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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 1, n. 3, p. 33-59, set-dez. 2006 33 Arqueologia na F Arqueologia na F Arqueologia na F Arqueologia na F Arqueologia na Fortaleza de São José de Macapá ortaleza de São José de Macapá ortaleza de São José de Macapá ortaleza de São José de Macapá ortaleza de São José de Macapá Archeology at the F Archeology at the F Archeology at the F Archeology at the F Archeology at the Fortress of São José in Macapá ortress of São José in Macapá ortress of São José in Macapá ortress of São José in Macapá ortress of São José in Macapá Marcos Pereira Magalhães I Resumo: esumo: esumo: esumo: esumo: Este artigo argumenta que o principal objetivo da construção da Fortaleza de São José de Macapá não foi militar, mas representa um empreendimento de colonização e ocupação territorial, através da fixação de uma população comprometida com a Coroa portuguesa, cujos objetivos militares mais específicos, que eram a defesa contra outros conquistadores e base de ataque para a conquista de novos territórios (as minas peruanas), sempre exerceram papel secundário. Palavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: Arqueologia histórica. História da Amazônia. Arquitetura militar. Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: This article supposes that the main goal for the construction of Fortaleza de São José de Macapá, instead of to be a military one, it was a occupation and colonization enterprising, which was done by settling a population loyal to the Portuguese Kingdom, whose more specific military objective, defense against others conquerors and base to conquer new lands (the Peruvian mines), always performed a minor function. Keywords: eywords: eywords: eywords: eywords: Historical archaeology. Amazonian history. Military arquitecture. I Museu Paraense Emílio Goeldi. Coordenação de Ciências Humanas/Arqueologia. Pesquisador. Belém, Pará, Brasil (mpm@museu- goeldi.br).

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Arqueologia na FArqueologia na FArqueologia na FArqueologia na FArqueologia na Fortaleza de São José de Macapáortaleza de São José de Macapáortaleza de São José de Macapáortaleza de São José de Macapáortaleza de São José de MacapáArcheology at the FArcheology at the FArcheology at the FArcheology at the FArcheology at the Fortress of São José in Macapáortress of São José in Macapáortress of São José in Macapáortress of São José in Macapáortress of São José in Macapá

Marcos Pereira Magalhães I

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Abstract:Abstract:Abstract:Abstract:Abstract: This article supposes that the main goal for the construction of Fortaleza de São José de Macapá, instead of to be amilitary one, it was a occupation and colonization enterprising, which was done by settling a population loyal to thePortuguese Kingdom, whose more specific military objective, defense against others conquerors and base to conquernew lands (the Peruvian mines), always performed a minor function.

KKKKKeywords:eywords:eywords:eywords:eywords: Historical archaeology. Amazonian history. Military arquitecture.

I Museu Paraense Emílio Goeldi. Coordenação de Ciências Humanas/Arqueologia. Pesquisador. Belém, Pará, Brasil ([email protected]).

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Arqueologia na Fortaleza de São José de Macapá

INTRODUÇÃO

A Fortaleza de São José de Macapá é um dos maisimportantes monumentos militares do século XVIIIexistentes no território brasileiro. Ela sintetiza os métodose as estratégias de ocupação e defesa desenvolvidas pelaCoroa Portuguesa para a conquista definitiva da Amazôniae também para atingir a encosta oriental dos Andes. Sena época este último objetivo não foi alcançado, poroutro lado mostrou essa tendência, especialmenteséculos mais tarde, quando, então, a República Brasileiraanexou o território do Acre.

O corredor de fortificações que defendia a entradado rio Amazonas foi bastante ambicioso, entretanto,o principal resultado alcançado não foi essencialmentemilitar, mas sim um empreendimento de colonizaçãoe ocupação territorial, através da fixação de umapopulação comprometida com a Coroa Portuguesa,cujos objetivos militares mais específicos, que eram adefesa contra outros conquistadores e a instalação deuma base de ataque para a conquista de novosterritórios (as minas peruanas), sempre exercerampapel secundário. De todo modo, após muitos anosde divergência entre as políticas externas da CoroaPortuguesa e suas estratégias para a Amazônia, a suaedificação é iniciada em 29 de junho de 1764, com aautorização de D. José I. O projeto foi elaboradodepois que uma comissão, coordenada por HenriqueAntônio Gallucio, estudou os Tratados sobreFortificações de Manuel Azevedo Fortes. Comadaptações à realidade local, adotaram o Vauban deengenharia francesa do século XVII, com basesdefensivas da guerra de posição expressada no oitavomodelo do construtor Sebastién de Le Preste, oMarquês de Vauban (ALCÂNTARA; ALCÂNTARA,1979). O sistema adotado compreendeu umquadrado com baluartes pentagonais nos vértices,denominados N. Sra. da Conceição, São José, SãoPedro e Madre de Deus, e cercado externamentepor outros elementos arquitetônicos de reforço àdefesa. Após quase 20 anos, a construção foi concluídaem 19 de março de 1782 com 107 peças deartilharia de grosso calibre, e simplificada após o gasto

de muito dinheiro e a perda de muitas vidas, entreelas a de Gallucio, o engenheiro que a iniciou e nelaainda trabalhou por muitos anos. A simplificação foifeita excluindo, principalmente, os elementos externosprevistos, ainda que, como posteriormenteconstatado, não em sua integridade.

A conseqüência mais marcante da construção daFortaleza de São José de Macapá, entretanto, foi, semdúvida, a criação da Vila de Macapá e o seu significativodesenvolvimento durante este período. Tão marcanteque, desde então, Macapá tornou-se o principal centrourbano da foz esquerda do Amazonas. Por tudo isto,esta fortificação tem especial valor para a compreensãoda formação e da identidade da população regional.

Pelos motivos acima expostos, é de grandeimportância todo esforço voltado para o estudo,conservação e restauração deste monumentalconjunto arquitetônico. Entretanto, a consciência destaimportância tem sido bastante irregular ao longo dahistória. A Fortaleza, desde sua inauguração, alternoumomentos de ocupação com outros de completoabandono. As ocupações, por outro lado, nem sempreforam adequadas e as reformas que regularmente asprecediam foram meramente funcionais.

O seu tombamento como patrimônio históriconacional na década de 1950, em parte, diminuiu osriscos de interferências nefastas, mas não as eliminoucompletamente. Ações predatórias, inclusive,relativamente recentes, foram levadas adiantemesmo estando sob a proteção da lei.

Desde o seu tombamento, duas importantesiniciativas foram tomadas. A primeira, empreendidana década de 1970, não foi concluída, mas deu inícioa importantes estudos que culminaram nolevantamento e recuperação da documentaçãooriginal existente. Apoiados pelo governo Hening,o casal de arquitetos Alcântara, através da iconografialevantada e de algumas prospecções realizadas,forneceu uma série de elementos de ordemarquitetônica que possibilitaram o desenvolvimentode um projeto de restauração adequado.

