ARANTES - Lacan e o Zen

download ARANTES - Lacan e o Zen

of 9

Transcript of ARANTES - Lacan e o Zen

  • 1

    Latusa Digital ano 4 N 27 maro de 2007.

    Lacan e o zen*

    Haendel Motta Arantes

    Lacan faz menes escola zen em determinados pontos de seu ensino; na

    maior parte deles, aproxima da tcnica inaugurada por seus mestres a

    instncia do corte analtico, no que secciona a repetio ociosa de um discurso.

    O presente artigo busca relacionar algumas dessas referncias e desdobr-las,

    face a impedimentos enfrentados hoje no campo psicanaltico em favor das

    dificuldades de sua transmisso.

    Primeiramente, de modo a garantir uma melhor aproximao quanto

    especificidade da escola inaugurada por Bodhidharma na China do sculo VI

    d.C., cabe retificar que o sentido hoje difundido pelo nome zen algo

    relacionado a encontrar-se satisfeito e dcil, em correspondncia ao estado de

    naturalidade animal no carrega qualquer relao com o princpio a ser

    considerado pela visada psicanaltica de Lacan. Quanto a essa disposio

    serena, possvel que advenha da insgnia ao zen atrelada, a saber, zen-

    budista. Um monge budista pode qui dedicar toda uma vida inteno de

    tornar-se sutil como um carneiro, mas os inventores do princpio de um corte

    brusco, senhores ditos mestres zen, adquirem outra face quando deles se

    aproxima um olhar interessado.

    Os poucos escritos que constituem o ensino original do budismo zen, os

    koans1, em sua maioria historietas de aparncia fabular (muitas delas,

    * Extrato da monografia Psicanlise e Zen, apresentada pelo autor ao Curso de Especializao em Psicanlise da Universidade Federal Fluminense, sob orientao de Paulo Viana Vidal, aprovada em 08/06/2001.

  • 2

    entretanto, referidas a mestres existentes), iro interessar a Lacan menos pelo

    contedo de seus ensinamentos relacionados doutrina bdica, mas

    principalmente pela maneira de proceder dos mestres ante a difcil tarefa de

    transmiti-la. , de fato, a partir dessa nova modalidade de transmisso

    inaugurada no cotidiano dos mosteiros budistas que o zen tornar-se-, em seu

    aspecto posterior, uma escola deles diferenciada.

    O corte zen

    Certa vez um general perguntou ao mestre zen Hakuin: O cu e o inferno

    existem realmente?. Como ganha a vida?, respondeu o mestre. Sou um

    general. O mestre gargalha: Voc parece mais um aougueiro. O general

    saca sua espada bramindo cort-lo em pedaos. Aqui esto os portes do

    inferno, aponta Hakuin. O outro recua e desculpa-se por sua insolncia. E

    aqui os do cu, sentencia o mestre.2

    Hakuin poderia ter respondido a pergunta do general discorrendo luz de seu

    repertrio de conhecimento, citando trechos de comentrios budistas ou

    dispondo-se a recordar alguma discusso que, como mestre, j tivera a

    respeito da oposio cu/inferno. No entanto, sugere outro caminho. Pela

    visada lacaniana, dir-se-ia que devolve os significantes do discurso aos

    prprios atos reativos que seu corte desencadeia.

    Esse tipo de insinuao cujo efeito o koan localiza a incidncia de uma

    ruptura frente ociosidade de um discurso, algo a que Lacan se reporta ao

    longo do Seminrio XX: Mais, ainda: O que h de melhor no budismo o zen,

    e o zen consiste nisto: em te responder com um latido, meu amiguinho.3

    1 Kung-an (literalmente, trepadeira). Dentro da tradio zen-budista o termo no significa apenas uma histria, mas tambm uma frase ou poesia, todas de natureza pblica. 2 CHUNG, T. C. Zen em quadrinhos. Rio de Janeiro: Ediouro,1994, p. 31. 3 LACAN, J. O Seminrio, livro 20: Mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 157.

