos casos anteriores, o apoio do governo à

causa das famílias trabalhadoras, apoiadas pelo LPM, transformou os funerais em cenários

de inversão das condições de vida que observávamos cotidianamente nas fazendas.

Durante os funerais, a família dos mortos, entoavam cantos, palavras de ordem e

expressões laudatórias que remetiam a uma parcial conquista do direito à terra, a terra dos

graveyards.

Comparando aquele dia com os anteriores, podíamos perceber uma presença

distinta do Estado nas diversas situações. Por um lado, o enterro transcorria em uma terra

que lhes havia sido restituída. Por outro, a sentença contrária ao desejo da família (de

enterrar o Senhor Khubeka na fazenda do proprietário branco, em Normandien) e a

presença da polícia, mostravam uma outra faceta do Estado, que protegia a propriedade

dos brancos. Naquela reunião com a deputada Thomson, em Dannhauser, os parentes do

Senhor Khubeka se perguntavam, perplexos, quais seriam as razões para que o fazendeiro

branco não permitisse o enterro. Em sua opinião, “um morto não tira nada da terra”.

Provavelmente, os motivos deste fazendeiro não diferiam muito daqueles dos outros que se

viram obrigados a acatar a pressão das famílias de trabalhadores negros, assentindo com

enterros em suas fazendas. Os burial sites “desvalorizam” a propriedade. O atual ou um

eventual novo comprador da terra são legalmente obrigados a permitir que os túmulos

sejam visitados, estabelecendo as “condições razoáveis” para tais visitas. Para os

fazendeiros, os burial sites representam um território perturbador no interior de suas

Page 20: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

propriedades. Um território que traz consigo pessoas das quais os fazendeiros tentam a

todo o custo se livrar. Pessoas vivas e pessoas mortas.

Se anteriormente havíamos percebido – nas negociações em torno do enterro de

Doris, sobretudo - o Estado lidando com vivos e mortos, agora podemos reconhecer que

os ancestrais (Amadlozi) não são objeto de preocupação apenas de trabalhadores negros.

Em outras situações havíamos nos deparado com filhos de fazendeiros ou novos

compradores de fazenda que lidavam de modo violento com o convívio rotineiro com os

farm dwellers. A violência privada tinha por objetivo – em outras situações que

presenciamos – acabar com laços pessoais que existiam durante o período do apartheid,

quando os negros trabalhavam basicamente em troca de um lugar para morar. Agora, em

muitos casos, as relações de trabalho (escravo ou assalariado) já não mais existiam. Os farm

dwellers que ainda residiam nas fazendas eram remanescentes do passado que aguardavam

por uma inscrição em um mundo futuro. Inscrição essa que poderia ser o despejo

(eviction) ou a restituição.

O enterro do Senhor Khubeka seguia em um ritmo acelerado. Os pastores tinham

hora marcada para ir embora. Mangaliso, líder do LPM que costumava discursar de modo

pungente, não comparecera (por conta de conflitos com outros membros do movimento e

também com a ONG) naquele funeral. Os discursos breves e sem maiores comoções

deram lugar a uma curta procissão até o local da cova, praticamente ao pé das casas.

Homens da família, ao redor da cova, preparavam a sepultura: troncos, caixão, esteira,

cobertor, toras de madeira. Observando a cena, pudemos perceber que muitos carros de

polícia (creio que seis, ao todo) se aproximaram do local. As pessoas que ali estavam,

voltadas para a sepultura, demoraram um pouco a perceber a chegada dos policiais. A

atenção dada àquela visita indesejada não perturbou a seqüência da cerimônia. Ninguém

saiu de perto da cova. Os pastores entoaram palavras de despedida e lançaram o primeiro

punhado de terra sobre a cova. Logo em seguida, os homens da família, seguidos das

mulheres, deitaram terra na cova. Os mais jovens aceleravam o trabalho com a ajuda de

pás. Neste momento um coro se fez: a pequena multidão presente começou a entoar

cantos religiosos e, repentinamente, cantos e palavras de ordem comuns em manifestações

políticas se fizeram presentes: Abaixo a Polícia! Abaixo os fazendeiros brancos! Eram

alguns dos gritos que se ouvia ao final de cada música de protesto. Quando a cova

terminou de ser coberta e ornada com pedras e tufos de grama, todos se afastaram

lentamente, parando no caminho e lavando suas mãos e ferramentas (no caso dos homens),

antes de se dirigirem à tenda para a refeição. Apenas o irmão do Senhor Khubeka ficou ao

