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 anpoc s ISSN 1516-8085 77 Neste número: Ambiguidades e contradições na teoria do realinhamento T eorias e interpretações Abordagem do partido network  no estudo de partidos políticos T eoria do crime e da violência Marialice Foracchi e a formação da sociologia da juventude no Brasil

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 anpocs

ISSN 1516-8085

77Neste número:Ambiguidades e contradições na teoria do realinhamentoTeorias e interpretações

Abordagem do partido network  no estudo de partidos políticosTeoria do crime e da violência

Marialice Foracchi e a formação da sociologia da juventude no Brasil

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ISSN 1516-8085

bibRevista Brasileira de Informação Bibliográcaem Ciências Sociais

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BIB – Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (ISSN 1516-8085) é uma publicação semestral da AssociaçãoNacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) destinada a estimular o intercâmbio e a cooperação entre asinstituições de ensino e pesquisa em Ciências Sociais no país. A BIB é editada sob orientação de um editor, uma comissão editorial eum conselho editorial composto de profissionais vinculados a várias instituições brasileiras.

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Editor: Márcia Lima (USP)

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Edição Assistente Editorial: Mírian da Silveira PavanelliPreparação/revisão de textos/copidesque: Tikinet Edição Ltda. - EPPVersão/tradução de resumos: Jorge Thierry Calasans (francês) e André Villalobos (inglês)Editoração eletrônica: Signorini Produção Gráfica 

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 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – AnpocsUniversidade de São Paulo – USP Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – 1º andar05508-010 São Paulo – SPTelefax.: (11) 3091-4664 / 3091-5043

Apoio:

BIB: Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais / Associação Nacional

de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais. -- n. 41 (1996), -- São Paulo : ANPOCS, 1996-

SemestralResumos em português, inglês e francêsTítulo até o n. 40, 1995: BIB: Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais.

ISSN 1516-8085

1. Ciências Humanas 2. Ciências Sociais 3. Sociologia 4. Ciência Política 5. Antropologia I. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais

CDD 300

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BIB, São Paulo, n. 77, 1º semestre de 2014 (publicada em dezembro de 2015), pp. 5-117

ISSN 1516-8085

bibRevista Brasileira de Informação Bibliográcaem Ciências Sociais

Sumário

Perdendo o fio da meada:

ambiguidades e contradições na teoria do realinhamento 5Thiago Moreira da Silva e Lúcio Rennó

Teorias e interpretações 25Paolo Ricci

 Abordagem do partido network noestudo de partidos políticos 45Camila Feix Vidal

Teoria do crime e da violência:uma revisão da literatura 69

 José Maria Nóbrega Jr.

Marialice Foracchi e a formação dasociologia da juventude no Brasil 91Nilson Weisheimer

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Colaboraram nesta edição:

Lucio Rennó possui graduação (1995) em Ciência Política, mestrado (1997) em Ciência Polí-tica, ambos pela Universidade de Brasília (UnB), e doutorado (2004) em Ciência Política pelaUniversity of Pittsburgh. É professor adjunto do Instituto de Ciência Política da Universidadede Brasília. Possui como linhas de pesquisa: Instituições políticas, partidos e comportamentopolítico. E-mail: [email protected]

Thiago Moreira da Silva  possui graduação (2010) em Ciências Sociais pela Fundação GetulioVargas, mestrado (2013) em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getulio Vargas eatualmente é doutorando em Ciência Política na Universidade de Brasília. Possui como linhas depesquisa: Partidos políticos e comportamento político. E-mail: [email protected]

Paolo Ricci é professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). É pesquisador

do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e membro do Núcleo de EstudosComparados e Internacionais (NECI/USP). Publicou em periódicos nacionais e internacio-nais como Dados, Revista Brasileira de Ciências Sociais, Opinião Pública, Revista de Sociologiae Política, Journal of Latin American Studies, Journal of Modern Italian Studies , entre outros.Desenvolve pesquisas sobre a evolução das instituições brasileiras em perspectiva comparadatendo como foco privilegiado partidos e sistemas partidários, o Congresso Nacional, as relaçõesExecutivo-Legislativo abordando-os dentro de uma perspectiva multidisciplinar que abarca oscampos acadêmicos da história e da ciência política. E-mail: [email protected]

Camila Feix Vidal é bacharel em Relações Internacionais pela Florida International Univer-sity. Mestre e Doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande doSul (UFRGS). Linhas de pesquisa: Política Internacional, Partidos Políticos e Teoria Política.E-mail: [email protected]

 José Maria Nóbrega Junior é professor da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG),pesquisador no Centro de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido (CDSA) e coordenadordo Núcleo de Estudos da Violência (Nevu) da UFGC. Tem doutorado e mestrado pelo Progra-ma de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) da Universidade Federal de Pernambuco

(UFPE) e graduação em história pela UFPE. E-mail: [email protected]

Nilson Weisheimer , doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS) e pós-doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor ad-

 junto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Líder dos Grupos de pesquisaNúcleo de Estudos em Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural (NEAF/UFRB) e doObservatório Social da Juventude (OSJ/UFRB). E-mail: [email protected]

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Perdendo o o da meada: ambiguidades e contradiçõesna teoria do realinhamento

Lucio Rennó Tiago Moreira da Silva 

Introdução

Quando se reelegeu presidente peloPartido dos Trabalhadores (PT), em 2006, acandidatura de Luiz Inácio Lula da Silva apre-sentava resultados numéricos semelhantes ao

do pleito de 2002. Aqui como lá, vencia osconcorrentes do Partido da Social Democra-cia Brasileira (PSDB) com uma margem decerca de vinte milhões de votos. Além disso,em ambos os pleitos, a vitória veio apenas nosegundo turno. Em 2002, o PT teve 46% dosvotos no primeiro turno e 48% em 2006. Assemelhanças também se repetem no segundoturno, com 60,8 em 2002 e 61,2% em 2006.

Por baixo do véu dessas cifras, que denotamextrema estabilidade e continuidade dos pa-drões de voto nas eleições presidenciais bra-sileiras, pode ser encontrado um vasto debatena ciência política brasileira sobre um possí-vel processo de realinhamento eleitoral entre2002 e 2006, com mudanças significativasnas bases de apoio do PT.

Mediante o uso de estratégias metodo-lógicas variadas, diversos autores constata-ram que, de maneira comparada, a distri-buição espacial do voto em Lula e o perfilde seu eleitorado se modificaram. O examedas duas eleições fundamentado no empre-go de técnicas de análise de dados agregados(HUNTER; POWER, 2007; NICOLAU;PEIXOTO, 2007; SOARES; TERRON,2008; ZUCCO, 2008) ou de investigaçõesno nível individual (RENNÓ; CABELLO,

2010; BOHN, 2011; ZUCCO; POWER,2013) conduziram a um só diagnóstico: onovo eleitorado do presidente era compos-to por cidadãos com baixos níveis de rendae escolaridade, sobretudo das regiões Nor-te e Nordeste do país – onde o candidato

tampouco o PT não contavam com tantorespaldo eleitoral. Era a chegada do PTna periferia, outrora dominada por forçaspolíticas ditas populistas ou conservadoras(SINGER, 2000).

O quadro que então se delineava ense- jou especulações acerca de um possível re-alinhamento – evento que elucida a altera-ção das clivagens eleitorais, definindo um

longo ciclo político. Conquanto o concei-to importado da literatura norte-america-na não fosse uma novidade entre os po-litólogos nacionais (LAVAREDA, 1999;FREIRE, 2002), os postulados ganharamum impulso maior quando sugeridos porSinger (2009). No Brasil, o acontecimentoé resultado daquilo que chama de “lulis-mo”: “um realinhamento político de estra-tos decisivos do eleitorado” e “expressa umfenômeno de representação de uma fraçãode classe [o subproletariado] que, emboramajoritária, não consegue construir desdebaixo as próprias formas de organização”(p. 83-84).

Os motivos para a conversão em pautateriam um duplo sentido: de um lado, a apro-ximação dos grupos sociais de “baixíssima”renda, que foram beneficiados pelas conquistas

BIB, São Paulo, n. 77, 1º semestre de 2014 (publicada em dezembro de 2015), pp. 5-23.

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materiais provenientes dos programas de go-verno; de outro, o concomitante afastamentodos setores de classe média por conta da vin-culação do mandato ao escândalo do “mensa-lão”, em maio de 2005, e de um “cerco polí-tico-midiático ao presidente” (Ibidem, p. 84).

 Ademais, o autor propõe a existência de um ar-ranjo ideológico para o lulismo, característicodo fragmento de classe representado, marcadopela “expectativa de um Estado suficientemen-te forte para diminuir a desigualdade, mas semameaçar a ordem estabelecida” (p. 84)1.

Tal configuração ideológica, na leitura deSinger, se ajusta a uma perspectiva históricado comportamento eleitoral dos cidadãos de

estratos sociais menos favorecidos. Em sualeitura dos fatos, no escrutínio presidencialde 1989, assinalou “a interpretação de que oseleitores mais pobres buscariam uma reduçãoda desigualdade, da qual teriam consciência,por meio de uma intervenção direta do Esta-do, evitando movimentos sociais que pudes-sem desestabilizar a ordem” (p. 87). Comoresultado, essa parcela destinou seu sufrágio a

Fernando Collor e se distanciou de Lula, cujaimagem estava estreitamente atrelada a grevese levantes trabalhistas. Ou seja, as ambiçõesdo subproletariado  continuam idênticas, po-rém encontraram na liderança petista umarticulador ideal. De certa forma, afirmaçõesdesse tipo põem em xeque a própria ideia derealinhamento, indicando continuidade dedemandas e inclinações do eleitorado (REN-NÓ; CABELLO, 2010, p. 44). Se algo novo

existe nesse movimento, está na conversão deelites aos discursos e pretensões dominantesnas massas. Quem muda é o PT e há indíciosclaros disso em 2002, como nos deixa clara afamigerada “Carta ao Povo Brasileiro”.

Sendo assim, a pergunta central é: se hárealinhamento, quando exatamente ele come-ça e o que o gera? Aparentemente, com baseno dito anteriormente, o começo desse pro-cesso antecede 2002. Como argumentaremoslogo a seguir, o conceito de realinhamento,em seu tratamento corrente no Brasil, sofre deum empobrecimento conceitual, uma tenta-tiva exagerada de simplificá-lo, que contribuipara as contradições já mencionadas.

O objetivo deste artigo é, portanto, ofe-recer uma explicação mais detalhada sobre oconceito de realinhamento, com a ambição deapontar elementos ausentes no uso corrente doconceito no Brasil. Prevalece aqui o entendi-

mento de que a terminologia foi adaptada aopanorama político nacional sem maiores apre-sentações. Nesse sentido, convém revisar e es-clarecer essa noção e as múltiplas teorias quea rodeiam. A tentativa de inspeção se justificacomo auxílio para o avanço de futuras pesqui-sas empíricas. Nesse sentido, argumentamosque foram ignoradas as concepções, no plural,de realinhamento no debate brasileiro.

 As múltiplas referências geraram umcenário de obscuridade acerca de seus indi-cadores, fato reconhecido pelo próprio Sin-ger (2012). Sem se ocupar com as minúciasdessa noção, enunciou o interesse pela “ideiade que certas conversões de blocos de eleito-res são capazes de determinar uma agenda delongo prazo, da qual nem mesmo a oposiçãoao governo consegue escapar” (p. 13-14). En-xergou no país uma conjuntura semelhante a

que tivera Roosevelt em 1932. Diante dessepainel, todavia, cabem algumas perguntas:afinal, a teoria edificada nos Estados Unidosserve ao contexto brasileiro? Quais seriam ascausas desse fenômeno? E suas consequên-

1 Sobre o arranjo ideológico, Rennó (2010) discorda de Singer e afirma que “os lulistas não representam um novorealinhamento político-ideológico, com base em classe e ideologia, como argumenta Singer” (p. 40). São, sim,eleitores não alinhados, que votam baseados em suas avaliações retrospectivas do desempenho do governo e sem

maiores inclinações ideológicas.

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cias? E quanto aos tipos de realinhamento,existe mais de um? As respostas dessas e deoutras questões são, pois, o objetivo das linhasque se seguem.

Com a intenção de suprir essa lacuna,este artigo se divide em quatro partes. Naprimeira, são consideradas as origens dotermo, relacionando-o com as pesquisas emvoga durante as décadas de 1940 e 1950 nosEUA. Posteriormente, as confusões concei-tuais ligadas aos tipos, causas e consequên-cias das teorias ganham destaque. A terceiraseção enfatiza a periodicidade, a fim de con-textualizar o leitor à situação política esta-dunidense. Nos comentários finais, algumas

palavras sobre o conteúdo levantado e acercada pertinência dos estudos de realinhamentopara o caso político brasileiro.

Origens da teoria

Segundo Rosenof (2003), o percursoinicial da teoria do realinhamento seguiuum rumo alternativo aos estudos de com-

portamento eleitoral realizados nas décadasde 1920 e 1930 nos Estados Unidos, em-bora as matrizes desses caminhos estivessementrelaçadas. Isso porque as pesquisas elei-torais da época ganharam força na ciênciapolítica norte-americana na esteira de umamudança de paradigma conhecida comobehaviorismo  (PERES, 2008). A nova cor-rente trazia consigo a ideia de uma buscapor maior cientificidade e de afirmação das

análises empiricamente orientadas. Comefeito, a ruptura com o institucionalismo então vigente viria acompanhada de alte-rações de foco analítico e metodológico: o

exame das condutas dos votantes passou aser pensado conforme uma dinâmica proces-sual , relegando as estruturas  a um segundoplano; de maneira correlata, a introduçãode ferramentas metodológicas ligadas à es-tatística comportava diagnósticos voltadospara a compreensão das mudanças políti-cas, privilegiando o dinamismo dos fenô-menos observados.

 Assim, a partir de investigações quan-titativas, em especial de dados agregados,os temas do momento – campanhas, as-suntos políticos (issues ), candidatos e vin-culações causais – eram submetidos aoescrutínio de especialistas, que tratavam

os resultados das urnas à luz das particula-ridades dos pleitos específicos. Contudo, omote de divergência da teoria do realinha-mento se apoia justamente nesse ponto: aoinvés de considerar as votações como fatosefêmeros, o modelo pretende amalgamaras séries eleitorais e dar-lhes significadosem um contexto mais amplo.

Se a maneira de olhar o escopo tempo-

ral acusa a distinção das duas perspectivas, oajuste das ferramentas desenvolvidas naquelesanos forneceu o suporte necessário para o sur-gimento de hipóteses de natureza macro, pos-tas à tona no alvorecer das eleições de 19482.

 Antes, no entanto, vale explicar que, histo-ricamente, o Partido Republicano (GOP)3

ocupava o posto de legenda predominante esuas sucessivas derrotas na década de 1930para o Partido Democrata foram atribuídas

pelos cientistas políticos a um ambiente decrise, decorrente das complicações ocasio-nadas pela quebra da Bolsa de Nova York, eem virtude da liderança pessoal do presidente

2 Em estudo sobre a teoria do realinhamento, Rosenof (2003) sugere que a primeira análise do tipo partiu do jor-nalista Samuel Lubell, em 1952. Lubell recusa a noção de um tradicional predomínio do Partido Republicano eadverte para uma alternância cíclica nas eleições norte-americanas na década de 1940.

3 Grand Old Party (GOP) é um termo comumente usado nos EUA para fazer referência ao Partido Republicano.

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Franklin Roosevelt4. A vitória, em 1948, deHarry Truman, consolidando o sucesso dosDemocratas, sobre Thomas Dewey, Republi-cano, punha em xeque as noções correntes eautorizava novas interpretações da conjunturapolítica estadunidense (ROSENOF, 2003).

Diante desse pano de fundo, Key Jr.,politólogo radicado na Universidade deChicago, lança o artigo “A theory of criti-cal elections” , em 1955. De maneira intro-dutória, ele usava dados eleitorais do perí-odo de 1896 a 1928, apurados na regiãoda Nova Inglaterra, para afirmar que aseleições são eventos que diferem em tipos,significados e consequências. A abordagem

comparativa servia ao intento de mostrarque, vez por outra, a cena política se abriaa ventos renovadores, cujos sopros estimu-lariam uma reorganização das elites parti-dárias, dos segmentos sociais e dos progra-mas de governo. Dessa forma, as disputaspolíticas em períodos de grandes aconte-cimentos – nos casos da Guerra Civil, dacrise do final do século XIX (que iremos

retomar a seguir) e da Grande Depressão– ensejam a construção de novas lealdades,ao passo que fomentam um maior engaja-mento dos cidadãos.

Key (1955) descreve essas ocasiõescomo conjuntura de eleições críticas, se-gundo as quais os votantes estão “profun-damente comprometidos, à medida que oenvolvimento eleitoral fica acima da média,e cujos resultados decisivos revelam uma

grande alteração nas clivagens pré-existen-tes do eleitorado” (p. 4, tradução nossa).

 Ademais, o produto desse quadro é o rea-

linhamento, ou seja, a mudança nas baseseleitorais dos partidos que “persiste por vá-rias eleições subsequentes” (Ibidem). Nessesentido, há de se ter em conta o destaquedado à dimensão da durabilidade  como ca-racterística basilar do conceito em questão.

No caso brasileiro, quais hipóteses po-deriam ser levantadas acerca das junçõescríticas que motivaram a formação do atualperfil ideológico do eleitor, que combinaordem e justiça social, leia-se redistribui-ção de renda? Alguns suspeitos emergem:a concentração de renda no período mili-tar e o caos financeiro, fiscal e monetárioda Nova República são candidatos natos a

entendermos a combinação proposta porSinger.

Voltando aos Estados Unidos, nãomuito distantes de Chicago, outras teoriasajudavam a sedimentar as contribuições deKey. No final dos anos 1950, em Michi-gan, um grupo de pesquisadores, capita-neados por Angus Campbell, apresentavaimportantes aportes aos estudos dos de-

terminantes do voto em solo norte-ame-ricano. No modelo indicado, o indivíduose constitui como a unidade central deanálise, mediante a qual são colhidas in-formações com o objetivo de compreenderas motivações e crenças dos cidadãos. Es-sas componentes conformam as variáveisintervenientes entre fatores subjetivos e ascircunstâncias objetivas em que repousamos atores (CASTRO, 1992).

Para chegar diretamente aos agentes,uma técnica de coleta de dados por amostra-gem, o survey 5, dava carne às investigações

4 Roosevelt foi o único presidente norte-americano a se eleger por mais de dois mandatos. Chegou à presidência em1932 e só saiu do cargo em 1945, quando faleceu.

5 Survey  é um tipo de metodologia de pesquisa quantitativa, normalmente realizada com o auxílio de um questioná-rio, visando à obtenção de informações acerca de características, ações ou opiniões de um segmentado populacio-

nal, indicado por um representante do grupo-alvo (FINK, 1995).

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apoiadas na corrente psicossociológica 6. Odespertar da metodologia enunciava que“indivíduos semelhantes do ponto de vistasocial e de atitudes tendem a ter comporta-mentos políticos semelhantes, a votarem namesma direção, independente dos contextoshistóricos” (FIGUEIREDO, 2008, p. 26).Se as respostas das urnas suscitavam limi-tações e apenas divulgavam os retornos dossufrágios, o procedimento ajudava a perce-ber como  e  por que  ocorriam os desenlaceseleitorais.

Grosso modo, as descobertas de Camp-bell e companhia atribuem ao ambiente socialimediato, sobretudo à composição familiar, as

opções políticas dos eleitores. Não obstante, asatitudes seriam fruto de um processo de sociali-zação política  – posição que contrariava as pre-missas elaboradas nos anos anteriores na Uni-versidade de Columbia. Em Te People’s Choice  (1944), Paul Lazarsfeld, expoente austríaco daescola, sublinhou a importância das caracterís-ticas sociais na determinação das preferênciaspolíticas. Empregando um survey   com mar-

gens mais limitadas, restritas a uma comunida-de no condado do estado de Ohio, Lazarsfeldconstatou a baixa influência das campanhas edos veículos de mídia em geral, na formaçãodas escolhas dos votantes. A estabilidade dasinclinações levou o autor a imputar à dinâmi-ca de classe e às práticas ocupacionais o fatorprimordial dos votos dos cidadãos. A correntesociológica, inaugurada nesse enredo, deixavaa política a reboque dos determinantes sociais,

refletindo a lógica de estudos realizados na Eu-ropa Ocidental. Por conseguinte, a participaçãopolítica poderia ser esclarecida pela conjunturasocioeconômica e cultural e pelo intercâmbiodos agentes em grupos sociais específicos.

Embora ambas as escolas postulassem aestabilidade  das preferências políticas, Michi-gan, ao enfocar o indivíduo e não os grupa-mentos sociais, emitia resoluções diferentesdaquelas produzidas em Chicago. Na lentede observação desses estudos, a psicologia, apersonalidade e as percepções individuais so-brepunham os contornos socioeconômicos.

 As constatações, empiricamente verificadas,apontavam, de um lado, para um eleitor semum “sentimento de classe” e, de outro, paraorganizações partidárias menos fincadas nahomogeneidade de suas bases sociais. O co-eficiente estabilizador das predileções políti-cas seria, então, a identificação partidária –

isto é, a vinculação psicológica dos eleitoresa um determinado partido, construída me-diante o processo de socialização primária,que influencia o comportamento eleitoral, asavaliações dos cidadãos da democracia e aofuncionamento da economia .

 Assim, essa constante  assume na obraTe American Voter (1964), expressão maiordo modelo de Michigan, o posto de variável

independente, com existência relativamen-te autônoma perante os alicerces indicadospela abordagem sociológica. Também nessetrabalho, Campbell et al.  traçam esquemasclassificatórios para as eleições, divididos emtrês categorias: realinhamento, desvio e ma-nutenção. A primeira assinala uma mudançagrande e durável  que ocorre nas identificaçõespartidárias. A segunda versa sobre as altera-ções efêmeras nesses vínculos provocadas por

fatores de curto prazo – assuntos particularesde uma campanha, rumos da economia, sim-patia com lideranças políticas etc. E, por últi-mo, aquelas em que o partido majoritário semantém como força predominante.

6 Basicamente, os estudos de comportamento eleitoral se baseiam em três correntes explicativas: a da escolha racio-nal, a abordagem sociológica e a perspectiva psicossociológica. Sobre o assunto, ver Castro (1992) e Figueiredo

(2008) dentre outros.

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 Ainda que tenham partido de direçõesdistintas, Key e Campbell puseram nos tri-lhos da ciência política a teoria do realinha-mento. Nas palavras de Rosenof (2003), ospressupostos confeccionados pelos dois au-tores concorreram para delinear os contornos“macro” e “micro” da teoria. Decerto, os con-textos críticos , a vinculação afetiva aos partidos  e a durabilidade  das escolhas, erigidas naquelemomento, persistiram como os pilares de sus-tentação dessas interpretações, que se propu-nham a colocar as eleições em perspectivashistóricas. A receita iniciada na década de1950, no entanto, seria fermentada nas dé-cadas posteriores, incorporando ingredientes

adicionais e o sabor de novas nacionalidades.Na Europa, por exemplo, a teoria entra

em cena na esteira dos postulados pós-mate-rialistas desenvolvidos por Inglehart (1977).Para o autor, as democracias industrializadasfomentariam mudanças nas prioridades doeleitorado, mais atento a valores – como amanutenção da ordem nacional ou a proteçãoda liberdade de expressão - e menos preocu-

pado com a insegurança material própria àsgerações passadas. Nesse ínterim, discutiamse a emergência de partidos verdes e de umaesquerda renovada, a partir dos anos 1970,podiam levar ao enfraquecimento das cliva-gens tradicionais – classe e religião – e dospartidos hegemônicos (BAKER, DALTONe HILDEBRANT, 1981; KNUTSEN, 1989;ROHRSCHNEIDER, 1993).

Tendo isso em vista, cabe indagar se,

dado o perfil de baixa identificação partidária,inclusive dentre parte significativa dos eleito-res de Lula em 2006 (RENNÓ; CABELLO,2010), é valido falar em realinhamento noBrasil, que por definição é sempre referentea preferências partidárias. Decerto, em umpaís onde as legendas são pouco instituciona-lizados (MAINWARING; SCULLY, 1995) eas identidades partidárias fluidas (BATISTA,

2014) possivelmente é mais apropriado pen-

sar em um não alinhamento continuado notempo. Na melhor das hipóteses, podemospensar em um novo alinhamento partidárioque surge oriundo do fim do bipartidarismo,hegemônico no período militar brasileiro.Vale lembrar que o PT é criado no ocaso doRegime Militar e formalizado na lei que res-tabelecia o pluripartidarismo, a Lei Federalnº 6.767, de 20 de dezembro de 1979.

“Tipos, causas e consequências”: 

enfrentando as contradições

Os inúmeros trabalhos publicados queadotam a teoria do realinhamento geraram

um desconcerto em torno da sistematiza-ção do conceito. Com efeito, nota-se a in-cidência de várias exposições operacionaise indicadores referentes à terminologia.Sundquist (1983) ratificou o cenário ao res-saltar que: “depois de um quarto de séculode estudos, o conceito de realinhamentopartidário está longe de ser claro. Todosos especialistas usam o mesmo termo, mas

fica difícil achar dois trabalhos que usem amesma definição” (p. 4, tradução nossa).No esforço de organizar esses significados,optou-se por dividir os postulados contidosna literatura em três categorias: tipos , cau-sas  e consequências  do realinhamento. Nemsempre, no entanto, a distinção das catego-rias figura de maneira explícita.

Tipos de realinhamento

Quatro anos após introduzir a dis-cussão na academia norte-americana, Key(1959) se voltou ao estudo dos tipos  de re-alinhamento. Na sua ótica, a trajetória doseventos em pauta segue duas versões: umarepentina, caso das já citadas eleições críti-cas , e outra com caráter gradual, envolven-do desdobramentos de longo prazo. A no-

vidade, dessa maneira, ficava por conta do

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último tipo, os realinhamentos seculares , ouseja, quando as alterações do alinhamentoeleitoral e de agrupamentos partidários re-novados resultam de um efeito cumulativono decorrer de extensos períodos de tem-po. Os exemplos de realinhamentos críti-cos   seriam dos decênios de 1860, 1890 e1930; quanto aos seculares , Key cita os ca-sos do apoio paulatino de uma comunida-de de origem alemã aos Republicanos, emOhio, e de um grupo de judeus em Bostonque se tornou Democrata.

Na mesma direção, outros autorestentaram qualificar o fenômeno de acordocom sua magnitude. A taxonomia de Sun-

dquist (1983) sublinha a dicotomia maior  e menor   como especificação dos tipos;Clubb, Flanigan e Zingale (1980) separamas categorias em realinhamentos históricos ,os decênios citados no parágrafo anteriorpor Key, e ajustamentos (adjustments ), re-ferência aos contextos de mudanças meno-res, estabelecidas no interregno das gran-des agitações; Burnham (1967) prefere a

expressão sub-realinhamento  para trataresses eventos que se interpõem aos aconte-cimentos críticos.

 Acerca do assunto, posteriormente Sun-dquist (1983)7  questionou a necessidadedessa forma de particularização. Para o autor,o ritmo de variação não pode ser discernidofacilmente:

Resumindo, se as forças do realinhamento estãooperando, elas necessariamente afetam os eleitoresem tempos diferentes – não de modos semelhantesem uma mesma eleição. Por essa razão, muitos ana-listas agora discutem períodos de realinhamento oueras  [grifo nosso]. Em algum grau, em outras pala-vras, todos os realinhamentos são de longo prazo– isto é, seculares – e isso mais confunde do quefacilita o tratamento de críticos ou seculares   como

modos separados e não fases de um mesmo proces-so.[...] Ritmo de realinhamento não é um critériosatisfatório para classificar os realinhamentos. Ummesmo evento pode conter fases abruptas e lentas,mas continua sendo o mesmo fenômeno, um pro-cesso de mudança. Eleições críticas , em suma, sãoepisódios na maioria dos realinhamentos; mas não

definem um tipo (p. 12, tradução nossa).

 Além de uma crítica, o excerto iluminao principal subsídio de Sundquist à litera-tura: a noção de  períodos ou eras de reali-nhamento. Aqui, surge a ideia de que essesincidentes “atingem seu clímax em uma oumais eleições” (p. 294). Ou seja, ao invés deconceber a cadência, mais vale considerar ofato à moda de um continuum; no qual oraatuam compassos súbitos, ora são acionadastendências gradativas, que contaminam oseleitores de modo divergente conforme opercurso dos acontecimentos.

Seguindo o raciocínio de Sundquist,os realinhamentos partidários, muitasvezes apresentados como episódios na-cionais, obedecem a uma lógica de escopo

 geográfico regional, já que incidem com

formatos incongruentes nas diversas áre-as. Isso se justifica pela constatação quealgumas divisões territoriais podem exi-bir padrões de organização e competiçãopartidária dessemelhantes – nos EUA, esseaspecto ocorre notadamente entre o nortee o sul. Por esse motivo, a análise há de terem vista a desagregação dos dados, com oobjetivo de realçar os distintos paradigmas

de comportamento eleitoral presentes emestados, distritos e municípios.Clubb, Flanigan e Zingale (1980), tam-

bém atentos ao escopo geográfico, procuraramquantificar as oscilações e acrescentam duasconotações ao gênero: de surtos (surges ) –quando, em uma situação limite, os votos de

7 O livro de Sundquist, Dynamics of the Party System: Alignment and Realignment of Political Parties in the United

States , tem a sua primeira versão lançada em 1973. No entanto, o autor revisita sua obra dez anos depois, em 1983.

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cada estado se destinam 10% a mais para osDemocratas em uma eleição8 – e de intera-ções (interaction) – momento em que metadedos estados se tornam 10% mais Democra-tas e a outra metade 10% mais Republicanado que nos pleitos passados.

Causas do realinhamento

Como foi dito anteriormente, a maiorparte dos autores constataram que as causasdesse determinante eleitoral repousam so-bre dinâmicas exógenas, em que um “deto-nador” movimenta a conjuntura política e,consequentemente, reorganiza o equilíbrio

do sistema partidário. Quanto a isso, ne-nhum problema. O nó górdio da questão seencontra na especificação exata do motivoda conflagração política. Afinal, qual seriaa razão central dos realinhamentos? Grossomodo, os politólogos concebem os móveisdesses acontecimentos mediante interpreta-ções que se concentram em elementos políti-cos, econômicos e/ou institucionais.

Para alguns, o realinhamento emerge nomomento em que os eleitores mudam suaslealdades partidárias e passam a se identificarcom uma legenda concorrente, ou quandoos não alinhados se mobilizam dentro dosistema partidário existente (BECK, 1974;SUNDQUIST, 1983). No entanto, mesmona seara que enfoca especificamente a dimen-são política, algumas divergências podem seriluminadas, em virtude do nível de análise

considerado. Por vezes, os eleitores figuramna literatura como um agrupamento indi-vidual (SUNDQUIST, 1983; DALTON;FLANAGAN; BECK, 1984); em outras,são os segmentos sociais que ganham desta-que (SCHATTSCHNEIDER, 1960; EIJK;FRANKLIN, 2009). Relembrando, o distan-

ciamento das perspectivas deriva das distintasinfluências das Escolas de Michigan e Colum-bia nos estudos de comportamento eleitoral.Na primeira acepção, a categoria eleitorado enfatiza a identificação partidária individual,definição ligada à tradição firmada em Michi-gan; em Columbia salientam-se as vincula-ções dos votantes aos grupos sociais.

De outro lado, Berg (2000), valendo-se deuma interpretação marxista da matéria, tentabalancear as dimensões políticas e econômi-cas tendo em vista o princípio de autonomiarelativa das duas esferas, com a determinaçãodos condicionantes econômicos em última ins-tância. Em suas palavras, “podemos dizer que a

reestruturação econômica debilita o equilíbriodo quadro político existente, abrindo a possi-bilidade de um realinhamento; mas se isso defato acontece, e a forma que a conjuntura assu-me, depende de determinantes políticos e ide-ológicos, não somente de causas econômicas”(p. 16, tradução nossa).

Burnham (1970), por fim, adiciona umfator endógeno: o funcionamento institucio-

nal, que dita a periodicidade do realinhamento.Conforme o prisma, a regularidade do espectropolítico é sustentada por elementos ligados ànatureza dos organismos governamentais esta-dunidenses, em especial à separação dos pode-res e aos mecanismos de freios e contrapesos(checks and balances ). Nesses casos, o sistemasocioeconômico se desenrola de uma maneiradistinta das instituições eleitorais e da forma-ção política, que não se atualizam de acordo

com a dinâmica de transformação, provocandoajustes sociais defeituosos.

 Assim, cabe levantar como hipótese ele-mentos da continuidade e especificidade geo-gráfica do realinhamento. No caso brasileiro,a discussão sobre o lulismo proposta por Sin-ger aponta nessa direção, argumentando que a

8 Para Clubb, Flanigan e Zingale (2000), uma situação de surto ocorreu nos EUA nas eleições presidenciais de 1932.

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transformação favorável à agenda do PT ocor-re em um segmento específico da população,o eleitorado de baixíssima renda. Já outrossugerem uma mudança geográfica do voto emLula, que passa a ser predominante no Norte eNordeste do país, associado à distribuição doPrograma Bolsa Família nessas regiões (HUN-TER; POWER, 2007; NICOLAU; PEIXO-TO, 2007). Os indícios, portanto, seriam demudança no eleitorado; mas, pode ser entendi-do como realinhamento?

Consequências do realinhamento

Quanto às consequências , Berg (2004)

demonstra que a estruturação das elites parti-dárias  tradicionais pode sofrer alterações emcontextos críticos. As forças que contribuempara a reorganização de poder incluem dis-putas internas nas legendas, a reestruturaçãode cima   e pressões externas de movimentosde massa de eleitores excluídos das esferas decontrole, a insurgência de baixo. Na primei-ra, a fração hegemônica é afastada por outro

núcleo, como na circunstância de formaçãodo Partido Republicano – cuja classe domi-nante, atrelada ao capital industrial, tomouo lugar dos senhores de escravos que coman-davam os Whigs9  no final da Guerra Civilnorte-americana . Na segunda, as liderançasda legenda continuam relativamente as mes-mas, ao passo que os revoltosos se integrama uma cúpula partidária reformada ou assis-tem às derrotas de suas lutas e reivindicações

levadas à tona em determinado momento.Schattschneider (1960), por seu turno,

verificou que os realinhamentos são marca-dos por reviravoltas em termos de conflito, nacomposição da agenda  da política dos EUA. Ospartidos, durante os períodos críticos, discu-

tem um conjunto de novos assuntos (issues ), epolíticas de governo e a redistribuição do apoiodo eleitorado acompanham o deslocamentodos embates em voga na sociedade. Avaliandoos mesmos pontos de inflexão que Key, ou seja,as eleições de 1896 e 1932, Schattschneiderpondera que o último pleito inaugurou trans-formações importantes nas políticas públicas,enquanto o pós-1986 não resultou em gran-des mudanças. Também em Ladd e Hadley(1978), a conversão das lealdades partidáriasaparece como resposta a alterações no contex-to dos issues   concernentes ao ambiente sociale econômico. Na obra dos autores, no entan-to, a renovação dos conflitos é a característica

distintiva dos realinhamentos, não uma “con-sequência eleitoral que o fenômeno produz”(SUNDQUIST, 1983, p. 24, tradução nossa).

Burnham (1967, 1970) e Brady e Stewart Jr. (1982) mantêm o tom de crítica e defen-dem uma premissa semelhante. Brady (1988)afirma que “realinhamentos ou eleições críticascriam condições sob as quais as maiorias par-lamentares são capazes de legislar em favor de

políticas inovadoras” (p.  4, tradução nossa).Da mesma forma, Burnham (1970) expõe: “ospontos críticos estão intimamente associados eseguem as transformações em várias iniciativasgovernamentais” (p. 9, tradução nossa). Emoutro trabalho, o autor postula o predomíniode políticas redistributivas nessas situações:“essas políticas [de redistribuição] são o cora-ção dos períodos de realinhamento e aparecemcomo um de seus mais consideráveis sintomas”

(Id., 1986, p. 270, tradução nossa).O terreno caudaloso em que se sus-

tentam as muitas teorias foi alvo central deMayhew, em  American realignments: a criti-que of an American genre  (2002). No trabalho,são elencadas e testadas 15 assertivas que tan-

9 O Partido Whig foi fundado em 1833 em oposição ao Partido Democrata. Após os acontecimentos da Guerra Ci-

vil, os Whigs encerraram suas atividades e abriram espaço para a consolidação de um novo partido: o Republicano.

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genciam esse universo – incluindo a magni-tude de conversão dos votos, a influência delegendas que conformam uma terceira via,a polarização ideológica entre Republicanose Democratas e os issues  centrais das épocas.Pelos exames, Mayhew demonstra a falta devalidade empírica de vários desses postulados.Não se trata, pois, de negar as modificaçõeshistóricas dos partidos e do comportamentodo eleitorado, mas defender o uso de interpre-tações alternativas para explicar as reviravoltaspolíticas. Em sua visão, três grandes temáticas,não contempladas, ajudam a entender melhoros rearranjos eleitorais: a belicosidade – efeitodas guerras sobre a conduta do eleitor –, as

questões raciais e o crescimento econômico.