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A iniciativa definitiva teve início com o governoCapiberibe, que em fins da década de 1990 tomoua decisão política de investir num projeto derestauração e uso responsável, comprometido comas características históricas e monumentais daFortaleza de São José de Macapá, iniciativa estamantida pelo governo posterior. Como resultadodisso, uma série de dúvidas de cunho histórico earquitetônico vieram à superfície, às quais osdocumentos e a iconografia relativos ao período daconstrução não respondiam com suficiente clareza.Foi a partir deste ponto que se verificou a necessidadede uma prospecção arqueológica quecomplementasse e até indicasse a correção dadocumentação iconográfica existente.

Contudo, antes mesmo do projeto de restauraçãoiniciado pelo governo de Capiberibe, outras iniciativascom os mesmos objetivos gerais já haviam sidopropostas. Uma delas foi apresentada ao Instituto doPatrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)pela DPJ Arquitetos Associados, através do arquitetoJosé Freire da Silva Ferreira, em 1988, com a qualteve início nossa participação nas prospecçõesarqueológicas da Fortaleza de São José de Macapá.

Assim, considerando que, apesar dos padrões geraisda arquitetura militar européia, cada naçãoapresentou soluções particulares para situaçõessemelhantes (interétnicas, políticas e econômicas),parte-se do princípio que as relações entre o contextocomportamental e o registro arqueológico poderiamrevelar as diferentes estratégias estabelecidas pelocolonizador português quando da construção daFortaleza. Por outro lado, ao serem abordados oscontextos sistêmicos de constituição desse sítio, ouseja, as atividades humanas que resultaram naformação do registro arqueológico, busca-se a

identificação do rol das atividades ali envolvidas(PREUCEL; HODDER, 1996). Enfim, busca-seidentificar, nas atividades relacionadas ao subsistemamilitar-econômico, em diferentes momentos eperspectivas, os comportamentos diversos que seentrecruzaram e interpenetraram historicamente,que pudessem ser encontrados no registroarqueológico (KUZNAR, 1997).

MÉTODO DE PESQUISA

Estudos envolvendo o relacionamento do registroarqueológico com a dinâmica comportamental têmrecebido grande apoio teórico desde, especialmente,a década de 1990 (TRIGGER, 1995; HODDER,1996; TSCHAUNER, 1996). Esses estudosimplicam, em resumo, no dever de correlacionar oregistro arqueológico à dinâmica comportamental. Istodeverá ser feito extraindo-se do registro arqueológicoestático a dinâmica das sociedades do passado atravésde analogias generalizantes, utilizando fatos observadosno presente (KUZNAR, 1997; TSCHAUNER, 1996;RAAB; GOODYEAR, 1984). Segundo Trigger (1995)

as correlações aplicam-se a todas as situações nasquais as capacidades cognitivas e de comportamentohumanas forem as mesmas que aquelas observadasno homem moderno.

Elas ainda buscam relacionar o espaço entre ocontexto arqueológico e o contexto sistêmico atravésde generalizações sobre as relações entre ocomportamento humano e a cultura material e osprocessos de formação do registro arqueológico(SCHIFFER, 1987).

Entre as categorias de refugo propostas por Schiffer1

(1972) e por South2 (1977), para os casos dos sítioshistóricos, nenhuma delas ajustou-se ao detectado

1 ‘Primário’, quando o material é descartado em seu contexto original de uso; ‘secundário’, quando o local de descarte final não é o mesmodo local de uso; e ‘refugo de fato’, quando o material alcança o contexto arqueológico sem o desempenho de atividade de descarte.

2 ‘Periférico’, quando o material é descartado afastado de uma edificação ou em terrenos baldios; e ‘adjacente’, quando ocorre odescarte em porções imediatas à edificação.

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na Fortaleza de Macapá. O material encontradoestava depositado no interior da edificação, mas haviasido ali colocado, posteriormente, por motivos nãorelacionados às suas deposições naturalmentepossíveis. Enfim, ali encontraram-se por razões nãorelacionadas ao seu uso original.

Ao tomar por base teórica os autores citados,procura-se, na medida do possível, adaptá-la àrealidade encontrada e também aos objetivos. Oobjetivo principal, ao longo das três excursõesrealizadas, foi subsidiar, arqueologicamente, arestauração da Fortaleza de São José de Macapá.Paralelamente à análise intra-sítio considerada,buscaram-se as relações possíveis entre os aspectoseconômicos, militares e os elementos de ordemsocial e natural que orientaram a construção daFortaleza e seus efeitos sobre a formação coloniallocal. Assim, foram identificados diversos elementosde ordem histórica que sustentaram a dinâmicasocioeconômica, a qual culminou com os rumosque a construção da Fortaleza seguiu. Tais rumos,como já havia sido notado por Flannery e Winter(1976) para a dinâmica de formação dos sítiosarqueológicos em geral, foram regulados porhierarquias próprias da comunidade, mas associadasao contexto internacional histórico que lhe deuorigem. Por outro lado, considerando que a culturamaterial simboliza a relação entre povos e objetose que seu significado cultural, suas estratégias e suasmensagens simbólicas podem ser decifrados pelacontextualização dos artefatos (YOFFEE;SCHERRATT, 1993), tenta-se explanar ascircunstâncias econômicas e históricas que resultaramna construção, tal como foi realizada, da Fortalezade São José de Macapá.

Os procedimentos de campo foram bastantesimplificados. Partindo da análise de antigos relatóriose da iconografia existente sobre os modos deconstrução da Fortaleza, deduziram-se os pontos a

serem examinados com o mínimo de escavaçãopossível (o que nem sempre ocorreu), devido àotimização do tempo disponível e a fim de evitarpossíveis danos no caso de cálculos errados. Foramfeitos cortes de 1 m2 em locais precisos, outros deaté 2 m2 em locais nem tão precisos, mas tambémnão aleatórios, e, em casos de dúvidas maiores,trincheiras de 0,5 m de largura com até 4 m deextensão (para casos específicos associados a ummenor nível de informação documental). Optou-sepor esta estratégia porque, em geral, ela é a maisadequada para o exame de áreas bem definidas,reduzindo julgamentos equivocados sobre ocomportamento espacial dos dados (JOHNSON,1984; BLANKHOLM, 1991).

PROCEDIMENTOS

Para um projeto de restauração o mais importantesão os quesitos de ordem estrutural. Assim, aprospecção e as escavações arqueológicasnecessárias deveriam solucionar certas dúvidas quepairaram sobre essas questões, bastante urgentes,já que a iconografia disponível não era capaz deesclarecer o destino final da construção de certoselementos arquitetônicos da Fortaleza. Osprincipais pontos apresentados a serem esclarecidosreferiam-se à localização e identificação da estruturado Redente; da estrada coberta e contra-escarpasdo Revelim e Baluarte São José; das rampascirculares de acesso à estrada coberta; do assoalhodos blocos 7 e 8 na praça principal; das pontes deacesso que teriam existido entre a estrada cobertae o revelim e entre este e a entrada principal (Casado Órgão). Além disso, havia dúvida sobre osistema de drenagem e capitação de esgoto, noque diz respeito à forma como funcionaria e àdireção que seguia. E, por fim, das baterias baixasque estariam situadas entre a Praça Fortificada e orio Amazonas (Figura 1).