Page 21: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

lado do túmulo. Assim que ele se aproximou dos demais homens, um grupo se destacou e

foi ter com os policiais. A justificativa da polícia para ter entrado sem autorização na

propriedade dessas pessoas lembrava casos de fazendeiros brancos que cercavam e

acorrentavam os espaços dos farm dwellers no interior de suas fazendas: os policiais

estariam ali para proteger as pessoas, para garantir que o enterro transcorresse

tranquilamente.

Depois de servido o almoço, os convidados começaram a ir embora. Nós

decidimos ficar um pouco mais e, porque esperamos, fomos abordados pela irmã do

Senhor Khubeka. Ela havia chegado no carro que acompanhava a pick-up com o corpo.

Começou a nos falar que não queria que acontecesse com ela o mesmo que se passara com

seu irmão. Gostaria de ser enterrada na outra fazenda. Lá, seus filhos tinham nascido. Lá,

alguns de seus filhos tinham sido já enterrados. Lá, sua velha mãe morava. Ela se

perguntava: e quanto à minha mãe, que ainda mora lá, quando ela morrer, também não

poderá ser enterrada na terra aonde vive? Gracie falava em inglês conosco. Explicou-nos

(sem que precisássemos interpelá-la com quaisquer perguntas) que trabalhava em

Johanesburgo. Seu irmão falecera quando estava em Bergville, visitando a casa dela.

*

O caso de Gracie replicava inúmeras outras histórias que ouvimos, histórias vividas

por pessoas reais, histórias que as tornavam complicadas diante dos estritos sistemas

classificatórios orquestrados pelo Estado sul-africano a fim de lidar com os problemas

sociais herdados do apartheid, que insistiam em se agravar. Ela, como quase todas as pessoas

adultas que conhecemos, vivera por algum tempo de suas vidas em Johanesburgo. Lá

obtiveram empregos e alguma fonte de rendimento. Assim como Gracie, em outras

situações, as pessoas acabavam por ter também uma casa em uma township, além da casa

no interior da fazenda de um proprietário branco. Essas três casas (nas grandes capitais, na

township, na fazenda) remetem a eixos de orientação presentes na vida de quase todos. A

casa na fazenda fala-nos dos períodos de reclusão vividos no apartheid, nos fala do trabalho

escravo e das relações pessoalizadas com os proprietários brancos que lhes usurparam a

terra a partir de uma prerrogativa garantida pelo governo sul-africano ao longo de um

século marcado por uma seqüência de “atos” de expropriação, voltados para o

confinamento da população negra. O emprego em Johanesburgo (ou em outra cidade

central) remetia a uma experiência de pânico e alívio. Conseguir escapar das fazendas ou

das townships e alcançar Johanesburgo foi-nos sempre descrito como um jogo perigoso,

como uma aventura, nem sempre bem-sucedida, afinal, buscavam trabalho em

Page 22: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Johanesburgo sem permissão para fazê-lo. A casa na township assumia diversos matizes

nas narrativas das pessoas que conhecemos. Lembrada como desterro ao qual foram

condenadas depois de serem despejadas de suas próprias terras, a vida na township podia

se travestir em acesso a bens inexistentes nas zonas rurais, como a educação (mesmo

bantu), por exemplo, considerada – a posteriori – como possível razão para o sucesso das

lutas de libertação do país, tendo em vista que os uprisings partiram de estudantes.

Gracie vivia no trânsito entre uma casa e outra, entre um conjunto de relações e

lembranças e outro. Quando morresse, entretanto, gostaria de ser enterrada na terra aonde

jaziam seus ancestrais e seus próprios filhos. A terra que lhes fora restituída remetia a um

passado longínquo, a um território que lhes pertencera, mas ao qual não se reportavam

cotidianamente, porque faltava àquela terra os túmulos dos ancestrais. Gracie nos explicava

que seu irmão fora colhido pela morte no lugar errado. Se ele houvesse falecido na fazenda,

mesmo sem mais trabalhar para o proprietário branco, teria tido alguma chance de ser

enterrado perto dos ancestrais.