Há, por conseguinte, imprecisão e in-consistência no uso do conceito de realinha-mento. Das causas  às consequências , passandopelas unidades de análise  e a tipologia , a teoriaengloba múltiplas possibilidades, sustentandomesmo enunciados contraditórios. A Tabela 1mapeia os descompassos de entendimento dosautores citados até aqui. Vale reforçar, contu-do, o caráter reduzido da exposição de umafotografia com as muitas desarmonias suscita-das nessa literatura, que ainda não chegaramao fim. A periodicidade dos realinhamentos,por exemplo, também ocupa uma posiçãofundamental no desarranjo das concepções eserá retratada na seção seguinte.

Tabela 1.Definições de realinhamento

TiposQuanto à magnitude: Referências

Grandes(SUNDQUIST, 1983; CLUBB;FLANIGAN; ZINGALE, 1980)

Pequenos (Ibidem; BURNHAM, 1967)

Quanto ao ritmo:

Realinhamentos críticos (KEY, 1959)

Realinhamentos seculares (Ibidem)

Quanto ao escopo geográfico:

surtos (surges) (CLUBB; FLANIGAN; ZINGALE, 1980)

interações (interactions) (Ibidem)

CausasFatores exógenos:  

mudanças nas lealdades partidárias doeleitorado

(BECK, 1974; SUNDQUIST, 1983;DALTON; FLANAGAN; BECK, 1984)

reestruturação econômica (BERG, 2000)

Fatores endógenos:  

configuração institucional (BURNHAM, 1970)

Consequências reestruturação do sistema partidário (BERG, 2004; CREWE, 1985)

emergência de novos issues(SUNDQUIST, 1983; BURNHAM, 1970;

BRADY, 1988)

criação de novas políticas públicas (BURNHAM, 1970; BRADY, 1988)

Unidade deanálise

agrupamento individual do eleitorado(SUNDQUIST, 1983; DALTON;

FLANAGAN; BECK, 1984)

segmentos sociais (SCHATTSCHNEIDER, 1960; EIJK, 1983)

Fonte: Elaboração do autor

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Períodos de realinhamento nos EUA

Conquanto exista um extenso debateacerca da precisão do conceito e a despeitodas definições utilizadas, para os estudio-sos do assunto persiste um consenso deque houve três realinhamentos maiores: odos anos 1850, quando os Republicanossubstituem os Whigs e se impõem comopartido dominante; a incorporação do Par-tido Popular aos Democratas, fortalecendoa hegemonia do GOP; e o da década de1930, época do New Deal10 e da guinadados Democratas ao comando do sistemapolítico norte-americano. Não obstante, a

periodicidade da teoria não se reduz aostempos citados e contempla outros, sobre-tudo 1960 e 1990 – também consideradosa seguir.

Com o objetivo de facilitar a com-preensão dos leitores e dar uma aspectomais “visual” à categorização, o Quadro1 apresenta a lista dos presidentes dosEUA de 1853 a 1961, temporada dos re-

alinhamentos consensuais – nomenclaturautilizada para evitar maiores confusões determinologia. Na disposição do quadrocumpre assinalar que as eras exibidas re-fletem alguma alternância de poder entreas legendas principais do sistema partidá-rio estadunidense. Isso se explica porque alógica de dominação não funciona segun-do um nexo de controle absoluto, mas depredomínio relativo de um partido sobre o

outro, em um intervalo específico de tem-

po. Contudo, para efeito de contextualiza-ção, as épocas e suas conjunturas merecembreves apontamentos.

Primeiro realinhamento. As eleiçõesdeste período foram marcadas por um en-redo de agitações abolicionistas que cul-minariam na Guerra de Secessão, travadaentre 1861 e 1865 (SUNDQUIST, 1983).Embora correntes abolicionistas tenhamentrado na arena eleitoral na década de1840, somente nos anos seguintes a su-pressão da escravidão ganha o posto de de-

bate central na política norte-americana,quando os industriais do norte passaram alutar contra a medida.

 A temática dividiu as elites, enfraque-ceu as bases intersetoriais das legendas exis-tentes – os Whigs e os Democratas – e deuoportunidade ao surgimento de um novopartido: os Republicanos, vistos como omelhor instrumento de combate à escra-vidão. Em 1960, Abraham Lincoln, candi-dato dos Republicanos, é eleito com cercade 60% dos votos e imprime o primeiromandato da sigla, que disputava o pleitopresidencial pela segunda vez11. Aqui, por-tanto, o realinhamento se deu na medidaem que parte do eleitorado começou a des-tinar seus votos a uma legenda alternativa,que assumiria o papel principal do sistemapartidário nas eleições subsequentes.

10 O New Deal foi um conjunto de medidas econômicas voltadas ao combate a crise que se abateu nos EUA após aquebra da Bolsa de Nova York, em 1929.

11 A primeira disputa presidencial dos Republicanos foi em 1856, quando John Freemont alcançou 33% dos votos

(BERG, 2004).

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Segundo realinhamento. No final doséculo XIX, um novo confronto expõe asdiferenças socioeconômicas das regiõesnorte-americanas, notadamente entre leste eoeste. Dessa vez, contudo, a rezinga fortale-ceu o status quo. À época, os fazendeiros dediversas etnias e regiões se uniram para com-

bater a conjuntura econômica vigente, quefavorecia os industriais e o capital financei-ro situados no leste (SUNDQUIST, 1983).Suas reivindicações, condensadas eleitoral-mente no Partido Popular (People’s Party),sugeriam uma reforma radical – incluindo aestatização de ferrovias, a conversão do siste-

Quadro 1Realinhamentos consensuais nos EUA 

Primeiro realinhamento: 1850 – 1890

 Ano Presidente Partido

1853-1857 Franklin Pierce Democrata  

1861-1865 Abraham Lincoln Republicano

1865-1869 Andrew Johnson Democrata  

1869-1877 Ulysses S. Grant Republicano

1877-1881 Rutherford B. Hayes Republicano

1881-1881 James A. Garfield Republicano

1881-1885 Chester A. Arthur Republicano

1885-1889 Grover Cleveland Democrata  

1889-1893 Benjamin Harrison Republicano

1893-1897 Grover Cleveland Democrata  

Segundo realinhamento: 1890 – 1930

1897-1901 William McKinley Republicano

1901-1909 Theodore Roosevelt Republicano

1909-1913 William H. Taft Republicano

1913-1921 Woodrow Wilson Democrata  

1921-1923 Warren G. Harding Republicano

1923-1929 Calvin Coolidge Republicano

1929-1933 Herbert Hoover Republicano

Terceiro realinhamento: 1930 – 1960

1933-1945 Franklin D. Roosevelt Democrata  

1945-1953 Harry S. Truman Democrata  

1953-1961 Dwight D. Eisenhower Republicano

  Fonte: WHITE ROSE (2008)

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ma monetário para o bimetalismo (Ibid.) eum plano de suporte de crédito agrário.

No entanto, segundo Berg (2000), oavanço do Partido Popular “foi atrapalhadopelo racismo no sul, e em 1896 não resis-tiu à pressão por se acoplar aos Democra-tas ao redor de uma plataforma que tinhacomo mínimo denominador comum a livrecunhagem da prata” (p. 18, tradução nossa).O resultado eleitoral foi favorável aos Repu-blicanos, com a vitória de McKinley sobreBryan (Democrata). Assim sendo, o rea-linhamento de 1890 sublinha que a teorianão presume necessariamente uma mudançadrástica da situação política. A postura dos

Democratas, aliados à terceira via que des-pontava, causou dividendos eleitorais sig-nificativos, que perduraram décadas a fio esolidificaram a liderança dos Republicanos.

erceiro realinhamento. A mudança co-locada em movimento na década 1930 foiocasionada pela Grande Depressão. A que-bra da Bolsa de Nova York e a política con-servadora tocada pelo presidente republica-

no Herbert Hoover trouxeram dispendiososcustos eleitorais para o GOP. Naquela oca-sião, os eleitores, sobretudo os das cidadesindustriais do norte, pertencentes à classeoperária, saíram da égide dos Republicanose depositaram suas esperanças no Democra-ta Franklin Roosevelt, que paulatinamenteajustava seu discurso rumo a programas demaior intervenção estatal na economia.

Nos dizeres de Sundquist (1983), a maio-

ria dos votos dados aos Democratas, em 1932,abriu caminho para o realinhamento futuro, jáque para se assentar o fenômeno “necessita queos votantes que mudaram seus votos permane-çam na mesma posição. Nesse caso, eles serãomais do que avessos a Hoover e apoiadores de

Roosevelt; e começarão a se pensar como De-mocratas” (p. 210, tradução nossa).

Realinhamentos posteriores 

Se existe, de fato, alguma concordânciaquanto aos três realinhamentos expostos,isso não acontece em períodos posteriores.Os casos da década de 1960 e 1990 refor-çam esse entendimento. Decerto, o primeiromomento figura como um dos períodos demaior agitação social da história dos EUA.

 A emergência e o fortalecimento dos mo-vimentos sociais de então – sobretudo dosgrupamentos feministas e em favor dos ne-

gros – e, consequentemente, os desafios à or-ganização sociocultural vigente acarretarammudanças no campo político. A luta pelosdireitos civis, issue predominante daqueletempo, se materializou na disputa do siste-ma partidário e encontrou nos Democratasseu principal entusiasta. Tal ebulição polí-tica, claro, alimentou concepções que viamnesses distúrbios o prenúncio de outro rea-

linhamento.O olhar do já citado Burnham nãodeixou escapar os presságios irrompidos.Em Critical Elections and the Mainspring of

 American Politics  (1970), conforme expostoanteriormente, a história política norte-ame-ricana tinha uma periodicidade central e osrealinhamentos, por seu turno, assumiampadrões cíclicos. Após análise das eleiçõesde 1800, 1828, 1860 e 1932; chegou-se à

conclusão de que eles acontecem de maneirarecorrente a cada geração, aproximadamentea cada trinta anos12.

Se, aparentemente, os anos 1960 seajustavam a essa perspectiva cíclica, nãoera possível apontar nenhum corte claro de

12 A regularidade dos ciclos causada pela modificação geracional aparece na conceituação de outros autores. Ver Beck

(1974), por exemplo.

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realinhamento partidário; ademais, os con-tornos da política norte-americana elucida-vam o enfraquecimento das identificações eda organização dos partidos e a ausência dequalquer supremacia das legendas principais.Diante desse panorama, Burnham (1991)formulou os conceitos de “ decomposiçãopartidária ( party decomposition)” ou “desali-nhamento” com o objetivo de mostrar quehouve um realinhamento crítico entre 1968e 1972. No entanto, o evento inaugura umnovo sistema, cujo elemento fundamental éa dissolução dos tradicionais elos partidários– ou seja, as outrora perenes identificações,destacadas em Te American voter , que repre-

sentam um exame datado da configuraçãopolítica dos EUA.

 Aldrich (1995), de outro lado, partede um diferente ponto de vista: ainda queconcorde com a ideia de que as alteraçõessucedidas no decênio de 1960, em especiala inauguração de um sistema partidária re-novado, tenha se tornado norma nos déca-das posteriores, a inexistência de migração

de eleitores de uma legenda a outra força oautor a postular novas explicações. Seguindosua argumentação, eleições que reestruturamo sistema partidário podem ser consideradas“realinhamento” na medida em que um par-tido menor se transforma em hegemônico.Como o fato não foi verificado, Aldrich pre-fere chamar de era crítica   essa modificaçãodo arranjo institucional.

 Já no pleito de 1994 também foi cer-

cado por especulações sobre o tema. Naocasião, os Republicanos, pela primeira vezdesde a Grande Depressão e o New Deal,conquistaram o controle das duas casas doCongresso. Dada a falta de um componen-te incendiário naqueles idos, Abramowitz e

Saunders (1998) alegam que em 1994 nãohouve uma eleição crítica   no sentido tradi-cional, mas a mudança no posicionamentodas legendas no que concerne a posições po-líticas, o que precipitou uma redistribuiçãode longo termo das lealdades partidárias. Àvitória congressual do GOP, Abramowitze Saunders atribuem o aumento da polari-zação ideológica das legendas durante a eraReagan13. Concluindo, enunciam que seg-mentos sociais conservadores, não alinha-dos, passaram a depositar sua confiança nosRepublicanos.

Em resposta direta a esse trabalho,Putz (2002), mediante correções estatís-

ticas da obra, acredita na “superestimaçãodos efeitos da ideologia política na identi-ficação partidária do eleitorado em 1994e na subestimação da estabilidade de suasbases” (p. 1119, tradução nossa). ParaValentino e Sears (2005), raça   e questõesatinentes ao tema   desempenharam papelcentral nessa fase. O amálgama entre aimagem dos Democratas e a luta pelos di-

reitos civis nos anos 1960 influenciou ummovimento posterior, iniciado na décadade 1980, de alinhamento dos votantesconservadores do sul aos Republicanos.

O consenso em torno de três grandesrealinhamentos e as consequentes diver-gências acerca de conversões partidáriasposteriores fomentam a principal cargacontra a teoria: a de que o gênero deixoude ser relevante, já que o fenômeno não se

repete nos EUA desde 1932 (MAYHEW,2002). No transcorrer dos acontecimen-tos, a periodicidade, um dos sustentáculoscentrais das interpretações, perdeu força epôs em xeque a vitalidade desse conjuntode interpretações.

13 Ronald Reagan, do Partido Republicano, foi presidente dos EUA de 1981 a 1989. No seu mandato, foram imple-

mentadas algumas séries de medidas de desregulamentação da economia.

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Considerações finais

Os conceitos mantêm como suposto fun-damental a ideia de diacronia, ou seja, umamesma palavra pode permanecer inalterada e,no entanto, o conteúdo expresso por ela modi-ficar-se de forma significativa. Isso porque osconceitos se articulam com o contexto histó-rico ao qual estão inseridos, indicando, dessemodo, algo que se situa para além dos fenôme-nos linguísticos. Por conta da possível variaçãode sentido, os intercâmbios entre vocábulose seus respectivos significados são necessaria-mente conflituosos (KOSELLECK, 1992).

Destarte, o realinhamento é um desses

termos que se encaixam perfeitamente naelucidação do historiador Reinhart Koselleck.

 Afinal de contas, foi concebido nos inters-tícios das crises norte-americanas e, a partirdelas, ganhou notoriedade e um sem núme-ro de acepções. A teoria que nasce na era doNew Deal e amadurece em meio aos embatessociais dos anos 1960 acompanha a trajetó-ria sinuosa dos acontecimentos dessas épocas.

Quanto aos tipos , causas , consequências e uni-dades de análise não houve grandes consensos,mas muitas ambiguidades e imprecisões.

Na literatura nacional, como pode sernotado, o realinhamento ganha força emmeio a pressupostos que retiram suas carac-terísticas fundamentais. Se Singer (2012), re-petindo a citação do início do texto, confessase interessar apenas pela “ideia de que certasconversões de blocos de eleitores são capazes

de determinar uma agenda de longo prazo,da qual nem mesmo a oposição ao governoconsegue escapar” (p. 13-14), acaba ao mes-mo tempo por colocar em segundo plano otripé que sustenta e dá corpo ao fenômeno.

Dos índices centrais, apenas a noção dedurabilidade   aparece em seu trabalho, assimmesmo com uma feição prematura. À modade uma reorganização política rooseveltiana , o

lulismo seria o marco inicial, não amadurecido

nem consolidado de uma situação que estaria por vir. O apreço dos futuros governos, sejampetistas ou não, por medidas de redução dapobreza sem desestabilização da ordem social,sintonizadas com as expectativas de um estratodecisivo do eleitorado nacional, precisa ser veri-ficado a posteriori . Há, portanto, a necessidadede comprovações empíricas ulteriores que só otranscorrer do tempo pode conceder.

De resto, nenhuma referência à iden-tificação partidária , tampouco aos contextoscríticos. A interpretação do autor se assentaem vínculos ideológicos dos eleitores com ospersonagens que concorreram à presidência.Recordando, o subproletariado  que apoiou

Collor, em 1989, e Fernando HenriqueCardoso, em 1994 e 1998, passa a ver emLula o sistematizador de suas preferências.Os respectivos partidos, que na literaturaamericana serviram como estabilizadores dasescolhas eleitorais, são esquecidos na leituraedificada por Singer. Talvez por não terem amesma importância para os cidadãos ameri-canos da primeira metade do século XX.

 A dinâmica de contingência que põe emmovimento as escolhas dos indivíduos, sub-sumida na noção de contextos críticos , dá lugara uma lógica de continuidade, em que pelomenos parcela do eleitorado tem consciênciamais ou menos definida do que quer. Ora,a aproximação Lula do subproletariado  nãomarca a alteração do comportamento eleitoralda categoria, mas a conformação da liderançaaos desejos perenes de um segmento social.

Diante dessas considerações, fica o en-tendimento de que o realinhamento é umfenômeno datado historicamente, circuns-crito a uma conjuntura em que a condutados eleitores se organiza em torno de sólidase permanentes identificações partidárias. Porconseguinte, a configuração política brasilei-ra, com altas taxas de volatilidade eleitoral ebaixo enraizamento partidário, não parece se

adequar a uma análise do gênero.

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Resumo

Perdendo o fio da meada: ambiguidades e contradições na teoria do realinhamento

 A teoria do realinhamento vem ganhando força como chave explicativa dos desdobramentos eleitorais ocorridos noBrasil recentemente. O fenômeno que se edifica após a vitória eleitoral de Lula em 2006 expressa a ideia de uma con-versão de blocos de eleitores, determinando uma agenda de longo prazo da qual nem mesmo a oposição ao governoconsegue escapar. No entanto, ao considerar a trajetória do conceito na literatura norte-americana, pode-se chegar àconclusão de que a teoria recebe, na versão nacional, um escopo reducionista, em que seus principais condutores – adurabilidade , a noção de eventos críticos  e a identificação partidária  – não são contemplados. Diante dessas evidências,fica o entendimento de que o realinhamento é um fenômeno datado historicamente, circunscrito a uma conjunturaem que a conduta dos eleitores se organiza em torno de sólidas e permanentes identificações partidárias. Por conse-guinte, a configuração política brasileira, com altas taxas de volatilidade eleitoral e baixo enraizamento partidário, nãoparece se adequar a uma análise do gênero.

Palavras-Chave: Realinhamento Eleitoral; Lulismo; Identificação Partidária; André Singer; Eleições.

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Abstract

 Ambiguities and contradictions in alignment theory 

The realignment theory is gaining strength as an explanatory key in the understanding of the electoral developmentsrecently occurred in Brazil. The phenomenon, emerged in the post electoral period after the election of Lula in 2006,

expresses the idea of a conversion of a block of voters, determining a long-term agenda from which not even theopposition manages to escape. However, when one considers such theory in the American literature in comparisonwith its Brazilian version, it is possible to conclude that the last presents a reductionist scope in which the maindrivers are not sufficiently contemplated – the notions of durability , critical events , and party identification. In face ofsuch evidence, the article concludes that, in the Brazilian case, the electoral realignment is a phenomenon related toa particular historical moment in which voters were organized around deep party identifications. The more generalBrazilian political setting, however, with high rates of electoral volatility and low party roots, does not seem to be suitedto an analysis based in such theoretical approach.Keywords: Electoral realignment; Lulismo; Partisan identification;

 André Singer; Elections.

Keywords: Electoral Realignment; Lulismo; Partisan Identification; André Singer; Elections.

Résumé

La perte du fil conducteur : ambiguïtés et contradictions de la théorie des réalignements 

La théorie des réalignements gagne de plus en plus de force en raison des développements électoraux qui ont eu lieurécemment au Brésil. Le phénomène qui s’est installé suite à la victoire électorale de Lula en 2006, exprime l’idée d’uneconversion de blocs d’électeurs. Cela a déterminé un agenda à long terme par rapport auquel ni l’opposition au gouver-nement peut échapper. Cependant, lorsque l’on considère l’évolution du concept dans la littérature nord-américaine,il est possible de conclure que la théorie reçoit, dans sa version nationale, un champ d’application réduit, dans lequelses principaux fils conducteurs - la durabilité , la notion d’événements critiques  et l’identification à un parti  - ne sont pasconsidérés. Face à ce constat, il est entendu que le réalignement est un phénomène historiquement daté et limité à unesituation dans laquelle la conduite des électeurs est organisée autour de l’identification à un parti. Par conséquent, lecontexte politique brésilien, qui fait face à des taux élevés de volatilité électorale et à un faible engagement partisan, nesemble pas s’adapter à ce genre d’analyse.

Most-clés: Réalignement des élections; lulismo; Identification partisane; André Singer; Élections.

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Teorias e interpretações recentes sobre o processo decisórionos parlamentos contemporâneos

Paolo Ricci 

Introdução

O propósito deste artigo é oferecer umasistematização teórica e metodológica dasprincipais teses e interpretações em torno daorganização e funcionamento dos parlamen-

tos democráticos1. Para simplificar a apresen-tação, o tópico será abordado de forma a daruma visão mais geral sobre quatro subtemas:1) discussão teórica travada na literatura nosanos 1970 e 1980 sobre os limites da regrada maioria como garantia da tomada de de-cisão legislativa final; 2) equilíbrio decisórioinduzido pela estrutura institucional – oustructure-induced equilibrium na terminologia

proposta por Kenneth Shepsle (1979) – cujoargumento é de que o caos decisório derivadodas escolhas majoritárias pode cessar em pre-sença de alguma regra procedimental que criamecanismos decisórios capazes de influenciara estrutura das escolhas coletivas e, portanto,a ação dos atores que votam; 3) tendência àcentralização do poder de agenda observadana maioria dos parlamentos modernos e seusefeitos sobre a produção legislativa que deri-vam do tipo de organização parlamentar; 4)causas que levam os legisladores a escolherdeterminadas regras inerentes aos trabalhoslegislativos, ora apelando para a centraliza-ção, ora focando a descentralização – ambasas orientações verificadas nos parlamentos

modernos. A este último tema dedicarei maisespaço no artigo por ser um tópico pouco ex-plorado pela literatura e, portanto, de interes-se por futuras pesquisas.

Este artigo não tem a pretensão deapresentar e descrever em detalhe as di-

ferenças organizacionais entre os parla-mentos de vários países. Os casos even-tualmente explorados servirão apenas deexemplo para melhor entender as questõesabordadas. Minha reflexão é mais geral eprocura dialogar com a literatura que in-vestiga como se tomam as decisões em ins-tâncias representativas como os parlamen-tos. Creio que isso nos permita deixar de

lado a mera descrição dos numerosos tiposde organizações dos parlamentos para tra-tar, de maneira analítica, apenas do modode fabricação de decisões coletivas obser-vados nas casas representativas.

Divisão dos trabalhos e tomada de

decisão coletiva: entre a regra da

maioria e o poder de agenda

No estudo da organização das legisla-turas é suficiente restringir a discussão emtorno de dois pontos: 1) todos os parlamen-tos possuem regras escritas de organizaçãointerna cuja codificação se encontra nosregimentos internos; 2) a regra geral de to-

1 Os termos parlamento, Congresso, Assembleia Nacional, Conselho etc. serão usados neste texto de forma inter-

cambiavel.

BIB, São Paulo, n. 77, 1º semestre de 2014 (publicada em dezembro de 2015), pp. 25-44.

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mada de decisão dos parlamentos é a regrada maioria absoluta 2.

Não há necessidade de ilustrar demasia-damente o primeiro ponto. Basta dizer que ascaracterísticas organizacionais dos legislativos– isto é, o número de comissões permanentese as respectivas atribuições, a eleição dos presi-dentes e da Mesa diretora e as normas do pro-cedimento legislativo, entre outros aspectos –,encontram-se nos regimentos internos e, mes-mo que de forma menos detalhada, nas pró-prias constituições. De fato, as constituições demuitos países conferem explicitamente a cadaparlamento o poder de escrever suas regras in-ternas que fixam os procedimentos para o fun-

cionamento dos trabalhos parlamentares. Noartigo I, seção 5 da Constituição americana,por exemplo, afirma-se que “each house maydetermine the rules of its proceedings”3. Estaautonomia está condicionada, obviamente,pelas diretrizes constitucionais. Emblemática atal respeito é a Constituição francesa de 1958que consignou, em vários artigos, a prevalênciado Executivo sobre o Parlamento no processo

legislativo. Essa dominância permeia todo o re-gimento interno da própria Assemblée Natio-nale, que se adapta à norma constitucional. Emgeral, pode-se dizer que os regimentos incorpo-

ram procedimentos formais passados, produtodas mudanças ocorridas ao longo dos séculos4.O direito parlamentar como disciplina autôno-ma tem contribuído para tratar do tema.

O segundo ponto é mais importante (eempolgante, pelo menos do ponto de vista docientista político) porque levanta uma ques-tão teórica de fundo que remete ao antigoproblema de como se dão as escolhas coleti-vas. Lembra-nos Cohen (1997) que “a decisãoda maioria irá contar como uma razão paraaceitar a decisão como legítima” (p. 414). Oassunto foi abordado por vários autores de re-levância central na literatura econômica e daprópria ciência política. Apresento o tópico

brevemente e, espero, de forma simples.Qual o número de membros necessários

para se chegar a uma decisão final dentro de umparlamento? A regra da maioria fixa este valorem 50% + 1 dos membros. Significa que o po-der de decisão final depende da criação de umacoalizão mínima que não pode ser derrotadapor uma coalizão igual ou maior. Sabemos quegrande parte das regras procedimentais dos par-

lamentos adota a regra da maioria simples paravotar matérias de caráter ordinário. No Brasil,por exemplo, o art. 56 do regimento da Câma-ra dos Deputados determina o mesmo para as

2 Desconsidero, aqui, eventuais maiorias alternativas como a maioria qualificada, quando se exige, por exemplo,2/3 das preferências. Trata-se de maiorias previstas para determinadas votações como a reforma da Constituição enão para os procedimentos legislativos ordinários. Excluo, também, o caso limite que vincula a decisão à regra daunanimidade. Exemplo extremo desta regra era presente no parlamento republicano italiano quando o regimentoexigia consenso pleno entre os líderes partidários para se decidir sobre a ordem dos trabalhos na Câmara dos Depu-tados. Não é necessário conhecer o caso italiano para saber que a exigência da unanimidade leva, na verdade, a nãodecisão. Como de fato ocorria na Itália, era a presença de forças políticas antagônicas – comunistas, democratas--cristãos e ex-fascistas – que impedia qualquer acordo unânime sobre matérias a conteúdo relevante.

3 A Constituição Brasileira de 1988, no seu art. 51, afirma que “compete privatimente à Câmara dos Deputadoselaborar seu regimento interno” e, da mesma forma, no art. 52, relativo às competências do Senado, repete-se afórmula: “compete privativamente ao Senado Federal elaborar seu regimento”.

4 Os parlamentos da idade média, por exemplo, já estabeleciam procedimentos organizacionais detalhados para oexame das petições, da legislação originária dos representantes, e havia regras escritas de condução dos trabalhos par-lamentares para os debates, a disciplina na discussão, ou a votação das matérias. Para a reconstrução da evolução dasregras para o caso inglês ver o texto clássico de Lord Campion,  An introduction to procedure of the house of commons , 

onde o autor descreve o desenvolvimento dos procedimentos parlamentares desde o século XIV (CAMPION, 1958).

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comissões, e o art. 183 diz que, salvo disposiçãoconstitucional em contrário, “as deliberaçõesda Câmara serão tomadas por maioria de votos,presente a maioria absoluta de seus membros”5.Em suma, seria a regra da maioria a que garantepor si só a capacidade de se chegar a decisõescoletivas nos parlamentos modernos. As coisas,entretanto, são um pouco mais complicadas doque a simples leitura do regimento nos parecedizer. Um exemplo clareia o ponto. Admita-sea distribuição de preferências para uma assem-bleia legislativa composta de 100 legisladores,apresentada na Tabela 1 a seguir.

Tabela 1.Ordem de preferência para um parlamento

com 100 legisladores

Ordem de preferênciaspara três alternativas

Número delegisladores

 A > B > C 40

C > A > B 30

B > C > A 30

Fonte: Elaboração do autor.

Como regra, a alternativa vencedora seria

aquela que ganha sobre as demais em cada parde alternativas. No caso ilustrado na Tabela 1,não há nenhuma preferência ganhadora. A ga-nha sobre B por 70 a 30 (70 legisladores prefe-rem A a B), B ganha sobre C por 70 a 30 (70legisladores preferem B a C) e C ganha sobre Apor 60 a 40 (60 legisladores preferem C a A).Este é um exemplo de maioria cíclica, em queo resultado é uma indecisão final já que não

existe apenas uma alternativa que, quando vo-tada, sempre ganha sobre as demais. O pontoé este: a presença de maiorias cíclicas reduz aimportância da regra da maioria em resolver oproblema da decisão coletiva (ARROW, 1951;RIKER, 1980). Isso porque a regra da maio-ria pode gerar situações de desequilíbrio noprocesso decisório, na ausência de alternativasganhadoras ou, com referência ao matemáticoque primeiramente apresentou o problema,ainda no século XVIII, quando não é assegu-rado um ganhador de Condorcet 6.

Entretanto, as evidências empíricas nãodeixam dúvidas: maiorias cíclicas não impedema definição das preferências no cotidiano parla-

mentar, imperando, na prática, a estabilidadedecisória. Parafraseando um trabalho pioneirode Gordon Tullock (1981), é então obrigatórionos perguntarmos “Why so much stability?”.

 A solução dada à incapacidade decisória é decerta forma simples e se firma na ideia de queé através do controle da agenda que podemosprever o resultado final. Voltemos ao exemploanterior para clarear o ponto. É notório que

muitas assembleias legislativas conferem deter-minados poderes aos presidentes de assembleia.No caso, admitamos a possibilidade do presi-dente decidir a ordem das alternativas (A, B,C) em votação. Admitamos, também, a regrade que a alternativa derrotada não pode ser vo-tada novamente. Consideremos o caso em queo presidente prefere a alternativa A às demais.Ele sabe que A perde de C, mas é ciente do fato

5 Em termos regimentais precisa diferenciar entre maioria simples (ou relativa) e absoluta. A primeira é variá-vel, dependendo do número de parlamentares presentes na sessão, e é qualquer maioria desde que seja garan-tida a maioria absoluta dos votos. A maioria absoluta é menos frequente para aprovação de leis ordinárias ecorresponde ao primeiro número inteiro acima da metade dos membros de uma casa legislativa. O regimentointerno da Câmara dos Deputados italiana, no seu artigo 48, estabelece que “as deliberações da Assembleia edas comissões são adotadas a maioria dos presentes”. Na França, o artigo 68 afirma que “as questões votadasnão são declaradas aprovadas se não obtivera a maioria dos votos expressos”. Mas o art. 48 do Bundestagalemão determina que a regra válida para as votações é a maioria absoluta.

6 O Marquês de Condorcet foi um filósofo, legislador e matemático do final do século XVIII. Suas considerações

serviram de base para o teorema de impossibilidade de Arrow.

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de que B ganha de C. Por isso, ele pode decidirvotar antes as alternativas B e C e, sucessiva-mente, confrontar A com B. O resultado finalé a vitória da alternativa A, apesar de ela estarderrotada perante C. Dito de outra forma, issosignifica que é o presidente da assembleia quecontrola o resultado final, mesmo liberando oslegisladores na expressão de suas opiniões.

Nesse exemplo me referi ao poder dopresidente da assembleia. O argumento podeser estendido a outros atores e órgãos internosaos parlamentos. É o caso, por exemplo, dascomissões permanentes que Kenneth Shepslee Barry Weingast (1987) exploram no exameda experiência americana. Dessa vez, a solução

para os problemas de tomada de decisão nãoderiva necessariamente da negociação dentrodas comissões por meio da simples troca devotos, ou logrolling 7. Isso porque as situaçõesde logrolling , onde a maioria se constrói sobremoções conjuntas e não sobre moções sepa-radas, também podem gerar ciclos. Por outrolado, mesmo em condições de troca de votos,não se resolvem os problemas que derivam

do conhecimento que os atores têm sobre aspossíveis trocas futuras dada a incerteza sobrea reeleição dos parlamentares. Os própriosbenefícios trocados são diluídos no tempo demodo que os acordos fixados mudam segundoa situação política em jogo. O sistema de co-missões permite, porém, diminuir os custos detransação das trocas entre os atores. Isso por-que viabiliza o direcionamento das propostas

para organizações internas ao parlamento cujafunção é exclusivamente dedicada à análisede projetos homogêneos entre si (FIORINA;PLOTT, 1978; SHEPSLE; WEINGAST,1987), evitando que a decisão ocorra em umespaço político multidimensional.

Em síntese, é a distribuição do poder so-bre a dinâmica dos trabalhos legislativos quedetermina o êxito final das escolhas coletivasnos parlamentos modernos8. A própria estru-tura institucional elimina o “caos decisório”das escolhas majoritárias e de contextos carac-terizados pela multidimensionalidade do es-paço político (ARROW, 1951)9. Os trabalhospioneiros de Kenneth Shepsle (1979, 1986a,

1986b) têm demonstrado que os resultadoslegislativos, por exemplo, não dependem uni-camente das preferências dos atores envolvidosno “jogo” decisório, mas também dos vínculosestruturais e procedimentais que fixam a agen-da e a ordem da discussão, gerando o que elechama de “structure-induced equilibrium”10.

O poder de agenda: tipos e atores políticos

Para entender melhor o argumento ex-posto, vale uma reflexão mais detida sobre acapacidade decisória nos parlamentos contem-porâneos. Aqui, apresento o tópico naquiloque diz respeito à aprovação das leis. Na lite-ratura, o significado de poder de agenda estárelacionado a dois tipos de poderes, aparen-temente opostos entre si. Fala-se em  poder de

7 O logrolling consiste no voto dado por um parlamentar em favor de uma proposta de outro colega que se esperaretribuir a colaboração, devolvendo favor correlato ao primeiro.

8 O ponto é relevante também da perspectiva da teoria democrática. Isso porque anula todas as teorias que fundama legitimidade das instituições democraáticas sobre o ideal representativo. O fato é que a maioria simples é incapazde interpretar a vontade popular onde a decisão depende da distribuição do poder (o que chamei de  poder deagenda  no caso dos parlamentos).

9 A importância da determinação da agenda já havia sido apontada por McKelvey, em 1976.

10 Para uma aplicação formal de como o arranjo institucional parlamentar seja definido em função do jogo entre os

atores finalizado a distribuir benefícios tangíveis aos eleitores ver Baron e Ferejohn, 1989.

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agenda positivo ao se considerar o conjunto dasregras que apressam ou asseguram a votaçãodo projeto no plenário11. No Reino Unido,por exemplo, recorre-se a um procedimentode emendamento que põe em votação paresde alternativas, sendo removidas as derrotadas.

 Aqui, também, entra a prerrogativa de deter-minar a agenda de plenário, isto é, as matérias

que serão votadas definitivamente no plená-rio (DORING, 1995c). Fala-se, em  poder deagenda negativo (ou direitos de vetar) quando hámeios para se vetar/atrasar o debate e, mesmo,o envio das propostas ao plenário para votação.O quadro a seguir sintetiza alguns dos poderesde agenda presentes nos parlamentos atuais.

11 Parto do pressuposto de que o lugar da decisão final é o plenário e não as comissões deixando de considerar o caso

extremo em que as comissões têm poder terminativo, como no caso italiano.

I. Poderes de agenda positivos

Definição das matérias que serão votadaspelo plenário (fixa ordem do dia)

França. Art. 48 da Constituição e art. 48, c. 6 do RI :“A ordem do dia das Assembleias compreende por

prioridade e na ordem fixada pelo governo a discussãodos projetos de leis apresentados pelo governo edaqueles aceitos por ele”.

 Alemanha. Art. 20 do RI : “A data e a ordem do dia decada sessão do Bundestag são concordatas no Conselhodos Anciãos (Ältestenrat)”, composto pelo Presidente, ovice-presidente e outros 23 parlamentares designados deacordo com a consistência numérica de cada partido.

Pedidos de urgência 

França. Art. 45 da Constituição e art. 102 do RI : “Ogoverno pode declarar a urgência até o fechamento dadiscussão geral, com uma comunicação endereçada aoPresidente que imediatamente informa a Assembleia”.

Espanha. Art. 93: “A pedido do governo, de doisgrupos parlamentares ou de 1/5 dos deputados, a Mesado Congresso dos Deputados poderá decidir que umargumento seja examinado com procedimento deurgência”.

Pedido de voto de confiança em regimes parlamentares*

França. Art. 49,3 da Constituição: “O primeiro-ministro, prévia deliberação do Conselho dosMinistros, compromete, perante a Assembleianacional, a responsabilidade do Governo perante o

seu programa ou eventualmente sobre declaração depolítica geral [...] ou sobre a votação de um texto”.

i.iv. Controle dos tempos de tramitação (Package vote)

França. Art. 44, c. 3: “Se o governo o pedir, a Assembleia se pronuncia com uma única votaçãosobretudo ou parte do texto em discussão com asemendas propostas ou aceitas pelo governo”.

