Artigo Sobre Batismo de Sangue

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8/17/2019 Artigo Sobre Batismo de Sangue http://slidepdf.com/reader/full/artigo-sobre-batismo-de-sangue 1/8 BATI SM O DE SANGUE : ENTRE O ARQUIVO E O TESTEMUNHO BATI SM O DE SANGUE:  BETWEEN THE ARCHIVE AND TESTIMONY  Joel Cardoso da Silva 1   Luiz Guilherme dos Santos Júnior 2  RESUMO: O artigo analisa o livro e o filme  Batismo de Sangue, com o objetivo de entender como as artes trabalham com arquivos e testemunhos da ditadura militar brasileira. O debate envolve o estatuto do documento e da voz no processo de representação das torturas realizadas durante o regime militar. A análise está centrada, nas experiências do cárcere vividas pelo personagem Frei Tito, a partir da narrativa empreendida pelo livro de Frei Betto, e pela tradução fílmica de Helvécio Ratton. PALAVRAS-CHAVE: Artes; ditadura militar; arquivo; testemunho. ABSTRACT: The article discusses the book and the movie Batismo de Sangue with the goal of understanding how the Arts work with archives and testimonies of the Brazilian military dictatorship. The debate involves the statute of the document and voice in the process of representation of torture  performed during the military regime. The analysis is centered on the prison experiences of character Frei Tito from the narrative undertaken by Frei Betto's book and by Helvetian Ratton's movie. KEYWORDS: Arts; military dictatorship; archive; testimony.  1. PALAVRA, IMAGEM E REPRESENTAÇÃO O advento da II Guerra Mundial e a ascensão do III Reich na Alemanha surgiu como um “divisor de águas” no que concerne ao estatuto da arte como representação, sobretudo se pensarmos na violência extrema perpetrada pelos nazistas nos campos de concentração administrados pelo Reich. A partir desse contexto, a narrativa de testemunho abriu caminhos para debates acerca de uma linguagem, seja literária ou cinematográfica, capaz ou não de representar experiências antes talvez imponderáveis  para o domínio dessas e de outras artes.  No tocante à literatura e ao cinema de testemunho, respectivamente,  É isto um homem (1988), de Primo Levi e Shoah (1985), de Claude Lanzmann, são notórios quando surgem referências ao holocausto. Contudo, o debate em torno da representação desse período extremo suscitam algumas reflexões que envolvem o estatuto artístico da  palavra e da imagem, além dos limites entre um acontecimento e sua manifestação através das artes. Huyssen (2000) aponta para o crescimento de uma produção voltada 1  Pós-Doutor em Artes (Literatura & Cinema) UFF-RJ. Doutor em Letras: Literatura Brasileira e Intersemiótica pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-SJRP, SP, 2001).  2  Doutorando em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre em Teoria Literária (UFPA).  

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BATI SMO DE SANGUE : ENTRE O ARQUIVO E OTESTEMUNHO

BATI SMO DE SANGUE:  BETWEEN THE ARCHIVE ANDTESTIMONY

 Joel Cardoso da Silva1  Luiz Guilherme dos Santos Júnior 2 

RESUMO: O artigo analisa o livro e o filme  Batismo de Sangue, com o objetivo de entender como asartes trabalham com arquivos e testemunhos da ditadura militar brasileira. O debate envolve o estatuto dodocumento e da voz no processo de representação das torturas realizadas durante o regime militar. A

análise está centrada, nas experiências do cárcere vividas pelo personagem Frei Tito, a partir da narrativaempreendida pelo livro de Frei Betto, e pela tradução fílmica de Helvécio Ratton.

PALAVRAS-CHAVE: Artes; ditadura militar; arquivo; testemunho.

ABSTRACT: The article discusses the book and the movie Batismo de Sangue with the goal ofunderstanding how the Arts work with archives and testimonies of the Brazilian military dictatorship. Thedebate involves the statute of the document and voice in the process of representation of torture

 performed during the military regime. The analysis is centered on the prison experiences of character FreiTito from the narrative undertaken by Frei Betto's book and by Helvetian Ratton's movie.

KEYWORDS: Arts; military dictatorship; archive; testimony. 