  • 3

    Num segundo koan, o mestre zen Juzhi, acostumado a responder perguntas

    apenas erguendo o indicador, arranca com uma faca o dedo de um discpulo

    que passara a copiar seu gesto4, ato que poderia ilustrar uma face dogmtica e

    mesmo extremada da tcnica. Contudo, a liberdade contida nesse tipo de

    manobra no permite reduzir seu artifcio a mero disparate. H algo de suma

    seriedade e ardor nesses atores, escreve D. T. Suzuki5 a respeito dos mestres

    zen, levando em conta seu singular juzo de oportunidade na aplicao do

    corte. Em Lacan, encontramos tambm um comentrio a esse respeito ao

    longo do Seminrio XIII: O objeto da psicanlise:

    Todo mundo sabe que um exerccio zen tem alguma relao com a realizao subjetiva de um vazio, embora no se saiba bem o que isso quer dizer. E nada foramos ao admitirmos que quem quer que veja essa figura dir que h algo como uma espcie de momento culminante que deve ter relao com o vazio mental que se trata de obter e que seria obtido esse momento singular, brusco, que sucede espera, que se realiza s vezes por uma palavra, uma frase, uma jaculao, uma careta, um pontap na bunda. certo que essas espcies de palhaadas ou clownerias s tm sentido por relao a um longo preparo subjetivo.6

    O corte em anlise

    No terreno psicanaltico, a ociosidade de discurso dita neurtica como

    observada na clnica, no vir remeter-se apenas repetio de um saber as,

    igualmente, a episdios sintomticos, algo a que nos reportaremos aqui na

    medida do que foi expresso por Lacan pelo conceito de gozo, conceito com o

    qual Lacan vem articular a cadeia significante s exigncias pulsionais,

    postuladas por Freud.

    4 CHUNG, T. C. Zen em quadrinhos, op. cit., p. 107. 5 SUZUKI, D.T. Introduo ao Zen-budismo. So Paulo: Pensamento, 1969, p. 94. 6 LACAN, J. O Seminrio, livro 13: O objeto da psicanlise (1965-66), lio de 15/12/1965, Indito.

  • 4

    Embora o conceito de gozo o acompanhe desde o incio de seu ensino, a

    partir do Seminrio XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanlise, que

    Lacan retoma o conceito de pulso freudiano, at ali deixado um tanto de lado

    em seu percurso. Poder-se-ia dizer at que, em sua longa interface com a

    lingstica, Lacan tenha tornado muitos dos que o acompanhavam surdos a

    tudo aquilo que no fosse o significante.7

    Avanando, pois, segundo uma imagem que aqui propomos a de um trilho de

    trem a intervalar palavras, que seriam as tbuas, e a exigncia pulsional, o

    espao entre elas chamando-a de cadeia gozo-discursiva, podemos melhor

    visualizar que o que a neurose repete no somente um discurso ocioso, uma

    queixa/questo, mas tambm um bocado de casos cotidianos em favor do que

    se lhe apresenta como incidncia do real nesse discurso, a oferecer-se em sua

    trama fantasstica como articulao de um desejo referido a determinado

    objeto a inacessvel, ali onde se detecta fixada uma determinada funo de

    gozo.

    Frente a essa noo, Lacan distancia a interpretao do analista de um mero

    deslindar que se pudesse extrair do discurso depositado em anlise, decifrao

    de algo apenas concernente cadeia significante. A interpretao como corte,

    como algo a interromper a opacidade mecnica e seqencial das palavras

    evocando sua abertura aos desfiladeiros pulsionais constituir, ento, uma das

    tnicas lacanianas.

    Ainda no Seminrio XI, a transferncia ser conceituada como atualizao

    [pr em ato] da realidade do inconsciente8. Nessa medida, a interpretao

    como corte pode ser compreendida como a que permite ao analista localizar

    em que posio foi includo na srie gozo-discursiva do analisante, cuja funo

    7 MILLER, J.-A. Percurso de Lacan, uma introduo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987, p. 95. 8 LACAN, J. O Seminrio, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanlise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 142.

  • 5

    de gozo em relao ao objeto a a transferncia far comparecer/atualizar ao

    longo das sesses na medida em que o corte opera.