Quadro 1 – Exemplos de poderes de agenda 

II. Poderes de agenda negativos

Limites ao uso da palavra 

Espanha. Art. 118 do RI : “A discussão no plenário poderáse iniciar com a apresentação da iniciativa do governo”.

Controle do governo sobre o conteúdodas propostas orçamentárias

França. Art. 40 da Constituição: “As propostas e asemendas formuladas pelos membros do Parlamento nãosão admissíveis quando a aprovação deles implique sejanuma diminuição dos recursos públicos seja na criação ouagravação de um encargo público” (ver art. 81 do RI).

Espanha. Art. 133 do Regimento: “As emendas ao projetode Lei Orçamentário que impliquem a diminuição dasentradas requerem o consentimento do governo para serexaminadas”.

Restrições à apresentação de emendas, moções

Reino Unido. Art. 34 : “Caso seja apresentada uma moçãopara prolongar a discussão [...], tal discussão será limitadaao objeto desta moção; e nenhum deputado que tenhaapresentado similar moção terá faculdade de apresentaroutra análoga na mesma discussão”.

França. Art. 98 do RI : “As emendas e subemendas sãoadmissíveis apenas se aplicam ao texto a que se referemou, no caso de artigos novos, quando vertentes o projeto”.

* Trata-se do uso estratégico do voto de confiança utili-zado por muitos primeiros-ministros em regimes par-lamentares. Para acelerar a decisão final e, também,encerrar eventuais divergências internas à coalizão queapoia o governo, o primeiro-ministro pode pedir, pré-via deliberação do Conselho dos Ministros, que o votodado sobre uma matéria implique responsabilidade dogoverno. Isso obriga a maioria parlamentar a decidirpara votar a favor ou contra a norma, sendo que nesteúltimo caso a consequência é a derrubada do governo.Para um ótimo tratamento teórico e empírico desta prá-tica ver Huber (1996); Diermeier e Feddersen (1998).

Fonte: Elaboração do autor a partir da leitura dos regimentos da Alemanha, França, Espanha e Reino Unido.

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Importante reconhecer, porém, que os au-tores que estudam os legislativos tendem a seconcentrar no conjunto dos poderes de agendapositivo. Outros se empenham na direção con-trária, dando ênfase à capacidade de bloquearas propostas da oposição nos países do LesteEuropeu (ZUBER, 2011). A meu ver, a ques-tão é secundária e deveria ser pensada tratandoprincipalmente de como o poder de agendanegativo e o positivo configuram uma estrutu-ra dos trabalhos parlamentares de tipo centra-lizada ou descentralizada (COX, 2006; DO-RING, 1995c). Fala-se em poder centralizadoquando poucos atores parlamentares possuemo monopólio da agenda. Fortes poderes ao pre-

sidente da assembleia ou aos líderes de partidosão geralmente associados a um elevado con-trole da agenda. Por além dos parlamentares,trata-se de individuar os outros atores coletivoscom prerrogativas legislativas, como os presi-dentes da República que no caso da AméricaLatina têm fortes poderes de agenda-setting  jáque podem introduzir matérias a caráter eco-nômico-financeiro, iniciar a lei orçamentária,

introduzir projetos que devem ser votados den-tro de um prazo determinado, como tambémapresentar decretos-leis (NEGRETTO, 2013).

 À medida que a força individual dos parla-mentares aumenta vis-à-vis a dos líderes e doExecutivo caminha para uma organização dostrabalhos parlamentares de tipo descentraliza-da. Posto nestes termos, o problema empíricoda análise do poder de agenda entre os paísespode ser interpretado como esforço finalizado

a detectar variações no grau de centralização/descentralização presente nos parlamentos12.

É claro que nos parlamentos modernoso aspecto mais decisivo é a afirmação de umcomportamento político de tipo partidáriono qual a legenda, do ponto de vista orga-

nizacional, domina a cena parlamentar. Issoindica que o critério para se definir a lógicada distribuição do poder de agenda é essen-cialmente partidário. De fato, podemos ob-servar que a maioria dos regimentos prevêuma distribuição de cargos com base emuma lógica partidária. A questão, então, ésaber quais atores partidários contam e, porextensão, levar em conta a própria coesãointerna (TSEBELIS, 2001). Em última ins-tância, “agenda setting power depends notonly on the institutional features of a poli-tical system, but also on the ideological po-sitions and the cohesion of different actors”(TSEBELIS; RASCH, 2011, p. 2). Isso sig-

nifica que o mero entendimento das regrasque organizam os parlamentos é insuficientepara decifrar como de fato as decisões sãotomadas.

A tendência à centralização dos

trabalhos parlamentares

Em relação às tentativas de analisar o

poder de agenda e os vários aspectos or-ganizacionais dos parlamentos atuais, aliteratura é abundante. Assim, por exem-plo, discute-se sobre a força das comissõespermanentes (MAMADOUH; RAUNIO,2003; SHAW, 1998), o processo de vota-ção em plenário (RASCH, 1995, 2000),o papel dos presidentes das assembleias(JENNY; MÜLLER, 1995). Em geral, acaracterística principal da literatura que

analisa a organização dos trabalhos parla-mentares é a tentativa de detectar variaçõesno grau de centralização/descentralizaçãodos parlamentos (DÖRING, 1995a).

Dentro de uma perspectiva de longoprazo, desde pelo menos o século XIX, é

12 Para a tentativa de mapear o nível de descentralização da capacidade legislativa parlamentar de um país ver o trabalho

de Doring (1995). Para uma tentativa similar mas centrada sobre a lei orçamentária ver o texto de Wehner (2006).

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possível argumentar que houve uma tendên-cia à centralização dos poderes de agenda nosparlamentos. A bem entender, o fenômenonão era decerto uma novidade para os estu-diosos daquela época. O cenário era claro,por exemplo, para quem olhasse para o casoinglês. Na introdução ao estudo clássicode Josef Redlich sobre a evolução dos pro-cedimentos parlamentares da Câmara dosComuns, o autor assim sintetizava este pon-to: “the fundamental notion undelying thechange was [...] the endeavour to adapt theregulation and carrying out of parliamentarywork to the fully matured system of partygovernment” (REDLICH, 2004, p. xxxii).

 Já no começo do século XIX, outros auto-res salientavam como as reformas adotadaspara fortalecer o governo se enquadravamem uma lógica de  parlamento racionalizado (REDSLOB, 1924). Eis o ponto crucial aser entendido: o aspecto típico da ideia da ra-cionalização vinha unanimemente associado àcentralização das funções legislativas nas mãosdo governo. No âmbito parlamentar, passa-

-se a reconhecer um peso relevante apenasa alguns parlamentares, como as liderançasde partido, ou aos grupos parlamentares,enquanto são fortalecidas as funções do exe-cutivo no processo legislativo. Racionalizarsignificava, na substância, garantir a decisãoe a participação em favor do governo redu-zindo as possibilidades de autonomia doparlamentar.

 A noção de racionalização é, portanto,

geralmente associada à de centralização de-cisória, e na literatura é essa a orientação do-minante. Por exemplo, John Huber (1996)utiliza a expressão  parlamento racionalizado para intitular seu livro sobre o caso francês,que analisa os vários instrumentos regimen-tais adotados na passagem para a QuintaRepública e destaca como os dispositivos ga-rantiram ao governo maior capacidade deci-

sória (Ibidem). Analisando o caso espanhol,

alguns reconhecem um modelo racionaliza-dor, inspirado na democracia alemã, compartidos fortes e desenhado para consolidarmaiorias estáveis (MARTIN, 2000). O querealmente se percebe da análise da Consti-tuição de 1978 é a busca constante por “umparlamentarismo racionalizado e, portanto,para garantir ao poder Executivo uma for-te estabilidade” (DÍEZ-PICAZO, 1996, p.48). Outros, para o caso italiano, eviden-ciam como a racionalização das formas or-ganizacionais do parlamento e dos procedi-mentos de tomada de decisão foi perseguidade forma incremental durante décadas (RI-VOSECCHI, 2002). Além do mais, a Itália

aparece na literatura como um caso de ra-cionalização tardia por ter privilegiado, pelomenos até os anos 1980, uma maior centrali-dade do parlamento (REBUFFA, 2001). Emrecente trabalho sobre Portugal, Leston-Ban-deira (2002) ressalta as mudanças ocorridasnaquele país, perseguidas, segundo ele, emtermos de uma “racionalização dos procedi-mentos”, tais como o predomínio majoritá-

rio sobre a agenda parlamentar e uma des-valorização do plenário frente às comissões.Em definitiva, esta literatura sinaliza para oseguinte ponto: a tendência à centralizaçãodas regras deve ser entendida em última ins-tância como racionalização das relações entreExecutivo e Legislativo onde “the executiveshould be seen as an agent of the majority,and the use of the legislative agenda powersby the executive should be seen as an ins-

trument that serve the interests of majority”(CHEIBUB; LIMONGI, 2010, p. 39).

Deve-se dizer que a evolução históri-ca das regras regimentais é completamentenegligenciada pela literatura. No fundo,busca-se capturar as variações no grau decentralização/descentralização do poder dogoverno na arena parlamentar considera-do um arco temporal limitado, geralmente

circunscrito aos últimos vinte anos. Assim,

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perde-se a evolução histórica do processode mudanças das regras internas que é, emmuitos casos, secular. Disso decorrem doisproblemas imediatos. Por um lado, ignora--se que alguns países ainda detentores de umsistema de organização dos trabalhos bastan-te descentralizado, como a Itália, passarampor um processo de mudança lento e incre-mental das regras em direção da centraliza-ção do processo decisório. Por outro, semuma reflexão histórica adequada, deixamde observar situações em que o processo decentralização/descentralização não segue umcaminho unidirecional, mas conhece avan-ços e retrocessos contínuos. Emblemático a

este respeito é a experiência americana. NosEstados Unidos, a organização dos trabalhosparlamentares deve ser interpretada em fun-ção de níveis de centralização/descentraliza-ção que variam por período (GALLOWAY,1976; SCHICKLER, 2001; COX; MC-CUBBINS, 2005).

Os efeitos do nível de centralização

da agenda

Parte da literatura tem se dedicado àanálise dos efeitos que derivam da organi-zação das legislaturas. No caso dos parla-mentos, afirma-se que “different sets of res-trictions, because they imply different setsof feasible agendas, imply different sets ofpotential outcomes” (SHEPSLE; WEIN-GAST, 1984, p. 71). Os autores se referem

muito apropriadamente ao fato de que asregras regimentais impõem custos à açãoindividual e coletiva dentro do parlamen-to, condicionando o funcionamento dasassembleias e, em última instância, deter-minando resultados diferentes em termosde produção legislativa (DORING, 1995d,1995e, 2001). Isso pode ser verificado con-siderando-se a produção legislativa tanto

em termos quantitativos quanto qualitati-

vos, isto é, através da crítica do volume e daqualidade das propostas, nessa ordem.

Recentemente, os trabalhos de Doringtêm apontado para um conjunto de fato-res que valorizam (ou minimizam) o papeldos deputados durante o processo decisó-rio (DORING, 1995a, 1995b; DORING;HALLEMBERG, 2004). Trata-se de váriosprocedimentos formais que afetam a progra-mação dos trabalhos parlamentares, a inicia-tiva legislativa, limitam o debate em plená-rio, o tipo de votação final sobre as propostaslegislativas e conferem determinados podereslegislativos aos executivos. Assim, na medidaem que, dadas certas condições regimentais,

o governo detém o monopólio do processolegislativo (HENNING, 1995), ele pode de-cidir como e em que medida o parlamentopode agir e investir na produção legislativa.

 Ao mesmo tempo, o controle da agenda porparte do governo lhe favorece a aprovação demais leis conflituosas (DORING, 2001).

Deve ficar claro que o monopólio daagenda não é garantia  per si   do sucesso le-

gislativo do governo. Vários estudos têmmostrado que há outros fatores a ser conside-rados, como o grau de coesão entre os parla-mentares que apoiam o governo, a distânciaideológica dos atores políticos, em particularda maioria parlamentar com o governo, ograu de fragmentação legislativa, a popula-ridade do governo ou a agenda legislativa doexecutivo, para citar apenas alguns aspectos(BINDER, 1997; BRÄUNINGER; DE-

BUS, 2009; SAIEGH, 2009; TSEBELIS,2001). Nessa linha, para o caso dos EstadosUnidos, uma questão debatida longamentefoi se o governo dividido influencia ou nãoa produção legislativa. Ao texto seminal deMahyew (1991) que sugeria que um go-verno dividido não fazia diferença alguma,seguem-se os trabalhos de Kelly (1993) eEdwards III, Barrett e Peake (1997) que con-

cluem que na situação de governo dividido

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se produzem leis menos importantes. Sejacomo for, o ponto central é o que Tsebelis(2001) apresentou com propriedade: a exis-tência de atores com poder de veto “se corre-laciona com a falta de controle institucionalda agenda pelo governo, e a falta da agendasignifica governos mais fracos e parlamentosmais fortes” (p. 260-261). O autor sugereque as razões dessa relação deveriam ser maisbem aprofundadas. Em parte, mesmo quesuperficialmente, é o que será explorado naseção seguinte.

Centralização ou descentralização?

Como explicar o tipo de organização

dos trabalhos parlamentares

O entendimento das razões que moti-vam o legislador a reformar as regras queregem os trabalhos parlamentares constituio último tema que será abordado neste ar-tigo. Dedicarei a este tópico mais espaçopor uma simples razão: até agora não existeuma teoria referente à mudança das regras

internas como temos, por exemplo, para asinterpretações centradas nas escolhas dossistemas eleitorais. Uma das principais ra-zões é que a maioria dos estudos não adotauma abordagem comparada, limitando-seao estudo do caso. Nesses termos, é claro,a possibilidade de qualquer generalização édecerto limitada. A meu entender, para osfins deste trabalho, é satisfatório distinguirentre dois tipos de explicações que emer-

gem da leitura destes casos quando se anali-sa a lógica da centralização/descentralizaçãodos trabalhos legislativos.

O primeiro tipo se caracteriza porpensar as mudanças nos regimentos apartir de fatores estranhos à arena parla-

mentar. Por falta de melhor terminologia,chamarei esta saída de explicação por fato-res externos . A premissa, aqui, é de que asregras internas mostram-se o produto deum jogo que ocorreu antes e que se reflete,quase que inevitavelmente, no parlamen-to. Esta é a explicação predominante paraas mudanças ocorridas nos parlamentos doséculo XIX. Nessa época o funcionamentodos parlamentos era basicamente funda-do em dois pilares: reconhecimento dosdireitos individuais e institucionalizaçãodas prerrogativas decisórias através do me-canismo da separação dos poderes. Nessaversão, o papel dos parlamentares, isto é, a

liberty of discussion é elevado e transforma-do em valor explícito, revelado. Tratava--se, no fundo, da proteção do direito deexpressão individual que, em um contextopolítico ainda não dominado pelos parti-dos, exaltava, senão mesmo exacerbava, oindividualismo dos parlamentares. No fi-nal do século XIX e início do XX, se assis-te ao processo que já foi apresentado nos

termos da racionalização parlamentar. Ouseja, testemunha-se a passagem da libertyof discussion  para a certainty of business 13.Na nova fase, o governo controla e admi-nistra os trabalhos legislativos através dospartidos no parlamento. Como explicaresta passagem? O que levaria os deputadosa ceder poder?

 A literatura jurídica e histórica do co-meço até meados do século XX explica a

tendência à centralização das funções de-cisórias nas mãos do governo como sendoum fenômeno histórico que, basicamente,aponta para as mudanças na sociedade e,sobretudo, para a necessidade de se inter-vir mais rapidamente no âmbito social e

13 Assim, nas palavras de um autor do começo do século XX que apresentava o caso inglês e suas mudanças ocorridas.

Ver Lees-Smith (1924).

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econômico. Com a afirmação do sistemacapitalista e a aceleração da industrializa-ção, o governo é chamado a legislar so-bre áreas de  policy antes completamenteignoradas ou, até então, secundárias. Sãointervenções na política social, econômi-ca e financeira que cada vez mais são de-legadas ao governo (COLOMBO, 2003;CROMWELL, 1968). É por conta docrescimento da demanda de normas cadavez mais técnicas e da pressão pela agili-zação das decisões que já no século XIXprenunciavam-se reformas direcionadas areduzir o peso decisório do parlamento.Conforme a ideia do governo parlamentar

se desenvolveu e se fortaleceu, ficou cadavez mais evidente que a racionalização dasrelações entre governo e parlamento nãoera apenas um capricho institucional, masum elemento estruturante do novo Estado.

 A principal crítica a este mote explicativoconsiste, porém, na sua fundamentação fun-cionalista, na medida em que se limita a des-crever um processo de mudança social, mas

não se apontam quais mecanismos causaislevaram a determinadas reformas. Além disso,também não se investiga o motivo de termosvariações consistentes entre países quanto aomomento em que as reformas foram adota-das, assim como não se reflete sobre a ação departidos e parlamentares que são os principaisatores afetados pela mudança. Por tudo isso, énecessário buscar interpretações mais precisase com alcance empírico mais adequado. Cla-

ramente, o fator causador mais popular na ci-ência política é o sistema eleitoral. No caso, oque distingue esta abordagem é precisamentea ideia de que a arena parlamentar respondeàs pressões vindas do contexto eleitoral. Umadas passagens mais citadas do texto de May-hew (1974) resume marcadamente essa ideiapara o caso americano: “if a group of plannerssat down and tried to design a pair of Ameri-

can national assemblies with the goal of serv-

ing members’ electoral needs year in and yearout, they would be hard pressed to improveon what exists” (p. 81-82).

Em termos empíricos, o argumento ébem simples e pode ser sintetizado da se-guinte forma:

Quadro 2Efeitos do sistema eleitoral sobre o formato

dos trabalhos parlamentares

Sistema eleitoralcentrado no partido

Sistema eleitoralcentrado no político

Centralização dostrabalhos parlamentares

Descentralização dostrabalhos parlamentares

Formato dosistema partidário

Formato dasregras parlamentares

Fonte: Elaboração do autor.

Nas palavras dos autores que elabora-ram melhor esta tese, “large personal votesgo with fragmentation and decentralization,small personal votes accompany coordina-tion and centralization” (CAIN; FEREJO-HN; FIORINA, 1987, p. 219). Essencial-mente, supõe-se que os políticos têm umúnico grande incentivo durante sua vidapolítica: a reeleição. Por esta razão, o arranjoparlamentar é uma função direta da arenaeleitoral. Afirma-se, portanto, a primazia daarena eleitoral sobre a parlamentar. Parafra-seando Mayhew, se um grupo de planejado-res ou engenheiros institucionais tivesse de

desenhar as regras que organizam a arenaparlamentar, não teria outra escolha senão ade adequar esta última aos incentivos ema-nados da arena eleitoral.

Nessa perspectiva, haveria desequilíbrioinstitucional quando os efeitos presentes naarena eleitoral não se refletissem no âmbitoparlamentar, como ocorrera no caso inglês.De acordo com Cain, Ferejohn e Fiorina

(1987), a maior taxa de dissenso entre os

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parlamentares e o governo geralmente estáassociada ao crescimento da atenção queos primeiros dão a própria constituency 14.Isso quer dizer, segundo os autores, que sãocriadas as condições e geradas as pressões po-líticas necessárias para que o arranjo parla-mentar seja mudado. Afinal, “when electoralrules create incentives for a personal voteand legislative rules deny representativesthe opportunity to establish it, stress arisesin the system, or put it in other terms, therules are in disequilibrium” (p. 217). Comosolucionar, então, o eventual desequilíbrioinstitucional? A resposta, sempre seguindoos autores, é limitada ao contexto parlamen-

tar, já que seria mais difícil adotar mudançasnas regras eleitorais. Assim, “resolution ofthe tension between electoral and legislativerules will more than likely occur in the legis-lative rules, consistent with the trend in bothGreat Britain and the United States towarda weakening of centralized control” (p. 217).

 Aqueles que se debruçam sobre o exa-me da experiência americana discutem as

revisões das regras procedimentais dentro deuma perspectiva micro da análise, isto é, queconsidera o papel dos atores individuais. Ocaso deste Parlamento é interessante porqueas mudanças que as regras implementaramnão foram unidirecionais, tendendo à cen-tralização da agenda nas mãos dos partidos,mas cíclicas. Nos Estados Unidos, o Con-gresso foi caracterizado durante um longoperíodo de tempo por uma organização dos

trabalhos altamente descentralizada. No

final do século XIX e no começo do XX,Thomas Brackett Reed (1839-1902) e Jo-seph Gurney Cannon (1836-1926) foramspeakers na House of Representatives; o pri-meiro, várias vezes, entre 1889 e 1899, o se-gundo entre 1903 e 1911. Ambos adotaramreformas dos regimentos que permitissem amaioria legislativa operar sem a obstruçãode algumas minorias. Histórica foi a decisãode Reed, em 1890, julgando computável navalidação do quorum os deputados presentesque não tinham votado.

 Já na presidência Cannon, a centraliza-ção dos trabalhos era tal que sua leadership eradenominada com o epíteto “czar”. Em geral,

o speaker adquiria fortes poderes, como o dedistribuir os projetos às respectivas comissõese organizar os trabalhos parlamentares. A par-tir da aprovação do Legislative Reorganiza-tion Act de 1946, a condução dos trabalhosna Casa se dava segundo uma lógica descen-tralizadora. Na nova fórmula, eram centraisas comissões permanentes, que gozavam deforte autonomia no processo legislativo, se-

lecionando seus membros de acordo com ointeresse eleitoral de cada um deles. As co-missões serviam como arenas de maximizaçãoeleitoral, ou seja, como centros de agregaçãodas tendências paroquialistas dos próprios de-putados. Nesse sentido, o processo legislativoestava fora do alcance dos partidos e seus líde-res. Esse quadro se manteve ate os anos 1970,quando uma série de reformas adotadas pelopartido democrata redefiniu o arranjo interno

a Câmara dos Deputados. Sobretudo, foram

14 Mais precisamente, Cain, Ferejohn e Fiorina (1987) afirmam que os MPs se serviriam das atividades voltadas parafavorecer sua constituency, de modo a obter certa margem de garantia frente aos candidatos concorrentes. De fato,tais atividades seriam mais frequentes entre os candidatos novos e os que representam distritos não seguros. Outrosestudos confirmam esse ponto de vista. Wood e Norton afirmam (1992) que “explanations appealing to electoralmotivation to account for personal vote changes have better success than those that seek other reasons (ideology,role perceptions)” (p. 237). Entretanto, Norris (1997) conclui que as atividades dos deputados são de relativaimportância para estabelecer um nível significativo de voto pessoal. Ou seja, diferentemente do caso americano,

“casework is as an important public duty of representatives” (p. 47).

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diminuídos os poderes dos presidentes dascomissões, e fortalecida a leadership dentrodo partido de modo a revitalizar a dimensãopartidária e, enfim, tornar o partido mais cen-tral na dinâmica organizacional dos trabalhoscongressuais. Tudo isso considerado, restaentender o motivo que levou à adoção dessasmedidas. Como explicar uma mudança no“textbook Congress”?15

 A hipótese que ganhou mais saliência naliteratura aponta as mudanças ocorridas noâmbito eleitoral como as mais significativas.Em particular, faz-se necessário olhar para asmudanças no tipo de comportamento de voto.Segundo Shepsle (1989), “reapportionments,

along with economic and demographic chan-ge, produce congressional districts that wereneither so purely rural nor so purely urban asthey had been. [...] Member interests began toreflect this heterogeneity. [...] Members thushad to diversify their portfolio of legislative ac-tivities. And this meant less specialization, lessdeference, less reciprocity” (p. 244). O cenárioobjetivo que essa situação acarreta é que agora

os deputados possuem diferentes tipos de cons-tituencies dentro do próprio distrito (FENNO,1978). Em termos de ação política, isso impli-ca a diminuição do custo para o deputado sedesviar da perspectiva majoritária (FIORINA,1974), pois agora se tornava uma necessidadeo investimento em atividades direcionadas afavorecer o próprio eleitorado. Os impactosobjetivos mais evidentes afetaram inicialmenteo Partido Democrata; sobretudo os deputados

eleitos nos distritos do Sul do país. A partir da eleição de 1958, novos deputa-

dos passam a integrar as fileiras dos democratas,com um perfil mais liberal – tendência confir-

mada nas eleições seguintes. Em particular, osdemocratas do Sul, geralmente mais conserva-dores, percebiam que seus distritos estavam setornando mais heterogêneos (ROHDE, 1991;SINCLAIR, 2000). Isso permitiu uma con-vergência entre democratas do Norte e do Sulsobre temas comuns dentro da Câmara. Nocomeço dos anos 1970, os liberais do PartidoDemocrata eram maioria. Enfrentavam, con-tudo, além de um presidente republicano, umaforte minoria e, às vezes, democratas conserva-dores que, nas respectivas comissões, bloquea-vam muitas das iniciativas legislativas. Isso teveum impacto fundamental sobre a decisão derever o sistema organizacional na Câmara dos

Deputados. O fato de o Partido Democrata sermais homogêneo permitiu que fossem adota-das reformas que garantissem melhor o contro-le do partido – por meio das lideranças – sobrea ação dos próprios deputados16.

Como se vê, esta abordagem de certa for-ma reinterpreta a visão individualista propostaoriginariamente por Mayhew e outros (FERE-

 JOHN, 1974; FIORINA 1989; MAYHEW,

1974; RIVERS; FIORINA, 1991; WEIN-GAST; MARSHALL, 1988). A lógica é clara:a homogeneidade interna leva os MPs a con-cordarem com a visão do partido. A inclinaçãopartidária pode derivar, por sua vez, de posi-ções sobre  policy   ou dos incentivos eleitorais.

 A questão é pensar o poder de agenda comopoder da maioria sobre a minoria e da maioriasobre seus membros internos.

Em contraste com tal interpretação, há

quem considere a centralização como uma rea-ção racional – para o governo – aos incentivospresentes na arena eleitoral. No caso, a neces-sidade de garantir eficácia no processo legisla-

15 A expressão é de Shepsle (1989), que segundo ele “the Textbook Congress is a specification of equilibrium practicesand tendencies; the portrait endures as long as the generalities on which it is based hold true” (p. 238).

16 Da mesma forma, a homogeneidade das preferências entre os republicanos explicaria as reformas ocorridas nos

anos 1990, que fortaleceram o poder dos líderes daquele partido (ALDRICH; ROHDE, 2000).

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tivo, sobretudo quando as dinâmicas eleitoraisestimulam a exacerbação da ação individualistados deputados. A título de exemplo, vale re-tomar a conclusão de Mark Hallerberg (2004)quando indagados os procedimentos de vota-ção restritivos nos parlamentos europeus. Deacordo com o autor, “states with a high perso-nal vote were three times more likely to impo-se restrictive procedures on the vote and alsomore likely to have votes clause-by-clause thatwould presumably make logrolls more diffi-cult” (p. 31-32). Nos países da América Latinaas coisas não seriam diferentes. Prevalecendoo personalismo dos políticos, a inclinação doslatinos seria promover presidentes com fortes

poderes proativos, isto é, poderes que podemser usados sem a participação do Congresso demodo a mudar quase que unilateralmente aagenda política (CAREY; SHUGART, 1998).

 Assim, nas palavras de Shugart (1998), se ospolíticos “heavily favour the seeking of per-sonal reputations, they keep parties weak butendow the executive with strong (proactive)legislative powers” (p. 27). A maioria destes au-

tores se prende a um argumento de eficiênciaadministrativo. A resposta que encontramosaqui é institucional: regras formais permitemresolver o problema da alocação ineficiente dosrecursos. Assim, por exemplo, a delegação depoderes fortes ao Ministro das Finanças duran-te o processo orçamentário ou o compromissoem negociar as decisões entre os membros dacoalizão pode reduzir o problema da distri-buição de benefícios a grupos e indivíduos de

forma mais ou menos concentrada, um pro-blema que na literatura aparece geralmentesob a noção de common pool resource problem (HALLERBERG; HAGEN, 1997, p. 1999).

Explanação alternativa para as mudan-ças das regras internas se fixa nos fatoresinternos ao parlamento. Chamarei esta de

“explicação por fatores endógenos”. Umaprimeira razão de mudança das regras épouco explorada pela ciência política eestá vinculada a fenômenos de obstruçãodos trabalhos parlamentares. Há inúmerosexemplos, ainda no século XIX, de mu-dança do regimento em consequência daexigência de limitar fenômenos obstrucio-nistas, isto é, a capacidade de uma minoriaparlamentar paralisar o andamento normaldos trabalhos legislativos. Nesse caso, cla-ramente, a reforma é centralizadora, já quevisa restringir certas prerrogativas individu-ais dos parlamentares.

O exemplo clássico é o da Inglaterra

do século XIX. O fenômeno obstrucionistase manifestou a partir de 1877, quando a“brigada irlandesa” – um pequeno grupode deputados irlandeses – começou a obs-truir o trabalho parlamentar após a rejei-ção do projeto de reforma do home rule 17.

 A estratégia escolhida pelos deputadospara obstruir a dinâmica dos trabalhos foia de debater por horas e propor inúmeras

emendas. Essa tática foi perseguida de for-ma mais ou menos consistente por algunsanos e se intensificou a partir de 1881. Oentão primeiro-ministro Gladstone, apósuma sessão de intensa obstrução, anun-ciava medidas para instaurar um regimeespecial de tramitação das propostas emcaso de urgência, atribuindo ao speaker   opoder de acelerar as discussões (CoercionBill ). A partir de 1882, outras medidas

foram adotadas novamente como respostaa tentativas prolongadas de obstrução dostrabalhos. Realmente, o período foi marca-do pela introdução de resoluções drásticas,“such as the closure and the restrictionsupon both dilatory motions and substan-tive motions for the adjournment of the

17 Este era o projeto que previa a autonomia legislativa da Irlanda com amplas garantias de independência.

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House” (CAMPION, 1958, p. 39)18. Decerta forma, o fenômeno obstrucionistaexigia uma reação mais eficaz e rápida dogoverno e dos partidos parlamentares. Issoexplicaria por que as mudanças regimentaisno Reino Unido, que procederam semprede forma lenta e gradual, segundo uma ló-gica de tipo incremental, se afirmaram deforma mais rápida a partir dos anos 1880.

Exemplos dessa mudança nas regras nãofaltam também no século XX. O caso maisinteressante é certamente o italiano. A Itália,desde 1861, ano da criação do Reino de Itália,até pelo menos os anos 1980 do século XX, eraidentificada frequentemente como caso atípico

entre os países europeus pelo fato dos trabalhosparlamentares ser altamente descentralizados.Entretanto, a partir de 1981 algumas peque-nas mudanças em direção ao questionamentoda centralidade do parlamento foram feitas. Omomento originário dessa mudança ocorreuentre 1979 e começo de 1980, quando parti-dos de oposição prejudicaram continuamenteo andamento dos trabalhos parlamentares da

Câmara dos Deputados. A apresentação deemendas, os contínuos pedidos de uso da pala-vra e as contestações das decisões tomadas pelopresidente eram os instrumentos mais utiliza-dos pelos radicais para obstruir a tramitaçãodas propostas legislativas do governo. Propos-tas de mudança do regimento foram feitas, masesbarravam na reação dos obstrucionistas, queapresentaram cerca de 57 mil emendas com oclaro propósito de bloquear a reforma do regi-

mento. Para o governo, o fato era de extremagravidade, visto que, em matéria de reforma doregimento, não era prevista a possibilidade derecorrer ao voto de confiança.

 A solução adotada para sair do impasse foia interpretação diferente dos poderes da comis-são permanente encarregada de interpretar oregimento da casa, a Giunta per il Regolamen-to. De acordo com o artigo 16 do regimento de1971, “a Giunta  propõe ao plenário as modifi-cações e os acréscimos ao regimento que a ex-periência demonstre ser necessária”. Os maio-res partidos se acordaram estabelecendo queesse órgão interno à Camera dei Deputati erao único titular do poder a propor mudançasao regimento, validando a interpretação de quenão se aplicavam as regras do procedimento le-gislativo ordinário. Deputados e grupos parla-mentares podiam apresentar emendas cuja ela-

boração, porém, era de restrita competência daGiunta. Ao plenário, na prática, restava apenasa discussão da proposta da Giunta ou a votaçãodas emendas de deputados e dos grupos que,porém, haviam sido organizadas pela mesmaGiunta por linhas gerais. Aprovada a interpre-tação ao artigo 16, a Câmara conseguiu passaralgumas propostas de mudança do regimentomais centralizadoras como limites ao uso da

palavra, a unificação da fase da discussão dosartigos dos projetos com a das emendas, esta-belecendo, ao mesmo tempo, limites de tem-po para as intervenções dos deputados e dosgrupos e, também, a atribuição ao presidenteda Câmara da programação dos trabalhos par-lamentares em caso de ausência de acordo nocolégio de lideres.

Como ficou claro, uma conclusão a respei-to das causas que movem o legislador a refor-

mar o regimento é ainda cedo para ser avança-da. Na medida em que se torna necessária umareflexão finalizada em tal direção, gostaria deapontar em uma possível direção da pesquisa.

18 Entre 1882 e 1894, o obstrucionismo se perpetuou quase sem interrupção. O quadro piorou em 1885, quandoos irlandeses obtiveram um bom desempenho nas eleições daquele ano. O instrumento da closure  se revelou in-suficiente para reagir ao obstrucionismo da brigada irlandesa já a partir de 1887. Assim, foram adotadas outrasmedidas, entre as quais vale citar a closure by comportment, mais conhecida como guillotine , prevendo o fechamento

da discussão e imediata votação sobre um projeto de lei.

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No caso, ao invés de se prender a um ou outrotipo de explicação (exógena ou endógena), aopção de encontrar ao mesmo tempo elemen-tos dos dois tipos creio ser a melhor estratégia.

 A exemplo disso vale o trabalho de Cox sobrea Inglaterra do século XIX. Te efficient secret ,publicado em 1989, descreve a perda de po-der dos deputados na House of Commons emfunção da reforma eleitoral de 1832. A reformaeleitoral “increased demand by MPs for legisla-tive time was an electoral phenomenon, drivenchiefly by the growth of the constituencies” (p.59). As evidências encontradas pelo autor vãode encontro a esta visão. Todavia, Cox consi-dera outros fatores, de clara conotação endó-

gena, para explicar as causas das mudançasprocedimentais: 1) força do Cabinet , já elevadaà época das mudanças, 2) grupo de parlamen-tares pró-reforma (ex-ministros ou que haviamintegrado algum ministério no passado); 3)dificuldade dos parlamentares de se organizarde forma coesa contra as mudanças; 4) o fatode as reformas serem incrementais e, portan-to, percebidas como marginais pelos próprios

legisladores. Interessante que Cox não exploraesses pontos, nem se preocupa em apresentarevidências empíricas em tal sentido. Resta asugestão analítica de que a compreensão dasmudanças deve passar pelos dois tipos de mu-danças, as endógenas e as exógenas.

Conclusão

Este texto procurou sintetizar as princi-

pais contribuições da literatura sobre o temada tomada da decisão coletiva dentro das legis-laturas. Minha preocupação não foi detalharcasos, e sim mostrar a evolução das pesquisassobre as regras que regem os trabalhos legislati-vos, levantando, assim, questionamentos para

futuras pesquisas. Em síntese, é possível afir-mar que há consenso em torno da ideia de queé o conjunto das regras internas aos parlamen-tos que nos permite entender como os atoresatuam e tomam decisões coletivas. Os esforçosrecentes vão nessa direção quando, por exem-plo, tentam analisar de forma aprofundada ecomparada o poder de agenda do governo.Ou seja, o foco em torno da importância dasregras como variáveis independentes é consoli-dado e bem desenvolvido na literatura. Quan-do, porém, passa-se a examinar as tentativasde identificação dos elementos que explicamas mudanças nas regras internas, é evidente aausência de similar esforço analítico. Falta, é

o caso de dizer, uma teoria da mudança ins-titucional que, por além do caso específico,geralmente limitado ao congresso americanoe ao parlamento inglês, possa refletir sobre ascausas que levam os legisladores a mudar asregras que racionalizam a atividade de toma-da de decisão nos parlamentos. Vê-se o casobrasileiro. Temos uma noção consolidada emtorno da importância das regras regimentais

como fatores explicativos do comportamentoparlamentar e, em última instância, da for-ça da coalizão governamental no Congresso(FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999). Entre-tanto, pouco sabemos a respeito da origem eevolução dessas normas19. No fundo, a bementender, o instrumento legislativo da urgên-cia já estava previsto nos regimentos republica-nos. Essa constatação, gostaria de dizer, sugereum melhor aprofundamento do tema relativo

à construção e introdução das regras. O pro-blema da tomada de decisão é aqui secundá-rio. Entretanto, creio que o entendimento so-bre o tema será completo apenas após termosuma resposta no mérito de como o legisladordesenha as instituições formais.

19 Vale observar a exceção dos estudos sobre a Constituinte de 1988. Para a análise aprofundada das mudanças das

regras procedimentais na constituinte ver Souza (2003) e Gomes (2006).