1. PALAVRA, IMAGEM E REPRESENTAÇÃO

O advento da II Guerra Mundial e a ascensão do III Reich na Alemanha surgiucomo um “divisor de águas” no que concerne ao estatuto da arte como representação,sobretudo se pensarmos na violência extrema perpetrada pelos nazistas nos campos deconcentração administrados pelo Reich. A partir desse contexto, a narrativa detestemunho abriu caminhos para debates acerca de uma linguagem, seja literária oucinematográfica, capaz ou não de representar experiências antes talvez imponderáveis

 para o domínio dessas e de outras artes. No tocante à literatura e ao cinema de testemunho, respectivamente,  É isto um

homem  (1988), de Primo Levi e Shoah  (1985), de Claude Lanzmann, são notóriosquando surgem referências ao holocausto. Contudo, o debate em torno da representaçãodesse período extremo suscitam algumas reflexões que envolvem o estatuto artístico da

 palavra e da imagem, além dos limites entre um acontecimento e sua manifestaçãoatravés das artes. Huyssen (2000) aponta para o crescimento de uma produção voltada

1  Pós-Doutor em Artes (Literatura & Cinema) UFF-RJ. Doutor em Letras: Literatura Brasileira e

Intersemiótica pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-SJRP, SP, 2001). 

2  Doutorando em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

(PUCRS). Mestre em Teoria Literária (UFPA). 

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 para o testemunho do holocausto em romances e documentários. O autor enfatiza anecessidade, mesmo com certa abundância de produções mercadológicas, de diferentesmaneiras de representações artísticas sobre o tema. Sobre essa conjuntura, Rancière(2012, p. 128) declara que “não existe mais uma regra de conveniência entre tal tema e

tal forma, mas uma disponibilidade geral de todos os temas para qualquer formaartística”. Cabe, entretanto, a cada arte buscar um regime estético-representativo a partirde escolhas que dizem respeito a uma linguagem que melhor possa agenciarartisticamente os testemunhos.

Primo Levi, no primeiro capítulo de  É isto um homem, descreve os momentostranscorridos dentro de um vagão que leva os judeus para um campo de concentraçãonazista. Ele compara o martírio dos judeus, nessa viagem, com a travessia realizada porCaronte durante a transladação dos “danados” para o inferno dantesco (LEVI, 1988, p.24). As imagens sugeridas pelo escritor através de seu testemunho evocam momentosextremos no interior do vagão, mas deixam certa opacidade, pois se mantêm no queRancière (2012) chama de “subdeterminação”; ou seja, ao mesmo tempo em que

revelam a angústia do acontecimento, se apossa de uma subjetivação através da voz donarrador: “uma massa humana confusa e contínua, entorpecida e sofrendo, erguendo-seaqui e acolá em convulsões repentinas, logo sufocadas pelo cansaço” (LEVI, 1988, p.19).

 No caso específico do cinema, Shoah  (1985) é um filme incomum entre as produções cujo tema envolve o holocausto. Lanzmann, seu diretor, optou em nãocolocar em cena imagens de arquivo. Entre as discussões ligadas à proposta estéticaescolhida pelo cineasta está o ponto de vista de que ele teria optado por um filmesomente com testemunhos do holocausto, pois, no que concerne à representação, nãoseria possível que imagens traduzissem os acontecimentos envolvendo os campos deconcentração. Em contrapartida, Didi-Huberman (2002, p.131) afirma que esse

 posicionamento diante da imagem tem como consequência descredenciar o estatuto doarquivo, ou criar uma distorção sobre seu caráter de documento: “mas nem por isso oarquivo é o ‘reflexo’ puro e simples do acontecimento, nem a sua pura e simples

‘prova’”. Desse modo, a representação de momentos extremos da história não estaria“autorizada” por uma única forma artística ou meios específicos. Além disso, não háapenas um regime de testemunho centrado no sujeito, como único capaz de representaro passado, pois, assim como a voz testemunhal, o arquivo também se engendra como“matéria” da história.