    Servindo-se do conceito de tempo lgico, Lacan se distancia da sesso com

    tempo determinado de Freud e usa seu encerramento como instrumento

    clnico. Em Funo e campo da fala e da linguagem em psicanlise enuncia

    esta distncia:

    E no somos o nico a ter feito a observao de que ele [o corte da sesso] se aproxima, em ltima instncia, da tcnica designada pelo nome de zen, e que aplicada como meio de revelao do sujeito na ascese tradicional de certas escolas do Extremo Oriente. Sem chegar aos extremos a que levada essa tcnica, uma vez que eles seriam contrrios a algumas das limitaes que a nossa se impe, uma aplicao discreta de seu princpio na anlise parece-nos muito mais admissvel do que certas modalidades ditas anlise das resistncias, na medida em que ela no comporta em si nenhum perigo de alienao do sujeito.9

    Transmisso do zen

    A pergunta o que o zen? j foi respondida de diferentes maneiras por uma

    legio de monges que, durante sculos, seguem seu princpio exerccio

    curiosamente contrrio cpia dogmtica de sentido, posto que cada iniciante

    na escola convidado a encontrar sua prpria definio para ele. Dessa

    perspectiva, pode-se dizer que o zen possui e, concomitantemente, no possui

    uma definio, justo o caminho chins que Lacan vinha buscar nas conversas

    com seu amigo F. Cheng por onde aquilo que tem e no tem um nome vem

    articular-se.10

    9 LACAN. J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 317. 10 BASZ, G.; Millas, K.- O imprevisto Zen. Em: Opo Lacaniana, n 29. So Paulo: Elia, dezembro de 2000.

  • 6

    Segundo seus mestres, no adianta apregoar o que o zen seja, basta que o

    indiquem a ponto de se assegurarem que o discpulo o necessite; suportam

    uma presena enigmtica para ele no tempo em que operam o corte.11

    Interessa-nos, pois, o fato de seus seguidores recusarem transmiti-lo de uma

    maneira acabada, buscando, pela expresso de um vazio, a inveno de um

    novo caminho que o indique novamente de modo que o ato do corte parece

    indito tambm quele que o aplica.

    Essa transmisso no arrolada em citaes que pudessem decorar dos textos

    budistas, rechaando um saber-todo, o que parecia garantir aos mestres

    suas reaes absurdas, a servio da lgica do imprevisto, do no-sentido

    justo o que fica de fora do clculo que os discpulos confiassem extrair das

    palavras.12

    Esse trilhar pelo caminho de um oco instrutivo, de uma assimilao do

    budismo a desafiar seu entendimento formal, no se restringir, no entanto,

    prtica dos monges. Quando se difundir at o Japo, por volta do sculo XII, a

    tcnica zen chamar ateno da nobreza feudal, no s a dos mestres nas

    artes marciais como tambm os da caligrafia, pintura e outras.

    A arte cavalheiresca do arqueiro Zen, de Eugen Herrigel, traduz com riqueza

    de detalhes a expresso transmissiva da escola nipnica: dura cerca de cinco

    anos de trabalho dirio com arco e flecha at que se consiga acertar o alvo; o

    mestre no d qualquer instruo de como manejar o disparo alm de,

    ocasionalmente, executar a tarefa diante dos olhos do discpulo cada disparo

    retornando, assim, sob a forma de koan.

    11 Idem, ibidem. 12 Idem, ibidem.

  • 7

    No h, ainda, qualquer inteno de ganho exterior ou esportivo: Arco e

    flecha so, por assim dizer, nada mais do que pretextos para vivenciar algo

    que tambm poderia ocorrer sem eles.13

    Transmisso da psicanlise

    O mestre interrompe o silncio com qualquer coisa, um sarcasmo, um pontap. assim que procede, na procura do sentido, um mestre budista, segundo a tcnica zen. Cabe aos alunos, eles mesmos, procurarem a resposta s suas prprias questes. O mestre no ensina ex-cathedra uma cincia j pronta, d a resposta quando os alunos esto a ponto de encontr-la. Essa forma de ensino uma recusa de todo sistema. Descobre um pensamento em movimento serve entretanto ao sistema, porque apresenta necessariamente uma face dogmtica. O pensamento de Freud o mais perpetuamente aberto reviso. um erro reduzi-lo a palavras gastas. Nele, cada noo possui vida prpria. o que se chama precisamente a dialtica.14

    Desse modo Lacan inicia seu estudo sobre Freud na abertura de O Seminrio,

    livro 1: Os escritos tcnicos de Freud, em 1953.