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Resumo

Teorias e interpretações recentes sobre o processo decisório nos parlamentos contemporâneos

Este artigo resenha as principais abordagens sobre o funcionamento dos parlamentos contemporâneos, ressaltando aquestão da organização interna de seus trabalhos legislativos. Partindo de uma breve reflexão sobre o valor da regra demaioria como garantia de decisão parlamentar, passo a tratar da atribuição do poder decisório a determinados atoresinstitucionais, inclusive focando as consequências da centralização/descentralização dos trabalhos sobre a atividadelegislativa. Por último, reflito sobre o tema das causas que levaram o legislador a determinar uma organização maisou menos centralizada dos trabalhos parlamentares. Veremos que o tópico, pouco explorado no Brasil e em termoscomparados, ainda demanda pesquisas, sobretudo acerca da mudança institucional dos regimentos dos parlamentoscontemporâneos.

Palavras-Chave: Congresso Nacional; Regimento Interno; Mudança Institucional; Poder Legislativo; RelaçãoExecutivo-Legislativo.

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Abstract

Recent theories and interpretations on the decision-making process in contemporary parliaments 

The article reviews the main approaches on the functioning of contemporary parliaments, highlighting the issue ofthe internal organization of their legislative works. Starting with a brief reflection on the value of the majority ruleas a guarantee of parliamentary decision, it deals with the question of the allocation of decision-making powers to

certain institutional agents, focusing the consequences of the centralization/decentralization of works for the legislativeactivity. Finally, the article reflects about the reasons causing that the legislator determine a more or less centralizedorganization of parliamentary works. The article concludes that, even little explored in Brazil and in comparativeterms, this is a topic which demands research attention, especially about the institutional change in contemporaryparliament’s regulations.

Keywords: National Congress; Internal Regulations; Institutional Change; Legislative Power; Executive-LegislativeRelationship.

Résumé

Théories et interprétations récentes sur le processus décisionnel au sein des parlements contemporains 

Cet article résume les principales approches sur le fonctionnement des parlements contemporains, mettant en avantla question de l’organisation interne de leurs travaux législatifs. A partir d’une brève réflexion sur la valeur de la règlede la majorité en tant que garantie de décision parlementaire, l’article aborde l’attribution du pouvoir décisionnel àcertains acteurs institutionnels, en se concentrant y compris sur les conséquences de la centralisation/décentralisationdes travaux sur l’activité législative. Finalement, nous proposons une réflexion sur le thème des causes qui ont conduitle législateur à déterminer une organisation plus ou moins centralisée des travaux parlementaires. Nous remarqueronsque cette question, encore peu développée au Brésil, et suppose, en termes comparés, davantage de recherches, notam-ment à propos du changement institutionnel des régiments des parlements contemporains.

Mots-clés: Congrès National; Règlement interne; Changement institutionnel; Pouvoir législatif; Relation entre les

pouvoirs exécutif et législatif.

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45BIB, São Paulo, n. 77, 1º semestre de 2014 (publicada em dezembro de 2015), pp. 45-68.

A Abordagem do Partido Network no Estudo de Partidos Políticos

Camila Feix Vidal 

1. Introdução

 A literatura norte-americana recentevem produzindo trabalhos sobre uma su-posta polarização partidária no país (PIER-SON; HACKER, 2005; STONECASH,

2010; MANN; ORNSTEIN, 2012; LE-VENDUSKY, 2009; BREWER; STONE-CASH, 2009; MCCARTY; POOLE; RO-SENTHAL, 2006; FIORINA, 2005, 2014;SINCLAIR, 2006; LAYMAN, 2001; BLA-CK; BLACK, 2007), atribuindo ao PartidoDemocrata uma ideologia crescentementeliberal, e ao Partido Republicano, ao con-trário, uma ideologia amplamente conser-

vadora 1

. A maioria dos estudos que versamsobre o assunto centra-se em análises feitasa partir de políticas defendidas pelos par-tidos (caracterizando-se justamente poruma oposição entre eles) e pela comparaçãoentre as votações e proposições feitas porlíderes partidários, seja no Congresso, noExecutivo ou no processo de candidatura.Os dados analisados nesses estudos apon-tam para uma mesma conclusão, qual seja:os partidos políticos parecem estar se dis-tanciando do centro do espectro político aodefender políticas de cunho mais extremis-tas, tanto no âmbito liberal (pelo Partido

Democrata), como no âmbito conservador(pelo Partido Republicano).

 A crescente polarização partidária,dessa maneira, se atribuiria, na sua base,a uma “homogeneização” ideológica aque Fiorina (2014) chama de “sorting ”.

Ou seja, o Partido Republicano estariaexpondo políticas de cunho consisten-temente conservador em todas as esferas(social, econômica e externa, por exem-plo), refletindo uma homogeneidade ide-ológica típica conservadora. Da mesmaforma, o Partido Democrata, ao exporposicionamentos políticos típicos liberaisem todas as esferas de atuação, estaria re-

fletindo uma homogeneidade ideológicatipicamente liberal. Ao contrário de con- jugar em um mesmo partido duas verten-tes ideológicas distintas, como era o casodesses partidos na maior parte do século

 XX, o que se nota atualmente seria umaseparação partidária advinda da ideologia.

 Assim, o conservadorismo e o liberalismo,que antes encontravam espaço (e dividiamesse espaço) em ambos os partidos nos Es-tados Unidos, hoje são sinônimos de umúnico partido: o Partido Republicano é opartido “conservador”, enquanto o Demo-crata é o partido “liberal”.

1 O termo “liberal” no contexto norte-americano refere-se à defesa de uma maior ingerência do governo na im-posição de políticas de bem-estar social na esfera econômica e, ao contrário, o distanciamento do governo nasquestões sociais e de ordem “privada”. O liberalismo, assim, posiciona-se de maneira oposta ao “conservadorismo”

que defende uma menor atuação do Estado na área econômica e uma maior ingerência na área social “privada”.

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Essa polarização partidária parece aindaestar dissociada com o público eleitor e coma sociedade em geral. Para Masket (2012):“Democrats as often as Republicans, takepositions that are more partisan than thevoters they purport to represent […]. Ex-treme partisan politics – total war – […] isthe norm in the U.S. Congress”. De fato,estudos vêm demonstrando uma crescentelacuna entre as políticas defendidas pelo par-tidos e aquelas da sociedade norte-americana(FIORINA, 1999, 2005, 2014; FIORINA;

 ABRAMS, 2008). Contrário à proposiçãode uma divisão “cultural” norte-americana,esses estudos demonstram empiricamente

que a maioria da população segue manten-do posicionamentos políticos relativamentemoderados e centrais – os mesmos de trêsdécadas atrás (FIORINA, 2005, 2014). Aguerra ideológica, assim, estaria presente naarena partidária e nos seus grupos de apoio,mas não pode ser entendida como reflexo deuma polarização na sociedade.

 Além do seu caráter pouco democráti-

co (se levarmos em conta a diferença entreo posicionamento dos partidos e os da so-ciedade), a polarização partidária apresentaainda um segundo paradoxo: ao invés de an-gariar votos com um posicionamento maisextremado, o que explicaria o posiciona-mento radicalizado pelo viés da abordagemracionalista, há perda de votos. Ou seja, es-tudos mostram que, quanto mais extrema-do o registro de votos de um congressista,

mais chances de sofrer derrota nas próximaseleições (CANES-WRONE; BRADY; CO-GAN, 2002). O posicionamento extrema-do de líderes partidários poderia, ainda, serentendido como uma tentativa racional dealiar-se com a base eleitoral e distrital. Deacordo com Ansolabehere, Snyder e Stewart(2001), no entanto, líderes partidários econgressistas, em específico, demonstram,

crescentemente, um distanciamento entre a

agenda política por eles defendida e aquelado eleitorado médio dos seus distritos. As-sim, ao que tudo indica, os líderes partidá-rios estariam intencionalmente implemen-tando e defendendo políticas contrárias amaioria dos seus constituintes e diminuindosuas chances de sucesso eleitoral.

O crescente distanciamento entre o Parti-do Republicano e o Partido Democrata, bemcomo entre esses partidos e a sociedade emgeral é um fenômeno singular (além de con-temporâneo) na história dos Estados Unidose que abre espaço para questionamentos naacademia científica. Desafia, por exemplo, anoção racionalista downsiana de que partidos

tenderiam a mover-se em direção ao centro doespectro político e concentrar suas propostas eprogramas partidários nos anseios da maioriado público eleitor. Partidos polarizados e umaradicalização ideológica autônoma questio-nam não só abordagens partidárias vigentes,no sentido de estratégias e objetivos do parti-do (já que uma maior radicalização ideológicanão é sinônimo de maior número de votos),

como significam também questionamentos arespeito da própria relação democracia versus  partidos, que tipicamente enfatiza o papel po-sitivo dos partidos para o funcionamento dademocracia (SCHATTSCHNEIDER, 1942;KEY, 1958).

 Assim, esse fenômeno contemporâneoestadunidense demonstra mais que uma meraconjuntura doméstica: expõe mesmo os limi-tes de determinadas abordagens e conceitos

bastante difundidos na academia científicaatualmente. E é justamente por causa da insu-ficiência explicativa e analítica de abordagenstradicionais, como o Neoinstitucionalismo daEscolha Racional (DOWNS, 1999; BLACK,1948; ALDRICH; 1995), que novos enfo-ques ascendem na academia norte-americana– entre eles, a abordagem do partido network( party network ), também entendido como

partido expandido (expanded party ).

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Resgatando a teoria dos grupos (BEN-TLEY, 1908; HERRING, 1968; TRUMAN,1968; KEY, 1958), o partido network propõeuma nova abordagem no que diz respeito àcomposição, à organização e às dinâmicaspartidárias e contribui para uma melhor com-preensão do fenômeno atual de polarizaçãopartidária nos Estados Unidos. De maneirasucinta, essa abordagem redefine o significa-do de partido ao postulá-lo de maneira maisabrangente e holística – uma aglomeração dediferentes grupos, dentre os quais fazem partelíderes partidários, grupos de interesse, ati-vistas, entre outros. Tendo em vista o caráteraltamente descentralizado, não hierárquico e

crescentemente democratizado, os partidosnos Estados Unidos passam a ser tratados deforma a abarcar no seu conjunto não só as li-deranças partidárias, mas a “base” do partido– afinal, é ela que está presente nas primáriase nas convenções nacionais (responsáveis, porexemplo, pela construção das plataformas na-cionais, uma espécie de retrato ideológico dopartido em um dado momento).

Não há como negar a importância de es-tudos mais aprofundados a respeito desse fe-nômeno norte-americano que questiona des-de abordagens teóricas amplamente utilizadase até noções de representação. Talvez pelaprimeira vez nos deparamos com um cenáriopolítico no qual ideologia, partidos e ativistasestão intimamente conectados. E talvez tam-bém pela primeira vez somos obrigados a bus-car explicações que vão além da estratégia ra-

cional e da representação do eleitor mediano. Assim, a abordagem do partido network

traz consigo importantes questionamentos,problemáticas e objetos de estudo acerca dospartidos políticos que, até então, não haviamsido explorados ou dimensionados em sua to-

talidade. Essa abordagem permite, por exem-plo, um entendimento mais aprofundado dasvárias dinâmicas que compõem os partidos.

 Aspectos quase negligenciados no estudo departidos políticos, tal como ideologia, posi-cionamento político, rede de relacionamentose agenda partidária, passam a ganhar espaçonessa abordagem. O partido network apre-senta, ainda, uma nova concepção da relaçãoentre determinados setores da sociedade e osistema político, além de uma interpretaçãobastante pessimista sobre o elo entre partidose democracia. Questiona pilares metodológi-cos e teóricos até então bastante enraizados nadisciplina ao apresentar uma nova concepção

de partido político que se utiliza de variadosmétodos de análise e permite o entendimen-to mais aprofundado acerca de aspectos quecostumavam ser relativamente negligenciadosnos estudos partidários. A utilização dessaabordagem, ao fim, implica em novos rumose campos de estudo na Ciência Política, rede-finindo mesmo o debate acadêmico.

O trabalho aqui proposto, assim, busca

expor essa nova abordagem no estudo de par-tidos políticos, atentando para a sua base teó-rica e seus postulados. Faz-se inicialmente umadigressão sobre as raízes teóricas do partidonetwork – a teoria dos grupos, e, em seguida,uma análise acerca dos seus principais postula-dos e contribuições para os estudos partidários.

2. A teoria dos grupos

 A teoria dos grupos está inserida naabordagem pluralista da Ciência Política,e, portanto, comportamentalista. Apesar dotermo “grupo” fazer parte dos relatos maisantigos de política norte-americana 2, uma“teoria dos grupos” é relativamente recente.

2 James Madison e Alexander Hamilton já atentavam para o “poder destrutivo” de grupos e facções no recém-

-formado governo norte-americano (THE FEDERALIST PAPERS, 1787-1788).

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 A interpretação da política através do estu-do de grupos tem início na Ciência Políticanorte-americana com a abordagem teóricade Bentley em 1908. Posteriormente, Her-ring (1968), Truman (1968), Key (1958),entre outros, se utilizariam dessa teoria emabordagens mais empíricas, relacionandogrupos de interesse com a política desen-volvida nos Estados Unidos na primeirametade do século XX. De maneira geral, opostulado da teoria dos grupos resume-seassim: toda a atividade política está fundadaem grupos que buscam defender seus inte-resses em contraposição a outros grupos deinteresses divergentes.

Iniciando uma nova vertente na Ciên-cia Política, Bentley (1908) demonstra con-tinuamente uma preocupação em estudar apolítica por meio de suas “forças vivas” (o“material bruto” de estudo na Ciência Polí-tica) e que podem ser resumidas em relaçõese atividades que ocorrem na sociedade, oumais precisamente, social activities . Tantoas instituições como os indivíduos só têm

sentido se estudados a partir da sociedade.O indivíduo é um ser social. Não existeem isolamento. Tampouco as instituiçõespolíticas e as ideologias; ao contrário, são aprópria sociedade em ação. O estudo sobrefenômenos políticos, portanto, deve focar,primordialmente, nas “atividades sociais”como variável explicativa. É a partir das ati-vidades desenvolvidas no âmbito social queos fenômenos políticos podem ser explica-

dos. Assim, “The ‘relation’, i.e., the action,is the given phenomenon, the raw material;the action of men with or upon each other”(BENTLEY, 1908, p. 176).

Conforme as atividades sociais ocor-rem, grupos se formam e vão distinguir-sedos outros justamente pela atividade desem-penhada. A sociedade nada mais é do queuma multitude de grupos que a compõe.

Grupo, nesse sentido, não é sinônimo de um

agregado de indivíduos selecionados por al-gum recorte físico ou geográfico, mas, sim,uma mass activity . Por ser uma atividade em“massa”, nada impede que o indivíduo façaparte de diferentes grupos ao mesmo tem-po. Visivelmente, a preocupação de Bentleyestá na “atividade”. O grupo é isso: um aglo-merado de indivíduos agindo. “It is first,last, and always activity, action, somethingdoing” (Ibidem, p. 176). O material de es-tudo de um cientista político, nesse sentido,está nessas atividades. Estas, no entanto, nãoexistem sozinhas. São resultados de gruposde indivíduos que, ao se relacionarem, pro-duzem certas ações – seja na fala, na escrita,

no discurso, na proposição de uma lei, entreoutros.

Para Bentley, não existe grupo seminteresse. “Interesse” e “grupo” podem serusados de maneira equivalente, já que umnão existe sem o outro: “There exists onlythe one thing, that is, so many men boundtogether in or along the path of a certainactivity” (Ibidem, p. 212). Essa atividade,

no entanto, tem um interesse. A própriadireção pela qual o grupo se move tem uminteresse. O “interesse”, entretanto, nãodeve ser restringido a aspectos econômicos.Deve ser abrangente e perceber todos os as-pectos da vida social. Por fim, não se podeentender os interesses de grupos salvo emcomparação ou em relação a outros grupos.O grupo não existe em isolamento, nemtampouco o interesse que o caracteriza. To-

dos os grupos estão inseridos em relaçõessociais, com interesses e atividades que sópodem ser compreendidos se levados emconta o meio social em que estão inseridos,ou seja, os outros grupos.

 Assim como na sociedade, a políti-ca também pode ser percebida como umcomplexo onde vários grupos atuam, se re-lacionam e possuem diferentes interesses.

Executivo, legislativo, judiciário, partidos e

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opinião pública são grupos. Cada um delesrepresenta, por sua vez, um ou mais gruposque se constrangem e se pressionam mutu-amente. Assim, a política é sempre um fe-nômeno de “pressão”. A pressão exercidapor diferentes grupos é constante e indicaos avanços e recuos entre eles. Inclui todasas formas de influência de um grupo contrao outro, desde uma luta física ou discursosabstratos referentes à moralidade (Ibidem, p.258-259). Assim,

all phenomena of government arc phenomena ofgroups pressing one another, forming one another,and pushing out new groups and group represen-tatives (the organs or agencies of government) to

mediate the adjustments. It is only as we isolatethese group activities, determine their represen-tative values, and get the whole process stated interms of them, that we approach to a satisfactoryknowledge of government (Ibidem, p. 269).

Para se entender determinados fenô-menos políticos, portanto, é necessária acompreensão dos interesses (na forma deatividades) de grupos que compõem esses

fenômenos ou os influenciam. O nível deanálise a que Bentley pretende seguir, então,é o menor possível de observação, qual seja,as atividades desenvolvidas por indivíduosque fazem parte de determinados grupos. Ointeresse nada mais é do que a atividade dogrupo propriamente dita. Assim, não existeo fenômeno em separado do grupo e tam-pouco pode ser observado salvo nas ativida-des que os membros desempenham.

 A contribuição de Bentley para a Ciên-cia Política não deve ser menosprezada. Emum momento no qual o foco dos estudosconcentrava-se em aspectos formais do go-verno, tal como o desenho institucional ea engenharia constitucional, Bentley atentapara a importância de se entender a políticatal como a observamos. E, para ele, o que seobserva são grupos com interesses diferentes

que interagem e se influenciam mutuamen-

te. A partir desse trabalho, a abordagem dosgrupos entra na Ciência Política e seria, maistarde, retomada e expandida por outros au-tores, em especial por David Truman.

Truman (1968) apropria-se de concei-tos básicos sociológicos desenvolvidos porBentley e utiliza-os de forma mais direcio-nada ao estudo da política, tendo como baseexemplos empíricos fundamentados nas as-sociações norte-americanas. Assim como emBentley, a vertente sociológica está presentena sua análise: o homem é visto como umser social, presente sempre em associaçõescom outros homens. Além disso, atenta queas dinâmicas dos grupos estudados (em sua

maioria, associações) não demonstram seressencialmente diferentes por serem essesgrupos rotulados como “políticos”. Tantoos “grupos políticos” como os “grupos so-ciais” apresentam os mesmos padrões e re-gularidades, ou seja, um grupo que atua napolítica tem as mesmas origens, estruturas eoperações que um grupo que atua no âmbitosocial, estritamente. No entanto, grupos de

interesse que atuam na política se diferen-ciam dos outros justamente por sua relaçãoe conexões com as instituições formais dogoverno (TRUMAN, 1968, p. ix).

Um grupo não significa, nesse en-foque, um aglomerado físico de pessoas,tampouco pode ser definido como umamassa de indivíduos que possuem a mesmacaracterística. A influência que uma famí-lia exerce nos seus membros, produzindo

determinado tipo de comportamento, nãoestá vinculada às características físicas se-melhantes ou ao sobrenome idêntico quepossuem – a sua influência é resultadodas relações frequentes que os indivíduosmantêm uns com os outros. Assim, umgrupo é um aglomerado de indivíduos quecompartilham de uma mesma característi-ca mas que interagem continuamente. O

fator principal, no entanto, é a interação

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regular, e não a característica semelhan-te: “These interactions, or relationships,because they have a certain character andfrequency, give the group its moldingand guiding powers. In fact, they are thegroup, and it is in this sense that the termwill be used” (Ibidem, p. 24).

 A partir da interação nos grupos for-mam-se normas e atitudes compartilhadaspor todos. Essas normas e atitudes comunsresultam em certos “padrões de referência”de interpretação e avaliação do mundo aoseu redor. Em um determinado momen-to, um grupo pode, por conta dos padrõesde referência desenvolvidos, demonstrar

atitudes compartilhadas com relação a al-guma necessidade ou desejo em uma de-terminada situação – geralmente traduzidaem reivindicações sobre outros grupos dasociedade. Nesse caso, o grupo se tornaum grupo de interesse. Grupo de interesse,assim, refere-se a qualquer grupo que, “onthe basis of one or more shared attitudes,makes certain claims upon other groups in

the society for the establishment, mainte-nance, or enhancement of forms of beha-vior that are implied by the shared atti-tudes” (Ibidem, p. 33-34). O “interesse”,nesse sentido, refere-se às próprias atitudescompartilhadas pelos membros. Qualquergrupo que faça reivindicações a outros nasociedade pode ser considerado, portanto,um grupo de interesse. Quando essas rei-vindicações são feitas, entretanto, direta-

mente às instituições do governo, o grupopassa a ser considerado um grupo de inte-resse “político” .

Os grupos de interesse político obje-tivam acesso na política para implementarsuas demandas. Existem inúmeros pon-tos de acesso para um grupo de interesse,o partido político é apenas um deles, ain-da que um dos mais importantes (Ibidem,

p. 265). São vários os fatores que afetam o

acesso de um grupo de interesse no partido– especialidade do grupo em um determi-nado assunto, conjunturas externas que de-mandem a atenção de um partido para essegrupo, os recursos financeiros que o grupopode trazer, o número de votantes do gru-po, entre outros (Ibidem, p. 265). Uma vezcom acesso, o grupo pode vir a influenciarno partido de várias maneiras, seja direta-mente com membros do legislativo na pro-posição ou na rejeição de alguma lei, seja noexecutivo, caso o partido em questão sejao representante no momento. No entanto,os grupos buscam ainda influenciar em vá-rios estágios da eleição, seja ela nacional ou

local. Tendem a influenciar, portanto, nasnominações, declarações de política (plata-formas) e campanhas eleitorais de um oumais partidos (Ibidem, p. 319). Os gruposde interesse, nesse sentido, são parte intrín-seca e permanente da política. Mais especi-ficamente, as relações que se travam entregrupos institucionais e grupos de interessesão, assim, o “weft of the fabric” (Ibidem, p.

46) no que diz respeito ao sistema político. A obra desenvolvida por Key (1958)também compartilha da abordagem inicia-da por Bentley (1908), no entanto, traz as-pectos institucionais importantes na relaçãoentre partidos políticos e grupos de interesse(também chamados de grupos de pressão).Sua análise difere dos autores supracitadospor ser menos teórica e mais empírica, bus-cando dados e estimativas que corroboram

para o seu argumento. Ainda que se utilizedas ferramentas dadas por autores comoBentley (percebe o grupo como uma unida-de de análise e como responsável por deter-minar normas e padrões de comportamento;a sociedade como um sistema composto derelações complexas desenvolvidas em grupos;e a política como o resultado de interaçõesentre indivíduos e suas coletividades), o foco

de Key está nos aspectos institucionais dos

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grupos, sejam eles os de interesse ou os parti-dos políticos. Assim, analisa instituições, emespecial as regras e a estrutura organizacionaldos partidos, bem como exemplos típicosde grupos de interesse, tendo em vista suasemergências, lideranças, interesses, táticas deinfluência e relação com a política. O objeti-vo de Key, assim, está no estudo da políticanorte-americana através de uma análise doaparato institucional que dela faz parte: par-tidos, grupos de pressão, processos eleitoraise poderes representativos.

O partido, como principal “instrumen-to” da democracia (KEY, 1958, p. 22), é ocerne que abriga todos os outros aparatos

institucionais. Relacionando partidos e gru-pos de pressão, Key argumenta que umacaracterística intrínseca da política norte--americana está no fato de que associaçõese organizações privadas tendem a dominaros partidos políticos e forçar uma determi-nada agenda política, de interesse próprio(Ibidem, p. 23). Geralmente, esses gruposnão procuram responsabilidades diretamen-

te para si na condução da política. Preferem,assim, influenciar na nomeação e na eleiçãode um candidato de um ou mais partidosdo que indicar um candidato próprio. Po-dem utilizar-se de lobby ou de atividades depropaganda e, ainda que busquem ostentar ostatus de non-political , estão engajados dire-tamente na política (Ibidem, p. 79).

O sistema político, assim, é extrema-mente dinâmico e é essa dinâmica que

causa a emergência de certos grupos e oenfraquecimento de outros. O percursoque ocorre na sociedade para que um gru-po de interesse emerja é geralmente o mes-mo: inicialmente um descontentamentode determinado setor (não necessariamen-te descontentamento econômico) que re-sulta em agitação política. Essa agitaçãotoma forma de um movimento e, poste-

riormente, já com uma liderança clara,

torna-se um grupo. As demandas do setordescontente, sob a liderança desse grupo,resultam nas demandas por determinadasações governamentais. Demonstrando si-metria com Truman (1968), o que defineum grupo na concepção de Key, portanto,são as atitudes compartilhadas entre indi-víduos diante de um determinado fator.Essas atitudes, ao fim, são o que consti-tuem o “interesse” do grupo: “Shared at-titudes are the building blocks of groups.Those attitudes may, to be sure, be aboutsome objective economic concern but theymay also rest on beliefs, aspirations, me-mories, prejudices, generosities, hatreds”

(KEY, 1958, p. 124).Para Key, ambos os grupos de pressão

e os partidos políticos são grupos infor-mais e organizações extraconstitucionaisnos quais o sistema democrático norte--americano apoia seus alicerces principais.Estão, ainda, intimamente interligados.Em um extremo situam-se os grupos de in-teresse que preferem trabalhar diretamente

com o legislativo ou o executivo, deixandoem segundo plano a relação direta com ospartidos. No outro extremo, estão os gru-pos de interesse que operam “in the closestcommunion” com um ou outro partidopolítico (Ibidem, p. 171) e que, mesclan-do os papéis com esse último, assumem ocontrole partidário. Nesse caso, o partidoé tão somente uma “máscara” para o grupode pressão (Ibidem).

 A obra de Herring (1968), por fim,compartilha de certos postulados típicos dateoria dos grupos: entende o indivíduo comoum ser social presente em diversos grupos,dentro dos quais as suas visões de mundoe interesses são moldados, e percebe a so-ciedade e a própria política como espaçoscompostos por diversos grupos que se dife-renciam por conta dos seus interesses e ob-

 jetivos próprios. Distinguem-se, no entanto,

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em certos aspectos, justamente aqueles nosquais a abordagem do partido network atu-almente se debruça.

Em primeiro lugar, Herring aponta parao papel que grupos formais (associações e or-ganizações) desempenham na condução dapolítica norte-americana, seja no Legislativo,Executivo, ou Judiciário. Trazendo listagensde grupos nacionais cuja sede situa-se em

 Washington, Herring atenta para a relaçãode simbiose entre grupos e governo, e con-clui que não se pode entender a conduçãoda política sem levar em conta os grupos quedela fazem parte.

Os partidos políticos, nesse sentido,

longe de serem entidades autônomas nacondução das suas políticas e escolha de can-didatos, são arcabouços institucionais queaceitam e organizam a coalizão de diferentesgrupos e dos seus respectivos interesses, in-clusive servindo de base para a candidaturade membros desses mesmos grupos. Serve,assim, como uma força organizadora que ge-rencia as suas políticas e os seus candidatos

em função dos grupos que ali pressioname operam, buscando como recompensa, noentanto, um maior número de votos. Assim,argumenta:

The political party in the past has been the re-cognized agency through which the voter actedto have the government adopt one polity or re-

 ject another. It is still the chief agency, but itis not the organization that initiates programsor creates policies. It is the mere broker thataccepts the planks of organized interests thatpromise to insure the most votes (HERRING,1929, p. 46).

Em segundo lugar, e em decorrên-cia dessa primeira característica exposta,a governança através de partidos políticossignifica o controle do governo por dife-rentes e alternados grupos (Ibidem, p. 55).Considerando-se que cada grupo possui um

interesse próprio (Bentley, 1908) e, portan-to, não necessariamente reflete o interesseda maior parcela da população (o “bem co-mum”), o sistema político que daí decorrenão se apresenta necessariamente como omais democrático possível. O governo re-presentativo, nesse sentido, mostra-se comoum governo que representa alguns setoresda sociedade, geralmente os grupos que alioperam em simbiose com os braços do go-verno e com as suas organizações extracons-titucionais, como os partidos políticos. Ocongressista, o presidente e partido políticode maneira geral, não são, portanto, os re-presentantes da maior parcela da sociedade

e do “bem comum”, mas de determinadosgrupos e dos seus interesses.

 A teoria dos grupos, assim, ao proporuma análise mais sociológica do estudoda política, atentando para as relações eatividades desempenhadas por indivíduosimersos em grupos com interesses pró-prios, trouxe para a academia uma pre-ocupação com os aspectos nem sempre

tão visíveis que caracterizam essa área deestudos. Nessa abordagem, a conduçãoda política é entendida de maneira maisabrangente, incluindo atores outros quenão meramente os líderes partidários, can-didatos eleitos ou public office holders, pos-tulado que é resgatado atualmente e queserve como base teórica da abordagem dopartido expandido.

3. O partido network (ou partidoexpandido)

 A teoria dos grupos teve um apogeu re-lativamente curto na Ciência Política norte--americana – a partir de fins da década de1960, estudos com esse viés passariam a sermínimos. Recentemente, entretanto, emfunção de insuficiências analíticas e empíri-

cas dos enfoques utilizados no estudo de par-

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tidos, em especial a respeito da dificuldadedas abordagens vigentes em explicar a cres-cente polarização partidária e distanciamen-to em relação ao eleitor “mediano” (FIORI-NA, 1999), a teoria dos grupos foi resgatadaatravés da abordagem recente do partidonetwork (ou partido expandido). Com umviés mais científico e empírico que a teoriados grupos, essa abordagem tem início como estudo de Schwartz (1990) sobre a compo-sição e organização do Partido Republicanoa nível estadual.

O partido network percebe o partidode maneira abrangente e holística, fazen-do parte dele atores outros que não só os

office holders . Nessa abordagem, o partidoé composto tanto por insiders   – líderespartidários e políticos profissionais, porexemplo – como por outsiders   (ou intense

 policy demanders ) – grupos de interesse,ativistas, think tanks , mídia, entre outros.

 Assim, “groups of organized policy de-manders are the basic units of our theoryof parties” (BAWN et al., 2012, p. 575).

E é justamente esse ponto o que diferen-cia essa abordagem da teoria dos gruposanteriormente difundida. Ao contrário dopostulado desenvolvido por Bentley e Tru-man, os “grupos de interesse” não devemser vistos em separado do partido. Como

 já atentavam, timidamente, Key e Herring,esses grupos, por vezes, se mesclam com ospartidos de tal forma que uma distinçãoentre eles seria impossível.

 A abordagem do partido expandidopossui como alicerces os mesmos postuladosdesenvolvidos na teoria dos grupos: perce-be o indivíduo como um ser social, imersoem redes de relações, essas relações tendema formar grupos baseados em determinadosinteresses e características, esses grupos, porfim, podem buscar impor uma determinadaagenda na política que vá ao encontro dos

seus interesses – nesses casos, o veículo utili-

zado pode ser o partido político. O partidoexpandido, no entanto, difere-se da teoriados grupos em dois pontos fundamentais.

Em primeiro lugar, ao contrário da teo-ria dos grupos que buscava entender não sóa política, mas a sociedade em geral, atravésdas lentes dos grupos, essa nova abordagem,como o nome já diz, centra-se exclusiva-mente nos partidos políticos e, como já foimencionado anteriormente, os conceitua demaneira distinta da abordagem anterior. As-sim, possui um viés mais enxuto e centradocontando com determinadas metodologias etécnicas de análise que vão desde reconstru-ção histórica através de análise bibliográfica,

até o estudo de redes de relações por meio douso de técnicas e programas informacionaisde análise de network .

Em segundo lugar, grupos (sejam ativistas,associações, organizações, grupos de interesseetc.) não são vistos de maneira desassociadacom o partido político. Há uma relação desimbiose entre os insiders   (lideres partidáriosformais) e grupos e indivíduos considerados

até então outsiders. No momento em que osgrupos (sejam eles grupos de interesse, ativistas,ou organizações), adentram no espaço do par-tido utilizando-se dele para definir programasde governo e nomeações, por exemplo, já nãopodem mais ser considerados componentesexternos e, portanto, fora da caracterização dopartido em questão. Para Cohen et al. (2008,p. 33), “political scientists typically treat poli-ticians as separate from the groups that back

them to office, but the separation becomes so-mewhat artificial if, as groups might like to do,they choose politicians from their own group”.

 Assim, a divisão anterior feita pela teoria dosgrupos que considerava o partido em separadodos grupos (um era responsável pela conduçãodireta da política, enquanto o outro busca-va unicamente pressionar uma determinadaagenda na política) não se sustenta nessa nova

abordagem: não há uma separação de papéis.

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É importante mencionar que o parti-do expandido nasce em um momento emque as teorias então vigentes, em especialo neoinstitucionalismo da escolha racional,não conseguem explicar adequadamente ocrescimento da polarização partidária e da“guerra ideológica” partidária que se segue.Como já foi mencionado, estudos mostramque, além de nociva para a reeleição, a ra-dicalização ideológica não encontra resso-nância na sociedade, o que indicaria umparadoxo: se o partido existe para que in-divíduos possam se eleger, e se os dirigentespartidários buscam como objetivo principala eleição, conforme postula a teoria da esco-

lha racional, como explicar a situação atualestadunidense?

Nesse sentido, é necessário registraraqui o debate feito na academia norte--americana sobre uma suposta “fragilida-de” e “enfraquecimento” dos partidos po-líticos justamente no mesmo período emque a abordagem racionalista ganha espa-ço (BRODER, 1972; MAYHEW, 1974).

É fato que determinadas reformas, comoa McGovern no que diz respeito à nome-ação de candidatos, bem como a recenteBCRA, que limita os recursos partidários3,enfraquecem o partido, se o considerarmosestritamente a partir de lideranças formais.

 A abordagem da escolha racional, nessesentido, casa muito bem com essa relega-ção do partido para um segundo plano. Aofocar no indivíduo, em especial, nos líderes

partidários, dispensa ao partido um espaçode mero coadjuvante na disputa eleitoral. Avisão candidate centered , assim, nutre-se di-retamente do suposto enfraquecimento dospartidos políticos.

O partido network ganha espaço naacademia a partir desse contexto e atua“contra a maré”. Ao contrário da correntecandidate centered , postula uma aborda-gem que visa ser party centered. Ao contrá-rio de entender o partido como um reflexode lideranças formais, o conceitua comoum aglomerado de indivíduos e gruposde indivíduos que mantêm relações entresi, portanto engloba um escopo muitomaior de atores partidários: o objetivo éestudar “o partido” e não os “líderes par-tidários”. Por fim, ao contrário de perce-ber certo enfraquecimento dos partidos,os postula como organizações “robustas”

(SCHWARTZ, 1990, p. 283-284) e adap-tativas, e que mesmo em face de novas erestritivas regras, como no caso do BCRA,são capazes de criar “válvulas de escape” apartir das mais variadas formas – inclusivecriando “braços” externos, como no casodos comitês 527’s (SKINNER; MASKET;DULIO, 2013).

Os estudos centrados nessa abor-

dagem já são vários e abarcam diversosacadêmicos. Schwartz (1990), uma daspioneiras, é responsável por um estudo apartir de entrevistas e análise de redes feitoa nível estadual a respeito da organizaçãodo Partido Republicano atentando para osdiferentes atores e grupos na condução dasplataformas, nomeações e eleições internasdo partido. Já Feinstein e Schikler (2008)e Baylor (2013) demonstraram empirica-

mente a influência e o papel de determina-dos grupos e ativistas sociais na mudançade posicionamento do Partido Democrataante o problema dos Civil Rights , contra-riando, assim, a visão candidate centered  

3 A reforma McGovern (1972) retirava das mãos dos dirigentes partidários a decisão de nomeação e passava para oeleitorado em lista fechada ou aberta, conforme especificações de cada estado. Já o Bipartisan Campaign Reform

 Act (2002) proíbe o recebimento e distribuição dos soft money  por partidos políticos.

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prevalente até então que condicionava amudança de posicionamento político dopartido a certas lideranças4. Concernentea esse mesmo tópico, Noel (2012a) apre-senta uma série de evidências a respeito dopapel fundamental de determinados thinktanks   e grupos de intelectuais no debateacerca do fim da escravidão no século XIXe do movimento Civil Rights  no século se-guinte. Bawn et al. (2012), Noel (2012b),Masket (2012) e Cohen et al. (2008), porsua vez, atentam para o papel de grupose ativistas sociais na condução da nomea-ção de candidatos às eleições nacionais. Damesma forma, Herrnson (2009) faz um es-

tudo detalhado sobre a atuação e o papeldecisivo das diferentes coalizões em elei-ções partidárias. Heaney et al. (2012) ex-põem as redes de relações entre delegadose organizações consideradas tipicamentecomo “extra partidárias” nas convençõesdos partidos norte-americanos, atentandopara o partidarismo dessas organizaçõese, consequentemente, a polarização delas.