Por outro lado, há um grande debate sobre o estatuto de verdade no que dizrespeito às narrativas de testemunho em primeira pessoa, principalmente no que tange à

subjetividade. Nessa perspectiva, Sarlo (2007) e Agamben (2008) lançam algumasquestões que envolvem a relação entre discurso e experiências traumáticas. Taisexperiências testemunhais se mostram como “fragmentos” do passado já que “a

rememoração opera sobre algo que não está presente” (SARLO, 2007, p. 99). Para aestudiosa, o caráter “lacunar” do testemunho está ligado ao esforço, entre outrasquestões, de “ presentificação” do passado e do trauma. Trazer ao presente essas vozesse configura como o não silenciamento diante de períodos extremos da história. Porisso, observamos em obras literárias e filmes a emergência do testemunho em primeira

 pessoa como uma  possível “reconstituição”  da violência causada por regimes deexceção.

 Noutro viés interpretativo, Agamben (2008, p. 146) explica que o testemunho está

situado “entre uma possibilidade e uma impossibilidade de dizer”. Essa mediação se

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constitui através de um “lugar vazio do sujeito”. O debate sobre o sujeito em face dotestemunho envolve o campo da subjetividade, isto é, o “poder ser” e o “poder não ser”,

 já que “o sujeito é, sobretudo, o campo de forças sempre já atravessado pelas correntesincandescentes e historicamente determinadas da potência e da impotência, do poder

não ser e do não poder não ser” (AGAMBEN, 2008, p. 148).  Contudo, a forçadescomunal do holocausto rompeu com esses paradigmas; assim, o que pareciaimpossível de materializar-se por meio do discurso torna-se visível, unindo passado e

 presente, o que em síntese estaria em acordo com as perspectivas teóricas discutidassobre a possibilidade representativa das artes.

Aproximando-se das questões levantadas por Agamben, Márcio Seligmann-Silva (2010, p. 5) entende que o testemunho “revela a linguagem e a lei como

constructos dinâmicos, que carregam a marca de uma passagem constante, necessária eimpossível entre o ‘real’ e o simbólico, entre o ‘passado’ e o ‘presente’”. Segundo oestudioso, esse trânsito mostra uma mudança de paradigmas no tocante à história e ao

 positivismo da abordagem documental. Nessa transição, os dramas coletivos dão lugar

aos traumas e dores individuais, tanto na literatura quanto no cinema. Diante dos períodos de silenciamento, por conta da ascensão de regimes totalitários, as vozesindividuais tornaram-se uma preocupação política e artística, além de ter abertocaminho para dimensões subjetivas do testemunho histórico. Dessa forma, o estatuto davoz e da imagem testemunhal se empenha na “desconstrução” dos discursos positivistasque tinham no documento escrito a única maneira de narrar a história cultural dashumanidades.

2. O “MAL DE ARQUIVO” NA DITADURA BRASILEIRA 

O reconhecimento das atrocidades realizadas pelo nazismo alemão e a derrocadado comunismo no leste europeu, entre outros acontecimentos, são marcos ideológicosque abriram determinados debates em torno das narrativas de testemunho. Outraconsequência foi a derrocada das utopias revolucionárias, quando a dialéticaenvolvendo as concepções de esquerda e de direita se mostraram flácidas eintercambiáveis, pois o comunismo, como utopicamente se esperava, não representouum contraponto aos regimes ditatoriais, mas assemelhou-se na teoria e na prática com asideias defendidas por estes. Para Huyssen (2000), foi a partir desses acontecimentos queo estudo das memórias do holocausto intensificou ações para o surgimento de museus,monumentos, documentários, romances autobiográficos, além de filmes de ficção eséries de TV sobre o tema. Outra consequência foi a abertura histórica para o debate

sobre os outros “holocaustos”, em países que passaram por guerras, extermínios eviveram sob o domínio de estados de exceção. No caso da América Latina, em países como Chile e Argentina, por exemplo, que

vivenciaram o domínio de regimes ditatoriais, os museus e monumentos sãodemarcações memorialísticas que conferem aos eventos ocorridos no país um nível

 próximo ao holocausto. Não diferente dos campos de concentração da Alemanhanazista, os regimes que por muitos anos foram os responsáveis por milhares de mortesno Cone Sul, mantiveram campos de refugiados para a manutenção política dosgovernos totalitários. No Brasil, onde a ditadura militar durou entre os anos de 1964 e1985, a cultura da memória em relação aos que lutaram e foram mortos durante o

 período não tem a mesma representatividade no interior de museus, ou mesmo em

espaços onde aconteceram práticas de tortura. Dentro dessa crítica, Seligmann-Silva