*

Gracie terminava sua conversa conosco quando percebemos dois rapazes que

passavam carregando uma bacia, plena de carne assada (das cabras sacrificadas). Durante

alguns segundo cogitei o que fariam com aquela comida que não fora tocada pelos

convidados, aparentemente satisfeitos diante da fartura do que nos foi servido. Já éramos

os últimos – não membros da família – quando decidimos ir embora. Ao descer pela relva,

vimos os membros do LPM da região indo embora, em um ônibus que haviam fretado.

Olhamos na direção das patrulhas que seguiam à espreita e percebemos que os policiais

almoçavam aquela carne de cabra que nós víramos ser carregada pelos jovens. Nossa

estupefação foi absoluta. Magnânimos, os familiares do Senhor Khubeka ofereciam aos

seus potenciais algozes a carne do ritual que conclamara os ancestrais a comparecerem ao

funeral, a despeito da distância entre o novo burial site que se abria e aquele, na fazenda,

aonde jaziam a maioria dos falecidos.

Perplexos, soubemos dias mais tarde, em uma conversa com Mangaliso (a liderança

do LPM que não comparecera ao funeral), que a polícia havia telefonado para ele no dia do

funeral. Sem acreditarem que os ativistas tinham sido demovidos da idéia de fazerem o

enterro à força, os policiais resolveram chamar o homem que é considerado a voz do LPM,

para obter informações. Mangaliso, por conta dos conflitos internos, não tinha notícias

sobre o enterro. Entretanto, para informar os policiais, lançou mão de sua magistral

retórica: afirmou que os membros da família Khubeka estariam em seu direito se

Page 23: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

resolvessem levar o enterro adiante contra a decisão do magistrado. E mais, afirmou que o

LPM sempre estaria ao lado dos sem terra em tais situações. A performance de Mangaliso,

mesmo à distância, se mostrou eficaz. Os policiais, por via das dúvidas, não se afastaram do

local do enterro. Quando o ônibus do LPM deixou a fazenda, um carro da polícia lhes foi

seguindo. Casualmente fomos pelo mesmo caminho, como numa espécie de cortejo que se

seguia ao fim daquele enterro.

À guisa de conclusão

A guinada reflexiva em antropologia nos liberou de um pesado fardo. Atualmente

admitimos que nosso trabalho se baseia em experiências subjetivas e que nossos quadros

interpretativos se sustentam sim sobre situações que nós meramente observamos. Ainda

assim, é possível dizer que um outro fantasma, o da generalização, continua a nos

assombrar. Pensamos que conversas cruas – ou, para seguir com o triângulo culinário –

achamos que quanto menos cozidas, assadas ou apodrecidas, mais confiáveis nossas

“informações”. Sabendo que nossos “dados” não são dados, e muito menos objetivos,

garantiríamos com esta aposta naturalista um pouco de “confiabilidade científica” ao nosso

trabalho.

Creio que tenhamos esta predileção por suspeitarmos do quanto jogamos fora

quando pulamos do caso estudado (sobre o qual temos pouca certeza e muita empatia) para

uma generalização que se aplique “à sociedade em geral”. Como no anterior dilema da

subjetividade, este último também não tem solução. Entretanto, ao invés de lamentarmos o

que perdemos a cada salto do chão/do campo para as panorâmicas teóricas, deveríamos

considerar a possibilidade de tomar os conceitos que fabricamos como matéria para análise.

Não temos apenas dois pólos: aquele da “vida real” e o das “teorias abstratas”. Aquele de

nossas conversas com as pessoas com as quais fazemos pesquisa e aquele das afirmações

sobre Os Fulanos de Tal.

Os conceitos antropológicos são experimentos vivos que interagem com o que

supomos como realidade por um lado e teoria por outro. Poderíamos dizer que os

conceitos “borram” as fronteiras. Pensamos, entretanto, que o melhor seria afirmarmos

que os conceitos pavimentam pontes de diálogo entre a vida ordinária e a experiência

teórica. E que esse procedimento não é um privilégio dos antropólogos.

Ao refletirmos sobre a agência dos conceitos, começamos a refinar e

conseqüentemente a redefinir nossa linguagem; e esta parece ser uma profícua maneira de

tornar nossas análises (teóricas) da vida (real/social) simétricas àquelas feitas pelas pessoas

Page 24: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

com as quais fazemos pesquisa. Se, como sugere Das (2007), as pessoas com as quais

conversamos em nossos trabalhos de campo, se ressentem diante dos limites da linguagem

para dar conta de suas experiências, por que nós deveríamos permanecer imunes a esse

dilema?