    No terreno psicanaltico, a interpretao do analista a que vir produzir

    possveis efeitos de corte a partir da transferncia no ser passvel

    sistematizao em nenhum tipo de manual ou glossrio: a um sintoma tal,

    uma tal interpretao. Quantas leituras posteriores obra freudiana no

    partiram em busca de snteses dessa natureza? Com relao a isso, Lacan

    parece mostrar-se, desde o momento em que inicia seu percurso,

    extremamente advertido.

    13 HERRIGEL, E. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. So Paulo: Pensamento, 1975, p. 19. 14 LACAN, J. O Seminrio, livro 1: Os escritos tcnicos de Freud (1953-54). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 9.

  • 8

    Freud j havia comparado a dificuldade de transmitir sua tcnica com a lacuna

    na instruo15 existente nos manuais do jogo de xadrez, nos quais somente as

    boas aberturas e finalizaes de partida permitem uma apresentao

    sistemtica. Como transmitir aos mdicos de sua poca, e aos de hoje ainda,

    uma tcnica psicanaltica de interpretao no baseada em passos descritivos

    ou silogismos metodolgicos? Contrrio ao emprego da metafsica, parece ter

    restado a Freud o apelo expresso arte de interpretar, esta que Lacan traz

    tona a respeito do bom posicionamento do princpio zen at o que hoje se

    coloca ao analista no interior de sua clnica.

    Vale salientar, tambm, a meno que Lacan faz ao jud, no que os dilogos

    de Plato seriam semelhantes a um tipo de jud com a verdade16. A tcnica

    de altercao dessa arte marcial japonesa, pouco transmissvel de fora da

    experimentao17, serviu de exemplo a Lacan em suas consideraes sobre o

    manejo da transferncia: consiste numa astcia capaz de tornar a fora de

    ataque do adversrio na energia mesma que ir derrub-lo. Astcia essa que

    no se deduz a um saber apartado do corpo, no se extrai de um aprendizado

    que no leve em conta o liame pulsional. Sua assimilao habita justo essa

    fronteira, zona de tenso entre os registros simblico e real, ou ainda, entre

    sentido e lugar de gozo.18

    Por fim, no escrito Interveno sobre a transferncia, encontramos o

    comentrio de Lacan sobre a condio a que submetida a transmisso da

    experincia psicanaltica:

    Quanto experincia psicanaltica, devemos compreender que ela se desenrola inteiramente nessa relao de sujeito a sujeito, expressando com isso preservar uma dimenso irredutvel a qualquer

    15 FREUD, S. Sobre o incio do tratamento (1913). Em: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, vol.XXII, p.139. 16 LACAN, J. Escritos, op. cit., p. 843. 17 BASZ, G.; Millas, K. O imprevisto zen, op. cit. 18 Idem ibidem.

  • 9

    psicologia considerada como uma objetivao de certas propriedades do indivduo.19

    Na prxis analtica, tanto a interpretao no nvel do sentido (contedo

    depositado nas sesses) quanto o momento oportuno de sua incidncia (seu

    efeito de corte, portanto) desafiam quaisquer possibilidades de sistematizao

    terico-metodolgica; dessa perspectiva, a transmisso do modus operandi

    analtico, sua produo em constante andamento, apesar de sustentar-se num

    legado grandioso de textos, parece encontrar seu cerne no movimento dos

    encontros clnicos, na prtica insubstituvel da superviso, e, sobretudo, na

    anlise daqueles que por ela se interessaram.

    Outro dado curioso o constrangedor escrito lacaniano. Propositadamente ou

    no, Lacan no deixa chance a autodidatas que pretendam se introduzir em

    sua obra. Seu texto parece forar uma transmisso ativa, que envolva mais de

    um sujeito. Sua cifra produz um enigma constante; constrangimento que

    ressoa ao mais delicado dos koans.

    19 LACAN, J. Escritos, op. cit., p. 215.