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(2012) problematiza o contexto pós-ditadura no Brasil, que se restringiu artisticamente arelatos e produções que não alcançam notoriedade, ou mesmo exercem pouca influênciano sentido de intervir e demarcar espaços de memória no país. Além disso, a transição

 política e a forma que a anistia foi imposta contribuíram para esse esquecimento, já que

os atos de violência perpetrados pela ditadura militar acabaram no discurso correntesendo equiparados aos atos de “terrorismo” cometidos pela esquerda política brasileira.Um exemplo disso foi a publicação do livro Brasil Nunca Mais (1985) que denuncia pormeio de arquivos oficiais dos militares as práticas e métodos de tortura, a partir detestemunhos de presos do regime. Em seguida à publicação do livro, o militar doexército Marco Pollo Giordanios lança Brasil Sempre (1986), que procura desmentir os“exageros” narrados pelo primeiro livro, ao revelar como hediondas as práticasterroristas usadas por diversas organizações de esquerda contra civis e militares, alémde trazer ao conhecimento do público, nomes de guerrilheiros que teriam contribuídocom a ditadura.

 No cinema brasileiro, documentários e alguns filmes de ficção sobre a ditadura

mobilizaram outra série de documentos de arquivo: audiovisuais, fotográficos, jornalísticos, entre outras fontes. A abertura dos arquivos da Casa Branca nos EstadosUnidos, principalmente dos governos de John Kennedy e Lyndon Johnson, mobilizouhistoriadores, cineastas e outros interessados, no sentido de entender articulações

 políticas que deflagraram o golpe de 1964 no Brasil, além de sistemas de espionagemcomo a Operação Condor e grupos de Extermínio como o Esquadrão da morte.

Os filmes nacionais incorporaram essas “provas”  talvez esperando que adivulgação trouxesse consequências ou ações que colocassem em cheque as relaçõesentre Brasil e EUA no presente, ou esperando que a Lei de Anistia fosse revista,trazendo para os tribunais os torturadores que atuaram durante os governos militares.Seligmann (2012, p. 71) refere-se, nesse sentido, à “pulsão arquivista” no cinema

 brasileiro, como se não fosse possível representar o mal causado pela ditadura atravésde outras escolhas estéticas, ou formas subjetivas do discurso histórico. Por essa lógicaarquivista, as produções cinematográficas terminam por flagrar problemáticas maisamplas, muitas vezes em detrimento das singularidades, como se o cinema, nessa

 perspectiva, passasse por uma “crise de representação”. Nessa corrente literária de testemunho pós-ditadura militar, poucos foram os

livros traduzidos para o cinema. Entre os pioneiros está O que é isso companheiro? deFernando Gabeira, lançado em 1979, em plena ditadura. A tradução cinematográfica foirealizada por Bruno Barreto em 1997, mas, apesar de levantar discussões sobre aatuação das esquerdas no período militar, recebeu fortes críticas, principalmente ao

recompor o sequestro do embaixador dos Estados Unidos Charles Elbrick e arepresentação dos movimentos de guerrilha. O livro e o filme teriam forjado a ideia deuma esquerda caricata, como se, no geral, a resistência à ditadura fosse composta apenas

 por militantes sem formação ideológica ou atuação revolucionária.Entre as polêmicas sobre a representação da ditadura, há um forte debate sobre o

estatuto não apenas do arquivo, mas também do testemundo em primeira pessoa diantedos acontecimentos do período. Em torno dessa problemática, é possível criar umequilíbrio entre as possibilidades de caracterização histórica sem focalizar hierarquiasentre o estatuto do arquivo e do testemunho? Sarlo (2007, p. 48) faz um alerta para ocuidado de evitar uma “fetichização da verdade testemunhal”, algo que criaria um

sentido de superioridade positivista do testemunho em relação ao arquivo.