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Figura 1. Planta geral da Fortaleza de São José de Macapá.

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OS RESULTADOS

AAAAAsssss pontespontespontespontespontesConforme as plantas de 1775 (Figuras 2 e 3) e, maistarde, a de 1805 (Figura 4), de Francisco José da CostaRoxa, deveriam ter sido construídas duas pontes deacesso, uma ligando o revelim à porta principal e outraligando a estrada coberta ao revelim. As duas roldanasda primeira ainda se apresentavam visíveis acima daporta principal da Casa do Órgão e estavam distantesuma da outra cerca de 5,2 m, dimensãocorrespondente àquela da parte móvel medida nareferida planta. A largura do fosso seco nesse trechoé de 20 m. A outra, também observada na planta de1805, tinha a mesma orientação, mas deveria serconsiderada a forma ‘quebrada’ da ponte e a sua larguradefinida pelo espaçamento das duas colunas da portaprincipal do Revelim, tal como observada na plantade fevereiro de 1775 (Figura 3).

O objetivo das escavações realizadas foi aidentificação e localização das fundações das pontes.De imediato foram identificados dois elementoscomplicadores: a existência de asfalto, tanto no fossoentre o Revelim e a Praça Fortificada, quanto entreo revelim e a estrada coberta; e o assentamento deesgoto que passava ao longo do primeiro fosso. Oasfaltamento desses fossos, que foram transformadosem rua, implicou no revolvimento de uma lâminado subsolo e do posterior aterro do solo entãoterraplanado. Já o esgoto representou a destruiçãode elementos estruturais até uma profundidade de80 cm e numa largura de 50 cm.

A prospecção das pontes de acesso foi o aspecto maispolêmico dentro do projeto de restauração da Fortalezade São José. Na década de 1970, o casal Alcântara jáhavia prospectado e localizado as bases de apoio entreo Revelim e o acesso principal, mas interferênciasdiversas, inclusive posteriores à publicação dos resultadosda prospecção (além do asfaltamento do fosso seco eda rede de esgoto, foi construída uma rampa de acessoem alvenaria, ligando este à casa do órgão), destruíramboa parte das evidências.

Além disto, não estava claro se as bases encontradasestavam de acordo com o projeto original identificadona iconografia associada (1805). Por outro lado, faltavaresolver a questão da existência ou não da ponte entrea estrada coberta e o revelim. Sobre esta, emboraconstasse em planta, não havia nenhuma referêncianos relatórios de obra. Elas já eram observadas emduas plantas anteriores datadas de 1775 e em outramais antiga, de 1765, contudo, em cada plantaapresentava formas arquitetônicas diferentes. A de1805 concordava com a de 1765, mas conflitava coma de 1775, a única que registrava a forma ‘quebrada’da ponte. Tal como no caso da ponte entre o Revelime a casa do órgão, todas apontavam para a existênciade uma elavadiça. Havia, ainda, especulações um tantofantasiosas, como a possibilidade dela não ter tido basee ter corrido sobre um trilho. Evidentemente, aconstatação da existência da ponte para o acessoprincipal era um indicativo da existência provável daponte de acesso para o revelim. Esta, porém, comoconstatado posteriormente, não era uma premissaválida, mas, de qualquer modo, foi a motivaçãoprincipal para a sua procura.

A A A A A ppppponte entre o Revelim e a Casa do Órgãoonte entre o Revelim e a Casa do Órgãoonte entre o Revelim e a Casa do Órgãoonte entre o Revelim e a Casa do Órgãoonte entre o Revelim e a Casa do ÓrgãoLevando em conta as escavações preliminaresrealizadas em 1990, objetivando fornecer dados parao projeto de restauração da DPJ, constatou-se umabrutal interferência na área próxima à entradaprincipal, portanto, optou-se por iniciar as escavaçõesem frente ao Revelim. O ponto selecionado foiestabelecido segundo a observação local. Rente àparede do Revelim, num dos pontos extremos dopossível tabuleiro da ponte, foi realizado um cortede 1,5 m2. A 40 cm de profundidade, distandoaproximadamente a 45 cm da parede, detectou-seo negativo de uma marca de esteio de madeira, apartir da qual se calculou o alinhamento do outroesteio, paralelo a esta cerca de 4 cm de distância.Assim, fez-se o alinhamento das bases.

Não se sabia, com precisão, a distância entre as bases,então, partiu-se de uma medida deduzida do relatório

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Figura 2. Ponte de acesso principal/ Revelim, Fortaleza de São José de Macapá.

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Figura 3. Planta baixa das bases a) 2A e b) 5A (escala 1/12,5).

a)

b)

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dos Alcântara. De fato, seguindo a orientação por elesrelatada, foi encontrada a primeira base, parcialmentedestruída por uma tubulação de esgoto, a 4 m daparede do Revelim. A que formaria par, entretanto,estava completamente destruída. Procuraram-se asseguintes, mas só foram encontrados entulhos detijolos coloniais com asfalto, o que demonstrava tersido a área severamente remexida.

Havia certa confusão entre as medidas do casalAlcântara e as do Projeto proposto pela DPJ. Assim,ao ser feita a opção de procurar novos vestígios juntoao acesso principal, resolveu-se seguir o alinhamentoestabelecido a partir de identificações das marcas deesteios rentes ao Revelim. Os pontos alinhados nãoestavam de acordo com as medidas estabelecidaspara o projeto, mais ainda assim, foram feitos cortespreventivos nos locais indicados para a fixação dasbases da ponte nova. Na verdade, como as medidaseram outras, só por coincidência as bases seriamencontradas a partir delas.

De fato, não foi encontrado nenhum vestígio evidente.Somente quando foram abertos novos cortes a partirdo alinhamento proposto por esta excursão,encontraram-se as quatro primeiras bases, inclusiveaquelas que sustentariam a ponte elevadiça (Figura 2).Para isso, foi aberta uma pequena trincheira de50 cm de largura ao longo do alinhamento estabelecido,até que finalmente uma base fosse encontrada.

Tal base estava bem próxima ao esteio desustentação da atual escada de acesso à PraçaFortificada. Neste ponto, a base apresenta umaevidente inclinação em direção ao apoio existentelogo abaixo do nível da entrada e a cerca de 4 mencontrou-se sua paralela que se apresentavabastante danificada. A menos de 3 m adiante, foiencontrado outro par de bases, agora em perfeitoalinhamento com a base próxima ao Revelim.