Dominguez (2005) e Koger, Masket e Noel(2009) utilizam-se de técnicas de análisede network  para verificar, respectivamente,a relação e a atuação entre determinadasorganizações e grupos de interesse referen-te aos partidos Democrata e Republicano ea troca de informações entre organizações,think tanks   e associações com relação aospartidos citados. Bernstein (2005) foca nasdisputas entre diferentes grupos (facções)

na condução da organização e do posicio-namento dos partidos políticos. De ma-neira similar, Masket (2007) atenta para ainfluência direta de organizações, grupose associações na condução da política nolegislativo da Califórnia. Por fim, Skinner,Masket e Dulio (2013) observam o papel

dos “comitês 527” na arrecadação e distri-buição de orçamento para os partidos Re-publicano e Democrata, considerado um“braço externo” dos partidos políticos nosEstados Unidos. A lista de trabalhos cujaabordagem reside no partido network é ex-tensa e, obviamente, não se resume a essespoucos trabalhos. Ainda que se enfatizemtemas e instâncias diversas, todos eles par-tem da mesma concepção, qual seja, o par-tido político atualmente nos Estados Uni-dos não pode ser caracterizado em termosde lideranças formais cujo objetivo únicoé a eleição.

Em todos os estudos feitos supracita-

dos, há o entendimento de que o partidodeve ser visto de maneira mais abrangente,abarcando não só líderes partidários, for-malmente considerados parte do partido,mas também as diversas organizações, as-sociações, ativistas, grupos de interesse ethink tanks . Considerados intense policydemanders   (IPD), ou informal party or-

 ganization  (IPO) esses grupos não atuam

“do lado de fora” do partido, mas são,também, os responsáveis por dar forma aele. Fazem parte do processo de nomeação,possuem candidatos próprios, participamda construção de plataformas, financiam edivulgam o partido etc. Para Cohen et al.(2008, p. 30), os IPDs podem ser defini-dos a partir de três características: “Theyare (1) animated by a demand or set of de-mands; (2) politically active on behalf of

their demands, and (3) numerous enoughto be influential”. Uma organização for-mal, assim, está geralmente presente, masnão é necessária. Para a abordagem do par-tido network esses intense policy demanders  são a base do partido, ainda que os líderespartidários sejam os mais visíveis.

4 Essa percepção canônica, até então, diz respeito aos estudos de Carmine e Stinson (1986 e 1989).

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 3.1. O partido network como uma novaabordagem nos estudos partidários

Os partidos políticos já foram definidosnas mais diversas formas. Para Burke (1899),é um conjunto de indivíduos unidos por al-gum determinado princípio. Para Schumpe-ter (1961), é um grupo no qual os membrosse propõem a agir de maneira concertadana busca pelo poder. Para Downs (1999), éum time de indivíduos que compartilhamde um mesmo objetivo, qual seja, controlaro apparatus  governamental através de cargopúblico. Já para Aldrich (1995), partidossão criaturas de candidatos e office holders .

Na maioria dos casos, conforme Bawn et al.(2012) e Bernstein (2005), a análise dos par-tidos está centrada não no partido, mas emindivíduos: “Ultimately, these are theoriesof politicians, not parties” (BERNSTEIN,2005, p. 3). Para Masket (2012), o que sefez na academia foi entender os partidosatravés da compreensão das motivações dosindivíduos, quando o contrário deveria ter

sido o foco – entender as motivações dos in-divíduos através da compreensão do partido:“politicians, if anything, are the creatures ofparties” (MASKET, 2012, p. 189).

Um estudo desenvolvido na Califórniapor esse mesmo autor, demonstra que, a ní-vel local, a organização e estrutura partidáriaé composta por uma aliança informal entrelíderes partidários, ativistas, candidatos egrupos auto-interessados que atuam desde

os processos de nomeação, até a defesa e a re- jeição de políticas na arena legislativa. EssesIPDs “are the heart, soul, and backbone ofcontemporary political parties” (MASKET,2012, p. 9). Da mesma forma, Schwartz(1990), ao analisar o Partido Republicano

no estado de Illinois, define sete atores prin-cipais na condução e na caracterização dopartido: senador do estado, representantesdo estado, senador, governador, conselheiro,grupo de interesse e contribuinte financei-ro: “That is the party core, the actors whoseidentities and activities define the Republi-can Party” (SCHWARTZ, 1990, p. 75).De fato, conforme estudo desenvolvido porMasket (2007), os IPDs detêm um papelimportante não só na condução de políti-cas partidárias, mas na própria organizaçãoe forma do partido. Quando determinadasregras negam acesso a esses outsiders   (comoo caso da Cross-Filling 5), o que se verifica

são líderes partidários cada vez menos par-tidários. Ou seja, se os indivíduos e gruposformalmente fora do partido político dei-xam de atuar nele por vontade própria oupor regras institucionais, os legislators   vãopreferir apartidarismo e a condução de polí-ticas centristas (MASKET, 2007). O estudo,assim, conclui que aqueles que controlam oprocesso de nomeação dominam e condu-

zem o partido. “These true party leaders –the activists, the bosses, the interest groups– determine the raw materials out of whichchamber leaders assemble legislative parties”(Ibidem, p. 495).

O que esses estudos buscam demonstrara partir de experiências e enfoques diferen-tes, é que a condução da política norte-ame-ricana não é feita de maneira tão simples enem pode ser entendida na sua totalidade

se basearmos nossos estudos em liderançaspolíticas e partidárias unicamente. O queesses trabalhos sugerem, ao contrário, é queos atores principais e mais importantes nacondução do partido e da própria políticanorte-americana nem sempre são os mais vi-

5 A Cross-Filling (1914-1959) limitava o processo de nomeação de candidatos aos líderes partidários formais no que

diz respeito à legislatura da Califórnia.

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síveis. Juntos, esses trabalhos apontam parauma tentativa diferenciada no entendimen-to de partidos políticos que, apesar de umpouco mais dificultosa (haja vista que nãose limita à composição formal e visível dospartidos), vem explicando a realidade parti-dária norte-americana de uma maneira maisabrangente.

São três os pontos que precisam serconsiderados aqui para se entender melhoro que a abordagem do partido expandidoentende por partidos políticos. Em primei-ro lugar, é um grupo, geralmente compostopor um conjunto de subgrupos, que buscautilizar-se do governo para promover seus

próprios interesses e objetivos. Em segundolugar, os indivíduos que formam os “sub-grupos” do partido podem ser definidos poraqueles que controlam o partido tanto noque diz respeito às diretrizes e estratégias,como no processo de nomeação de candi-datos. Por fim, o que confere o status de“partido político”, não é a posição ou as-sociação formal, mas as relações que se dão

entre diferentes indivíduos e grupos de in-divíduos. Para Koger, Masket e Noel (2009,p. 29), por exemplo,

the defining characteristic of a party is coopera-tive behavior, not formal positions. Actors “join”the party when they begin communicating withother members of the network, developing com-mon strategies and coordinating action to achieveshared goals.

O partido network parte do pressu-posto de que partidos são “organizações”(SCHWARTZ, 1990). Essas organizações,no entanto, não se definem unicamente porestruturas formais, fixas ou hierárquicas, masao contrário, se definem por sua caracterís-

tica descentralizada, não hierárquica, fluídae cujos limites são bastante porosos6. Maisespecificamente, essa organização é compos-ta por diferentes coalizões em diferentes ní-veis (multilayered coalitions ) (HERRNSON,2009, p. 1.209). Essas coalizões não se res-tringem às lideranças formais, mas qualquerindivíduo ou grupo que mantenha uma re-lação direta com o partido em questão e quese utiliza dele para ganhar espaço na arenapolítica e tentar impor uma determinadaagenda baseada nos seus interesses e objeti-vos. Assim,

parties should not be defined in terms of leader-ship structures. They should be understood aswe have just defined them: a coalition of interestgroups, social group leaders, activists, and otherpolicy demanders working to gain control of go-vernment on behalf of their own goals (COHENet al., 2008, p. 6).

De fato, esse último ponto merece des-taque. Por englobar mais do que meramentelideranças formais, a teoria do partido ex-pandido abre espaço para outros interesses

que não apenas eleitorais ou econômicos.Os objetivos dos indivíduos e grupos quefazem parte do partido não se restringem,portanto, a ganhar a eleição ou a construiruma carreira sólida e economicamente está-vel através do serviço público. Ao englobarativistas, ideólogos, grupos de interesse, en-tre outros, essa abordagem abre espaço paraque a ideologia também seja contemplada esua agenda utilizada como um objetivo a serbuscado na política através do partido. A di-reita religiosa, por exemplo, através de lide-ranças formais e informais como Pat Robert-son, Jerry Falwell e Ralph Reed, e por meiode organizações como a Christian Coalition,

6 Nesse ínterim, é importante mencionar que o sistema partidário norte-americano é bastante diferente do brasilei-ro. O partido político é uma organização extraconstitucional que não possui estatuto ou associação formal. Além

disso, em função do federalismo prevalecente, os partidos são altamente descentralizados.

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braço do partido Republicano nas eleiçõesde 1988, é atualmente identificada com oPartido Republicano. Se levarmos em contaque a direita cristã, através de organizações,ativismo social, mídia e determinadas lide-ranças não só já alcançou a eleição e nomea-ção à presidência pelo partido de indivíduosatrelados aos seus ideais, mas que tambémpromove, financia, participa do processo denomeação e atua em conjunto nas propo-sições partidárias de temas tão polarizadoscomo aborto, homossexualidade e casamen-to (DIAMOND, 1998, 1989; GREEN,2007; GREEN; ROZELL; WILCOX,2007; WILCOX, 1992; MARTIN, 1996;

NOLL, 1990; REICHLEY, 2002), passa-ria a ser considerada como parte do PartidoRepublicano se usarmos as lentes oferecidaspelo partido expandido. Esses indivíduos egrupos, de acordo com o postulado dessaabordagem, não estão ali para representarexclusivamente o “povo”, ou com o objetivoúltimo de eleição e de carreira política. Háum componente ideológico que não pode

ser dissociado: o interesse reside, principal-mente, na imposição de uma determinadaagenda, nesse caso, de uma agenda norma-tiva baseada na moralidade cristã. A defesadessa agenda, ainda que incorra em fracassoeleitoral por causa da falta de ressonânciacom o público eleitor, pode ser visto comoum objetivo importante dos seus expoentes.De acordo com Bawn et al. (2012, p. 571),

we propose a theory of political parties in whichinterest groups and activists are key actors, and co-alitions of groups develop common agendas andscreen candidates for party nominations based on

loyalty to their agendas. This theoretical stancecontrasts with currently dominant theories, whichview parties as controlled by election minded po-liticians. The difference is normatively importantbecause parties dominated by interest groups andactivists are less responsive to voter preferences.

O partido network, assim, explica apolarização partidária a partir da seguintelógica: os partidos estão mais polarizadosideologicamente, ao contrário da população,e sob risco de punição eleitoral, porque nãoé constituído unicamente de profissionaisoffice seeking , mas também de intense policydemanders  cujo objetivo, como o nome su-gere, está na exigência e na imposição de de-

terminadas políticas. A polarização ocorre,portanto, por uma lealdade extremada a de-terminadas ideologias, agendas e interesses.

Estudos feitos nesse âmbito vêm mos-trando que o processo de nomeação é am-plamente definido por esses IPDs (COHENet al., 2001, 2008; BAWN et al., 2012;SCHWARTZ, 1990; NOEL, 2012b). Aoinvés de líderes formais partidários, as no-meações são feitas em um processo iniciadona primária “invisível”7  e, posteriormente,nas primárias de fato, tendo como expoentesativistas sociais, grupos de interesse e organi-zações diversas que incluem, por exemplo, oscontroversos grupos 527s8. Por participaremdo processo de nomeação, esses grupos nãosó escolhem determinados candidatos, comoproveem a eles todos os tipos de recursospossíveis: fundos, propaganda e expertise . A

retribuição, no entanto, é a lealdade a de-terminada agenda. Por atuarem diretamenteno processo de nomeação, os IPDs, assim,

7 As primárias invisíveis podem ser definidas como “a long running national conversation among members of eachparty coalition about who can best unite the party and win the next presidential election” (COHEN et al., 2008,p. 13-14)

8 Os 527s são considerados braços dos partidos norte-americanos atualmente. Depois da reforma BCRA, essasorganizações vieram representar um novo veículo para recebimento e distribuição de recursos para campanhas

eleitorais.

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escolhem candidatos leais as suas agendaspolíticas, interesses e ideologias:

In making nominations, the groups that consti-tute parties go beyond merely pressuring candi-dates to adopt positions closer to their own thatmost voters might prefer. They define basic partypositions, decide how much electoral risk to takein pursuit of these positons, and choose whichcandidates to put forward under the party banner.Their purpose is to place reliable agents in gover-nment offices. Thus, intense policy demandersexpect that their nominees will, if elected, provideloyal service on matters large and small (COHENet al., 2008, p. 31).

Para Masket (2012), lideranças partidá-rias formais se comportam de maneira ex-tremada por dois motivos: primeiro, foramescolhidos para apresentarem esse comporta-mento (a sua lealdade a determinada agendapolítica foi a causa da sua eleição), e, segun-do, temem mais a falta de apoio dos IPDsdo que dos eleitores. Ou seja, funcionandocomo uma “porta” no processo de nomea-ção, teme-se mais o fato de não entrar noprocesso em uma próxima eleição por conta

de IPDs insatisfeitos, do que de ser mal vistopelos eleitores em geral.

 A lógica na qual a teoria do partido ne-twork opera é a seguinte: IPDs, como qual-quer grupo, têm interesses próprios (quenão são exclusivamente materiais). A melhormaneira de se conseguir alcançá-los é atravésda política: “they need things from govern-ment – changes in social policy, public con-

tracts for sympathetic business, and so on– but can’t get those things by themselves”(MASKET, 2012, p. 16). Ao invés de encar-nar o papel típico de outsider   – pressionarambos os partidos para o cumprimento desuas agendas; os IPDs tomam para si a con-dução e as rédeas da política através do par-tido. O partido político é, assim, um veículopara imposição de determinados interesses eagendas. O postulado da teoria do partido

expandido, portanto, não se limita ao parti-do propriamente, mas à própria concepçãode democracia. O que se percebe não sãoideologias e posicionamentos políticos querefletem uma maioria na população, mas, aocontrário, refletem determinados segmentosda população. De acordo com esses mesmosautores, “across the entire span of Americanhistory, parties behave in the same basic way– as vehicles by which the most energizedsegments of the population attempt to pullgovernment policy toward their own prefe-rences” (COHEN et al., 2008, p. 7).

De fato, o fenômeno não parece ser re-cente. Bawn et al. (2012) fazem uma discus-

são inicial a respeito da criação de partidospolíticos em uma sociedade imaginária, antesde adentrarem no estudo sobre a formaçãodos partidos políticos norte-americanos. Noexemplo hipotético, a sociedade imaginadanão possui partidos políticos. É governadapor um presidente por decreto e prepara aprimeira eleição presidencial. Dentro dessasociedade, quatro grupos de intense policy

demanders  se organizam para promover polí-ticas que os beneficiam, mas impõem custosà sociedade como um todo. Os pastores deovelha, por exemplo, buscam uma maior ta-rifa na importação de lã; os professores, me-lhorias nas escolas e prioridade na educação;os fazendeiros de café, melhorias nos trans-portes para distribuição de café em áreas re-motas; e, por fim, os religiosos, a proibiçãoda venda de álcool nessa sociedade. Os gru-

pos resolvem se unir, formando uma coali-zão, e nomear um candidato comprometidocom os ideais e interesses de todos os quatro.O candidato, assim, é eleito sem dificuldade.

 Algumas de suas medidas, no entanto, comoa proibição de álcool, prejudica um deter-minado setor da sociedade, até então de-sinteressado da política: os proprietários desaloons . Percebendo que os professores estão

insatisfeitos com a crescente intromissão dos

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religiosos no currículo das escolas, e os fa-zendeiros de café estão sendo penalizados pe-las crescentes leis protecionistas empunhadaspelos pastores de ovelha, os proprietários desaloons  aproximam-se desses. Esses três gru-pos: os proprietários de saloons , professores ecriadores de café, formam, então o “FreedomParty” para disputar as próximas eleições. Oentão presidente, com o apoio dos religiosose pastores de ovelha, busca a reeleição atravésdo nome de “Heritage Party”. Conforme asdisputas eleitorais ocorrem, dois programas,com visões de mundo diferentes, começama tomar forma: o programa “conservador”,que busca proteger e restaurar a tradição

de uma sociedade religiosa de pastores; e oprograma “liberal”, orientado para a valo-rização do capital humano e infraestruturapara competição na economia global. Algunseleitores, desinteressados dos interesses dosgrupos que aí competem são atraídos pelospartidos por determinados valores apresen-tados, como “igualdade” ou “ordem social”,por exemplo. As ideologias representadas

pelo conservadorismo e pelo liberalismoajudam os grupos a refletirem no eleitoradouma ideia de homogeneidade, uma ideia fic-tícia de que todos os grupos que fazem partedo mesmo partido têm os mesmos objetivos.

 Ainda que um exemplo simplista e hi-potético, a discussão anterior retrata algunspontos típicos no entendimento de partidospolíticos pelo partido network, dentre eles:a formação de partidos através de coalizões

de grupos com interesses distintos, a impo-sição de políticas direcionadas a esses grupose, por fim, a caracterização do eleitorado,entendido como relativamente alheio à di-nâmica partidária. Esse último ponto mereceser melhor explicado já que é, também, umdos alicerces no quais a abordagem do parti-do expandido se sustenta.

 A abordagem do partido network pos-

tula que os eleitores, longe de reagirem de

maneira “racional” e calculada no momentodo voto, são constrangidos e influenciadospor uma série de fatores e características ale-atórias e por um relativo desconhecimentosobre posicionamentos políticos, partidos elíderes partidários. Contrariando o  MedianVoter Teorem (BLACK, 1948; DOWNS,1999) – que postula que a competição elei-toral tenderia a levar os partidos para o cen-tro por buscar angariar o maior número devotos e, assim, alinhar-se com os eleitorescentristas que são, por sua vez, estratégicose racionais no momento do voto – o estu-do de Bawn et al. (2012) utiliza-se de va-riadas fontes de dados para demonstrar que

o eleitor mediano, na sua maioria os swingvoters , são influenciados por uma série defatores aleatórios no momento de eleição epossuem pouca informação relativa às pro-postas e agenda política defendida. Nessascondições, o partido não precisa, necessa-riamente, ser responsivo às demandas dapopulação e moderar suas posições, já queeventos tão aleatórios como os climáticos e a

relativa ignorância acerca da agenda políticasão fatores a serem levados em consideraçãono momento da eleição.

 Apesar disso, entende-se que eleito-res não são “bobos”, como explicitava Key(1958). Mesmo o mais desinformado eleitorpode fazer escolhas com um alto grau de ra-cionalidade. No entanto, na concepção dopartido expandido, são poucos os indivíduosque possuem, efetivamente, interesse, dispo-

sição e conhecimento sobre a política. A re-lativa ignorância a respeito da política nessaparcela da população (swing voters ), aliada auma série de influências externas e aleatórias,beneficiaria, nessa concepção, a defesa de po-líticas mais extremistas já oportuniza ao par-tido vencer a eleição mesmo com candidatose agenda política mais extremados (BAWNet al., 2012, p. 577). Essa tendência, ou seja,

esse espaço em que o agregado de eleitores

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não direcionam suas preferências por faltade conhecimento, é chamado de “electoralblind spot”. Para Bawn et al. (2012, p. 571),

most studies of parties assume that voters can judge which party offers more of what they want,

implying that parties must construct programswith a keen eye to voter satisfaction. We regardthis assumption as unrealistic. In its place we the-orize an ‘electoral blind spot’ within which votersare unable to reliably ascertain policy positions orevaluate party performance.

Reconhecendo, portanto, o electoralblind spot  e as inúmeras influências aleató-rias que contribuem para o resultado finalda votação, a abordagem feita pelo partido

network entende que o partido explora taiscomplexidades em beneficio próprio, qualseja, na imposição de interesses e objeti-vos próprios dos grupos e subgrupos que ocompõem.

Cabe aqui colocar que o partido ne-twork, apesar de privilegiar “grupos” aoinvés de “lideranças partidárias formais”na condução e caracterização do partido,

reconhece o importante papel que esses úl-timos desempenham. No entanto, ao invésde postular uma independência destes noque diz respeito aos seus posicionamen-tos e objetivos, os líderes partidários sãovistos como reflexos dos grupos de IPDsque operam no partido, seja porque foramescolhidos por esses últimos, seja porquefazem parte, eles mesmos, dos grupos quelá operam. Desse modo, ainda que sejam

os mais visíveis nos partidos (já que são full time professionals   nesse âmbito), elesraramente agem de maneira independenteou autônoma às preferências dos grupos deIPDs e das coalizões formadas, nas quais opartido se define.

É importante lembrar que o partidopolítico, nessa abordagem, serve tão so-mente como um veículo para se atingir um

objetivo: “Parties are means to an end, and

the end is the group’s own policy agenda”.Diferentes grupos cooperam entre si, desdeque a cooperação sirva aos seus interesses.Dificilmente um único grupo vai ter forçasuficiente para formar um partido ou, se

 já formado, para comandá-lo sozinho. Namaioria dos casos, é preciso coalizões comoutros grupos. No entanto, mesmo quetrabalhando em conjunto, grupos de IPDsnão colocam o partido acima dos seus pró-prios objetivos e interesses. É esse tipo decaracterística que faz que os partidos refli-tam comportamentos e posicionamentosmais extremados, irresponsivos às deman-das do eleitor mediano. Para Cohen et al.

(2008, p. 36),

it is natural to think of parties in a two-party sys-tem as majoritarian. Ours however, are not. Theywant to win elections, but they do not necessa-rily wish to represent a majority of voters. As aby-product of their wish to govern, parties mustoffer a degree – perhaps a large degree – of respon-siveness to popular majorities, but responsivenessto voters is not why parties exist. They exist toachieve the intense policy demands of their cons-tituent groups.

Dois estudos realizados (COHEN etal. 2008, BAWN et al. 2012) visam corro-borar com essa hipótese, qual seja, de que ospartidos existem tão somente para servir deveículo para determinados grupos de IPDs.Em ambos os trabalhos buscou-se fazer umestudo qualitativo baseado em literatu-ra histórica e análise de documentos para

mostrar que os partidos norte-americanossurgiram não pelas mãos de algumas poucaslideranças, mas por coalizões de grupos eindivíduos IPDs.

Nesse sentido, é importante mencionaraqui que a visão canônica nos Estados Uni-dos sugere que os partidos políticos são cria-ções de indivíduos e a emergência desses nahistória dos Estados Unidos poderia ser atri-buída a determinadas lideranças (o demo-

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crata Van Buren e o republicano Chase, porexemplo), geralmente office seekers  estratégi-cos, racionais e ambiciosos que viam comoobjetivo principal a eleição; ou seja, umapercepção candidate centered , típica da abor-dagem da escolha racional. Em especial, essaversão expõe o modelo de Aldrich (1995),que postula que os office seekers buscam fazeruma longa coalizão que passa a ser a base donovo partido político. Os estudos realizadospor Cohen et al. (2008) – e confirmados porBawn et al. (2012) – no entanto, mostramque a formação dos quatro maiores parti-dos na história estadunidense (Federalistas,Republicanos Jeffersonianos, Democratas e

Republicanos), não seguiu esse modelo. Emtodos os quatro casos, office seekers   tiveramum papel importante na criação dos parti-dos (em especial Chase e Van Buren), masnão foram esses os únicos atores. Grupos eindivíduos com interesses próprios, de acor-do com o estudo feito, foram os responsáveispela formação dos quatro partidos norte--americanos, relegando aos office seekers um

papel meramente colaborativo. 3.2. O papel do político e dos grupos de IPDs,e a relação entre partidos e democracia 

Entendamos ou não que os partidospolíticos estadunidenses foram criados porgrupos de IPDs e que, portanto, não podemser entendidos ou definidos em separadodestes, o fato é que esses estudos são notáveis

por trazer à tona elementos tipicamente nãoconsiderados no estudo de partidos políti-cos. A abordagem do partido network inovaao trazer para um patamar mais elevado fato-res até então considerados externos ao parti-do político. De maneira sucinta, a utilizaçãodessa abordagem implica uma percepção dis-tinta a respeito de três pontos fundamentais:o papel do político, o papel dos grupos de

IPDs e a relação entre partidos e democracia.

 A respeito do primeiro ponto, a abor-dagem do partido expandido não minimizao papel dos políticos. São eles os responsá-veis pela organização das suas campanhas,representam o partido no legislativo e exe-cutivo, tomam iniciativas na organizaçãointerna do partido, buscam consolidar suascarreiras políticas etc. Para Cohen et al.(2008), as lideranças partidárias formais,na abordagem do partido network, desem-penham os mesmos papéis que em umaabordagem candidate centered . No entanto,a abordagem do partido expandido prevêum número maior de atores componentesdo partido político que não se limita às li-

deranças formais partidárias. Além disso,os objetivos eleitorais dos políticos não sãoa preocupação central do partido: os obje-tivos dos subgrupos de IPDs são centrais.

 Assim, os políticos trabalham em conjuntocom esses grupos para alcançá-los.

Com relação aos grupos, conforme já foimencionado, essa abordagem do partido ne-twork tem raízes na tradição do pluralismo e,

mais especificamente, da teoria dos grupos.No entanto, ao contrário do postulado clás-sico que separava os grupos do partido po-lítico, o partido expandido os incorpora. Éimportante lembrar, ainda, que essa incorpo-ração não é exclusiva dessa abordagem emer-gente. Key (1958), por exemplo, apontavaque o partido político pode ser tão somenteuma máscara para determinados grupos. JáHerring (1968), considerava que o sistema

partidário poderia ser definido como umacombinação de facções e interesses. Merriame Gosnell (1929), que apesar de não seremconsiderados parte da literatura voltada paraa teoria dos grupos, já atentavam, no inícioda década de 1920, para a relação intrínsecaentre grupos, interesses e partidos, afirmam:“The broad basis of the party is the interests,individual or group, usually group inte-

rests, which struggle to translate themselves

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into types of control through government”(MERRIAM; GOSNELL, 1929, p. 2). Aabordagem do partido expandido, portanto,possui raízes antigas ao entender o partidopolítico de maneira mais holística. Inova, noentanto, na busca por maior empiria e cien-tificidade nos estudos propostos através douso de uma gama variada de metodologias etécnicas para demonstrar que, de fato, gru-pos de interesse e ativistas (IPDs, de maneirageral), são atores principais nos partidos po-líticos já que buscam, através desse veículo,disseminar seus objetivos e interesses.

Sobre a relação entre democracia epartidos, a abordagem que o partido ex-

pandido postula é bastante pessimista.Inexoravelmente, a percepção de partidoatribuída pelo partido expandido não pre-vê uma relação entre partidos e democra-cia. Esses grupos e indivíduos buscam im-por seus próprios interesses e ideologias,conforme já foi mencionado, mesmo queesses sejam alheios a grande parcela da so-ciedade. Como sugere Cohen et al. (2008,

p. 36), “the parties we have theorized arenot humble servants of democracy”. Nãosendo servos ou “melhores amigos” da de-mocracia (BAWN et al., 2012), os partidospolíticos teorizados pelo partido expandidoservem como um veículo, ou um elo, entredeterminados setores da sociedade (geral-mente os mais ativos em certo momento)e o governo. O entendimento proposto poressa abordagem resulta, portanto, em uma

mudança normativa importante, já quepartidos dominados por IPDs seriam me-nos responsivos às preferências dos eleitores(BAWN et al., 2012, p. 571).

Por refletir os interesses de determi-nada parcela da sociedade, geralmente osmais “energéticos” (COHEN et al., 2008),o partido político não reflete os interessesda maior parte da população. Ainda assim,

não se pode inferir que o processo democrá-

tico estaria melhor servido sem os partidos.Para Bawn et al. (2012, p. 591), em umasociedade na qual a política é um processocomplexo e onde a maioria dos seus cidadãospossuem outras preocupações, partidos cen-trados em grupos, talvez seja o melhor quese possa buscar.

 A utilização dessa abordagem, ao fim,implica novos rumos e campos de estudo noque diz respeito a partidos políticos, dentreeles, o estudo sobre grupos de interesse, ati-vistas sociais, think tanks , entre outros IPDs.É importante mencionar que, no momentoem que se entende que grupos de IPDs sãoatores principais no partido político, auto-

maticamente há a necessidade de se com-preender a natureza dos seus interesses e dassuas demandas. Os IPDs se definem justa-mente pela ideologia e pelo interesse que ex-põem. Assim, no momento em que se utilizaessa abordagem, a ideologia e a agenda polí-tica partidária ganham um espaço maior nosestudos a respeito de partidos. Ao utilizar--se do partido expandido, o foco de estudos

deixa de ser ancorado em processos, regras,técnicas e estratégias e interesses individuais,e passa a englobar processos de nomeação,composição partidária, redes de relaciona-mento e ideologias e interesses.

4. Considerações finais

O trabalho aqui proposto buscou ex-por uma abordagem emergente na academia

norte-americana nos estudos de partidospolíticos. O partido network ascende justa-mente em um momento em que as aborda-gens então vigentes e, em específico, a noçãoracionalista downsiana não pode explicaradequadamente um fenômeno recente napolítica norte-americana: a crescente pola-rização partidária. Apropriando-se de con-ceitos básicos desenvolvidos pela teoria dos

grupos, a abordagem do partido network

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explica o fenômeno atual norte-americano apartir de uma concepção distinta de partidosque engloba atores outros que não exclusiva-mente os formais. O partido, nesse sentido,nada mais é do que uma organização na qualdiferentes indivíduos e grupos de indivíduosatuam a partir de redes de relacionamento.

É importante perceber, no entanto, aslimitações dessa abordagem. Uma impor-tante deficiência está na falta de uma linhade demarcação clara entre o que constituiou não o partido político, afinal o parti-do expandido se define justamente porfronteiras “porosas” no que diz respeito àcomposição partidária. No entanto, por

apresentar-se a partir de uma forma maisholística e abrangente (incluindo atores quenão meramente os formais), permite umentendimento mais aprofundado das vá-rias dinâmicas que se tem na composiçãoe organização do partido político. Confor-me os estudos apresentados mostram, asdinâmicas internas e composição partidá-ria não se definem a partir de um entendi-

mento meramente formal e hierárquico departido político, mas possuem como forçasmotrizes atores outros que não os líderesformais, e estratégias outras que não unica-mente eleitorais. Entende-se, nesse sentido,que esse tipo de abordagem pode vir a seruma ferramenta útil para o entendimentoe caracterização das mudanças ideológicasque ocorrem nos partidos políticos, culmi-

nando em uma polarização partidária semprecedentes nos Estados Unidos, haja vistaque análises centradas nos líderes formaisdo partido unicamente (candidate centered) tendem a ser mais limitadas e, portanto,incompletas na explicação desse fenômeno.

 Além disso, a abordagem do partidoexpandido abre um novo leque de estudoscujo foco debruça-se sobre os IPDs e a re-lação entre setores da sociedade e o siste-ma político. Como consequência, aspectoscomo ideologia, posicionamento no espec-tro político, interesses e agenda partidáriasão contemplados de maneira mais robustano estudo de partidos políticos. Assim, o

que esses estudos sugerem é que, indepen-dentemente de como o partido seja carac-terizado e qual referencial teórico seja uti-lizado, determinados indivíduos e gruposde indivíduos, tipicamente consideradosexternos à concepção clássica e candidatecentered  de partido político, detêm um pa-pel importante na composição e ideologiaque o partido exporta. Considerando-os

parte ou não dos partidos, esses atores nãodevem ser negligenciados no estudo daque-les sob o risco de se obter uma compreensãoincompleta do fenômeno a ser estudado. Opartido network, assim, significa uma novaabordagem nos estudos partidários que, aotratar do tema de maneira mais holística,abarca aspectos e enfoques até então poucocontemplados nessa área de trabalho.

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Resumo

 A abordagem do partido network no estudo de partidos políticos 

O trabalho aqui proposto busca expor as origens e esclarecer os postulados próprios da abordagem do partido

network ( party network ) no estudo de partidos políticos. Contrariando a teoria da Escolha Racional e ascendendo

na academia norte-americana em função de suas variáveis explicativas no que diz respeito à polarização partidária

atual nos Estados Unidos, essa abordagem emergente contribui para um novo entendimento e novos focos de

apreensão nos estudos partidários, em especial em relação à composição, organização e dinâmicas partidárias.

Palavras-Chave: Partido Network; Partido Expandido; Partidos; Teoria dos Grupos; Composição Partidária.

Abstract

The party network approach in studies of political parties 

The article seeks to expose the origins and elucidate the postulates of the Party Network approach in the study ofpolitical parties. Contrary to the Rational Choice theory and emerging in the American academy for its explanatoryvariables when dealing with the current party polarization in the United States, this emerging approach contributesto new understandings and new perspectives in the studies on political parties, especially in what concerns to partycomposition, organization, and dynamics.

Keywords: Party Network; Expanded Party; Political Parties; Group Theory; Party Composition.

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Résumé

L’abordage du parti network dans l’étude des partis politiques 

Cet article a pour but de présenter les origines et aussi de clarifier les postulats propres à l’approche du Parti network( party network ). En contredisant la théorie du choix rationnel et en prenant de l’importance dans le milieu universitaireaméricain, principalement en fonction de ses variables explicatives part rapport à la polarisation partisane actuelle aux

États-Unis, cette approche émergente contribue à une nouvelle compréhension et à de nouveaux points de vue dans lesétudes des partis politiques, en particulier en ce qui concerne leur composition, leur organisation et leur dynamique.

Mots-clés: parti Network; Parti Élargi; Partis; Théorie des groupes; Composition partisane.

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Introdução1 

Um dos temas candentes das CiênciasSociais são os da violência. Quando se tratada violência como crime, o tema se tornaainda mais prodigioso devido a sua impor-

tância no contexto latino-americano (mar-cado por grandes desigualdades sociais e

 jurídicas) e, sobretudo, devido à dinâmicacrescente da criminalidade violenta. Mui-to foi escrito a respeito da criminalidadeviolenta, mas o esforço em trazer umadiscussão em torno de trabalhos contem-porâneos que equilibram a análise teóricaem meio a testes empíricos se mostra como

um grande desafio ao cientista social. Nes-te trabalho busco revisar a literatura sobrea criminalidade violenta, principalmenteno âmbito internacional.

 A literatura é vasta, mas o esforço paracondensar algumas das principais teoriasdo crime e da violência mostra-se funda-mental, sobretudo para ajudar os pesqui-sadores que buscam selecionar variáveisexplicativas para o fenômeno da violênciae da delinquência.

Partindo dessa perspectiva, as próxi-mas seções trazem o debate teórico sobreas principais teorias do crime e da violên-cia, mostrando virtudes e lacunas que ostestes empíricos de alguns dos trabalhos

trouxeram para a comunidade acadêmicade pesquisadores sobre a questão da crimi-nalidade e dos seus nexos causais, como aviolência e a delinquência.

1. As teorias sociais sobre a

criminalidade, a violência e a

delinquência

O que leva as pessoas a praticaremcrimes? Por que os homicídios crescem oudecrescem? Como explicar que, em ummesmo contexto, pessoas optam pela crimi-nalidade enquanto outras seguem o cami-nho da legalidade? Esses são questionamen-

tos difíceis de ser respondidos. Contudo,mostra-se importante o esforço para enten-der algumas teorias relevantes sobre o crimee a violência para, em parte, responder taisquestionamentos.

 A análise teórica permite ao pesquisa-dor lançar luz sobre as variáveis causadorasdo fenômeno que se quer explicar. Focaras abordagens teóricas e os resultados em-píricos dos trabalhos expostos é de grandeimportância ao pesquisador para, princi-palmente, elencar hipóteses possíveis deserem testadas.

Os estudos sobre as causas da crimi-nalidade e da violência passaram por umprocesso evolutivo. Os primeiros estudos so-

Teorias do Crime e da Violência: Uma Revisão da Literatura

 José Maria Pereira da Nóbrega Júnior 

1 Agradeço as contribuições dos pareceristas da BIB pelos comentários e críticas construtivas que foram funda-

mentais para a finalização deste estudo. Desde já, me responsabilizando por inteiro pelo conteúdo aqui expresso.

BIB, São Paulo, n. 77, 1º semestre de 2014 (publicada em dezembro de 2015), pp. 69-89.

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bre as causas da criminalidade procuravamencontrar uma causa geral para o compor-tamento criminoso. Encontrando tal causae a extirpando a sociedade estaria livre depráticas criminosas. “Tais perspectivas se tra-duziam menos em teorias explicativas sobrea criminalidade e mais em panaceias que ali-mentavam o discurso de teólogos, reforma-dores e médicos da época” (CERQUEIRA;LOBÃO, 2004, p. 235). Cesare Lombroso(1835-1909) foi o maior nome dessa “ciên-cia” criminológica que atribuía aos caracteresfísicos dos criminosos as causas para as prá-ticas delituosas.