Quando falamos de simetria, não estamos buscando um efeito especular. Nossos

conceitos seriam simétricos aqueles de nossos anfitriões – não por serem espécies de

sínteses translúcidas da realidade. Pelo contrário, seria no vão entre a experiência ordinária

e o que somos capazes de criar que se encontraria a simetria de nossas relações. Segundo

Ndebele, os “fatos são como blocos de construção com os quais erguemos nossas

metáforas”. Temos – todos nós - em comum o limite de nossas linguagens: o que

conseguimos inventar a partir de “fatos”. Ao nos darmos conta disso, nos envolvemos em

um processo que busca compreender (i) a vida dos Outros e, igualmente, (ii) expandir

nossa linguagem e sensibilidade a fim de tornar nossa compreensão tão sutil quanto aquela

das pessoas que abordamos em nossos trabalhos. E esta seria uma definição feliz de

simetria.

Se assim procedêssemos, reconheceríamos que nossas teses ou papers não são

fotografias da realidade, mas, como disse anteriormente, notas a propósito de um diálogo.

Um diálogo que reúne nossos anfitriões (no campo), nossos colegas da academia (os vivos

e os mortos) e nós mesmos. Deveríamos entender essa base triangular de nosso

conhecimento como a forma que permite sua própria contestação e consequentemente as

mudanças em nossos trabalhos.

*

O vão entre nossos conceitos e a experiência ordinária mostrou-se ainda mais

amplo quando tentamos levar adiante a pesquisa sobre os funerais em Kwazulu-Natal. Os

funerais, que tanto nos tinham mobilizado anteriormente, pareciam ter desaparecido da

agenda e performance públicas das pessoas que conhecíamos no verão de 2008. Até aquele

momento, o principal traço dos funerais dizia respeito à luta de trabalhadores negros para

garantir que seus parentes mortos pudessem ser enterrados nos locais aonde viviam (os

vivos e os mortos), ou seja, em fazenda de propriedade de brancos.

Esses funerais poderiam ser abordados por duas vias distintas e igualmente

verdadeiras. Por um lado eram palcos de manifestações políticas. Por outro, eram também

ocasiões para se abrir os canais de diálogos com os ancestrais. Entretanto, de acordo com a

perspectiva que procurávamos esboçar, existia um outro caminho analítico possível que

procurava entender os funerais como meios para a construção de novos conceitos sobre a

Page 25: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

presença do Estado na vida cotidiana. Tudo isso eram tentativas de “inventar” a partir de

“fatos” – tanto dos fatos da literatura quanto dos fatos do campo.

E o que aprendemos ao tentar compreender o que se passava ao longo dos

funerais? Dentre as inúmeras lições, creio que uma das fundamentais diga respeito aos

conceitos de “práticas e crenças”, quando aplicados aos trabalhadores negros que

conhecemos. Não somos os únicos a nos sentirmos incomodados com essa fórmula

derrogatória de origem colonialista. Mas como nós mesmos já fizemos uso desses termos,

vemos por bem explicar os descaminhos por que passamos.

No Brasil costuma(va)-se pensar o país ou a sociedade nacional a partir de um

modelo de divisão espacial que seria mais uma cisão temporal, um apartamento no espaço

que diz/diria respeito a valores morais e que se explicita(va) na oposição entre tradição e

modernidade. Para ilustrar essa faceta do chamado pensamento social brasileiro basta

lembrarmos da famosa passagem de Euclides da Cunha que dizia não serem 400 léguas,

mas 400 anos que afastavam o interior de Monte Santo – berço da Revolta de Canudos -

do Rio de Janeiro, capital da República que nascia.

Na África do Sul, esse mesmo topos se repete. Porém, lá, um elemento de suma

importância se acrescenta a esse esquema canônico: o legado da segregação racial. Em boa

parte da literatura contemporânea sobre aquele país o lugar-comum que se estabelece julga

haver um continuum entre os espaços que se nomeava como township e as zonas rurais.