Neste ponto dos trabalhos, chegou-se à conclusãode quais questões em relação ao acesso principalestavam satisfeitas: a ponte existiu, a sua estruturapôde ser identificada, as medidas originais poderiam

ser recuperadas e houve uma preparação para a suaparte elevadiça.

Não há como confirmar se a ponte original era adefinitiva ou se foi apenas de serviço. Mas, pelo quese constatou, o mais provável é que a ponte erguidanão tenha sido a do projeto original proposto, assimcomo o projeto proposto pela DPJ não possuiqualquer relação com as medidas da original. Nesteúltimo caso, foi proposta uma revisão para o projeto.Por outro lado, existe uma planta mais antiga (1708),que mostra que antes da construção do Revelim jáhavia uma ponte entre a Esplanada e a Casa do Órgão,o que, talvez, justifique a precocidade da destruiçãoda ponte original apenas sete anos após a inauguraçãoda Fortaleza (1782 e 1789, respectivamente). Podeser que a ponte de serviço nunca tenha sido substituída.

Apesar das mesmas medidas, as estruturas das basesnão eram todas iguais. A mais inteira, próxima aoRevelim, por exemplo, era arrematada por pedraschumbadas, enquanto as demais, próximas àFortaleza, utilizavam-se tijolos (Figuras 3 e 4). Comooutras não foram encontradas, pois já se encontramcompletamente destruídas, não é possível saber sefazia referência ao sistema de construção ou àvariação no padrão do material empregado. Foiaconselhada a preservação, com o devidotratamento, das duas bases melhor conservadas parafins museológicos (testemunhos).

PPPPPonte entre a Estrada Coberta e o Ronte entre a Estrada Coberta e o Ronte entre a Estrada Coberta e o Ronte entre a Estrada Coberta e o Ronte entre a Estrada Coberta e o RevelimevelimevelimevelimevelimPara localizar essa ponte não houve a contribuição deuma documentação que a citasse com clareza, oumesmo de qualquer planta específica que apresentassemedidas e posições precisas; havia apenas plantasgerais do projeto arquitetônico da Fortaleza, onde,sem muita precisão, ela aparecia. O principal problemareferia-se ao seu início na Estrada Coberta, que nãoestava alinhado com o Revelim. Conseqüentemente,o certo era que o alinhamento da ponte não poderiaser retilíneo tendo como ponto inicial o portal doRevelim. Havia uma quebra na simetria, mas pelas

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Figura 4. Planta baixa das bases a) 3A e b) 4A (escala 1/12,5).

a)

b)

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plantas era difícil definir em que estágio. O agravanteera o asfaltamento existente entre a estrada e o Revelim,cujo solo foi revirado e preenchido com várias camadasde aterro antes do asfalto.

As dificuldades para encontrar os vestígios das basesda ponte eram muito grandes e a primeira opção foiprocurá-los rente à Estrada Coberta. Embora corteshouvessem sido abertos na direção provável do seuinício (como foi possível constatar depois), a áreaestava muito revirada e só foi encontrado um nívelde tijolos, sem superposição e que nada sugeria (aliás,este padrão repetiu-se na seqüência das basesposteriormente encontradas). Felizmente, ao optar,em seguida, por fazer novos cortes na direção doportal e próximo ao Revelim, encontraram-se duasbases em alvenaria, semelhantes àquelas existentespara o acesso à praça principal. Vale notar que quandoos vestígios foram encontrados, constatou-se que aplanta de 5 de fevereiro de 1775 (Figura 3), quetambém indicava a presença da ponte para a Casa doÓrgão e era a única que apresentava a ponte‘quebrada’, estava correta. Porém, como nem tudoque estava previsto nos projetos originais foi concluídoou mesmo implantado, esta observação, associada àfalta de precisão nos documentos existentes antes dasprospecções arqueológicas, serviram apenas comoum dos indicativos. Havia outros que, sem asprospecções, poderiam levar a concluir pelainexistência da ponte. Com as escavações,entretanto, chegou-se as seguintes conclusões: aponte existiu; a quebra da simetria era no tabuleirode chegada, no Revelim; ela não corria sobre o trilhoe nem era elevadiça (não foi feito o que estavaprevisto no projeto original); deveriam existir outrasbases (pode ser que ainda haja algum vestígio numoutro ponto); o início da ponte na Estrada Cobertaainda pode ser percebido hoje; devido ao estadoavançado de deterioração e interferências nefastas,a conservação delas é insignificante; e o projeto paraa construção da nova ponte deveria obedecer aodesenho e às medidas originais, propostos na plantade 5 de fevereiro de 1775.

Bloco 7: PBloco 7: PBloco 7: PBloco 7: PBloco 7: Paiol de pólvorasaiol de pólvorasaiol de pólvorasaiol de pólvorasaiol de pólvorasLocalizado na Praça Principal ou Fortificada, essebloco era o antigo ‘Armazém de Pólvora’ (Figura 8),cujo piso, possivelmente entre as décadas de 1970e 1980, foi entulhado e coberto com concreto(cimento e pedra).

Com o objetivo de localizar e identificar os antigosbaldrames (vigas de apoio) laterais e centrais do pisooriginal, foram feitos 4 cortes de 1 m2 e 1 de 1/3 mem locais previamente determinados, através daobservação de plantas e do bloco 8, já restaurado.Os cortes foram distribuídos em dois pontosextremos do bloco, um próximo à entrada e outropróximo ao fundo (Figura 9).

Como conseqüência, foram precisamentelocalizados os três baldrames, que eram contínuose em alvenaria (tijolo, argila e cal), sendo o centralalguns centímetros mais baixo (cerca de 15 cm). Acamada de cimento que cobria os baldrames tinhapor base um aterro de areia e sob ele um outromais antigo, possivelmente de década de 1940,período no qual foi promovida uma reforma no paiolque tentou recuperar o antigo assoalho.

Ao contrário do original, o espaço livre entre osbaldrames, com cerca de 70 cm de profundidade eque servia como uma câmara de ar para proteger amadeira da umidade, foi quase totalmente cobertacom aterro. Entretanto, o barroteamento doassoalho entre os baldrames foi feito em madeira. Asolução encontrada, aliás, foi a mesma aplicada narestauração atual, uma vez que o baldrame central,cujo barroteamento original fora em madeira, foisubstituído por alvenaria. Por conta disto, sobre aestrutura original do baldrame central, foramencontrados tijolos e argamassa mais recentes, quedenunciavam a interferência.

A destruição desse assoalho, muito provavelmente,foi causada por incêndio, já que se encontrou, empontos distintos do bloco, madeira carbonizadaassociada aos baldrames, inclusive junto às estruturas

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da reforma dos anos de 1940. A cobertura deconcreto promovida anos depois não comprometeuas estruturas originais.