Lombroso construiu toda uma “ciência”

do crime, que tinha como grande pretensãorivalizar com a Escola Clássica, originária doséculo XVIII com as ideias de Cesare Becca-ria (1738-1794) e Jeremy Bentham (1748-1832). A perspectiva de Lombroso e seus co-laboradores2, da Escola Positiva , destacavamum determinismo biológico na prática cri-minal em vez de definir de forma legal/sociala prática do crime. A Escola Clássica define a

ação criminal em termos legais, enfatizandoa liberdade individual.Formado em medicina, influenciado por

teorias materialistas, positivistas e evolucio-nistas, Lombroso ficou conhecido mundial-mente por defender a teoria do “criminosonato”. Partiu do pressuposto de que os com-portamentos humanos são biologicamentedeterminados, baseando-se em afirmaçõessobre dados antropométricos. Sua teoria

evolucionista afirmava que os criminososeram indivíduos que reproduziam física ementalmente características primitivas dohomem. Tal abordagem daria condições aocriminólogo para analisar os indivíduos cri-minosos por meio de dados antropométricosindicando pessoas que, hereditariamente, es-

tariam inclinadas à prática de determinadoscrimes (ALVAREZ, 2002, p. 679).

 Apesar de considerar causas sociaiscomo sendo passíveis de influenciar os indi-víduos à prática de crimes, Lombroso

Nunca abandonou o pressuposto de que as raízesfundamentais do crime eram biológicas e que po-deriam ser identificadas a partir dos estigmas ana-tômicos dos indivíduos. Em termos gerais, redu-ziu o crime a um fenômeno natural ao consideraro criminoso, simultaneamente, como um primiti-vo e um doente. (ALVAREZ, 2002, p. 679).

 A ênfase que a escola lombrosianadava às causas biológicas da criminalida-de foi abandonada após a Segunda GuerraMundial em face de seu conteúdo racista.Contudo, essa teoria ainda hoje pode serencontrada no discurso de policiais e dele-gados, no qual, muitas vezes, a acusação aopotencial criminoso ocorre devido a seusestereótipos e/ou posição social (KANTDE LIMA, 1995).

Seguindo a linha de raciocínio de Canoe Soares (2002), é possível distinguir algu-

mas importantes abordagens sobre teoriasdas causas do crime dividindo-as em cincogrupos: teorias que tentam explicar o crimeem cima de patologias individuais dos cri-minosos; teorias que estão direcionadas aohomo economicus , ou seja, o crime sendo exe-cutado por atores sociais que racionalizamsuas ações em cima de certas estratégias vol-tadas à maximização das ações; teorias que se

voltam para o crime como sendo o resultadode uma realidade de injustiças sociais; teoriasque percebem o crime como resultado da de-sorganização social ocasionada pela moder-nidade; teorias que explicam a criminalidadedentro de um contexto de oportunidadese situações específicas (CANO; SOARES,2002, p. 3).

2 Rafaele Garofalo (1852-1934) e Enrico Ferri (1856-1929), principalmente (ALVAREZ, 2002).

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Para tanto, é importante trabalhar emcima de algumas dessas teorias. Resumida-mente, neste trabalho serão estudadas: ateoria da desorganização social, a teoria doaprendizado social, a teoria do autocontrole,a teoria da anomia e a teoria econômica ouda escolha racional.

1.1 A Teoria da Desorganização Social 

Segundo Cerqueira e Lobão (2004), osestudos baseados na teoria da desorganiza-ção social relacionam negativamente o crimecom coesão social. Problemas relacionadosao colapso demográfico, à urbanização des-

controlada e ao desajuste social provocadopor diversos fatores externos (espaços ur-banos deteriorados, tráfico e consumo dedrogas em espaços abandonados pelo poderpúblico, formação de grupos de jovens de-linquindo etc.) e internos (ambientes fami-liares desajustados, falta da figura paterna,violência doméstica etc.) estariam na raiz daviolência e da delinquência, bem como da

criminalidade.O conceito foi desenvolvido para se re-ferir à ausência de organização entre as pes-soas em unidades ecológicas relativamentepequenas (bairros, setores censitários, comu-nidades), mas tem sido usada para explicar asvariações da criminalidade entre as unidadesmaiores (por exemplo, municípios, estadose nações), bem como as variações ao longodo tempo.

Seguindo esse pensamento, avalio al-guns trabalhos importantes que utilizaram ateoria da desorganização social (Social Disor-

 ganization Teory ) para explicar a crimina-lidade e a violência. Procuro assim, avaliaros aspectos teóricos envoltos nos seus resul-tados empíricos e, de certa forma, fazendouma revisão bibliográfica.

O conceito de desorganização social foi

aplicado para a explicação da criminalidade,

delinquência e outros problemas sociais pelossociólogos da Universidade de Chicago, noinício do século XX. Como uma florescentecidade industrial, cada vez mais povoada porimigrantes advindos de diversas origens raciaise étnicas, a cidade de Chicago foi um laborató-rio social para o desenvolvimento da crimino-logia americana. Muitas mudanças e o rápidocrescimento eram vistos como forças “desorga-nizadas” ou “desintegrativas”, que contribuíampara a degradação do ensino e da aprendiza-gem dessas antes “regras sociais”, que tinhaminibido a criminalidade e delinquência nasociedade europeia camponesa (THOMAS;ZNANIEKI apud Jensen, 2003).

Edwin Sutherland (1939) elaborou oconceito de desenvolvimento de sua teoriasistemática do comportamento criminoso, eShaw et al. (1929) aplicaram a explicação dedeterminados padrões de delinquência do-cumentados para Chicago e seus subúrbios.

Nas primeiras edições do seu livroclássico, Princípios de Criminologia   (1939),Edwin Sutherland elaborou o conceito de

desorganização social para explicar o au-mento da criminalidade que acompanhou atransformação das sociedades pré-letradas ecamponesas. As influências da moderna ci-vilização europeia levaram as comunidades,que tinham costumes uniformes e constan-tes, a desajustes comportamentais que gera-ram a desorganização social e, por sua vez,o crescimento da criminalidade. Sutherlandacreditava que a mobilidade, a concorrência

econômica e a ideologia individualista queacompanhavam o desenvolvimento indus-trial capitalista “desintegraram” a famílianumerosa e homogênea como agente decontrole social, e ampliou a esfera de rela-ções que não foram regidas pela família evizinhança, prejudicando os controles porparte do estado.

 A desorganização das instituições que

tradicionalmente tinham reforçado a lei fa-

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cilitou o desenvolvimento e a persistência da“sistemática” da criminalidade e da delinqu-ência. A sétima proposição (na versão de 1939do seu livro) era que a desorganização social éa causa básica sistemática do comportamentocriminoso (SUTHERLAND, 1939).

Sutherland concluiu que se a sociedadeestá organizada com base na referência aosvalores expressos na lei, o crime é elimina-do e, se ela não está organizada dessa for-ma, o crime persiste e se desenvolve (1939,p. 8). Nas suas últimas obras, Sutherlandmudou o conceito de desorganização socialdiferencial por questão de a organização so-cial transmitir uma sobreposição complexa

de conflitos a níveis diferenciados de orga-nização dentro de uma mesma sociedade.Essa noção foi elaborada nas últimas refor-mulações da teoria da desorganização social(BURSIK; GRASMICK, 1993).

Shaw et al. (1929) explicaram a dis-tribuição de uma variedade de problemassociais na cidade de Chicago em relaçãoà delinquência. O estudo produziu uma

grande quantidade de informações sobrecriminalidade e delinquência, incluindo asseguintes: a) as taxas de absentismo, delin-quência e criminalidade de adultos tendema variar de forma inversamente proporcio-nal à distância do centro da cidade; b) ascomunidades que revelam as mais elevadastaxas de delinquência também mostram,em regra, as maiores taxas de absentismoe adultos inseridos na criminalidade; c) as

taxas elevadas de criminalidade ocorremem áreas que são caracterizadas por de-gradação física; d) as taxas relativamenteelevadas têm persistido em certas áreas de-gradadas, não obstante o fato da composi-ção da população mudar acentuadamente(Idem, 1929, p. 198-204).

 A constatação de que certas áreastendem a manter altas taxas de crimi-

nalidade e/ou delinquência, apesar das

sucessivas mudanças nos grupos étnicosresidentes nelas, sugeriram que esses pro-blemas foram gerados pelas condições so-ciais vivenciadas por esses grupos (e nãopor qualquer predisposição genética e/oubiológica) e por tradições da criminalida-de e delinquência que se desenvolvem e seperpetuam por meio da interação entre osnovos membros e aqueles já estabelecidosnessas áreas sociais.

Shaw et al. (1929) afirmaram que quan-do as empresas e a indústria invadem umacomunidade, esta, assim que invadida, deixade funcionar como um meio eficaz de con-trole social. Normas tradicionais e padrões

convencionais da comunidade se enfraque-cem e, posteriormente, desaparecem. A resis-tência por parte da comunidade para a delin-quência e o comportamento criminoso ficafraca, sendo a criminalidade e a delinquênciatolerada e até aceita pela comunidade (Ibid.,p. 204-205).

Esse foi o mesmo argumento utilizadopor Sutherland: ele asseverou que o crime

poderia tornar-se “sistemático” (ou seja, or-ganizado e persistente) quando a sociedadeera “desorganizada” para a sua prevenção.

Robert E. L. Farris ampliou o conceitode desorganização social para explicar “pato-logias sociais” e problemas sociais em geral,incluindo crime, suicídio, doença mental eviolência. Para ele a desorganização socialera definida como o enfraquecimento oua destruição dos relacionamentos que pos-

suem em conjunto uma organização social(FARRIS, 1955, p. 81). Esse conceito deve-ria ser empregado “objetivamente” podendoser mensurável em um dado sistema social.Quando aplicado à criminalidade, Farris foienfático ao dizer que a taxa de criminalidadeé um reflexo do grau de desorganização dosmecanismos de controle de uma sociedade.Por seu turno, o crime também contribuiu

para a desorganização, uma proposição do

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que iria ser relançado quatro décadas maistarde (BURSIK, 1988).

 A desorganização de mecanismos con-vencionais foi provocada pelo rápido cres-cimento industrial das cidades onde tal de-sorganização permitiu espaços amplos para acriminalidade altamente organizada e menosorganizada, bem como formas de grupo eindivíduos inclinados para a criminalidade edelinquência.

Robert Merton (1957) foi crítico de to-das as perspectivas que assumiram altas taxasde delinquência e criminalidade como umresultado natural de mecanismos falhos decontrole social. Ele acreditava que uma ade-

quada teoria sociológica deveria endereçar aexplicação para uma perspectiva de que algu-mas estruturas sociais exercem determinadapressão sobre determinadas pessoas na socie-dade, e isso faz com que tais pessoas venhama participar de forma desviante às normas deconduta aceitas como normais (MERTON,1957, p. 132).

Travis Hirschi (1973) critica as teorias

baseadas na desorganização social por seremparcimoniosas em seus resultados, sobretudopela falta de sustentação científica. Afirmaque há necessidade de maior investigaçãoempírica por parte dos teóricos para queteorias concorrentes da explicação da delin-quência e da criminalidade não coloquemabaixo seus argumentos.

Outra crítica, levantada por Cohen(1955 apud JENSEN, 2003), afirma que os

bairros ou áreas descritas como “socialmentedesorganizadas” não são ausentes de organi-zação social. Cohen argumenta que, a par-tir da perspectiva das pessoas que vivem emuma área, há uma vasta e ramificada rede deassociações informais entre elas, em oposiçãoa uma horda anônima de famílias e de in-divíduos. Reconhecendo a ausência de pres-sões da comunidade e uma ação concertada

para a repressão da delinquência, sugere que

defeitos de organização não devem ser con-fundidos com a falta de organização.

Sutherland havia desconfiado desse tipode crítica e introduziu a noção de “diferen-cial da organização social”, na sua ediçãode 1947 de Princípios de Criminologia . Essetema é expresso nas últimas edições, regis-trando que as condições sociais em que asinfluências sobre a pessoa são relativamenteinarmônicas e inconsistentes podem cons-tituir um tipo de organização (SUTHER-LAND; CRESSEY; LUCKENBILL, 1992apud JENSEN, 2003).

Em Te social order of the slum  (emportuguês, A ordem social da favela) (1968

apud JENSEN 2003), Gerald Suttles intro-duziu o conceito de ordered segmentation (segmentação ordenada) para se referir aotipo de organização social que existia nafavela. Aquele conceito foi concebido paratransmitir a noção de que não havia organi-zação em alguns níveis, mas em outros po-deriam existir (uma ideia desenvolvida nosúltimos anos por Robert Bursik e Harold

Grasmick, 1993), porque o conceito de “de-sorganização social” tinha conotações nega-tivas e poderia refletir ao observador um viésna representação da vida social. Tal conceitofoi amplamente abandonado em sociologiana década de 1960, contudo, é convenien-te notar que ninguém contestou o fato doquanto havia diferenças nos graus e tipos deorganização social entre as áreas das cidades,e que essas diferenças afetavam as taxas de

criminalidade.O primeiro estudo empírico que pro-

curou testar de forma mais sistêmica a te-oria da desorganização social é devido aSampson e Groves (1989). Esses autorestrabalharam com dados longitudinais de238 localidades na Grã-Bretanha, que fo-ram resgatados de uma pesquisa nacionalde vitimização em 10.905 residências bri-

tânicas. As regressões estimadas por míni-

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mos quadrados deram grande sustentaçãoà teoria. As variáveis dependentes utiliza-das no modelo foram: assaltos e roubos derua; violência perpetrada por estranhos;arrombamentos e roubo autoimputado;vandalismo e o total de vitimizações. Asvariáveis explicativas foram: status socio-econômico, heterogeneidade étnica, esta-bilidade residencial, desagregação fami-liar, urbanização, redes de amizade local,grupos de adolescentes sem supervisão eparticipação organizacional. Totalizandooito variáveis independentes. As variáveismais significativas no modelo de regressãoforam desagregação familiar, urbanização,

grupos de adolescentes sem supervisão eparticipação organizacional.

Roh e Choo (2008) testaram a valida-de da teoria da desorganização social noTexas e avaliaram que a rápida suburbani-zação de caráter heterogêneo e de diversifi-cado quadro socioeconômico, desde 1970,estimulou o crime e outros problemas so-ciais. No estudo, a teoria da desorganiza-

ção social, desenvolvida principalmente apartir dos estudos conduzidos em grandescidades, foi testada em áreas suburbanas.Modelos de regressão binomial negativaforam usados para analisar os dados reco-lhidos das calls for service   (chamadas porserviços de polícia) suburbanas de quatrocidades do Texas. As conclusões dos tes-tes estatísticos sustentaram parcialmente ateoria da desorganização social: embora a

pobreza e a heterogeneidade da raça/etniaterem demonstrado relação positiva comos crimes, a mobilidade residencial foi ne-gativamente relacionada ao crime. O estu-do também verificou que os indicadores de

desorganização social poderiam dar contapara a variância nas perturbações sociais ecalls for service .

Os mesmos autores abordaram grandeparte da literatura que trabalha o eventocriminal (tendo como base a teoria da de-sorganização social) e demonstraram queos trabalhos se concentram em cidadesurbanizadas sem levar em consideração osespaços suburbanos3. Tendo como base oestudo de áreas do subúrbio de quatro ci-dades do Texas, Roh e Choo levantaramalgumas hipóteses (para testes em mode-los estatísticos) sobre crime, distúrbio edemandas por serviços públicos (civil ser-

vice ) estarem positivamente relacionados:a) à pobreza em áreas de subúrbio; b) àheterogeneidade de raça/etnia em áreas desubúrbio; c) à mobilidade residencial emáreas suburbanas; d) ao desajuste fami-liar em áreas suburbanas (ROH; CHOO,2008, p. 6).

Os modelos demonstraram que a po-breza tem relação positiva com o crime.

Distúrbios e demandas por chamadas deserviço público tiveram alta relação como nível de pobreza. Com a inclusão davariável distúrbio familiar no modelo, asrelações positivas entre pobreza e o crimeperderam significância, enquanto a relaçãoentre pobreza e serviços públicos permane-ceu significativa. A heterogeneidade étni-co-racial teve relação positiva com o crimee os serviços públicos, mas não o mesmo

com distúrbios, em parte sustentando ashipóteses. A relação entre heterogeneidaderaça/etnia e crime foi insignificante quan-do o distúrbio familiar foi incluído nomodelo.

3 Seguiram a definição de subúrbio de Popenoe (1988, p. 394 apud RO; CHOO, 2008, p. 3), na qual a comunida-de desses espaços sofre um stigma que marca os indivíduos psicologicamente, economicamente e culturalmente: “a

suburb is a community that lies apart from the city but is adjacent to and dependent upon it”.

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Tabela 1.Modelo de Regressão Binomial Negativa por Chamadas por Serviços em 54 Grupos em Subúrbios do Texas

Crime Distúrbios Serviços Públicos

 VariáveisModelo 1 b

(erro padrão)Modelo 2 b

(erro padrão)Modelo 1 b

(erro padrão)Modelo 2 b

(erro padrão)Modelo 1 b

(erro padrão)Modelo 2 b

(erro padrão)

Pobreza  4,97*(2,06)

3,49(2,07)

6,82*(3,31)

4,49(3,21)

6,40**(2,42)

5,50*(2,51)

Mobilidade-1,25*(0,51)

-1,40**(0,50)

-1,09(0,75)

-1,57*(0,70)

-1,98**(0,57)

-2,12**(0,58)

Heterogeneidade1,12*

(0,50)0,68

(0,51)1,49

(0,81)0,82

(0,77)1,72**(0,57)

1,45*(0,59)

Distúrbiofamiliar 

5,46*(2,16)

11,04**(3,25)

3,40(2,52)

População0,48**(0,10)

0,47**(0,09)

0,36*(0,15)

0,37**(0,13)

0,53(0,11)

0,52**(0,10)

Intercepto3,47**(0,26)

3,49**(0,24)

3,69**(0,38)

3,61**(0,33)

4,03**(0,29)

4,06**(0,29)

Log-razão de verossimilhança 

-259,69 -256,57 -296,35 -290,79 -294,47 -293,56

* p < 0 ,05 (duas caldas) ** p < 0,01 (duas caldas)

Fonte: ROH; CHOO, 2008, p. 10

Outros trabalhos interessantes foram

desenvolvidos por Miethe et al  (1991 apudCERQUEIRA; LOBÃO, 2004), onde as va-riáveis “taxa de desemprego”, “heterogeneida-de étnica”, “mobilidade residencial”, “contro-le institucional” e a existência de mais de ummorador por cômodo demonstraram signifi-cância estatística em relação aos homicídios,roubos e arrombamentos (variáveis dependen-tes para crime). Warner e Pierce (1993 apud

CERQUEIRA; LOBÃO, 2004), a partir dechamadas telefônicas para a polícia fizeram umcross-section de 1.980 localidades na cidade deBoston na década de sessenta. A pobreza teveum coeficiente significativo e com sinal espera-do pela teoria, a mobilidade residencial gerouum sinal contrário ao esperado e a heterogenei-dade na maioria dos modelos testados resultouem não significância estatística (CERQUEI-RA; LOBÃO, 2004, p. 239).

1.2 A Teoria do Aprendizado Social ou Teoria

da Associação Diferencial

 A teoria do aprendizado social parte dahipótese de que as bases da conduta humanatêm suas raízes no aprendizado que as experi-ências diárias enseja ao indivíduo. O homem,segundo essa explicação, atua de acordo comas reações que sua própria conduta recebedos demais, de modo que o comportamento

individual acha-se permanentemente mode-lado pelas experiências da vida cotidiana. Ocrime não é algo anormal nem sinal de umapersonalidade imatura, mas um comporta-mento ou hábito adquirido, isto é, uma res-posta a situações reais que o sujeito aprende.

 A teoria da associação diferencial foiformulada por Sutherland nos anos 1930 e,posteriormente, por seu colaborador Cres-sey (1960). Em suas investigações sobre a

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criminalidade do colarinho branco, sobrea delinquência econômica e profissional esobre os níveis de inteligência do infrator,Sutherland chegou à conclusão de que aconduta desviada não pode ser imputada adisfunções ou inadaptação dos indivíduosdas classes mais baixas socioeconomica-mente, senão à aprendizagem efetiva dosvalores criminais, o que pode acontecer emqualquer cultura (SUTHERLAND, 1940).

Segundo Sutherland, o crime não éhereditário nem se imita ou inventa. Nãoé algo fortuito ou irracional: o crime seaprende. A capacidade ou destreza e a moti-vação necessárias para o delito se aprendem

mediante o contato com valores, atitudes,definições e pautas de condutas criminaisno curso de processos normais de comu-nicação e interação do indivíduo com seussemelhantes.

 A conduta criminal se aprende em in-teração com outras pessoas, mediante umprocesso de comunicação. Requer, pois,uma aprendizagem ativa por parte do in-

divíduo. Não basta viver em um meio cri-minogênico, nem manifestar determina-dos traços da personalidade ou situaçõesfrequentemente associadas ao delito. Nãoobstante, em referido processo participamativamente, também, os demais.

 A parte decisiva do citado processo deaprendizagem ocorre no seio das relaçõesmais íntimas do indivíduo com seus familia-res ou com pessoas do seu meio. A influência

criminógena depende do grau de intimidadedo contato interpessoal.

O aprendizado do comportamentocriminal inclui também a das técnicas decometimento do delito, assim como a daorientação específica das correspondentesmotivações, impulsos, atitudes e da própria

 justificação racional da conduta delitiva.Uma pessoa se converte em delinquente

quando as definições favoráveis à violação da

lei superam as desfavoráveis, isto é, quandopor seus contatos diferenciais aprendeu maismodelos criminais que modelos respeitososao direito. As associações e contatos dife-renciais do indivíduo podem ser distintosconforme a frequência, duração, prioridadee intensidade deles. Contatos duradouros efrequentes devem ter maior influência peda-gógica, mais que outros fugazes ou ocasio-nais, do mesmo modo que o impacto quequalquer modelo exerce nos primeiros anosda vida de um indivíduo costuma ser maissignificativo que o que tem lugar em etapasposteriores; quanto maior o prestígio que oindivíduo atribui à pessoa ou a grupos cujas

definições e exemplos aprendem, mais con-vincente é o modelo. Precisamente porque ocrime se aprende, não se imita.

O processo de aprendizagem do com-portamento criminal mediante o contatodiferencial do indivíduo com modelos deli-tivos e não delitivos implica a aprendizagemde todos os mecanismos inerentes a qualquerprocesso desse tipo.

Embora a conduta delitiva seja uma ex-pressão de necessidades e de valores gerais,não pode ser explicada como concretizaçãodeles, já que também a conduta adequada,segundo o Direito, corresponde a idênticasnecessidades e valores.

 A teoria da associação diferencial traçaum modelo teórico generalizador, capaz deexplicar também a criminalidade das clas-ses médias e privilegiadas. Contribuiu para

fomentar cientificamente e dar sentido aconceitos que, desde então, encontram naideia genérica de aprendizagem uma refe-rência obrigatória: os conceitos de reeduca-ção, modificação de conduta, aprendizagemcompensatória etc. Até mesmo as teoriassubculturais encontraram um reforço va-lioso na concepção de Sutherland, que ascomplementa, incorporando, ademais, um

significativo caráter diferencial: a ideia de

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que o crime não procede da desorganizaçãosocial, senão da organização diferencial e daaprendizagem.

Sem embargo, várias foram as objeçõesdirigidas contra tal teoria, em razão de suaambiguidade, déficit empírico e excessivosníveis de abstração – o que explica as restri-ções de Cressey (discípulo de Sutherland) e asnumerosas reformulações de que foi objeto.

 A tese de Sutherland está em consonânciacom as estruturas subculturais simples (expli-cação do “gangsterismo” norte-americano doprincípio do século), mas não se adapta to-talmente a situações subculturais muito maiscomplexas, produto da evolução social, razão

pela qual o próprio Sutherland reconheceuem seu último trabalho a necessidade de levarem conta a incidência de fatores individuaisna associação e demais complexos processospsicossociais (SUTHERLAND, 1956).

Matsueda (1982) foi o autor que pro-curou alguma relação empírica para a teoriado aprendizado social. Reanalisou os dadoslevantados na teoria vislumbrada por Suther-

land avaliando o diferencial negativo de asso-ciação da teoria. Mostrou que o raio de com-portamento aprendido por padrões favoráveise desfavoráveis à violação dos códigos legais,ou seja, a variável crítica na teoria de Suther-land pode ser operacionalizada por modela-gem estatística, percebendo sua significância.Isto permitiu testes de hipóteses específicasderivadas da teoria. Especificamente a cons-trução não aparente que representa a relação

do padrão de comportamento aprendido comêxito, mediando os efeitos sobre a delinquên-cia dos modelos de outras variáveis.

Bruinsma (1992) fez um teste empíricoda versão da teoria desenvolvida por Suther-land apresentando como base de dados 1.196meninos e meninas na faixa etária de 12 a 17anos. Além disso, algumas novas e adicionaisespecificações teóricas sobre a influência so-

cial de outras pessoas sobre o indivíduo, tudo

em conformidade com as ideias originais deSutherland, foram propostas e testadas empi-ricamente. No modelo estatístico apresenta-do, a teoria explica 51% da variação do com-portamento criminoso, mesmo considerandoque nenhuma população penal é utilizadapara o teste e apenas pequenos delitos são me-didos. O teste também mostrou que o impac-to da frequência dos contatos com os padrõesde comportamento sobre o desenvolvimentode definições é positivo sobre a frequência eque a comunicação sobre as técnicas é subs-tancial e não podem ser ignoradas pelos cri-minologistas. Além disso, as análises especiali-zadas revelaram que várias proposições foram

a favor da teoria.É o desvio dos outros que tem o maior

impacto substancial. Os mais jovens, tendocontato com seus amigos, apresentam maiorimpacto do desvio destes sobre o desenvolvi-mento de suas técnicas de atuação, sendo taistécnicas positivas ou negativas para o convíviosocial. As análises mostraram, também, que osmais jovens se identificam com os outros, e isso

contribuiu para uma relação maior do impactodo desvio dos outros sobre as suas normas.McCarthy (1996) elaborou um estudo

tendo como intuito medir as atitudes e açõesde jovens que viviam nas ruas de Toronto. Tevea tarefa de averiguar a validade da teoria da as-sociação diferencial (ou teoria do aprendizadosocial) de Sutherland naquele grupo de jovens.

 A análise focou as relações entre crimee três conceitos centrais da associação dife-

rencial: associações desviantes, elementossimbólicos que dão suporte às ofensas e àtutela de atividades criminais. Os efeitosdessas variáveis em dois tipos de crimes,vendas de drogas e roubo, foram explo-rados. As duas medidas usadas no estudoenvolveram a frequência da exposição à as-sociação desviante. As seis questões aplica-das no questionário apontaram para a exis-

tência de instruções criminais por tutores.

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O estudo descobriu que, os modelos queincluem associações desviantes, as atitudese desejos são fortalecidos com uma medidade tutela criminal.

1.3 Teoria do controle social 

 A teoria do controle social busca enten-der por que algumas pessoas se abstêm empraticar delitos. “Quanto maior o envolvi-mento do cidadão no sistema social, quantomaiores forem os seus elos com a sociedadee maiores os graus de concordância com osvalores e normas vigentes, menores seriam aschances de esse ator se tornar um criminoso”

(CERQUEIRA; LOBÃO, 2004, p. 242).Essa teoria foi utilizada para explicar

a delinquência juvenil em alguns estudos. Aqui destaco o trabalho de Agnew (2001apud CERQUEIRA; LOBÃO, 2004) ondeele diz que a falta de controle social está atri-buída a subcultura e aversão ao ambiente,fatores que provocam a inclusão do jovemna prática delituosa. Agnew (1991 apud

CERQUEIRA; LOBÃO, 2004) não encon-trou relação causal satisfatória entre a teoria eos dados levantados, principalmente no quetange as variáveis “ligações e afeições familia-res” e “compromissos escolares”.

Empiricamente os trabalhos que utili-zam dessa teoria estão ligados à formulação eaplicação de questionários.

Paternoster e Mazerolle (1994) rea-lizaram um teste mais completo da teoria

do controle social, com uma amostra lon-gitudinal de adolescentes. Acharam váriasdimensões da teoria geral do controle so-cial que apontaram positivamente para arelação com o envolvimento em uma vastagama de atos delinquentes. A teoria temtanto um efeito direto sobre a delinquên-cia como efeitos indiretos, por enfraqueceras inibições do laço social e um aumento

do envolvimento com pares delinquentes.

Os autores concluíram que a teoria geraldo controle social tem uma contribuiçãoimportante para explicar a delinquência, emais esforços devem ser empreendidos paradesenvolver plenamente as suas implica-ções.

Em Horney et al (1995) foram ana-lisadas as variações nas condições de vidade criminosos condenados para entenderas mudanças no comportamento do cri-minoso. Foram alargados o impacto dateoria do controle social (considerandoas circunstâncias em que a vida local for-talece ou enfraquece os laços sociais) e ainfluência ofensiva durante períodos re-

lativamente curtos de tempo. Os autoresprocuraram determinar se os mecanismosformais e informais de controle social afe-tavam a probabilidade de cometer novegrandes crimes graves. No estudo, foi em-pregado um modelo hierárquico linear queproporcionou uma análise individual coma intenção de explorar os fatores que de-terminam o padrão da ofensa criminosa.

Os resultados sugeriram que uma mudan-ça em curto prazo no envolvimento com ocrime está fortemente relacionada à varia-ção na vida local.

Segundo Entorf e Spengler (2002), hácinco variáveis latentes que normalmentesão utilizadas em modelos que tentam me-dir a teoria do controle social: ligação filial;ligação escolar; compromisso; crenças des-viantes; amigos delinquentes. Para medi-las,

os autores utilizaram surveys  com perguntasque, de alguma forma, contribuíam para re-conhecer o nível de associação entre o com-portamento desviante e os laços familiares ecom os amigos. Perguntas como “você nor-malmente faz atividades com sua família?”,que tinha o intuito de averiguar a relação deproximidade com os pais, e outras que bus-cam avaliar se os valores sociais são facilmen-

te infringidos.

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1.4 Teoria do autocontrole 

Gottfredson e Hirschi (1990) foramos elaboradores da teoria do autocontrole.

 Adeptos de uma visão sociológica que reto-ma o tema da formação individual na infân-cia em sua interação face a face (BERGER;LUCKMANN, 2005), Gottfredson e Hirs-chi (1990) afirmam que os indivíduos des-viantes se comportam assim por não teremdesenvolvido mecanismos psicológicos deautocontrole na fase entre os 2 ou 3 anos deidade até a fase pré-adolescente.

O comportamento desviante seria expli-cado pelas deformações no processo de socia-

lização da infância, e seria desencadeado pelaineficácia na conduta educacional ministradapelos responsáveis da criança. Estes teriamfalhado em não impor limites, seja em conse-quência da falta de uma supervisão mais apro-ximada, seja por negligência ao mau compor-tamento eventual da criança. Assim, a falta depunições a tornaria egoísta e insolente.

Na adolescência, o resultado da forma-

ção educacional deficiente fragmentaria osmecanismos de autocontrole do indivíduona adolescência, levando-o a práticas delin-quentes e a andar mal acompanhado.

Há, como na teoria acima explorada,problemas de caráter empírico no momentode se tentar medir o impacto de certas variá-veis na condução da teoria. Tendo em vista aimpossibilidade de se mensurar variáveis decaráter latente, como são aquelas destinadas

a medir o autocontrole, o dispositivo utiliza-do é o da elaboração de questionários.

 Alguns exemplos de questões normalmente encon-tradas nesses questionários dizem respeito à concor-dância em relação às frases: “frequentemente eu ajoao sabor do momento”; “eu raramente deixo passaruma oportunidade de gozar um bom momento”;“eu olho para mim mesmo, ainda que eu faça coisasque colocam as pessoas em dificuldades” etc. (CER-QUEIRA; LOBÃO, 2004, p. 244).

 A literatura que buscou testar essas va-riáveis como mensuração para a teoria doautocontrole teve dificuldades empíricas. Detodo, destaco alguns trabalhos e os seus prin-cipais resultados.

 Arneklev et al  (1993) desenvolveramuma pesquisa procurando explorar a genera-lidade da teoria do autocontrole, analisando arelação entre baixo autocontrole e comporta-mentos imprudentes. Os resultados são mis-tos. Em apoio à teoria, os dados revelam umefeito modesto, mas significativo, de uma es-cala concebida para capturar os vários compo-nentes do baixo autocontrole em um índicede comportamento imprudente. Uma análise

mais detalhada, no entanto, revela que algunsdos componentes de baixo autocontrole (es-pecificamente aqueles provavelmente ligadosà baixa inteligência) prejudicam a dimensãodo poder preditivo. De fato, um dos compo-nentes (a busca por riscos) é mais preditiva doque a mais inclusiva escala. Além disso, umdos atos imprudentes (tabagismo) parece serafetado por um baixíssimo autocontrole. Os

resultados contraditórios achados sugerem anecessidade de refinamentos teóricos.Polakowski (1994) traçou uma delimi-

tação ampla entre o autocontrole e os dis-túrbios da hiperatividade pessoal, impulsivi-dade, déficits de atenção, comportamento epequenos problemas. Psicólogos discordam seesses transtornos representam característicasúnicas ou múltiplas e se ambas as medidascomportamentais e cognitivas podem descre-

ver adequadamente certas características napersonalidade. Empregando técnicas de equa-ção estrutural, Polakowski apoia várias pro-posições derivadas de Gottfredson e Hirschi(1990). O autor chegou a algumas conclu-sões: autocontrole subsumiu a personalidadee é significativamente composto por indica-dores comportamentais precoces da agressão eda guerra, estando inversamente relacionado

aos outros elementos do laço social. É mode-

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radamente estável durante um curto períodode tempo, e prediz significativamente conde-nações penais. No entanto, permanecem dú-vidas quanto à onipresença do autocontrole, amagnitude e sentido da estabilidade, e com opoder desta perspectiva para explicar todas asformas auto relatadas de delinquência.

1.5 Teoria da anomia 

 A teoria da anomia tem forte caráter psi-cológico. Baseia-se na frustração que o indi-víduo tem em face de suas defasagens socio-econômicas. Merton (1938) asseverou que adelinquência decorreria da impossibilidade

de o indivíduo atingir metas desejadas porele, sobretudo as de caráter econômico. “Oprocesso de anomia ou tensão decorreria dadiferença entre as aspirações individuais e asreais possibilidades de realização das mesmas”(CERQUEIRA; LOBÃO, 2004, p. 245).

 Agnew (1992) procurou ampliar a teoria da ano-mia para compreender – além da frustração decor-rente da defasagem entre as aspirações individuais

e os meios socialmente existentes para satisfazê-las–, adicionalmente, duas circunstâncias: a frustra-ção derivada do fato de outros terem retirado doindivíduo algo de valor (não estritamente mate-rial); e o fato de que as pessoas são confrontadascom circunstâncias negativas engendradas pordiscordâncias ou divergências sociais. Esse de-senvolvimento, que ficou conhecido como teoriageral da anomia ( general strain theory ), foi testadopor Agnew e White (1992), Agnew (1993), Pater-noster e Mazerolle (1994) e Hoffmann e Miller(1998), e todos encontraram evidências empíricas

a favor. De maneira geral, esses trabalhos forambaseados em dados provenientes de pesquisas in-dividuais, nas quais várias categorias de crimes econtravenções foram explicadas a partir de variá-veis indicadoras de focos de tensão social. Algunsexemplos são: “distância entre aspirações individu-ais e expectativas”, “oportunidades bloqueadas”;“frustração relativa”; “eventos de vida negativos”;“sofrimento cotidiano”; “relações negativas comadultos”; “brigas familiares”; “desavenças com vi-zinhos”; e “tensões no trabalho” (CERQUEIRA;LOBÃO, 2004, p. 246).

Mendonça (2000) aponta para uma re-lação entre a privação do consumo e a práti-ca de homicídios intencionais na cidade doRio de Janeiro. De certa forma, contribuipara uma comprovação empírica da teoriada anomia.

1.5 Teoria Econômica da Escolha Racional 

Os estudos baseados em teorias que têmcomo base a economia (estrutura econô-mica) ou a Escolha Racional (ER) tiveramcomo ponto de partida teórico o trabalhoseminal de Gary Becker (1968) “Crimeand punishment: an economic approach”,

publicado no  Journal of Political Economy .De acordo com essa teoria, o ato criminosodecorre de uma avaliação racional do indi-víduo em torno de uma cesta de oportuni-dades entre o mercado formal e o mercadoinformal (ou ilícito). A decisão do indivíduode cometer ou não o crime estaria atreladaa um processo de maximização de utilidadeesperada. O indivíduo, dentro do quadro de

oportunidades disponíveis, racionalizaria ospotenciais ganhos resultante da ação crimi-nosa, o valor da punição e as probabilidadesde detenção associadas, também, ao custo dese cometer o delito. O parâmetro utilizadoseria o confronto entre o salário que o in-dividuo poderia receber no mercado formal(levando em consideração sua formação,posição social etc.) e o salário percebido nomercado informal ou ilegal.