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3. BATI SMO DE SANGUE : ENTRE O ARQUIVO E O TESTEMUNHO

O livro de Frei Betto,  Batismo de Sangue, publicado em 1983, configura-se a partir de uma preocupação do autor em narrar, por meio de arquivos diversos, a saga de

Carlos Marighella, personagem de esquerda ligado à  Ação Libertadora Nacional  (ALN). Inicialmente, a obra centraliza-se na figura do guerrilheiro, mostrando suatrajetória no  Partido Comunista Brasileiro  (PCB), a dissidência do partido, até suamorte numa emboscada organizada pelo delegado do DOPS Sérgio Paranhos Fleury.Apesar de o enredo centralizar como tema a luta armada no Brasil e reconstituir ahistória de vida de Marighella, a diegese abre espaço para as articulações entre osgrupos revolucionários e uma ala libertária da igreja católica representada pelos Fradesdominicanos. Um dos pontos extremos do livro é o momento em que Frei Ivo e FreiFernando são duramente torturados num quartel general da Marinha, sob o comando deSérgio Fleury.

As imagens de tortura são descritas através de um regime narrativo que detalha

cada ação e método dos torturadores. Entretanto, desvelam um narrador que seidentifica com o “martírio”  dos presos, e outras vezes assume a voz dos torturados.Desse modo, o narrador se coloca como autor e testemunho ao mesmo tempo, já que

 biograficamente Frei Betto acompanhou o drama dos torturados e vivenciou a repressãomilitar e do cárcere. Agamben (2008, p. 150) explica que o sentido da “testemunha” envolve aquele que “intervém como terceiro na disputa entre dois sujeitos” e “quem

viveu até o fundo uma experiência, sobreviveu à mesma e pode, portanto, referi-la aosoutros”.  Noutro sentido, o significado do termo alinha-se mesmo com a ideia de“autor”, pressupostos atestados pelo livro.

O fato de ter sido testemunha dos acontecimentos cria, de certo modo, uma cisãocom a tentativa de o narrador buscar uma autenticidade histórica. Desse modo, FreiBetto não fixa “a verdade dos fatos” a partir de uma reificação do  arquivo, mesmo queno livro sejam perenes as fontes pesquisadas para recompor o passado. Testemunhar,nessa perspectiva, empenha-se como parte desse projeto de localizar o discurso no

 presente como possibilidade de compor uma verdade relativa, a partir de umaexperiência individual. Nessa dialética, o que representaria o uso extenso de arquivos nodecorrer do livro?

Em seu livro O sabor do Arquivo, Farge (2009), numa pesquisa sobre os acervos policiais do século XVIII, refere-se ao arquivo como um “mundo desconhecido”. Para a

estudiosa, nos espaços onde a “lei” tem o domínio sobre as informações arquivistas,

abre-se a história de minorias, os “rejeitados da sociedade”. Além disso , fora de

questões mais amplas, o arquivo pode ser analisado como a busca de micro-histórias,sobretudo, de querelas entre autoridades e personagens que infringiram regras sociais, políticas e raras vezes foram “visitados pela história”. Neste sentido, Batismo de Sangue mais do que procurar uma veracidade histórica por meio de excertos de arquivo, abreespaço para sujeitos que, de alguma maneira, “burlaram” o sentido da lei. O livro não

apenas recupera a figura política de Marighella através de textos de arquivo, masrecompõe a história de vida de Frei Tito, personagem que, segundo os testemunhos deFrei Betto, suicidou-se por não suportar a angústia e vigilância imaginária da tortura ede seus torturadores. Seguindo essa lógica, o arquivo seria também o lugar onde sãoguardadas histórias esquecidas.

O assassinato de Marighella é seguido da prisão de Frei Tito. O último capítulo

do livro é dedicado ao personagem: “Tito, a paixão”.  Neste capítulo, os testemunhos do

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 personagem descrevem, em detalhes, os momentos de tortura na prisão. A voz donarrador ganha mais poeticidade na caracterização e indefinição do tempo: “Na prisão,

os próximos minutos assustam mais do que o feixe de anos da sentença de condenação”

(BETTO, 2001, p. 257). No entanto, em contraponto, o testemunho de Frei Tito busca

uma precisão temporal: -  Fui levado do Presídio Tiradentes para a Operação Bandeirantes  —  Oban (Polícia do Exército)  —  no dia 17 de fevereiro de 1970, terça- feira, às 14 horas  (p. 258).  Frei Betto preocupou-se em grafar o discurso de Titoutilizando-se do itálico, diferenciando-o da voz do narrador.