Foi recomendada e providenciada a retirada de todoo aterro. Como já observado, o aterro mais antigonão é da época da ocupação colonial na Fortaleza ea presença de material poderia indicar a época e aprocedência do aterro, que permaneceramobscuras, pois foi encontrada muita mistura, inclusivecerâmica indígena antiga. Não está descartada apossibilidade de que, sendo este aterro de origemlocal, a Fortaleza tenha ocupado um antigoaldeamento indígena, mas nas condições atuais émuito difícil confirmar ou descartar tal hipótese.Durante as escavações, a terra retirada foi peneirada;devido à ausência de material colonial e da indefiniçãocontextual do material indígena, a continuação dapeneiragem tornou-se desnecessária.

AAAAAs latrinas e os poçoss latrinas e os poçoss latrinas e os poçoss latrinas e os poçoss latrinas e os poçosPor conta da referência encontrada num relatóriode serviço durante a construção da Fortaleza, sobrea necessidade de se construir latrinas e abrir poçospara a captação de água potável entre as rampas,era preciso localizá-las. Os poços tinham o localcitado, incluindo um relato tardio sobre a queda deum soldado dentro de um deles, que implicou noseu fechamento. Quanto às supostas latrinas, nacasamata ao lado direito da porta dos fundos daFortaleza, havia um fosso que poderia ter servidopara isto. A questão era se existiriam outras eonde, mas apenas uma planta, a de janeiro de1775 (Figura 1), fazia referência ao sistema dedrenagem e esgoto. Por isto, associado às latrinashavia a importante questão sobre como elas seligariam com o sistema de drenagem da Fortaleza.

O fosso aberto encontrado tinha sofrido umareforma e, portanto não assegurava os dados sobrea sua forma e funções originais. Como a observaçãodireta não revelava nada, restava encontrar a respostana casamata onde havia sido encontrado vestígio deum outro fosso.

Considerando a simetria do sistema arquitetônicoda Fortaleza, deduziu-se que poderia haver um outrofosso na casamata esquerda. De fato, apósprospecção localizada, seus vestígios foramencontrados, evidenciando-se que o corredor deacesso de fundo é ladeado por duas casamatas queabrigam esses dois fossos. No primeiro já havia sidoconstatada uma canalização perpendicular aocorredor, no fundo do fosso a 1,7 m deprofundidade. Analisando a iconografia existente(planta de 1775), observou-se que a canalização darede de drenagem deveria passar juntamente sob ocorredor de acesso dos fundos e na direção da praia,margeando o Baluarte N. S. da Conceição. Por isto,antes de dar início à escavação do segundo fosso,que se encontrava aterrado e coberto por piso detijolos, já havia suspeitas de que deveria existir umaligação perpendicular (assim como no outro) comessa canalização central, sob o tal corredor de acesso(Figura 10).

Para grata surpresa, logo que foi dado início àescavação do segundo fosso, foi encontrada umagrande quantidade de material arqueológico,notadamente de balas de canhão de diversoscal ibres, além de outros objetos bastanteinteressantes. Menciona-se que durante uma dasdiversas reformas na Fortaleza, efetivadas no séculoXX (provavelmente na década de 1970), oresponsável pela obra, por ignorar o que fazer comas peças, teve o bom senso de soterrá-las nessefosso, e possibilitamde que uma grande quantidadede material fosse preservada. Fragmentos de louças,garrafas antigas, escova de dente, moedas do séculoXVIII e até uma granada da época fazem parte desteachado. A terra retirada foi deixada para secar antesde ser peneirada, pois era possível que mais objetosfossem encontrados durante a peneiragem. Foirecomendado aos responsáveis pelo museu local (oprojeto de restauração em execução estavaimplantando um museu no local) que esse materialfosse lavado, identificado e catalogado, numa primeiraetapa e, em seguida, restaurado o que fosse possível.

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Após a retirada de todo o material encontrado e daterra que tapava o fosso, era possível ter uma idéiade como ele realmente era. As paredes de tijoloseram cobertas por argamassa feita de cal e argila,então em avançado estado de deterioração. De fato,a reforma do outro fosso alterou bastante a aparênciado mesmo, que poderá ser recuperada a partir destesegundo. Como esperado, foi encontrada acomunicação com a canalização central, quejuntamente com a do outro fosso formam uma cruz,não registrada na planta de 1775. Observou-se umdeclive em direção ao cano central, bem mais baixo.

A comunicação, ou cano da latrina, no segundofosso, é grande o suficiente para permitir a entrada(agachada) de uma pessoa magra e de pequenaestatura (65 kg e com até 1,7 m). Ao verificar o seuinterior, constatou-se que, de fato, o sistema dedrenagem, cujo fosso principal encontra-se no centroda Praça Central, segue sob o acesso dos fundos, nadireção da praia, paralelamente ao Baluarte N. S.da Conceição e é cruzado pelos canos que partemdos fossos menores encontrados nas duas casamatas.Isto resolveu uma questão curiosa a respeito dadrenagem da Fortaleza.

Embora a planta de 1775 indicasse o encontrado, haviadúvidas se isto realmente foi seguido, já que, segundo alógica apresentada pela engenheira estrutural do IPHAN,a canalização deveria seguir em linha reta até o rio.Posteriormente, concluiu-se que havia outras razõespara que a canalização fosse do jeito encontrado: razõesde defesa e não de engenharia. Por outro lado, o sistemade drenagem mais tarde também fora utilizado como‘sumidouro’ de prisioneiros. Durante a ditadura militar,segundo o relato de testemunhas, presos políticos eramjogados dentro do fosso central da praça, comprofundidade de 3 m e paredes convexas. Embora naPraça Central a tubulação seja larga o suficiente paraabrigar a passagem de um homem em pé, conformese aproxima do rio ela vai se estreitando, de modo aimpedir que um adulto consiga se rastejar por ela, como acréscimo de que em épocas de cheias do Amazonasas marés enchem de água o fosso central. Em sondagem

realizada, verificou-se também que não havia ligaçãodos fossos laterais com as demais casamatas.

Quanto à função destes dois fossos, é provável quede fato tenham servido de latrina, mas também épossível que tenham servido de lugar para banho.Esta última observação, apesar de polêmica, apóia-se no fato de que, além da saída de água ser grande,foi encontrado um objeto que parece ser cabidede parede. Entretanto, há relatos de que em épocasde cheia do rio Amazonas, a maré enche até ametade do fosso.

Em frente ao fosso escavado havia uma marca naparede da casamata, na forma de um arco, comaproximadamente 25 cm de largura, que pode terservido como parede de isolamento. É precisofazer uma prospecção para analisar o tipo de vestígioali encontrado e, conseqüentemente, encontraruma resposta mais precisa.

Quanto aos poços, não foi possível encontrar umaresposta precisa. Foram encontrados sinais deaterro com terra mais escura, num dos locaisindicados, entretanto, não havia qualquer estruturaque denunciasse ter ali existido um poço e nem asua forma era definida. Muito irregular e semestrutura, abrir um buraco no local, mesmo querealmente ali seja o local do antigo poço, nãorevelaria absolutamente nada, pois um buraco atualteria o mesmo efeito visual. Um outro poço foiencontrado, na verdade um fosso aberto para redede esgoto, posteriormente abandonado, mas deorigem moderna.