Sabemos que muitas evidências perturbam tal afirmação – na antropologia reconhece-se,

mesmo com todas as limitações do que afirmavam os antropólogos da conhecida “Escola

de Manchester” que as periferias habitadas por negros no sul da África não poderiam ser

excluídas do que chamamos de modernidade, devido exatamente ao modo de vida de seus

habitantes, marcado pelo trabalho assalariado e pelo consumo de mercadorias, o que os

incluiria definitivamente na cadeia capitalista.

Ainda assim, a township se aproximaria do campo (do que se chamara de homeland

ou bantustões ou das fazendas de brancos) por conta de um elo moral. Mesmo que o estilo

de vida fosse outro, haveria um território moral comum, habitado pelos moradores de uma

e outra região. Uma formulação muito recorrente nos textos antropológicos – e pouco

criticada por nós antropólogos – diz que os moradores de um e outro lugar “possuem

práticas e crenças” semelhantes. Não é preciso muita reflexividade para percebermos que

“práticas e crenças” é mais uma dessas fórmulas sintéticas por nós adotadas – como

quando falamos em “nativos” – de natureza assimétrica, essencialmente derrogatória.

Page 26: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Nos textos aos quais me refiro há uma cena que se repete com freqüência. Durante

o apartheid os moradores negros das townships iam até os albergues (hostels) para

consultar oráculos ou para encomendar com herbalistas algum alívio para os seus

incômodos (conhecidos como Muthi) ou mesmo para comprar cerveja tradicional

(Chibuku). Nos albergues, viviam homens das homelands que migravam para as cidades a

fim de trabalhar nas indústrias e principalmente nas minas. Ao buscarem contato com esses

homens os moradores das townships atravessariam o espelho: acabavam por se reconectar

com as homelands. Em português diríamos com sua terra natal. Mesmo que não tenham

nascido efetivamente no campo, ao fazer contato com os moradores dos albergues os

habitantes das townships se aproximariam do campo, da terra. A terra – e seus valores –

era absolutamente negada pelo modelo de confinamento espacial imposto nas townhsips,

com sua arquitetura similar a dos conjuntos habitacionais brasileiros, com suas casas

conhecidas como caixas de fósforo. Mais uma vez, não eram somente esses sinais

exteriores que marcavam a diferença que se esperava da township em relação ao campo.

Eram sobretudo os valores morais que se queria banir ao se construir, por exemplo,

cemitérios ao invés do tradicional enterro ao pé das casas. Procurava-se romper uma

associação – recorrente na literatura antropológica – que estabelecia a terra como lugar de

repouso dos ancestrais (que vinham a se tornar ativos em ocasiões especiais).v

A literatura contemporânea pós-apartheid, sugere que apesar de todos os planos de

assepsia moral havia também investimentos ideológicos por parte do governo do apartheid

(em suposto conluio com os chamados chefes tradicionais) para que essas práticas e

crenças fossem mantidas. Segundo Mamdani, por exemplo, esse era um modo eficaz de

manter a população negra não a 400 léguas, mas a 400 anos de distância em relação aos

brancos e aos chefes.

Atualmente muitos antropólogos lançam mão desse modelo de análise e crítica que

associa a relação com “práticas e crenças” tradicionais como um sinal de alienação política.

Dentre outros podemos citar alguns renomados antropólogos como Erik Bähre, Adam

Ashforth e Jean e John Comaroff. O primeiro estuda a economia em torno dos funerais,

observando o que ele chama de persistência das acusações de feitiçaria diante de

“evidências” do HIV-AIDS como causa (científica) das mortes ocorridas na periferia da

Cidade do Cabo, em uma região habitada por negros e coloured. Diante dos conflitos

vividos pelos vizinhos, Bähre se depara com uma solidariedade relutante (reluctant

solidarity), sinal unívoco da desagregação moral por que passam os moradores das antigas

townships, que não respeitariam mais as leis de reciprocidade (como teriam feito no

Page 27: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

passado – um passado que nenhum pesquisador branco investigou, diga-se de passagem).