Vários autores seguiram o caminho deGary Becker e desenvolveram estudos com asmais diversas variáveis socioeconômicas paraestudar os efeitos em relação à criminalida-de e violência. Variáveis como desemprego,renda, gastos públicos, nível de escolaridade,capital humano, capital social, capital físicoe etc. foram utilizados para medir o impactodas relações socioeconômicas no crime co-

mum, entre eles os homicídios.

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Estudos de caráter empírico tiveram aorientação da ER. Tais estudos seguiram ocaminho de investigar a relação causal entreo crime e o mercado de trabalho, a renda, adesigualdade, a dissuasão policial, a demo-grafia e a urbanização, entre outros.

Freeman (1994) pesquisou sobre o temano âmbito do mercado de trabalho e demons-trou que não há consenso sobre a questão emestudos de séries temporais. Utilizando técnicasde análises longitudinais com dados agregadosregionalmente, foi captada uma certa relaçãopositiva entre crime e desemprego, apesar deproblemas existirem com correlações espúriasem seu trabalho. Algumas dificuldades meto-

dológicas são apontadas no estudo, sobretudoos métodos qualis (como entrevistas em que sedepende de relatos dos presos), isso leva possi-velmente a formação de vieses. Desses estudos,porém, se chega à conclusão de que os presosapresentam maior probabilidade de ter menosrenda ou menos emprego que outros grupos.

Relacionar mercado de trabalho e o cri-me é uma tarefa desafiante, pois há problemas

em se ter dados confiáveis para isso. Contudo,uma boa pesquisa nesse sentido pode ser exe-cutada com variáveis como renda e desempre-go, estimativa da oferta de trabalho na áreacom altos índices de criminalidade, participa-ção criminal em áreas de escassez de emprego,e a relação entre salários previstos e a rentabili-dade advinda com a prática criminosa.

Gould, Weinberg e Mustarde (2000),em pesquisa efetuada em 709 municípios

americanos (de 1979 a 1997), chegaram aresultados significantes em seus modelos,nos quais jovens com baixa especializaçãoresponderam mais facilmente ao custo deoportunidades do crime.

Os resultados deram conta ainda de que a tendên-cia de longo prazo do crime pode ser mais bemexplicada pela tendência de longo prazo dos salá-rios de homens jovens não educados – que expli-ca 43% e 53% dos crimes contra a propriedade

e violentos contra a pessoa, respectivamente – doque pelo desemprego (CERQUEIRA; LOBÃO,2004, p. 252).

 Wolpin (1978) fez um estudo cobrindoseis tipos diferentes de crime ocorridos na

Inglaterra e País de Gales entre os anos de1894 e 1967. Utilizaram seis variáveis dife-rentes de dissuasão judicial: taxa de esclare-cimento do crime, taxa de aprisionamento(as duas variáveis mais significativas), taxade condenação, taxa de multa, taxa de reco-nhecimento e tempo de sentença média. Asvariáveis mais significantes foram a taxa deesclarecimento e a taxa de aprisionamento.

 A variável “punição” não se mostrou signifi-cante. Os efeitos decorrentes do desempregoe o quantitativo da população jovem forampositivos em relação à criminalidade.

Os estudos econômicos que utilizam esta-tísticas e análises de impacto de variáveis expli-cativas das mais diversas passaram a impactaras políticas públicas e em gestões municipaisna área da segurança pública. Sendo assim, napróxima seção analiso a teoria de olerância

 Zero nos seus aspectos conceituais e empíricos.

1.6 Os Fundamentos Teóricos do Tolerância Zero: Broken Windows 

O artigo seminal de Wilson e Kelling(1982), “Broken windows: the police and nei-ghborhood safety”, foi o ponto de partida doprograma de segurança pública de Nova Ior-

que e de outras cidades, conhecido como o-lerância Zero. As broken windows não se mos-tram como uma teoria elaborada, mas comouma série de “noções” em que uma delas temcomo base uma teoria “involutiva” do crime,na qual este começa pequeno, cresceria e setornaria “grande”. Teria como base a ausênciade autoridade, de ordem nos espaços públi-cos. Esses espaços se tornariam amplos para aprática de delitos quando da ausência do es-

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tado como autoridade, como responsável pelaordem pública (SOARES, 2008, p. 170).

 As “janelas quebradas” seriam uma alu-são aos espaços públicos vertidos de peque-nas incivilidades. Pichações, urinar em pú-blico, bêbados na rua, moradores e meninosde rua, invasões de áreas públicas e privadasetc. levariam a comportamentos destrutivosdo espaço urbano dando a impressão de quenão existe ordem. Com esses alargamentos, ocrime seria o próximo passo.

Essa teoria tem como base analítica aintenção de medir a relação causal entre de-sordem e criminalidade. Parte de um prin-cípio normativo que define desordem como

um comportamento inadequado, como jácitado anteriormente, também relacionadoa pequenas incivilidades. A fragilidade docontrole social por parte das autoridades pú-blicas abriria espaços de oportunidades parapráticas delituosas advindas do comporta-mento desordeiro.

Há certa relação entre a teoria brokenwindows  e as que são sustentadas por Suther-

land, sobretudo as ligadas à desorganizaçãosocial e ao aprendizado social. Contudo, ofoco da teoria é o ambiente abandonado pelopoder público que geraria espaços oportunosde práticas desordeiras ou delituosas.

Skogan (1990) realizou uma pesquisaem algumas cidades americanas para tentarmedir o impacto da desordem na criminali-dade. O estudo resultou numa forte correla-ção entre desordem social e criminalidade, e

sua pesquisa (baseada em um total de 13.000entrevistas em Atlanta, Chicago, Houston,Filadélfia, Newark e São Francisco) demons-trou que a desigualdade, a pobreza e o de-senvolvimento econômico tinham poucarelação com o crime, mas as desordens pro-vocadas por espaços abandonados e compor-tamentos advindos da falta de controle socialestariam na raiz da criminalidade naquelas

cidades analisadas.

Kelling e Coles (1996) demonstraram arelação causal entre criminalidade violenta ea não repressão de pequenos delitos e contra-venções. Apontaram que a polícia americanaveio abandonando seu caráter de controle emanutenção da ordem pública no século XX,para dedicar-se exclusivamente ao combate àcriminalidade. O aumento da violência esta-ria, segundo os autores, ligado à mudança deestratégia adotada pela polícia. A prevençãodo crime também era atributo da polícia e,com o passar do tempo, ela arrefeceu seu cará-ter preventivo apenas dedicando-se a comba-ter a criminalidade. O papel do policial comoagente da comunidade, entrando e conviven-

do com a comunidade foi abandonado favo-recendo o aparecimento de escotilhas sociaispara a prática delituosa.

Os mesmo autores colocaram a necessi-dade de criação de uma relação de confiançaentre a comunidade e a polícia para a gera-ção de accountability  por parte daquela. Semconfiança institucional seria praticamente im-possível manter a ordem pública e, ao mesmo

tempo, combater à criminalidade violenta. Aconfiança seria o combustível para uma rela-ção de reciprocidade entre a comunidade e apolícia, que depende muito dessa relação parasolucionar crimes. Por isso, para os autoressupracitados, é de fundamental importânciao policiamento comunitário para a criação dovínculo de confiança entre a polícia e os indi-víduos da comunidade em questão.

O abandono por parte da polícia da ma-

nutenção da ordem pública levou ao recrudes-cimento da criminalidade, pois das pequenas

 janelas quebradas – pequenas incivilidadescomo destacado por Soares (2008) – foramgerados espaços mais amplos de abandono deonde, da metáfora das janelas quebradas, o res-tante da casa ou do edifício fora completamen-te abandonado. As pequenas incivilidades gera-ram os pequenos delitos e furtos e desses para o

crime mais violento, como os homicídios.

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1.6.1 Nova Iorque: um caso especial

No início da década de noventa a cida-de de Nova Iorque passava por uma série deproblemas relacionados à segurança e a vio-lência. Os cidadãos nova-iorquinos passarama pressionar as autoridades em busca de umasolução para tais problemas. Desde a déca-da de setenta aqueles problemas vinham serobustecendo. Pessoas dormindo nas praçase metrôs, fazendo suas necessidades fisiológi-cas pelos cantos da cidade, formação de gangs  

 juvenis e grupos de extorsão de transeuntes emotoristas. A situação apontada levou à prá-tica o que vinha sendo discutido e defendido

na teoria da broken windows. As autoridadespassaram a investir nesse sentido.

O poder coercitivo das polícias passoua ser exercido de forma a perpassar a ques-tão do crime. Pequenas incivilidades foramreprimidas. Delitos pequenos, como pularuma catraca no metrô para não pagar a pas-sagem, passaram a ser coagidos veemente-mente pela polícia. Tal comportamento ins-

titucional veio, sobretudo, a partir da eleiçãodo promotor de Justiça de Nova Iorque,Rudolph Giuliani, paraa prefeito da cidade.

 Além da incisiva participação policialnessas incivilidades, o trabalho do policia-mento comunitário foi outro consideradoimportante para a redução das práticas de-lituosas naquela cidade americana. Maiscontratação de policiais para o trabalho os-tensivo e preventivo é apontado como um

dos fatores da redução da criminalidade. Apesar de não termos referências empíricasmais robustas.

Segundo Dias Neto (2000), o policia-mento preventivo é importante para a re-alização da tarefa de controle social do cri-me. A viabilização da parceria entre políciae comunidade no combate à criminalidadedevem seguir alguns mecanismos: função

policial no controle social perpassando a

questão do crime formal; descentralizaçãodo planejamento policial, respeitando as es-pecificidades locais; interação entre policiaise cidadãos fortalecendo a rede de confiançaentre os cidadãos e a polícia.

Contudo, a aplicação de políticas pú-blicas de segurança baseadas na teoria das

 janelas quebradas   esbarrou em críticas dedefensores dos direitos civis, direitos huma-nos e da democracia liberal estadunidense.Os que defendem o olerância Zero inclinamseu discurso para a repressão ao comporta-mento dos indivíduos outsiders , mas não asua condição de diferente ou excluído socio-economicamente (Rubin, 2003).

Numa perspectiva mais pragmática, So-ares (2008) apontou para o sucesso do ole-rância Zero em Nova Iorque.

O número de homicídios em Nova York foi dras-ticamente reduzido de 2.245, em 1990, para 606,em 1998. Os crimes no metrô foram reduzidosem 80% e outros crimes, como estupro, assalto efurto/roubo de veículos, também sofreram redu-ções. Um crítico do programa publicou dados queconfirmam esse sucesso: os homicídios declinaram

72% entre 1990 e 1998 e os crimes violentos, nototal, caíram 51% (SOARES, 2008, p. 169).

Soares (2008) indica que a teoria dobroken windows  seria mais um conjunto de“noções” do que uma teoria elaborada. Naverdade, as janelas quebradas seriam umaviso à sociedade de que tudo está bagunça-do, desordenado e deve-se voltar aos eixos.Os espaços públicos teriam se reduzido e os

“cidadãos de bem” limitados a certas áreasdas cidades cada vez mais restritas e em ho-rários específicos.

Os espaços urbanos insalubres e desor-ganizados levariam os jovens a práticas depequenas incivilidades que poderiam evoluirpara outras práticas mais nocivas. Semelhan-te à teoria do aprendizado social ou da As-sociação Diferencial, o jovem aprende a co-

meter certos delitos ou a ter comportamento

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desviante quando é estimulado pelo ambien-te cada vez mais propício a tais práticas.

 A aplicação do modelo olerância Zeroem Nova Iorque foi reforçado com o expur-go de maus policiais de seus quadros. Deoutro lado foram contratados 400 policiaispara reforçar a polícia e os salários foramrevistos e aumentados. Os resultados foramrelevantes: “já no primeiro ano houve umdeclínio de 18% na taxa de homicídios e de32% na de assaltos a mão armada, ao passoque a taxa de resolução de crimes aumentou25%” (SOARES, 2008, p. 171).

Billante (2003 apud Soares, 2008) afir-ma que o olerância Zero  se baseia em três

princípios tradicionais da melhor ciência po-licial: dissuasão pela forte presença policial;patrulhamento intenso das áreas “quentes”;prisões focalizadas.

Como afirma Goertzel e Khan (2009) eKahn e Zanetic (2009) as taxas crescentes deaprisionamento são importantes para a redu-ção da criminalidade em São Paulo. Zaveru-cha e Nóbrega Jr. (2015) demonstraram, em

estudo recente, que o aumento das prisões de

indivíduos acusados de homicídios – simplese qualificado – teve significante impacto nadiminuição da violência homicida em Per-nambuco. Billante (2003 apud SOARES,2008) entende que prisões focalizadas sãorelevantes e que partem do princípio de queum número relativamente pequeno de cri-minosos é responsável por uma percentagembastante alta de crimes.

Contudo, Levitt e Dubner (2005) fo-ram enfáticos a reduzirem a quase zero oimpacto do olerância Zero em Nova Iorque.Os autores apontaram para o controle davariável  jovem quando da aprovação da leido aborto em muitos estados americanos na

década de sessenta, o que veio a ser variáveldeterminante para a redução da criminali-dade violenta em Nova Iorque nas décadasseguintes. Sem, contudo, fazer nenhum mo-delo estatístico mais sofisticado para susten-tar a hipótese.

 Abaixo segue a ilustração do modelobroken windows de policiamento, detalhan-do as funções e estratégias da administração

dos conflitos.

Quadro 1Organograma do broken windows como base teórica do Tolerância Zero

Policiamento baseadoem informações

Polícia orientadapara problemas

Broken WindowsPoliciando pequenos crimes e incivilidades,frequentemente inclui o uso de trabalho de

inteligência no policiamento de pessoas

Políciacomunitária 

Usa ciência, pesquisae tecnologia para

concentrar recursos emáreas “quentes”, horas“quentes” e criminosos

selecionados

Visa a solução deproblemas específicos

Parcerias entre acomunidade e a

polícia. Programascomunitários.

 Aumento do fluxo deinformações nos doissentidos e a prestação

de serviços extra

policiais pela polícia 

TolerânciaZero

Combateindiscriminado e totalde todos os tipos decrime e pequenas

incivilidades

Fonte: Soares (2008, p. 173)

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1.7 Crime e Violência: Causas Multifatoriais 

 A criminalidade violenta geralmente édifícil de ser explicada baseada em apenasuma teoria. Sociologicamente existem váriasexplicações do comportamento individuale coletivo, e, também, do comportamen-to criminoso. Por que indivíduos cometemdelitos? Por que pessoas matam outras? Porque os homicídios sofrem incrementos posi-tivos mesmo com melhorias nos indicadoressociais e econômicos? Nem sempre as expli-cações teóricas se sustentam aos testes empí-ricos aplicados. Outras teorias, como vimos,têm dificuldades empíricas, pois necessitam

da aplicação de questionários/entrevistasnem sempre bem elaboradas e nem sempreadequados(as) para a realidade em estudo.

Desigualdade, pobreza, densidade demo-gráfica, desemprego, baixo capital social etc.podem ser variáveis que, quando confronta-das com as variáveis dependentes de crime eviolência, dão respostas a certas teorias. Mas,não temos como generalizar, pois existem cer-

tos contextos em que elas contrariam as teo-rias (SOARES, 2008; NÓBREGA JR, 2012).Na verdade o crime violento, e a violên-

cia em si, têm explicações multivariadas. As

causas em um contexto nacional podem nãoser as mesmas em outro contexto regional,estadual ou municipal. É importante averi-guar as diversas variáveis sem levar em con-sideração determinações teóricas. De outrolado, mostra-se imperativo o domínio dateoria para os testes das variáveis.

O esforço feito neste trabalho segueno sentido de trazer mais subsídios aosaspectos teóricos dos estudos empíricosempreendidos pelos governos e acadêmi-cos brasileiros. Temos os pioneiros dosestudos da violência, que foram responsá-veis pela abertura da agenda de estudos dacriminalidade e das políticas públicas em

segurança no Brasil, os primeiros a efetuarestudos na Antropologia, na Sociologia ena Ciência Política de extrema relevânciapara o desenvolvimento dos estudos empí-ricos mais robustos na nossa contempora-neidade (LIMA; RATTON, 2011). Mas,as ferramentas teóricas, sobretudo inter-nacionais, ainda foram pouco exploradaspelos estudiosos do tema no Brasil.

 A criminalidade e a violência têm seusnexos causais e precisam ser refletidas à luzde teorias. Este estudo ajudará, sem dúvida,nesse intento.

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Resumo

Teorias do Crime e da Violência: uma revisão da literatura 

Existem muitas teorias que tentam explicar as causas da violência, com algumas se tornando referência em estudoselaborados em importantes escolas criminológicas, como a Escola de Chicago. Neste trabalho discuto algumas dasprincipais teorias explicativas da criminalidade, delinquência e violência, e o objetivo central do artigo é trazer umarevisão da literatura, sobretudo a internacional, destacando desde teorias sociais do crime e da violência, como a teoriado aprendizado social desenvolvida por Edwin Sutherland no início do século passado, até as teorias econômicas base-adas num cálculo estratégico do ator criminoso, como a Teoria da Escolha Racional e a Broken Windows, que tiveram

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em autores como Gary Becker, James Wilson e George Kelling produções importantes com base em teorias racionaisdo crime e da violência.

Palavras-Chave: Crime; Criminalidade; Violência; Delinquência e Teorias.

Abstract

Theories of Crime and Violence: a literature review 

There are many theories seeking to explain the causes of violence. Some of them became reference in studies conduct-ed in major criminological schools, such as the Chicago School. This paper discusses some of the leading explanatorytheories about crime, delinquency, and violence. Its main objective is to review the literature, particularly the inter-national one, highlighting the social theories on crime and violence, such as the Social Learning Theory developedby Edwin Sutherland at the beginning of the last century, and the economic theories based on a strategic calculationof the criminal agent, such as those of the Rational Choice and the Broken Window theories, which had, in authorslike Gary Becker, James Wilson, and George Kelling, important productions based on rational theories about crimeand violence.

Keywords: Crime; Criminality; Violence; Delinquency; Theories on Crime and Violence.

Résumé

Théories du Crime et de la Violence : une révision de la littérature 

Il existe de nombreuses théories qui tentent d’expliquer les causes de la violence. Certaines sont devenues des théoriesde référence dans les études préparées dans d’importantes écoles de criminologie, telles l’École de Chicago. Ce travailaborde certaines des théories majeures, explicatives de la criminalité, de la délinquance et de la violence. L’objectifcentral de l’article est de proposer une révision de la littérature, particulièrement l’internationale, en mettant en avantaussi bien les théories sociales du crime et de la violence, telle la théorie de l’apprentissage social développée par EdwinSutherland au début du siècle dernier, que les théories économiques basés sur un calcul stratégique de l’acteur criminel.C’est le cas de la théorie du Choix Rationnel et la Broken Windows , dont des auteurs tels Gary Becker, James Wilsonet George Kelling, ont eu une importante production fondée sur des théories rationnelles du crime et de la violence.

Mots-clés: Criminalité; Criminalité; Violence; Délinquance et théories.

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Marialice Foracchi e a Formação da Sociologia da Juventude no Brasil

Nilson Weisheimer 

Marialice Mencarini Foracchi tem seunome gravado na história do pensamento so-cial brasileiro por ter legado uma obra que éconsiderada um marco na formação da So-ciologia da Juventude no Brasil. O cinquen-tenário da primeira edição de O estudante e

a transformação da sociedade brasileira é umaocasião propícia para revisitar sua obra, como propósito de buscar nela alguns recursospertinentes à análise de fenômenos juvenis naatualidade1. No conjunto de seus trabalhos, Fo-racchi forneceu-nos análises simultaneamenteamplas e profundas sobre os jovens, a condiçãode estudante universitário e o movimento es-tudantil. É necessário concordar com Martins

(1982), que afirma ser “impossível escreverhonestamente sobre os movimentos estudantise os conflitos de gerações em nosso país semampla referência aos trabalhos dessa autora” (p.VIII). Trata-se, como já demonstrou Augusto(2005), de uma “obra clássica”, “na medida emque seus estudos permanecem centrais para adiscussão atual desses temas e ainda hoje é pos-sível aprender com seus textos” (p. 12).

 As obras dos autores clássicos, apesarde produzidas em outros contextos histó-ricos e sociais, caracterizam-se por preser-varem sua atualidade, ao passo que suasinterpretações detêm um longo alcance

e significação teórica, constituindo, poressa razão, pontos de referência para ques-tionamento e investigações sobre os pro-cessos contemporâneos. É esse o estatutoque atribuímos ao trabalho de Foracchino campo de estudos sobre a juventude

no Brasil. Augusto (2005) destaca que,em sua obra, essa autora abordou questõescomplexas, como a situação, o papel e po-lissemia da noção de juventude, o conceitode geração e a coexistência de gerações, osprocessos de transição para a vida adulta, asocialização, os projetos e a autonomia dos

 jovens, o estudante como categoria social eo significado dos movimentos juvenis e es-

tudantis, temas que receberam “tratamen-to deveras apurado, que ainda pode servirde estímulo e diretriz para os(as) analistascontemporâneos(as)” (Ibid., p. 11).2

O presente ensaio representa umatentativa de sistematização da contribui-ção de Marialice Foracchi à Sociologia da

 Juventude, tendo como base sua principalpublicação. O objetivo é colaborar paraque a teoria social que ela elaborou possainspirar a reflexão das novas gerações depesquisadores interessados no tema. Ini-ciamos por apresentar ao leitor uma expo-sição sintética da trajetória da Sociologia

1 O autor expressa seu agradecimento a Maria Helena Oliva Augusto pela leitura atenta dos originais e pelo incen-tivo durante a trajetória deste estudo, ao tempo que assume total responsabilidade sobre o conteúdo apresentado.

2 Apesar de passar por um relativo esquecimento, a obra de Marialice Foracchi tem sido retomada por jovens pes-

quisadores como Tavares (2008), Martins (2011) e Silva (2014).

BIB, São Paulo, n. 77, 1º semestre de 2014 (publicada em dezembro de 2015), pp. 91-117.

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da Juventude para, posteriormente, nasegunda sessão, apresentar de modo pa-norâmico sua obra, objetivos e métodos,a fim de mostrar como sua perspectivainterpretativa se delineia, por meio da ar-ticulação de três eixos interdependentes ecomplementares: as relações interpessoais,as histórico-estruturais e a práxis estudan-til. Depois abordaremos a transformaçãodo jovem em estudante, a partir da relaçãodele com a família; destacam-se, então, osvínculos de manutenção e os estilos de de-pendência atribuídos a situação de classedo estudante. Na sessão posterior é reto-mada a análise do processo de transição da

dependência à autonomia, sobressaindosua manifestação no âmbito do trabalho,da profissionalização e dos projetos de car-reira que expressam os anseios de mobi-lidade social das famílias de classe médiada época de seu estudo. A revisão abordafinalmente sua análise da  práxis   estudan-til, apontando as oscilações e inconsistên-cia do radicalismo pequeno-burguês que

caracterizou o movimento estudantil porela estudado. Esperamos que esta revisãopossa servir de estímulo à leitura de seustextos originais, que é a melhor forma paraconhecer a autora e sua obra.

Antecedentes da Sociologia

da Juventude

 A juventude figura como tema de pes-

quisa já nos primeiros estudos empíricos pre-cursores da Sociologia 3, sendo, desde então,uma pauta recorrente do interesse sociológi-co. Em linhas gerais deve ser posto que a ju-ventude surge como tema de pesquisa socialnos primórdios da Sociologia. Antes mesmo

dela se constituir como ciência autônoma einstitucionalizada, a juventude era objeto deinvestigação nos estudos de levantamentosocial que marcaram a pré-história das Ciên-cias Sociais, no século XVIII.

No momento de gênese da Sociologia da Juventude, quando os precursores buscavamapontar os traços distintivos do processo dematuração social, predominava a imprecisãonas categorias utilizadas. Segundo Flitner(1968), “não é possível ignorar a falta de pre-cisão com que são aplicados os conceitos ‘ju-ventude’, ‘rapazes e moças’, ‘os jovens’ que sãoutilizados como contraste para ‘criança’” (p.40). As pesquisas iniciais foram marcadas por

perspectivas educacionais, normativas e psico-lógicas sobre a condição juvenil, situação quesó seria alterada em meados do século XX.

Na época que corresponde ao início doséculo XX e se estende ao período entre asguerras mundiais, o campo de estudo da

 juventude ainda permanecia, em grandemedida, dominado pela Educação e pelaPedagogia. A constituição de uma sociolo-

gia específica se realizaria lentamente comoresultado direto da maior visibilidade socialadquirida pela juventude, que passou a serconsiderada um segmento diferenciado eum grupo socialmente distinto. Para isso, foidecisivo o surgimento de um “movimento

 juvenil” e da “cultura juvenil” que aparece-ram, principalmente, nos primeiros anos doséculo XX. As manifestações dos traços cul-turais e políticos juvenis fizeram-se presentes

em movimentos culturais modernistas e nasvanguardas políticas. Com efeito, ainda naprimeira década desse século, tiveram inícioas primeiras experiências de institucionaliza-ção das pesquisas sociais sobre juventude na

 Alemanha. No período entre as duas grandes

3 Flitner (1968) cita como percursosres dos estudos sobre juventude autores como Jonhn Loock, David Fordyce,

 Jean-Jacques Rosseu, Johann Heinrich Pestalozzi, Stanley Hall, entre outros.

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guerras, a produção da pesquisa social deslo-cou-se para o outro lado do Oceano Atlân-tico, encontrando na Escola de Chicago suaexpressão mais avançada.

Com a implantação dos regimes fas-cistas, e depois da eclosão da II GuerraMundial, as pesquisas sociológicas sobre

 juventude foram suspensas no continenteeuropeu. Apenas o sociólogo húngaro KarlMannheim, em seu exílio na Inglaterra,desenvolveria sistematicamente uma teoriasociológica das gerações. Sua contribuiçãofoi decisiva para a formação de Sociologiada Juventude, fornecendo o conceito socio-lógico de geração, que rompeu com resquí-

cios naturalistas da explicação do fenômeno,definindo-o como uma condição situacionalante o processo histórico e social. Em sua vi-são, uma geração é constituída por aquelesque vivem uma “situação” comum peranteàs dimensões históricas do processo social, oque caracteriza uma “situação de geração”.De acordo com Mannheim (1982), “para separticipar da mesma situação de geração, isto

é, para que seja possível a submissão passivaou o uso ativo das vantagens e dos privilégiosinerentes a uma situação de geração, é preci-so nascer dentro da mesma região histórica ecultural” (p. 85). A situação de geração cor-responderia a certos locais geracionais queestruturam posições sociais compartilhadaspor indivíduos de um mesmo grupo etário,mas que não se reduz à idade deles. Destemodo, compreende-se que geração é um con-

ceito situacional.Sucedendo-se no tempo, as gerações se

apresentam como a não simultaneidade dosimultâneo, o que significa que cada pontodo tempo é um espaço de tempo que nãose reduz a uma única e homogênea relaçãocom o tempo histórico. Ou seja, indivíduosde gerações diferentes passam por processoshistóricos simultâneos de modos diferencia-

dos. Os membros de uma mesma geração

também podem atribuir significados dis-tintos ao mesmo contexto histórico. Comefeito, a geração, assim como a classe social,apresenta-se mais como uma potencialidadedo que como um grupo concreto que resul-taria da transformação dialética do grupo emsi  em um grupo  para si . Mannheim (1982)produziu então uma importante distinçãoentre  geração enquanto realidade e  unidadede geração. A  geração enquanto realidade  im-plica algo mais do que copresença em umatal região histórica e social; implica a criaçãode um vínculo concreto entre os membrosque a compõem mediante a sua exposiçãoaos mesmos sintomas sociais e intelectuais

de um processo de desestabilização dinâmi-ca. Por sua vez, a unidade de geração implicaum vínculo ainda mais concreto do que overificado na geração enquanto realidade: ela  refere-se a um compartilhar de experiênciascomuns que lhe confere unidade. Essa uni-dade de geração ocorre quando os jovenscompartilham conteúdos mais concretos eespecíficos, formados por uma socialização

similar, e desenvolvem, em função disso,laços mais estreitos, levando à identificaçãoe ao reconhecimento mútuo devido às si-milaridades das situações e das experiências,constituindo uma comunidade de destino(Mannheim, 1968).

Uma unidade de geração não é um gru-po concreto, embora possa ser acompanhadade grupos concretos nos quais a similaridadede situação possibilita atividades integradoras

que provocam a participação e os capacita aexpressarem exigências relativas a essa situa-ção comum. Os grupos concretos das novasgerações encontrariam no movimento juvenila expressão de sua localização na configuraçãohistórica prevalecente (Mannheim, 1968).

Percebe-se que essa abordagem confe-re importância central às experiências dos

 jovens. Eles são identificados como agentes

propulsores das dinâmicas da sociedade,

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como importantes promotores de mudan-ças e transformações culturais e de relaçõessociais. Isso porque uma nova geração “nãoestá completamente enredada no status quo da sociedade”, (Mannheim, 1968, p. 73).

 A juventude passa a ser percebida comoparte dos recursos latentes  de que a sociedadedispõe, e a vitalidade da própria sociedadedepende de seu engajamento. O maior ou omenor grau desse potencial de mudança éatribuído às sociedades dinâmicas, enquan-to as que buscam conter a juventude podemser entendidas como sociedades estáticas(Mannheim, 1968).

Os jovens, como parte dos “recursos la-

tentes” de que dispõem as sociedades, apare-cem como grupo estratégico não apenas nareprodução das relações sociais, mas tambémpara a sua transformação. Como mencionado,as gerações são ainda “uma potencialidade”,sem que a elas corresponda uma consciência,tal qual às classes que não se tornam para si. Opotencial transformador da juventude, paraser exercido em toda sua força, necessita que

ela se constitua em “geração para si”, com altonível de identidade e capacidade de organi-zação. Isso só ocorre quando a juventude seencontra ciente de si mesma, percebendo suaunidade de geração e avançando na direção daconstrução de grupos concretos. Mannheim(1982, p. 71), em uma nota de rodapé, su-gere que uma questão para a pesquisa socialpode ser identificar em quais condições osmembros individuais de uma geração se tor-

nam conscientes de sua situação comum efazem dessa consciência a base da solidarieda-de grupal. A abordagem das gerações por suadimensão dialética permite perceber que, so-ciologicamente, a juventude é um veículo deligação entre o passado e o futuro; por meiodela, a sociedade se renova permanentemente.

Todavia, foi nos Estados Unidos da América que se desenvolveram os estudos

sociológicos sistemáticos sobre juventude,

durante a estagnação do debate europeu.Nesse novo ambiente, a Sociologia da Juven-tude foi constituída como especialidade dis-ciplinar, abandonando a tendência anteriorem generalizar para toda população juvenil oque era verificado apenas numa amostra dos

 jovens. Ou seja, nesse novo espaço social einstitucional, a juventude seria estudada emvínculo estreito com a sua comunidade.

 Ainda na década de trinta, ganharamdestaque na Universidade de Chicago osestudos sobre a delinquência juvenil queanalisavam o fenômeno das gangues ur-banas. Nessas análises, a tensão racial e ademarcação da territorialidade provocada

por filhos de imigrantes italianos, judeuse irlandeses aparecem como aspectos fun-damentais da constituição da problemáticade pesquisa sobre juventude. Nessa linhatemática destaca-se o trabalho de FredericM. Thraste, que publicou Te Gang em1936 e que constitui referência para os es-tudos posteriores sobre o assunto. O mes-mo tema é abordado por William Foote

 Whyte entre os anos de 1936 e 1940, queinvestigou gangues de jovens filhos de imi-grantes italianos em uma região segregadade Boston, trabalho que resultou em umatese de doutorado e um livro sob o títuloSociedade de Esquina .

Conforme indicam Cardoso e Sampaio(1995) nesses estudos, a delinquência juvenilé tratada como uma subcultura das “classesbaixas” que rejeitam os valores das “classes

médias”. A ideia de subcultura delinquente écentral nos estudos da Escola de Chicago, damesma forma que as noções de papéis sociaise da função mediadora exercida pelos símbo-los; ao atribuir sentidos às interações sociaisconstitui um dos principais aportes dessa ge-ração à Sociologia, em geral, e à Sociologiada Juventude, em particular.

 A juventude seria tematizada ao longo

da segunda metade do século XX a partir de

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uma ótica reativa e “depositária de um certomedo” (ABRAMO, 1997, p. 30), ou seja,como problema social. Os estudos socioló-gicos dos anos de 1950 percebem os jovens apartir do recorte de grupos de idade e enfati-zam a predisposição juvenil à transgressão eà delinquência. Nesse sentido, apresentam--se em grande parte como continuidade dosestudos iniciados nos anos trinta pela Escolade Chicago, passando, porém, a ser desen-volvidos nos marcos teóricos do estrutural--funcionalismo.

 Ainda nos anos cinquenta, influencia-do pelo estrutural funcionalismo parsonia-no, Eisenstadt publicou o livro De geração

a geração. Nesse estudo, o autor objetivouanalisar vários fenômenos sociais, conheci-dos como grupos etários, movimentos juve-nis etc., e averiguar se era possível especifi-car as condições sociais sob as quais surgem,ou os tipos de sociedade em que ocorrem(EISENSTADT, 1976, p. XI).

Eisenstadt buscou entender em quaiscondições a idade era decisiva para a aloca-

ção de papéis e a definição de fronteiras entregrupos, verificando se as graduações etárias setraduziam em interações concretas, produ-zindo efeitos integrativos. Para ele, os papéisdesempenhados pelos indivíduos em qualqueretapa de sua vida na interação com indiví-duos de outras gerações deveriam “aguçar” ereforçar sua função como transmissores e re-ceptores da herança cultural e social (EISENS-TADT, 1976). As relações entre gerações e a

ênfase dada às diferenças etárias decorreriamdas características básicas do processo de so-cialização. Portanto: “A função das definiçõesde idade é tornar o indivíduo capaz de apren-der e adquirir novos papéis para tornar-se umadulto, e desta maneira manter a continuidadesocial”  (Ibid., p. 7). Nessa perspectiva, a socia-lização aparece como um mecanismo de mo-delagem das personalidades, que estrutura as

condutas essenciais ao funcionamento social.

No início dos anos de 1960, o soció-logo norte-americano Parsons publicou  Aclasse como sistema social , em que opera umaanálise dos grupos juvenis em instituiçõesde ensino. Nesse artigo, Parsons (1968)discute o desenvolvimento de uma “cultura

 juvenil” como decorrência do processo deexpansão do sistema educacional a toda apopulação infanto-juvenil norte-america-na. Para esse autor, a “cultura juvenil” é ne-cessariamente ambígua, uma vez que, na es-cola, os grupos de pares surgem como meiode proteção à aculturação para os jovens dasclasses baixas, preservando seus vínculosindentitários de origem familiar e étnico.

Parsons identificava nesse comportamentouma postura “anti-intelectualista”, enquan-to que, no ensino médio, os pares de ida-de exerceriam outra função, estando agoravinculados à diversificação dos papéis so-ciais. Desse modo, a ambiguidade reside noduplo caráter da cultura juvenil, que podeassumir funções tanto progressivas quantoregressivas no que diz respeito à incorpo-

ração dos valores da sociedade envolvente,por intermédio dos processos de socializa-ção no ambiente escolar (Ibid., 1968).

 A ênfase dos estudos do final dos anosde 1960 seria conferida ao comportamentopolítico dos jovens e, mais precisamente, aosmovimentos estudantis. As pesquisas de en-tão buscavam explicar essas novas manifesta-ções culturais e políticas da juventude comoformas de “comportamento desviante”,

também atribuindo a essa categoria a pos-sibilidade de transformação social. Naquelecontexto de transformações sociais e cultu-rais e de modernização produtiva acelerada,a juventude aparecia como uma categoriaportadora de possibilidades de transforma-ção social em diferentes graus e propósitos.Isso, porém, não significou o abandono doenfoque da juventude enquanto problema.

No conjunto, nesse período, predominam

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pesquisas com base teórica no funciona-lismo, que identificavam na geração jovemuma ameaça à ordem social nos planos polí-tico, cultural e moral, atribuindo o compor-tamento contestador às novas dinâmicas desocialização que permitiriam o afrouxamen-to dos vínculos estruturais.4

A Sociologia da Juventude

chega ao Brasil

Foi na década de 1960, no Brasil, que otema da juventude entrou na pauta de inte-resses dos cientistas sociais. Nessa época, pormeio do rock ’n’ roll, da liberação sexual, da

contracultura, do movimento estudantil, daluta por direitos civis e pela paz, a juventudecriticava a ordem social estabelecida. Porém,a efervescência democrática e popular do iní-cio dos anos sessenta seria interrompida como golpe militar de 31 de março de 1964. Umdos primeiros atos dos militares foi perpe-trado contra o movimento estudantil, repre-sentado nacionalmente pela União Nacional

dos Estudantes (UNE) e pela União Brasi-leira dos Estudantes Secundaristas (UBES).Evidência disso foi a invasão da sede daUNE no Rio de Janeiro, saqueada e queima-da pelos militares, no dia seguinte ao golpe.Os jovens estudantes foram encarados peloregime militar como elementos de alta peri-culosidade para a “segurança nacional”, sen-do classificados como “subversivos” e mesmo“terroristas” (POERNER, 1995).