EEEEEstrada Coberta e contra-escarpas do Revelim/strada Coberta e contra-escarpas do Revelim/strada Coberta e contra-escarpas do Revelim/strada Coberta e contra-escarpas do Revelim/strada Coberta e contra-escarpas do Revelim/BBBBBaluartesaluartesaluartesaluartesaluartes S S S S São ão ão ão ão JJJJJosé e osé e osé e osé e osé e MMMMMadre deadre deadre deadre deadre de D D D D DeuseuseuseuseusAntes das prospecções realizadas in situ, a observaçãosuperficial indicava que ali, provavelmente, afloravamas fundações dos muros de proteção da EstradaCoberta. Eles teriam sido construídos de tijolos (daíterem sido destruídos ou retirados) e assentadossobre base de alvenaria de pedra. As cortinas docorpo da praça da Fortaleza tinham altura e

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acabamento semelhantes e eram acompanhados, emtoda sua extensão, de caminhos de ronda, comacabamento semelhante ao das banquetas. Nochamado caminho da campina, esse muro abria-seformava a sortida que dava acesso ao mesmo.

Em correspondência de 24 de novembro de 1772,J. Wilkens referia-se a essa sortida como tendo dois‘postes para receber cancela’ e que era ‘ladeada pelaestrada’. Por conta disso, as escavações objetivaramacompanhar a fundação no sentido indicado pela,planta; confirmar a forma da curva que fecha ofosso e verificar até onde foi construída a contra-escarpa, que na planta de 1805 (Figura 4),prossegue contornando o Baluarte de São Josécom uma curva muito semelhante a que contornao Baluarte de Madre de Deus. Já nas plantas de1765 (Figura 5), é indicado um fosso aquáticoterminando próximo a esse trecho, que teria sidoconstruído e posteriormente aterrado.

Para tanto, no local provável da fundação do muroda estrada coberta voltado para o baluarte e outropara o Revelim, foram abertos três cortes.Entretanto, salvo um único local onde afloravam unspoucos tijolos, em nenhum outro foi encontradoqualquer vestígio do muro, embora as fundaçõesestivessem em bom estado (Figura 11). Conformea fundação aproximava-se do lado voltado para oRevelim, ficava mais estreita e rasa, talvez por contade depredações e terraplenagens. Com um corteestratigráfico foi localizado o fim da fundação, logoatrás do antigo prédio da Cooperativa de Pesca(COPA), então demolido.

Na estrada coberta voltada para o Baluarte Madre deDeus foi aberto um outro corte, cujo resultado mostroua existência de sua fundação, embora bastante danificada.A parte voltada para o Revelim já não existia mais e olocal, de uma forma geral, estava muito impactado pelaconstrução de uma casa que, inclusive, utilizou tijolos epedras retirados de lá mesmo. Apesar das péssimascondições da conservação das estruturas, as escavaçõesrevelaram que, de fato, teriam existido não só as

fundações de alvenaria de pedra, mas também o murode tijolos (Figura 12).

Já a rampa de acesso à esplanada em frente aoBaluarte Madre de Deus, ao contrário das demais,não apresentou nenhum vestígio de assentamentode tijolos. Supõe-se que ela tenha sido escavada narocha (solo composto de laterita compactada),entretanto, também não havia regularidade nasrochas dispostas na rampa. Deste modo, concluiu-se que desde a esplanada em frente ao BaluarteMadre de Deus, até a ponta do Baluarte NossaSenhora, aquilo que parecia ser uma muralha artificial,na verdade, era natural. Ou seja, parece que todaaquela área era alta e que o muro foi escavado narocha, aproveitando as características naturais doterreno, sendo completado, nas áreas irregulares,por muros de tijolos.

O RedenteO RedenteO RedenteO RedenteO RedenteA planta do Redente, feita por F. J. Costa Roxa queserviu de base para as escavações datava do ano de1805. Em princípio, o exame local confirmava amodificação da forma inicial projetada na planta de1765 (Figura 6), para acomodá-la ao terreno, segundoa planta de 1806. Sendo assim, foram escavadostrechos da contra-escarpa para tentar atingir afundação, acompanhando-a no sentido transversal, atéencontrar a rampa de acesso ao redente. Esperava-seque ela tivesse o mesmo acabamento das rampas docorpo da praça: tijolos a cutelo. Também era esperado,acompanhando a rampa no sentido ascendente,encontrar um provável nível interno do Redente, apartir do qual se esperava identificar o que restariadas ‘banquetas’, ‘canhoneiras’ e ‘merlões’.

No local, entretanto, o primeiro corte foi feitodentro do Redente, aproveitando um afloramentorochoso, que evidenciou a estrutura de um antigopiso de tijolos deitados uns ao lado dos outros, coma parte mais larga para cima (Figura 13). O Redente,provavelmente, era todo calçado de tijolos, pois emvários pontos foram identificados vestígios do piso.

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Figura 5. Ponte Esplanada/Revelim, Fortaleza de São José de Macapá.

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Figura 6. Planta baixa base 2B (escala 1/12,5).

Escavando a rampa de acesso, no sentidodescendente, após a retirada da terra que cobria asestruturas originais, aflorou o piso feito de tijolos acutelo, tal como esperado. Mas se observou que opiso desta rampa estava mais preservado que osdemais e apresentava detalhes de assentamento maisrico (do nível superior para o nível inferior): arrematefeito por tijolos assentados horizontalmente, com olado mais largo para cima e encaixe no próprio sololaterítico, sem argamassa; e, em fileira dupla, segueoutra formação, na vertical, com o lado maiscomprido para cima. Daí começa o piso da rampa,propriamente dito, com tijolos regularmentealinhados na vertical, dispostos em sentido contrárioe assim se alternando até a base da rampa.

No Redente ainda foram encontrados vestígios dediversas escavações ali realizadas, provavelmente paraprospecções arquitetônicas. Em uma delas aproveitou-se para examinar a estratigrafia, com a esperança deidentificar a fundação do Redente. Porém, nada se

encontrou além do solo laterítico, o que supõe nuncater ela existido, já que o as características rígidas dopróprio terreno podem ter servido de base para asustentação da obra.

Como resultado observou-se que a construção finaldo Redente não obedeceu a nenhuma das plantasdisponíveis. O desenho arquitetônico final doredente, que na ocasião era de difícil identificaçãopor conta do seu avançado estado de destruição,segundo a presente pesquisa, revelou-se umaadaptação às características morfológicas do terreno.Essa adequação da obra às características da paisagemnão estava prevista em nenhuma das plantas e nemmesmo havia sido relatada pelo administrador daépoca da sua construção.