Ashforth faz sua pesquisa em Soweto e diante de casos de acusação de feitiçaria que

acabam em linchamento ou em oclusão social dos supostos bruxos pergunta-se como pode

persistir tamanho “desatino” depois de findo o apartheid, depois de a África do Sul ter

entrado definitivamente no mundo da democracia? Ashforth atribui à falta de investimento

público em educação esse apego às “práticas e crenças” tradicionais, das quais as acusações

de feitiçaria seriam o símbolo por excelência. Os antropólogos Comaroff enfrentam o

mesmo dilema ao analisarem os, em suas palavras, parcos avanços da comissão Ralushai, na

África do Sul dado um limite intransponível que a impede de desmascarar zumbis ou as

supostas acusações de feitiçaria, a saber: a falta de um entendimento nítido acerca da ação

dos zumbis e outras formas de “bruxas” como um reflexo da escassez de oportunidades de

trabalho na África do Sul contemporânea, que acaba jogando “os negros” do país contra os

migrantes de fora, os “negros” da cidade contra os do interior etc.. Esses antropólogos,

dentre outros, envolvidos com pesquisa na África do Sul, perguntam-se em suma como

podem as pessoas “praticarem e crerem” em algo “assim”, em plena democracia? Como

podem ter medo de zumbis e bruxas? Como podem morrer e matar por causa de um

enterro ser feito aqui ou em outro lugar?

Ao dispor o debate nesses termos essa literatura reedita a perspectiva assimétrica de

muitos textos canônicos que lemos em antropologia. São poucos os antropólogos, como

James Ferguson, que ousam desconfiar dos valores universais da democracia. Esse

antropólogo – também com pesquisa de campo na África Austral – reconhece que as

pessoas também mataram e morreram por causa da democracia. E, mais, apresenta

argumentos que deixam claro o quanto eleições diretas contemplam os interesses do capital

“global” que lava suas mãos de qualquer sujeira ditatorial, jogando sobre os ombros da

população local a culpa por terem escolhido mal os seus governantes. Este tipo de olhar

crítico deve se somar ainda a outras reassalvas, como aquela feita por Achille Mbembe,

para quem a história não deve ser contada/escrita apenas nas chaves da capitulação ou da

resistência. O mundo, segundo esse autor, é muito mais complexo do que os

enquadramentos dualistas aos quais estamos acostumados.

Na África do Sul que conhecemos, os funerais têm um papel fundamental que não

diz respeito apenas aos valores da tradição. As lutas pelo direito a enterrar seus mortos (em

burial sites localizados em fazendas de proprietários brancos que negam aos familiares esse

direito) é uma evidência de que as pessoas temem a autoridade do Estado a favor dos

opressores, que as pessoas têm medo da violência policial, da violência dos juízes e de

Page 28: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

outras autoridades públicas. Em suma, que além do medo das milícias privadas (escutamos

inúmeros casos de tortura perpetrados por patrões brancos), as pessoas temem o

desmando daqueles que ajudaram a eleger democraticamente. Esse medo – e aqui se

complica a história – mescla-se com uma enorme admiração pelos feitos desses mesmos

representantes políticos.

Ao contrário das críticas de antropólogos que vêem no presente apenas reedição do

passado, dos valores atrasados da tradição, creio que as lutas contemporâneas não indicam

que as pessoas continuam subjugadas pelos seus ancestrais (como teria supostamente

ocorrido desde tempos imemoriáveis). Ao contrário do que afirma a literatura sobre a

persistência do culto do oculto na África do Sul, acreditamos que as pessoas que

conhecemos são politicamente engajadas exatamente porque estão preocupadas com o

enterro de seus parentes e, não, a despeito de acreditarem em “forças oculta”. A luta pelo

direito ao enterro – que congrega jovens e velhos, homens e mulheres, das fazendas e das

townships – revela o quanto ainda há por aprender com aqueles que jazem sob a terra e

que viveram na pele (negra) experiências que apesar da reconciliação não se deixam

facilmente esquecer. vi

Funerais fazem parte da vida cotidiana. Funerais são lugares-eventos em que

inúmeros dilemas sul-africanos contemporâneos são esboçados. Em Kwazulu-Natal,

descobrimos com Gracie e outros, que as pessoas das zonas rurais e das zonas urbanas –

especialmente aquelas vivendo em townships – não estão relacionadas porque

compartilham referências morais exóticas. Ao lutarem por seus direitos, essas pessoas nos

mostram que suas afinidades relacionam-se à forma como o poder do Estado se fez/faz

presente em suas vidas. Depende do Estado – de uma decisão de um juiz – se um funeral

acontecerá dentro ou fora da fazenda em que os farm dwellers vivem. Depende da Polícia,

proteger ou violentar as pessoas ao longo de suas manifestações.