 Na sequência, Tito concentra-se na descrição das torturas sofridas na OBAN(Operação Bandeirantes). No decorrer de seu testemunho, há uma preocupação extremacom o detalhe: Pouco depois levaram-me para o pau-de-arara. Dependurado, nu, commãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e nacabeça (p. 259). Essa preocupação testemunhal denota o que Sarlo (2007, p. 51) intitulade “modo realista-romântico em que o sujeito que narra atribui sentidos a todo detalhe

 pelo próprio fato de que ele o inclui em seu relato”.  Ainda segundo a autora, essa

maneira de testemunhar acontecimentos traumáticos  procura dar “credibilidade donarrador e da veracidade de sua narração”.

 Noutros momentos do capítulo, o tom narrativo da obra associa o sofrimento deFrei Tito à ideia de “martírio”.  Não por um acaso, a palavra “testemunha” está

associada, em grego, ao termo “mártir”. De acordo com   Agamben (2008, p. 35), “os  primeiros padres da igreja derivaram daí o termo martirium, a fim de indicar a morte decristãos perseguidos que, assim, davam testemunho de sua fé”. Contudo, o narradorevita criar uma visão messiânica ou intransponível em relação aos torturados, emborafaça a referência a Frei Tito como um dos “testemunhos” que resistiu às seções de

tortura. Funde-se no discurso do narrador e do próprio Frei Tito concepções teológicasem diálogo com ideias marxistas, justamente porque, no período referente às ditadurasna América Latina, uma ala do cristianismo envolveu-se diretamente com as causasrevolucionárias (SARLO, 2007).

 No cinema, Batismo de Sangue (2007) foi dirigido por Helvécio Ratton. Assimcomo no texto, o diretor optou por dividir o filme colocando em cena, no primeiromomento, a trama envolvendo os frades dominicanos e Carlos Marighela. Entretanto,diferente do texto literário, o início do filme demarca o suicídio de Frei Tito, o quesomente é possível saber no último capítulo do livro. A escolha do diretor em evidenciaros dramas vividos por Tito, de certa maneira, retirou grande parte da trajetóriarevolucionária de Marighella, contada em pormenores no capítulo primeiro do textonarrativo: “Carlos, o Itinerário”. Marighella aparece em raros momentos da trama, o que

demonstra maior ênfase na trajetória de Frei Tito.As cenas de torturas que mostram o “martírio” de Frei Ivo e Frei Fernando  são próximas do realismo, alternando ângulos e planos de grande impacto sonoro e visual.O cineasta deu destaque ao processo de interrogatório e todas as fases concernentes aosmétodos de tortura usados pela equipe de Sérgio Fleury. Neste sentido, a câmera deRatton representa esse “olho” em busca de um “cinema-verdade”. Perscrutar

minuciosamente as fases da tortura agencia-se como um ritornelo doloroso. O gritoconstante dos torturadores e a câmera subjetiva em primeiro plano se engendram comoacusação; congelam o tempo, como se os momentos de tortura se ampliassem para alémdos cortes e planos em sequência.

Outra opção do diretor foi não mostrar diretamente as torturas sofridas por Frei

Tito durante sua prisão. Após certo tempo que ficou sob a detenção da OBAN, o

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 personagem foi solto numa negociação que envolveu o sequestro do embaixador suíçoGiovanni Buscher nos anos 70 no Brasil. Frei Tito foi deportado do país, passou peloChile, Roma e fugiu para França, onde foi recebido por frades dominicanos. Nessesegundo momento da trajetória do protagonista, notamos não somente uma mudança de

 país, mas uma mudança do tom cromático da película (em tons de cinza), o que seriauma metáfora do estado psicológico de Tito.Se no capítulo final do livro de Frei Betto o testemunho de Tito alterna-se com a