Baterias baixasBaterias baixasBaterias baixasBaterias baixasBaterias baixasEm 1999 as pesquisas focaram a localização das basesestruturais das baterias baixas (Figura 1) e, se possível,das do Fortim de 1761 (Figura 6). A tarefa não era

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a)

b)

Figura 7. Planta baixa base a) 4B e b) 3B (escala 1/12,5).

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Figura 8. Planta do Armazém de Pólvora.

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nada promissora, já que entre os Baluartes NossaSenhora da Conceição e São Pedro, na década de1970, os militares ergueram no local o Círculo Militar,Clube que era composto de salões de festa, campode futebol e, inclusive, uma piscina olímpica.

O local mais prejudicado foi aquele em frente aoBaluarte São Pedro, onde estavam a piscina ealgumas benfeitorias. Neste local, nem da bateriabaixa posterior (sobre a qual não havia certeza dasua construção) e nem da bateria em semicírculo,mais antiga (efetivamente construída), restouqualquer vestígio. Em frente ao Baluarte N. S. daConceição, local onde fizeram apenas um campode futebol, restou apenas uma fina camada da baseestrutural da bateria baixa. Quanto ao antigo forte,infelizmente a terraplanagem ali executada foiirreparável, dele nada restando, nem mesmo apossibilidade de um exame mais detalhado.

Mediante o encontrado, certificou-se, entretanto,que a bateria baixa em frente ao Baluarte N. S. daConceição foi realmente erguida. Porém, da suaoutra parte, em frente ao Baluarte S. Pedro, nadafoi encontrado. Coincidentemente, a maioria dosrelatórios de obra parece sugerir que ela não teriasido concluída neste local e, assim, não era certoencontrar vestígios de suas estruturais. Porém, comotambém não foram encontrados vestígios da bateriaem semicírculo e como todo o local estavaprofundamente alterado por ações posterioresligadas à construção do clube, não se pode afirmarque de fato ela não fora erguida naquele local,inclusive por haver um relatório de obra que sugerea sua construção. O fato é que não se pode dizer aocerto (através da arqueologia) o que realmente foiconstruído nesse local, razão pela qual o estudodetalhado da iconografia existente foi muitoimportante para alcançar uma conclusão.

Figura 9. Casa de Pólvora (áreas escavadas - C1, C2, C3, C4, C5).

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Figura 10. Galerias de esgoto – Planta baixa subterrânea.

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Figura 11. Estrada coberta.

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Figura 12. Detalhe para a casa construída ao longo da estrada.

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Figura 13. Cortes do Redente.

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O resultado dos trabalhos desta fase pode serconsiderado satisfatório em relação aos critériostécnicos. Contudo, ficou certo sentimento defrustração, já que se constatou a impossibilidade deresolver algumas questões devido ao estado dedegradação encontrado nos locais pesquisados. Aconstrução ou não da Bateria Baixa no lado voltadopara o Baluarte São Pedro permanece sem resposta.Arqueologicamente não é possível resolver esteproblema, pois o solo local foi completamenterevirado e, em alguns pontos, retirado. Entretanto,segundo a documentação existente, a construção dabateria baixa teria ficado incompleta, tendo sidoerguida somente no lado frontal ao Baluarte N. S.da Conceição. Por motivos não esclarecidos(paralisação das obras, inconsistência do terreno,mudança de plano), o outro lado não teria sidoerguido. Ainda segundo a iconografia existente,verificou-se que o início da bateria baixa(perpendicular ao baluarte) coincide com a linha dosistema de drenagem externa, que passa em frenteao Baluarte N. S. da Conceição.

COMENTÁRIOS GERAIS

O fato de ter sido dado atenção, neste artigo, aorelato dos procedimentos utilizados no campoarqueológico, advém da existência de uma claracontradição entre os documentos históricosdisponíveis e as evidências arquitetônicas observadas.Essas contradições, por outro lado, são muito maisprofundas do que apresentam. Pois, no geral, osdocumentos históricos relacionados à construção daFortaleza, especialmente aqueles gerados pelasautoridades diretamente envolvidas, não deixamexplícitas as reais conseqüências de suas decisões.Muito pelo contrário, o que aparenta é umacompleta defasagem entre o plano e a implantação,entre o planejado e o alcançado.

As circunstâncias econômicas e históricas queresultaram na construção da Fortaleza de São Joséde Macapá mostraram um descompasso entre o

sistema de defesa aprovado (elaborado para arealidade do século XVII) e a política de consolidaçãocolonial adotada pelo Marquês de Pombal, primeiroministro de D. José I, adepto do despotismoesclarecido. Este descompasso talvez justifique o fatode ter sido adotado o sistema Vauban, de guerra deposição, já no século XVIII, completamente superadapela potência dos novos canhões, das novasestratégias de guerra e, principalmente do ponto devista de defesa, impotente diante da grande extensãode terra e água que deveria proteger. Em princípio,os argumentos para a construção da Fortaleza eramde que ela impediria, pela via do Amazonas, a entradade navios invasores; defenderia, abrigando no seuinterior, os moradores da vila de São José de Macapá,caso sofressem ameaça de assédio; serviria comoponto de contra-ataque ao inimigo; seria um elo decomunicação e vigilância entre as demais fortificaçõesespalhadas pelo interior e fronteiras; asseguraria aexploração dos produtos regionais (drogas do sertão)e seu comércio exclusivo com a metrópole; emanteria a soberania da coroa portuguesa na região.

Por outro lado, é possível considerar o interessegeopolítico lusitano em garantir o domínio sobre asterras conquistadas no Brasil, com base no Tratadode Madri, de janeiro de 1750, entre Portugal eEspanha, o qual definia os limites fronteiriços ao norteda colônia. Isto estaria expresso nos três últimositens dos argumentos para a construção daFortaleza, apresentados no parágrafo anterior.Desse modo, é possível supor que a implantaçãoda Fortaleza de São José de Macapá, antes de tudo,visou à fixação definitiva de um núcleo avançadode colonização, com a intenção deliberada deimpedir o avanço francês, que já havia conquistadoa Guiana. Assim, mais que empreendimento militar,a construção da Fortaleza foi instrumento decolonização. Infere-se isto das conseqüênciasconcretas resultantes da construção: comoempreendimento militar os únicos tiros disparadospelos canhões da Fortaleza foram festivos; a mão-de-obra utilizada foi remunerada e incentivada a ficar

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na região, e somente quando o Marquês de Pombalfoi exonerado admitiu-se mão-de-obra escrava;todos os objetivos econômicos, como o apoio àexploração das drogas do sertão, foram executados;e durante a construção da Fortaleza houve umagrande circulação de riqueza na região, com forteinfluência sobre o interior (ARAÚJO, 1998).