Ao invés de apostarmos na oposição entre razão/razoabilidade e “crenças e

práticas”, deveríamos assumir o compromisso de fazer as relações que se fazem notar/ que

se fazem produzir por um Estado que não divide o mundo nesses termos. Aos diferentes

graus de penetração do Estado em nossas vidas, correspondem diferentes e persistentes

tipos de segregação. E a segregação que opõe “racionais” a “crentes” é para nós uma das

mais perversas, justamente porque encontra na antropologia seu abrigo intelectual.

Se percebêssemos que o Estado não é uma estrutura monolítica que paira sobre a

Sociedade; se percebêssemos que a sociedade não se divide em domínios racionais e

crentes; se nos déssemos conta de que a sociedade tampouco se divide em âmbitos

Page 29: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

tradicionais e modernos; se assim procedêssemos perceberíamos a importância de uma

abordagem voltada a conexão que leva pessoas da roça (ou do Brasil) a lugares “tão

distantes quanto Johanesburgo”. A decisão de continuar falando d’O Outro, dos pobres

especialmente, como dotados de “práticas e crenças” depende apenas de nós mesmos. Se

decidirmos continuar narrando o mundo de acordo com nossos conhecidos esquemas

conceituais, nós garantimos uma distância, nós garantimos o que se chama de neutralidade

científica. Mas, para ser honesta, pessoalmente, prefiro ser tendenciosa.

Acreditamos que a ubiqüidade do Estado nos coloca próximos aos sujeitos com os

quais fazemos nossas pesquisas. A existência do Estado e de seu poder não é um tema sob

disputa. Nós não podemos ousar dizer – como alguns o fazem sobre a bruxaria, por

exemplo – que o Estado não existe ou que não passa de uma “representação”. Na África

do Sul que conhecemos, é possível dizer que as margens do Estado penetram na vida de

pessoas em movimento. Movimentos sociais como o LPM e concomitantes movimentos

de diversas ordens: de uma casa à outra, de um trabalho a outro. Temos compreendido que

esse movimento não se restringe aos vivos sobre a terra, mas também aqueles que estão

abaixo (abaPhansi). O Senhor Khubeka não pode ser enterrado junto aos seus ancestrais.

Por isso, esses últimos tiveram que ser chamados a comparecer ao funeral, foram obrigados

a percorrer uma distância que Gracie considerava ultrajante e indesejável. Os ancestrais,

como sombras, preferem o repouso, gostam de ser visitados em suas casas (burial sites). O

Estado sul-africano garante o direito ao movimento – inexistente no período do Apartheid.

Entretanto, como ouvimos de nossos anfitriões, este Estado deveria igualmente lhes

oferecer e garantir uma sombra para descansar.

ADVERTÊNCIA GERAL

Pesquisadores (do mundo acadêmico) e as pessoas que querem entender, tentam

em seus diálogos transmitir seus sentimentos e concepções por meio de termos que nem

sempre se mostram felizes. Mesmo que estejamos deliberadamente envolvidos na busca da

melhor forma de expressar o que queremos dizer, nossas conversas não deixam de ser

situações em que revelamos algo na medida em que deixamos outros aspectos (que seriam

também importantes) de lado. Se essa “mecânica” é comum, o que “descobrimos” oculta

um outro universo igualmente complexo de possibilidades.

Quando falamos a mesma língua de nossos anfitriões em campo, tendemos a

esquecer ou minimizar este aspecto de nossas interações. No caso de nossa pesquisa na

Page 30: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

África do Sul, conversamos com nossos anfitriões (alguns deles, amigos muito próximos)

em inglês, ou seja, em uma língua que não é nossa língua materna. Lentamente estamos

procurando aprender isiZulu e curiosamente começando a entender que este problema de

fundo só tende a se agravar.

Com esta advertência gostaríamos apenas de chamar a atenção da audiência/do

leitor, para o fato de que boa parte das reflexões presente neste texto não obedece ou segue

uma ordem referencial da linguagem. A convivência continuada com algumas pessoas em

especial tem sido de fundamental importância para cultivarmos uma série de perguntas

(sempre sujeitas a dúvidas) que nascem de diálogos ancorados em palavras que se

modificam e em atos que se repetem, mas sempre de modo distinto.