voz do narrador, com descrições realistas do que sofreu nos porões da ditadura, no filme paira o silêncio da câmera diante da fisionomia atormentada do frade dominicano.Assim, o testemunho silencia-se para deixar a câmera captar o que subjetivamente se

 passa no interior de Tito. A película torna-se escura, e nessa passagem para o  fade-out ,os momentos de tortura irrompem na tela. Os estados de angústia psicológica de Titosão antecipados por uma penumbra que, através de fusões, o colocam imaginariamentenos espaços de tortura e diante de seus algozes. Em outros momentos, câmeras em

 plano geral causam uma sensação de pequenez do personagem. A prisão que ele sofre

não é apenas interior, mas envolve o espaço do monastério como prisão e exílio. Diantedas lembranças traumáticas, Tito conversa com um psiquiatra num divã. Pouco se

 percebe o interior da sala; sobre os objetos paira uma escuridão. Nos recuos ao passado por meio dos cortes psicológicos, os gritos de Frei Tito percorrem a sala; no retorno ao presente, Tito vive o silêncio do espaço, a angústia do exílio. Em seguida, a cena inicialdo suicídio concretiza-se...

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando se discute as relações entre literatura e cinema, é possível encontrarmosalgumas controvérsias que, por um lado, transformam as duas artes em estéticascorrelatas ou, de maneira radical, afirmam que são estéticas totalmente opostas. Por umlado, os “puristas” esperam que o cinema seja uma perfeita transcrição da realidadeverbal da obra literária, acusando de inaptos, os cineastas que não conseguem traduzir a“essência”  da escritura literária. Em outro sentido, surgem discussões que defendemuma autonomia das técnicas do cinema e a liberdade total da sétima arte para adaptarum texto literário. O artigo possibilitou não somente um diálogo entre as artes, mas deque maneira as fontes documentais de arquivo podem se articular com as vozes dotestemunho, sem criar hierarquias quanto à representação artística de momentosextremos como o holocausto e, especificamente, a ditadura militar no Brasil.

REFERÊNCIASAGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz:  o arquivo e a testemunha (HomoSacer III). Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Biotempo, 2008.

ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis: Vozes, 1985.

BETTO, Frei. Batismo de Sangue: Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. 12.ed. São Paulo: Casa Amarela, 2001.

DERRIDA, Jacques.  Mal de Arquivo:  uma impressão freudiana. Trad. Claudia de

Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

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DIDI-HUBERMAN.  Imagens apesar de tudo. Trad. Vanessa Brito; João PedroCachopo. KKYM: Lisboa, 2012.

FARGE, Arlette. O Sabor do Arquivo. Trad. Fátima Murad. São Paulo: Edusp, 2009.

GABEIRA, Fernando. O que é isso companheiro? 4. ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1979.

GIORDANI, Marco Pollo. Brasil sempre. Porto Alegre: Tchê, 1986.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio deJaneiro: Aeroplano, 2000.

RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Trad. Mônica Costa Netto. TadeuCapistrano (Org.). Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. RosaFreire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. 

LEVI, Primo. É isto um homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

SELIGMANN, Márcio; GINZBURG, Jaime; HARDMAN, Francisco Foot (Org.). Escritas da violência, vol 2: representações da violência na história e na culturacontemporânea da América Latina. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.

FILMOGRAFIA

BARRETO, Bruno. O que é isso Companheiro? Brasil. Duração: 105 min.

LANZMANN, C. 1985. Shoah. França. Duração: 503 min.

RATTON, Helvécio. 2007. Batismo de Sangue. Brasil. Duração: 110 min.

JOEL CARDOSO DA SILVA

Pós-Doutor em Artes (Literatura & Cinema) UFF-RJ. Doutor em Letras: Literatura

Brasileira e Intersemiótica pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho(UNESP-SJRP, SP, 2001);

LUIZ GUILHERME DOS SANTOS JÚNIORDoutorando em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do RioGrande do Sul (PUCRS), onde integra o Grupo de Pesquisa: Cinema e Audiovisual:comunicação, estética e política.

Recebido: 27/06/2014Aceito: 05/07/2014