Sem dúvida, o impacto da construção da Fortalezade São José sobre a região foi muito grande e decaracterísticas eminentemente econômicas.Entretanto, com a morte de D. José I e a exoneraçãodo Marquês de Pombal, a política muda, comD. Maria I retardando e, em seguida, mandandoparalisar a obra por ser muito onerosa. Assim, cincoanos depois, mesmo inacabada, a obra é inauguradaem 19 de março de 1782. Durante o períodoPombalino, apesar de haver mão-de-obracompulsória, propriedade do Estado, principalmenterepresentada pelo elemento indígena, o maiorcontigente era composto por oficiais e soldados doexército, capatazes e mestres de ofício, todosremunerados. Nos últimos cinco anos antes de suainauguração, com os cortes orçamentários impostopor D. Maria I, a mão-de-obra escrava aumentasignificativamente, especialmente incrementada peloelemento negro que foi, juntamente com a indígena,trabalhar na extração e transporte de pedras e naprodução de telhas e tijolos (FIGUEIREDO;VERGOLINO, 1990).

Durante o período colonial e o Brasil Imperial, aFortaleza foi militarmente ocupada, atendendo àsestratégias portuguesas e imperiais. Entretanto, comas mudanças ocorridas na conjuntura mundial doséculo XIX, especialmente com a Proclamação daRepública brasileira em 1889, a Fortaleza,gradativamente, entra em processo de totalabandono. Desde então, vez ou outra ocupada porrazões e finalidades diferentes, a Fortaleza foi alvode saques e reformas. Entretanto, foi a ocupação eutilização deste monumento pelo Governo doTerritório do Amapá, ocorrida em 1946, querevitalizou sua importância, fazendo-a entrar em

Tombamento sob o Processo no 423/T/50, inscriçãono 269 no livro de Tombo Histórico do atual Institutode Patrimônio Histórico e Artístico Nacional(IPHAN), em 22 de março de 1950.

O Tombamento, infelizmente, não impediu que ossaques continuassem e que obras como as doCírculo Militar fossem erguidas. Aliás, com a ditaduramilitar implantada em 1964 no Brasil, é escrita nahistória da Fortaleza de São José uma das suas maistristes páginas. Nesta ocasião os militares não sóconstruíram o clube numa área tombada peloPatrimônio Histórico, como inicialmente utilizarama Fortaleza como prisão política de intelectuais etrabalhadores amapaenses. A partir de 1979, todavia,que o IPHAN retoma seus cuidados com omonumento, retirando uma torre de sinalizaçãonáutica do Baluarte de N. S. da Conceição einiciando, com os arquitetos Pedro e Dora Alcântara,a elaboração de um projeto de restauraçãopatrocinado pelo governo do território do Amapá,época da qual data a recuperação de toda aiconografia atualmente disponível. Apesar dogoverno de 1990 ter contratado um novo projetode restauração à DPJ Arquitetos Associados deBelém, somente com o primeiro governo do novoestado do Amapá, entre 1995 e 1996, éimplantado, definitivamente, um programa derestauração supervisionado pelo IPHAN.

Os objetivos propostos para as pesquisasarqueológicas aqui apresentadas estão, portanto,relacionados a esse projeto de restauração. Emtermos de elucidação quanto aos elementosarquitetônicos efetivamente erguidos, a pesquisa foicoroada de êxito, uma vez que orientou e sugeriualterações no projeto arquitetônico da restauração.Assim, tanto as pontes quando o sistema de drenagemda Fortaleza, originais, foram arqueologicamenteesclarecidos. Conseqüentemente, os objetivospropostos foram alcançados e mostraram que osprocedimentos empregados foram corretos. Poroutro lado houve uma carência de cultura material,talvez em razão das áreas escavadas, estarem

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direcionadas para elucidar aspectos exclusivamentearquitetônicos e serem as mais adequadas paraencontrar restos materiais. Sem dúvida, para umapesquisa voltada para esta questão outras áreasdeveriam ser privilegiadas. Mas os procedimentos ea estratégias de pesquisas aplicadas obedeceram auma solicitação do IPHAN, que considerou apenaso monumento em si, ignorando, por outro lado, adinâmica de formação dos sítios arqueológicos emgeral. Como já observado, a formação dos sítiospossui um contexto que associa a sua história materialcom os aspectos sociais da comunidade, reguladospor hierarquias próprias. Entretanto, a consideraçãoobservada por Yoffee e Scherratt (1993), de que acultura material simboliza a relação entre povos ecoisas e que seu significado cultural, suas estratégiase suas mensagens simbólicas possam ser decifradospela contextualização dos artefatos, não pôde serexperimentada, pois os únicos objetos materiaisencontrados estavam fora do seu contexto natural.

De todo modo, nosso trabalho mostrou que nemsempre os documentos são confiáveis, em particularaqueles referentes à Fortaleza de São José de Macapá,que sofreu muitas alterações por conta das mudançashistóricas que o contexto mundial sofria. Havia muitainformação que não corresponda à realidadeconstatada. O questionamento que surge é se nãoteria sido isto proposital, por se tratar de uma obramilitar. Porém, é mais provável que o problematenha surgido por conta das diversas administraçõesresponsáveis até a conclusão da Fortaleza, pelamudança da estratégia militar para região e pelodesinteresse na conclusão da obra, já em plena fasede acabamento. De qualquer modo constata-se que,seja lá qual for o motivo, uma documentaçãohistórica é apenas o indício de um acontecimento,mas não o acontecimento em si. É preciso verificara sua veracidade em relação ao que de fatoaconteceu. A pesquisa arqueológica tem semostrado, quando possível, muito eficaz nesteaspecto. Enfim, a pesquisa arqueológica, antes dainterferência, seja sobre a paisagem natural ou sobre

um monumento histórico, não só responde a umasérie de questões que os documentos nãoesclarecem, como pode evitar outra série deequívocos históricos, às vezes incorrigíveis.

Com o estudo da documentação e da iconografiaexistentes sobre a construção da Fortaleza, associadoa uma pesquisa arqueológica mais detalhada queconsidere a cultura material, certamente será possívelresponder muitas outras questões, além daquelasrelativas aos aspectos arquitetônicos do monumento.

As pesquisas realizadas tiveram início em 1988;voltou-se à Fortaleza de São José de Macapáem 1998 e, por fim, em junho de 1999, asduas últimas vezes para atender à solicitação da2a SR/IPHAN. O projeto de restauração domonumento tinha o acompanhamento da regionaldo IPHAN que, por duas vezes, necessitou doaporte técnico de um arqueólogo para proceder aescavações nos locais sobre os quais as obrasavançavam. Mas as pesquisas não se encerraram ehoje uma nova equipe dá prosseguimento a elas,dessa vez privilegiando a área externa, com outraperspectiva, sob outros métodos. Seriainteressante, porém, um projeto que considerassea cultura material, em caráter bem mais amplo,estendendo-se para as supostas áreas que teriamservido de fonte de matéria-prima para a construçãoda Fortaleza, considerando, inclusive, as rotas, amão-de-obra empregada e a circulação de riquezas.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 19/12/2002Aprovado: 02/05/2006