Enterro do Sr. Khubeka

Bibliografia Ashforth, A.(2005). Witchcraft, violence, and democracy in South Africa. Chicago: University of Chicago Press.

Bähre, E. Reluctant solidarity. (2007) Death, urban poverty and neighbourly assistance in South Africa. Ethnography. Vol 8(1): 33–59.

Borges, A. (2007). Cobertos de Vida: os rituais funerários na África do Sul contemporânea e suas implicações teóricas para a antropologia In: XXXI Encontro Anual da ANPOCS, 2007, Caxambu-MG. http://201.48.149.88/anpocs/arquivos/10_10_2007_16_2_22.pdf

Borges, A. (2007). Mats, blankets, songs and flags: ethnography of the politics of funeral in contemporary South Africa In: Ethnografeast, 2007, Lisboa. Ethnography and the Public Sphere. http://ceas.iscte.pt/ethnografeast/papers/antonadia_borges.pdf

Comaroff, J. (1985) Body of Power, Spirit of Resistance. The Culture and History of a South African People. Chicago: University of Chicago Press.

Das, V. & Poole, D. (2004). Anthropology in the margins of the State. Santa Fe: School of American Research Press.

Das,V. 2007 Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley: University of California Press.

Ferguson, J. (2006). Global Shadows. Africa in the neoliberal world order. London: Duke University Press.

Gable, Eric. 2006. The funeral and the modernity in Manjaco. Cultural Anthropology. 21(3): 385-415.

Ndebele, N. (1986). The rediscovery of the ordinary. Some new writings in South Africa. In Rediscovery of the Ordinary. Essays on South African Literature and Culture. Scottsville: University of KwaZulu-Natal Press, 2006. Pp. 31-54.

Ndebele, N. Fine Lines from the Box: further thoughts about our country. Cape Townh: Umuzi, 2007.

Radin, Paul & Lamere, Oliver. 1911. Description of a Winnebago Funeral. American Anthropologist, New Series, 13(3):437-444.

Page 31: Antonadia Borges - A Morte Que Anima a Vida

Scheper-Hughes, Nancy. 1992. Death without weeping: The Violence of Everyday Life in Brazil. Berkeley: University of California Press.

i Neste texto não discutiremos as implicações do sistema eleitoral e de governo na África do Sul.

Fazemos essa breve nota apenas para enfatizar como o diferente pertencimento partidário (a deputada era do ANC e a prefeita do IFP) respondia pelo tom a disputa em torno das instâncias responsáveis pela solução aos diversos conflitos e problemas vividos pelos farm dwellers na região.

ii Este tema já havia sido discutido ao longo daquela manhã. As pessoas se diziam sick and tired de esperar pela justiça que se tornava ainda mais morosa em casos envolvendo direito civil. O próprio DLA não possuía meios de oferecer ajuda legal para os farm dwellers em casos daquele tipo. O Legal Cluster (um projeto de assessoria jurídica oferecido aos farm dwellers e coordenado por ONGs como a AFRA) estava às vésperas de fechar suas portas.

iii Ulungu, shoot us! Shoot us! iv As vísceras (Phakati, um termo de múltiplas valências, que significa também “comunidade”)

são muito apreciadas pelas pessoas que conhecemos. De acordo com a literatura, a vesícula (Inyongo) é o lugar de abrigo dos ancestrais no momento do sacrifício. Os ancestrais são percebidos como sombras que encontram na vesícula (receptáculo escuro, com entrada, mas sem saída), um lugar de acolhimento no momento em que são chamados (por meio do abate de um animal) a comparecerem à cerimônia, na qual serão informados (ukuthetha) sobre o que se passa com os seus parentes vivos. (Mgwaza, 1993). Ouvimos de uma de nossas amigas (Thoko Mlaba) que por ser percebido como escuro e frio, o lugar de morada dos ancestrais, deposita-se com o caixão uma esteira e um cobertor.

v A terra como lugar aonde se deveria ser enterrado já que ali também fora depositado o cordão umbilical daquele que falecia.

vi Como me disse uma grande amiga e mestre – Sibongile Mbatha – seu maior medo é que aqueles que nasçam na África do Sul de hoje – democrática – não acreditem que um dia houve algo como o Apartheid.