Nessa conjuntura de “rebelião da juven-tude” (FORACCHI, 1972), os estudos vol-taram-se principalmente para as formas deengajamento culturais e políticos dos jovens.O artigo de Octávio Ianni “O jovem radi-cal”, publicado originalmente em 1963, em

seu livro Industrialização e desenvolvimentosocial no Brasil, constituiu um dos primeirosregistros no país de uma reflexão sociológicasobre a juventude. Nele é analisada a con-dição juvenil na sociedade capitalista a par-tir de uma visão estrutural das implicaçõesdecorrentes das determinações político-eco-nômicas e de classes sobre o jovem, o queresultaria, do ponto de vista do autor, numatomada de posição do jovem como radicalou conservador.

No final da década de 1960, destacam-seduas publicações. Uma é O poder jovem, dohistoriador Artur José Poerner, que trata dahistória da participação política dos estudan-

tes brasileiros. Nesse trabalho historiográfico éevidenciada a longa trajetória de participaçãopolítica dos jovens, em dois períodos, antese depois da fundação da UNE. Esse livro foilançado em 26 de julho de 1968 e seria umdos primeiros oficialmente proibidos coma edição do Ato Constitucional n. 5, de de-zembro daquele ano. A outra é a coletâneaSociologia da juventude, organizada por Sula-

mita de Brito em quatro volumes, publicadosigualmente no ano de 1968. A organizadorada coletânea procurou, de um lado, repro-duzir trabalhos que revelavam o esforço deconstituir uma Sociologia da Juventude, e deoutro trazer exemplos característicos dos mé-todos adotados (BRITTO, 1968). Devido àvasta relação de autores que reúne e dos temasque aborda, esse conjunto figura como refe-rência obrigatória para os pesquisadores do

tema. Apesar disso, não caracteriza a produ-ção de um pensamento social brasileiro sobre

 juventude, com exceção dos artigos de Octá-vio Ianni, citado acima, e outro, do cientistapolítico Glaúcio Dilon Soares, sobre ideolo-gia e participação política estudantil.

4 Encontramos exemplos desse debate na coletânea organizada por Sulamita de Brito (1968), Sociologia da Juven-

tude IV: os movimentos juvenis.

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Com efeito, seria Marialice Foracchi quemrealizaria um trabalho original, de maior fôle-go e envergadura analítica, sobre a construçãosocial das categorias jovem e estudante e o mo-vimento estudantil brasileiro. Martins (1982)resume como se processou sua breve trajetória:

Marialice M. Foracchi inicia-se como sociólogapreocupada com a educação e com a sociologia daeducação. Dos estudos sobre a situação de ensinoe a eficácia do trabalho do professor, ela progridepara o estudo sobre o estudante, suas relações, seumundo, sua história, suas aspirações, suas limita-ções. Esse avanço deslocou o centro das preocupa-ções de Marialice para as relações de classe, parao lugar central do trabalho na história humana,para a exclusão daqueles que não estão no núcleo

de recriação da sociedade capitalista que é a pro-dução. Foi o que lhe permitiu desenvolver preocu-pações na etapa final da vida, com os movimentossociais, suas lutas, suas tentativas de participaçãona construção de uma sociedade democrática.(MARTINS, 1982, p. VIII)

O interesse de Foracchi pela temáticada juventude dar-se-ia a partir da influênciarecebida de Karl Mannheim, primeiramenteno campo da educação, como demonstra a

publicação de Educação e planejamento: aspec-tos da contribuição de Karl Mannheim para aanalise sociológica da educação (FORACCHI,1960). Nesse trabalho inicial, ela buscou sis-tematizar as contribuições de Mannheim naanálise do campo educacional, retomando aquestão a partir das teorias do conhecimentoe do planejamento. Seu interesse deslocou-seentão para as condições sociais do estudante.

Ela participaria de um estudo realizado pelaUniversidade de São Paulo com vista a levan-tar informações sobre as condições socioeco-nômicas do estudante universitário, trabalhoque resultou no artigo “O Estudante Univer-sitário: resultados iniciais de uma investigaçãosociológica” publicado na Revista Anhembi

em fevereiro de 1962, no qual antecipou as-pectos que receberiam tratamento mais apu-rado em sua tese de doutorado.

Ela voltaria seus esforços para responderuma questão proposta por Mannheim (1982)sobre as condições nas quais os membros indi-viduais de uma geração se tornam conscientesde sua situação comum e fazem dela a base dasolidariedade grupal produzindo grupos con-cretos, como os que se expressam no movi-mento estudantil. Essa questão estaria presentenos dois principais trabalhos de Foracchi, Oestudante e a transformação da sociedade brasilei-ra  (1965) e A juventude na sociedade moderna  (1972). Entre esses dois livros destacam-se os

artigos publicados na Revista Civilização Brasi-leira nos anos de 1966 e 1968 e na Revista La-tino-americana de Sociologia, em 1966, comtextos que retomam as conclusões de sua tesede doutorado e atualizam os recursos teóricospara explicar as mudanças substanciais havidasno movimento estudantil ao longo daqueladécada. Em seu conjunto, essas publicaçõespodem ser percebidas como exemplos paradig-

máticos da produção teórica sobre “juventude”que se iniciava no Brasil. No primeiro, ela sepropôs a “caracterizar o conjunto de mecanis-mos e processos que presidem à constituiçãodo estudante como categoria social” (FORAC-CHI, 1965, p. 3), a fim de caracterizar a açãodo estudante no processo de transformação dasociedade brasileira. No segundo livro, propôs--se a “analisar, sociologicamente, a rebelião da

 juventude, como manifestação da crise da so-

ciedade moderna, na forma predominante deque o fenômeno se revestiu que é o movimentoestudantil” (Id., 1972, p. 11). Ao longo de seustrabalhos, a noção de juventude se constituiriacomo categoria histórica e social por intermé-dio do movimento de juventude.5

5 Marialice Foracchi também publicaria outras duas obras de referência, a saber: Foracchi e Pereira (1971) e Foracchi

e Martins (2004).

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Com seus trabalhos, Foracchi se des-tacaria no pensamento social brasileiro porfornecer uma explicação sociológica para acondição juvenil e o movimento estudantilde sua época. Ela conferiu um tratamentosociológico ao movimento estudantil expli-cando-o a partir das condições estruturais dasociedade de classes. A própria autora esta-beleceu o diferencial de seu trabalho em rela-ção aos demais. “Nele a classe, como catego-ria explicativa, é o eixo básico da exposição,

 já que a compreensão objetiva do processode constituição do estudante como categoriasocial, não dispensa a elucidação da naturezae do vínculo de classe” (FORACCHI, 1965,

p. 6), na medida em que, “na sociedade bra-sileira, a mobilização dos recursos educacio-nais de nível superior é definitivamente mar-cada pela estrutura de classe.” (Ibid., p. 6).Como salienta a autora, as relações de classerepresentam objetivamente “os padrões depensamento e de experiência inerentes aoestilo de convivência na sociedade moderna”(Ibid., p. 66), e fundamenta sua análise do

movimento estudantil na vinculação do es-tudante universitário com as classes médias.“O comportamento político do estudantebrasileiro pode ser compreendido, num pri-meiro momento da análise, como produto‘revolucionário’ da frustração das aspiraçõesda classe média” (Id., 1966, p. 10). Comefeito, o movimento estudantil poderia serexplicado pela origem socioeconômica doestudante universitário de tal maneira que

ele seria a expressão radical da práxis peque-no-burguesa, visto que a origem de classe doestudante universitário era essa.

É necessário registrar que Foracchipromove em seus escritos um diálogocontínuo, aberto e crítico com os princi-pais sociólogos ou cientistas sociais quepoderiam apresentar contribuições para acompreensão dos fenômenos e processos

sociais investigados. Com efeito, ela con-

seguiu legar uma contribuição original àSociologia da Juventude, distinta da abor-dagem estrutural-funcionalista predomi-nante no período, mesmo que se percebaem seus textos sobre o tema um frequentedebate com autores como Parsons, Mertone Eisenstadt. Preferindo as abordagens dia-léticas e influenciada principalmente porFlorestan Fernandes e Karl Mannheim, elaarticulou, em um mesmo empreendimen-to analítico, as dimensões da estrutura e daação social.

Como resultado, ela identificou de ma-neira original os vínculos de classe do estu-dante universitário tanto como classe média

em ascensão, ao enfocar o processo de trans-formação do jovem em estudante, quantocomo pequena-burguesia radicalizada aointerpretar as práticas e as limitações domovimento estudantil universitário. Tendopresente a distinção entre essas categorias,ela reconhece a pluralidade do estrato in-termediário da formação social brasileira.Isso não significa qualquer ambiguidade ou

imprecisão nos termos utilizados pela au-tora – classe média e pequena burguesia –,mas a amplitude e radicalidade presente emseu horizonte teórico. A concepção de clas-se social adotada por Foracchi apoia-se emMannheim e Fernandes, que foram atentosleitores de Marx, indicando que esse con-ceito “compreenderia, então, relações delocalização, caracterizadas por padrões pe-culiares de pensamento e de experiência”

(FORACCHI, 1965, p. 66), os quais semanifestam em diferentes esferas das rela-ções sociais, isto é, “das relações decorrentesda localização dos agentes na escala socioe-conômica” (Ibid., p. 66). Assim, na primei-ra parte de “O Estudante…”, ao discutiras relações interpessoais do estudante noâmbito da família, apoia sua análise prin-cipalmente em autores norte-americanos

críticos ao estrutural-funcionalismo, como

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 Wright Mills6, de quem recolhe elementosda problemática da “nova classe média”, nocontexto das mudanças sociais provocadaspelo desenvolvimento do capitalismo nopós II Guerra Mundial. Já na segunda par-te do livro, ao tratar das relações dos estu-dantes nos processos histórico-estruturaisque resultariam em seu engajamento po-lítico, baliza a análise da práxis estudantilnas contradições inerentes à pequena bur-guesia, sendo evidente que recorre ao tra-tamento conferido por Karl Marx ao com-portamento político dessa classe em “O 18de Brumário de Luís Bonaparte”. Ou seja,ela recorre aos conceitos adequados aos pro-

pósitos explicativos de cada nível da análiseempreendida, que mantêm entre si laços deconexão e complementariedade.

Como mencionado, também sobressaino pensamento de Foracchi a influência deFlorestan Fernandes, uma vez que ele foi seuprofessor e orientador acadêmico. Ela recorrea Fernandes principalmente para desvendar opano de fundo dos processos sociais que in-

vestiga, ou seja, as transformações em cursona sociedade brasileira, em termos de urba-nização, industrialização, migrações internas,emergência de movimentos sociais e a con-sequente formação/transformação das classessociais, em particular o papel da pequenaburguesia no caráter na revolução burguesano Brasil. Essa base teórica é complementadacom as abordagens de Celso Furtado sobre asdinâmicas do desenvolvimento e subdesen-

volvimento e da realizada por Octavio Ianni,sobre o radicalismo político juvenil. Em resu-mo, a partir dessas influências Foracchi pro-moveu um amplo diálogo com autores de suaépoca forjando uma perspectiva teórica amplae crítica, o que resultou numa contribuiçãoanalítica paradigmática.

Seu insight  original foi perceber que “aanálise objetiva da sociedade brasileira” nãopoderia “prescindir da determinação preci-sa do significado da participação do estu-dante no processo de transformação social”(FORACCHI, 1965, p. 3). Em razão disso,compreendia que:

Uma das principais tarefas com que se depara aabordagem sociológica é, pois, caracterizar o con-

 junto de mecanismos e processos que presidem àconstituição do estudante como categoria social.Isso significa que o estudante deve ser focalizadotanto em termos das condições sociais que balizamo seu comportamento, vinculado a ordem socialexistente; quanto em termos das modalidades pos-síveis de ampliação dos seus horizontes de ação

(Ibid., p. 3).

Seu método de investigação articulanum mesmo empreendimento as dimensõesobjetivas e subjetivas do comportamento doestudante, ou seja, as determinações estrutu-rais dos sentidos da ação estudantil. Comoa própria Foracchi (1965, p. 3) destaca, suaperspectiva interpretativa “pode ser compre-endida como uma tentativa de integraçãoanalítica das relações interpessoais com asformas de atuação concreta”, por meio daqual a autora busca “fundir a trama das re-lações com o significado concreto da ação,subordinando-as a uma modalidade de apre-ensão unívoca”. Dessa forma, a autora busca-va “desvendar tanto aquilo que nas represen-tações dos estudantes surge como o motivoreal da ação, quanto aquilo que, no contexto

da situação global, impõe-se, objetivamente,como resultado de sua ação”. (FORACCHI,1965, p. 3-4).

Sua pesquisa empírica foi desenvolvidaao longo de três etapas sequenciais. Teve iní-cio em 1960, quando foram aplicados ques-tionários padronizados a 5% da população

6 A esse respeito consultar: Mills (1979).

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estudantil da Universidade de São Paulo,como se distribuíam pelas faculdades queintegravam esse organismo universitário, oque abrangeu 377 estudantes de todos osseus institutos e faculdades. A sistematiza-ção dos dados dessa primeira fase propicioua elaboração de algumas categorias empíri-cas essenciais à abordagem sociológica doestudante universitário. Com base nessascondições, foi efetuado um reagrupamentoda população estudantil, tomando como va-riável básica a sua condição de manutenção eobtendo três categorias empíricas compostaspelos estudantes totalmente mantidos pela fa-mília , os  parcialmente mantidos pela família  

e os  estudantes que trabalhavam  (FORAC-CHI, 1965).

Na segunda etapa procedeu a um le-vantamento em amostra constante de 15%dos estudantes incluídos em cada uma dascategorias de manutenção anteriores, o queresultou num total aproximado de 55 es-tudantes de diferentes faculdades. Já tendorespondido o formulário, foram submetidos

a uma entrevista aberta, com roteiro previa-mente testado e reformulado. Os resultadoscontribuíram para o conhecimento “dosprocessos e situações que moldam o com-portamento e a atitude do estudante, masnada acrescentaram quanto às implicaçõespresumíveis da sua participação política”(FORACCHI, 1965, p. 9).

 A pesquisa foi concluída com o recursode uma terceira fase, em que a pesquisadora

buscou suprir a lacuna da fase anterior so-bre o comportamento político do estudanteuniversitário paulista recorrendo à realizaçãode entrevistas com líderes estudantis, repre-sentantes das diferentes correntes políticasatuantes no movimento estudantil da época.Como resultado desse procedimento de co-leta de dados primários, aos quais se acres-centou a observação sistemática, ela pôde

identificar empiricamente os vínculos com

a pequena burguesia como um dos com-ponentes constitutivos do comportamentoe da ação do estudante universitário. Dessemodo:

O conteúdo singular dessa vinculação patenteou-

-se, porém, quando focalizado em termos daproblemática atual da sociedade brasileira, ouseja, da sua luta pertinaz contra as limitações dosubdesenvolvimento. Comprovou-se, assim, anecessidade de operar, no nível da reconstruçãointerpretativa, com três ordens de manifestações,geradas em planos distintos da realidade social eda explanação teórica, quais sejam: a) relacionadascom o comportamento do estudante e focalizadasno nível das relações interpessoais; b) relativas àsituação de classe e apreendidas ao nível das co-nexões histórico – estruturais; e c) que dizem

respeito aos fatores constitutivos do processo detransformação do sistema e formulados no nívelda objetivação da  práxis (FORACCHI, 1965, p.11, grifos meus).

 A condição do estudante seria caracte-rizada por uma posição ambígua, ao ter deconjugar presente e futuro simultaneamente:sua existência sendo definida pelas condiçõessociais que balizam suas possibilidades de

ação futura e aparecendo como um elo nasucessão entre gerações, o jovem se projetano futuro a partir da situação de classe de suafamília. A autora, assim, articula, como sen-do determinantes, três níveis de análise dosmecanismos que presidem a construção doestudante como categoria social: as relaçõesinterpessoais, a situação de classe e os proces-sos de transformação da sociedade inclusiva

(AUGUSTO, 2005).A transformação do jovem em

estudante: manutenção, dependência

e classe

 Ao analisar o processo social de trans-formação do jovem em estudante, Foracchi(1965) demonstrou como operavam os me-canismos e processos de vinculação do jovem

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ao sistema social, efetivado pelas relações en-tre jovens e adultos tais como ocorrem noâmbito da família. Assim, demonstrou queos jovens se vinculam ao sistema global ini-cialmente por meio da família, que ocupauma posição nas relações sociais de produ-ção. Portanto, essa é a primeira instituiçãoa promover a adesão do jovem ao sistema e,por consequência, a uma determinada situ-ação de classe. Os mecanismos dessa vincu-lação resultam da peculiaridade das relaçõesinterpessoais geradas no âmbito da família,ou seja, realizam-se por meio das relações demanutenção e dependência.

Foracchi percebe o jovem como um ser

em formação, cujo destino depende de um jogo incerto de fatores. Sempre que possível,a família tenta dirigir esse processo. Dessaforma, o jovem aparece como um “ser so-cialmente dependente, em busca de recursoseficientes de autonomia ou de emancipação”(FORACCHI, 1965, p. 18). Diante disso, acondição juvenil é compreendida pela autoracomo sendo marcada pela posição subalterna

do jovem em relação ao adulto – ele aindanão tendo concluído a transição social da si-tuação de dependência à autonomia. Por suavez, o adulto manipularia um sistema sutilde controles com vista a controlar e direcio-nar os jovens. Apesar de todos os mecanis-mos de controle mobilizados, esse processonão é isento de conflitos e contradições. Astensões geradas não se esgotariam no sistemade relações recíprocas presente nas relações

do estudante com a família, mas transcen-deriam para o questionamento da própriaordem vigente, ao mesmo tempo que re-forçariam e renovariam constantemente osvínculos existentes. Esse seria mais um ele-mento a reforçar o caráter ambíguo da con-dição social do jovem estudante e da própriacondição juvenil. Esse processo, observado apartir do relato de jovens provenientes de fa-

mílias de classe média, que experimentaram

um processo de ascensão social por contado processo de industrialização e urbaniza-ção, revelou uma ideologia de valorizaçãoda juventude e da educação (FORACCHI,1966) que se objetivava no investimento naeducação superior dos filhos como estraté-gia de mobilidade social ascendente ou, aomenos, de reprodução da situação de classeda família. Como salienta Augusto (2005) aesse respeito:

Há, portanto, um compromisso de retribuiçãoque é amplo e permanente, e envolve o papel con-ferido ao jovem nos planos familiares de ascensão(ou de manutenção de posição) social. Assim, essaobrigação implica responsabilidade, tanto em

relação ao seu próprio destino pessoal como emrelação ao destino familiar. Seu compromisso é ode fazer efetivas as conquistas e de propiciar novosavanços. Ainda que configurada no presente, a dí-vida pode ser deslocada para o futuro, na medidaem que existe a expectativa de que sua realizaçãoprofissional possibilite a manutenção ou a melho-ra da posição relativa da família em termos de es-tratificação social (p. 15).

Chama a atenção que nesse jogo de

relações recíprocas se processam formas devalorização da inexperiência que caracteriza-ria o estudante mantido pela família. Nessecaso, a inexperiência converte-se em fator desuperioridade quando se opõe à experiênciado adulto, quando a reprodução dela deixade ser um objetivo e é reconhecida comouma limitação (FORACCHI, 1965, p. 24).Ela conclui que a dependência econômicada família equivale, para o jovem estudante

universitário, a submeter-se a um sistema decompromissos e pressões, estando de tal for-ma vinculado a ele que até as manifestaçõesda vontade individual são contidas. Confor-me a autora:

 Aqui está o sentido ambíguo da dependência aque antes nos referimos: só na qualidade de to-talmente mantido é que o jovem dispõe de condi-ções para ser um estudante. E são paradoxalmenteesses mesmos fatores que criam obstáculos à sua

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realização pessoal porque reprimem, inclusive, asmais simples manifestações de vontade autônoma.Como ser estudante, e portanto categoria socialindependente, se não é possível deixar de ser, aomesmo tempo, jovem dependente, submisso ecomprometido? (FORACCHI, 1965, p. 27-28)

O jovem estudante experimenta, assim,a ambivalência de sua condição social como

 jovem e de sua posição social como estudanteuniversitário. Com base nessa observação, Fo-racchi caracterizou o estilo de vida peculiar do

 jovem a partir da “valorização da inexperiên-cia como atributo positivo, pela subordinaçãoda vontade como recurso de afirmação e pelatentativa de mobilização das condições sociais

existentes, no sentido de proceder à transfor-mação do jovem em estudante” (FORAC-CHI, 1965, p. 31). Se isso for colocado emtermos da distribuição dos tipos de estudan-tes, teríamos a valorização da inexperiênciacomo traço marcante do estudante totalmentemantido pela família e os vínculos da depen-dência limitando a conquista de autonomia,como característica do estudante parcialmen-te mantido pela família. O sentido manifestonas relações do jovem com o adulto seria, porconseguinte, o de provocar formas mútuas deajustamento que acarretariam a subordinaçãocriadora do jovem e a distensão dos canais departicipação social do adulto.

Por sua vez, o jovem que estuda e traba-lha teria como traço distintivo a difícil tarefade desdobrar-se entre duas atividades intensa-mente socializadoras. Nesse caso, a inserção no

mundo do trabalho tanto pode ser um “recursode subordinação” (FORACCHI, 1965, p. 47),como pode propiciar “consequências emanci-padoras” (Ibid., p. 50). No primeiro caso, otrabalho representaria apenas o prolongamen-to da dependência em um outro nível. Porém,isso tem um agravante: a fragmentação da pró-pria condição do estudante, que se encontraagora dividindo em tempos distintos e concor-

rentes de trabalho e de estudo. Para esse estu-

dante, o trabalho significa somente um novosetor de atividade, necessário, não podendo serdispensado, mas que não lhe acrescenta qual-quer dimensão inédita. Pelo contrário, chega aser irritante pela falta de sentido, pela pobrezade contatos e pela rotina. (Ibid., p. 48). Nosegundo caso, seu sentido emancipador podeser enunciado sobre aspectos como: quandoo trabalho faz que o curso tenha importânciaacessória, razão pela qual Foracchi se refere aesse jovem como trabalhador-estudante, ouquando a experiência do trabalho propicia aoestudante-trabalhador elaborar seu projetoprofissional ou projeto de carreira, como men-ciona. A necessidade de trabalho também se

mostra positiva num outro plano: medianteum compromisso informal, mas tácito, o tra-balho mantém os vínculos entre o estudante ea família, porém alterando a posição do jovemque se positiva como alguém que obtém osrecursos necessários a sua autonomia, mesmoque parcialmente.

Nesse ponto importa reter que a análisepela autora das relações de manutenção revelou

dois aspectos principais do ajustamento dos jo-vens ao adulto. Primeiramente, no plano dasatitudes, foi destacada a valorização da inex-periência pela eficiência com que opera comofator de acomodação. Conforme Foracchi con-duz sua análise, ela demonstra que o jovem, aodesenvolver essa atitude, se colocaria perante aoadulto como um ser em formação capaz de dis-cernir as inconsistências do seu próprio com-portamento. Ela enfatiza igualmente o caráter

recíproco desse processo, uma vez que “a va-lorização da inexperiência só se objetiva quan-do confrontada com a experiência do adulto”(FORACCHI, 1965, p. 32). Depois, no planodo comportamento efetivo, a acomodação seconstitui no sentido ambíguo de subordinaçãoda vontade. Desse modo, estaria confirmada acontradição inerente à inexperiência que se va-loriza e à vontade que se subordina, tal como se

caracterizaria a condição social do jovem estu-

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dante mantido pela família. Isso porque “as re-lações de manutenção pressupõem vínculos deretribuição que são a manifestação visível dasformas de dependência que unem o estudanteà família.” (Ibid., p. 36). Percebe-se que as rela-ções de manutenção operam como dispositivode ajustamento do jovem ao sistema a partir dafamília, e que nas relações de dependência esseajustamento se processa a partir do jovem paracom a família e sua situação de classe.

Por sua vez, “a dependência adquiresentido de relação social, na qual os laços dereciprocidade se transformam em compro-misso de retribuição (FORACCHI, 1965,p. 86). A dependência do estudante em re-

lação à família é descrita, então, como “sis-tema de controle   criando, incessantemente,novos laços para prender o estudante à suacondição de manutenção” (Ibid., p. 36). Éainda descrita como “sistema de prestação decontas, que une o estudante à família, peloativo e pelo passivo.” (Ibid., p. 37). Tal seriao conteúdo das relações de dependência queprocuraria incorporar nos jovens a ideologia

da ascensão social típica da situação da classemédia no sistema de classes. Aliás, a própriasituação da classe média, diante da classedominante, seria de subordinação e depen-dência, expressando-se nas representaçõesideológicas da mobilidade social ascendente.

Na abordagem sociológica desenvolvidapor Foracchi, a dependência do estudante as-sume feições integrativas ao sistema global, queopera no nível das relações interpessoais e se

traduz como um estilo de convivência peculiardo grupo no qual se manifesta. No contextodas relações familiares, os mecanismos quesustentam os vínculos de dependência são a

identificação e a compensação, como justifi-cação ética da responsabilidade (FORACCHI,1965, p. 45). Assim, as relações dos jovenscom os adultos desenvolvem-se de acordo comum padrão de dependência, sendo fenômenonitidamente social. Validamente, as pressõesmodeladoras do adulto ao longo dos proces-sos de socialização visam a induzir “o jovem aformar-se de acordo com os padrões e a pro-blemática incorporada pelo grupo com o qualo adulto se identifica.” (Ibid., p. 61). Por isso,a socialização representaria necessariamenteuma dimensão antecipada do comportamentoorientado pela aspiração de mobilidade social.Pode-se deduzir que as agências socializadoras

pelas quais os jovens são inseridos na socieda-de e por meio das quais a sociedade é incutidanos jovens – família, instituições de ensino eo trabalho – providenciariam a incorporaçãode normas de comportamento, valores e dis-posições com os quais os adultos se encontramcomprometidos e querem que a nova geraçãoleve adiante. No caso das famílias de classemédia, esse processo tem como objetivo criar

condições favoráveis a sua própria ascensãosocial, expressão de sua dependência da classedominante, a qual sonha integrar. As relaçõesde dependência, que visam a comprometeros jovens com o projeto dos adultos, revelam--se como situação de existência social na qualvínculos firmados reproduzem, a seu modo, astensões existentes no sistema.

Com efeito, as relações de dependênciaassumiriam expressões bastante diferenciadas

entre si. Foracchi refere-se a essa pluralidadede compromissos de retribuição do jovempara com a família como compondo diferen-tes estilos  de dependência 7. Eles podem variar

7 Foracchi recorre à noção de estilo de pensamento de Mannheim para propor um estilo de dependência, afirmandoque “há, então, um estilo de relações sociais, no qual está compreendido aquilo que poderíamos designar comoestilo do grupo” (FORACCHI, 1965, p. 63). Ainda como argumenta a autora: “A noção de estilo é bastanteadequada, pois, afirmamos, envolve tanto variações no modo dos indivíduos se relacionarem entre si, quanto os

fatores sociais responsáveis por tais variações” (Ibid., p. 66).

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tanto quanto forem as situações de classe dogrupo familiar. Com isso se evidenciam dife-rentes estilos de dependência, os quais expres-sariam os diferentes momentos de afirmaçãoda família na estratificação social. Isso se pro-cessa de tal modo que é “legitimo afirmar queos estilos de dependência constituem umamanifestação social das condições de manu-tenção, no nível das relações interpessoais, namedida em que estas são uma expressão da si-tuação de classe no nível da situação familiar”(FORACCHI, 1965, p. 88).

É, portanto, entendida como crônicade avanços e recuos na escala social na his-tória da família de classe média que Foracchi

encontrou os elementos necessários para ca-racterizar a situação de classe da família doestudante. Por isso o ponto de partida desua análise do comportamento do estudan-te universitário é a sua situação de classe talcomo pôde ser percebida em diferentes mo-mentos da história familiar. Alinhando taissituação na sequência em que se produzem,ela procedeu ao mapeamento da trajetória

social percorrida pelas famílias. Em síntese,essa trajetória é iniciada por um “retorno àsorigens”, movimento que a família realizasobre si mesma e que mostra as condiçõesde isolamento e de arrojo com que foi con-duzida a transformação da situação de ori-gem. No momento seguinte, verifica-se umaampliação dos contatos e desenvolvem-seas “condições objetivas” para o alcance de“novas dimensões sociais”. “À dimensão es-

pecial, originada pelo desejo de ‘melhorar devida’ conjuga-se o deslocamento ocupacio-nal, como demissão especificamente socio-econômica” (FORACCHI, 1965, p. 112).

 A classe passa, então, a ser vivenciada comoalgo distinto da situação familiar, emboracom características ainda imprecisas paraos agentes. O mecanismo social básico res-ponsável por essa transição é a ampliação de

contatos , apoiada na redefinição de papéis, o

que conduz à ampliação das atividades, per-manecendo, não obstante, restrita à área deinfluência da família. Porém, é por meio des-se mecanismo que se consuma uma modifi-cação fundamental. A família passa a viver asituação de classe, já que, na ampliação decontatos, são criadas condições para a sua in-tensificação e diversificação, com vista à re-alização de um objetivo preciso: vincular-sepela situação de classe ao momento presente,elaborando e desenvolvendo as potencialida-des nele contidas (Ibid., p. 112-113).

Há, no entanto, uma nítida contradi-ção entre essas determinações do sistema e oconteúdo da atuação do jovem que se envol-

ve em mobilizações estudantis, contradiçãoque expressaria a própria distinção entre o

 jovem e o estudante.

O que estaria implícito nessa distinção? Que oestudante seja o jovem que se nega a si próprio,na medida em que age em contradição com todasas determinações sociais do seu comportamento.Mas, cumpre ainda indagar, que fatores explicamque ação do jovem se contrapusesse a ação doestudante quando, na realidade, ambos são um

só? É precisamente esse ponto que procuraremoselucidar. A situação de classe, tal como repercutesobre a família, entra aqui como fator definitivo decisão. Servindo-se do jovem como instrumento dasua vinculação à situação de classe, nele colocan-do a problemática crucial da continuidade da suaposição no sistema, a família cria as condições ne-cessárias para que ele se transforme em estudantee, portanto, para que ele próprio se realize como

 jovem. Esta, a contradição fundamental que, re-fletindo sobre o comportamento do jovem, pareceestar no próprio cerne das contradições inerentes à

constituição da classe média (FORACCHI, 1965,p. 115).

 A transformação do jovem em estudan-te é uma forma de vinculação da família aosistema de classes, na qual é reconhecido opapel do jovem como agente da mobilidadesocial, ou, minimamente, da manutençãoda posição da família de classe média naestratificação social. Inicialmente, do pon-

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to de vista da transformação do jovem emestudante, isso significa que as alterações daunidade familiar adquiriram também umnovo significado: a incorporação da dimen-são educacional como um dos requisitos doprocesso de ascensão. Ao estabelecer o estu-dante como categoria social, a família tendea negar sua situação de origem e a si própriacomo família, já que o processo de transfor-mação dos vínculos familiares é produzidopor fatores extrafamiliares, ou seja, por con-dições que não são controladas pela família,delegando funções às instituições da educa-ção formal e se submetendo às dinâmicas dereprodução do modo de produção vigente.

Por isso, o sentido real da manutenção nãopoderia ser outro senão o de manter os vín-culos de dependência, visto que a famíliatenta manipular o processo de transforma-ção do jovem em estudante. Ao fazê-lo, afamília acaba negando o conteúdo emanci-pador possibilitado pela mudança de situ-ação do jovem. A transformação do jovemem estudante implica na transformação da

família em classe, a qual só pode, por suavez, tornar-se consciente de sua situação declasse por intermédio do estudante. Forac-chi revela que o sentido oculto da manuten-ção do jovem como estudante é o de man-ter os vínculos de dependência no limiar datransformação da situação familiar em si-tuação de classe. Todavia, no momento emque esse processo se consuma, o estudantedeixa de estar vinculado à família, passando

a negar-se como parte dela para integrar-seao sistema como agente de classe. Percebe--se que na concretização da sua condiçãosocial específica de estudante universitárioestá inscrita a marca da camada que o pro-duziu e a negação parcial do grupo que oconstituiu (FORACCHI, 1965).

Como vimos nesta sessão, a consti-tuição do estudante como categoria social

envolve todo um conjunto de mecanismos

que visam a controlar o jovem para quecumpra o desígnio familiar de mobilida-de ascendente na estrutura de classes. Issocorresponde ao reconhecimento do jovemcomo agente de transformação da famíliaem situação de classe e elemento por meiodo qual se realiza a continuidade ou alte-ração de sua posição no sistema de clas-ses. Ao mesmo tempo, o jovem redefinesua situação de dependência no interiorda família e procede a afirmação da classecomo situação de existência. A partir des-sa situação, o jovem tende a buscar canaiseficientes de autonomia, o que surge comoimperativo após a alteração da condição

social do jovem em estudante.

A busca por autonomia: trabalho,

projeto de carreira e profissionalização

O estudante universitário, que buscasuperar as relações de dependência com a fa-mília e constituir-se como unidade autôno-ma de manutenção, necessariamente terá de

efetivar isso ao nível das conexões histórico--estruturais, ou seja, inserir-se nas relaçõessociais de produção. A investigação volta-seassim para as vinculações que se estabelecem,por intermédio do trabalho, entre o joveme o sistema global. A análise sociológica dotrabalho estudantil é realizada por Foracchiem dois níveis complementares: a) no nívelda constituição do sistema global, quandoenfatiza as condições e os efeitos da ação re-

levantes para a consolidação da ordem com-petitiva do sistema de classes e; b) no níveldas situações interpessoais, ao interpretaros efeitos socializadores e as perspectivas deautonomia próprios aos papéis que o jovemestudante desempenha nos setores extrafa-miliares.

 A autora demonstra que, no caso dosestudantes que trabalham, eles se libertam

das relações de dependência da família, em

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diferentes níveis, e passam a experimentaruma emancipaçao parcial conquistada como trabalho. Sua abordagem sociológica sobrea situação de trabalho procura, preliminar-mente, destacar os elementos do processo detrabalho, ou seja, as condições objetivas emque a atividade se desenvolve e as caracte-rísticas sociais do contingente humano quenela é mobilizado. Considera, ainda, os fa-tores sociais que definem não só a naturezado trabalho executado, mas também a formade elaboração dos seus resultados, os meca-nismos reguladores do consumo e da distri-buição e também as perspectivas de autono-mia e de dependência que constituem focos

orientadores da ação dos jovens envolvidosnessa situação.

Inicialmente, ela constata que o tra-balho representa para o jovem a possibili-dade efetiva de manter-se como estudanteporque lhe proporciona recursos materiaispara assegurar sua reprodução pessoal eposição social. Contudo, também repre-senta uma garantia para manutenção de

estudante quando o trabalho é realizadode modo parcial, revestindo-se, por isso,de um conteúdo emancipador apenas pro-visório, já que é visto pelo jovem estudantecomo uma atividade transitória. “Se o tra-balho como recurso social de emancipaçãosó pode ser um trabalho parcial, é admissí-vel concluirmos desde já que a emancipa-ção assim obtida será, pelas mesmas razões,também parcial” (FORACCHI, 1965, p.

128). Com base nessas afirmações, Forac-chi identifica uma primeira característicageral da situação de trabalho: “as poten-cialidades emancipadoras do trabalho de-pendem das condições sociais sob as quaiso trabalho se desenvolve e que estariam,por sua vez, diretamente relacionados coma natureza  do trabalho executado e com osignificado  que ele apresenta para o estu-

dante” (Ibid., p. 128).

O trabalho do estudante interfere nas ho-ras de estudo, reduzindo-as, e dificultando arealização da condição de estudante. Em con-trapartida, ressalta a autora, “amplia experiên-cias, enseja novas relações e coloca o jovemem contato com setores sociais diversificados”(FORACCHI, 1965, p. 129). Ou seja, o tra-balho interfere no aproveitamento do curso;contudo, produz efeitos formativas dos quaisForacchi extrai uma segunda característicageral da situação de trabalho: “o significadoformativo do curso acentua-se em função daspeculiaridades emancipadoras do trabalho”(Ibid., p. 129). Com efeito, conclui que “oconteúdo emancipador do trabalho é parcial

 porque, nas condições dadas, as suas potencia-lidades emancipadoras também são relativas ereduzidas .” (Ibid., p. 130, grifos no original).

Conforme evidencia, o estudante senteos efeitos emancipadores do trabalho na me-dida em que o percebe como fonte de recur-sos de ajustamento às novas situações. Comisso, ele demonstra não atribuir importânciaao seu trabalho, ou seja, ao trabalho concreto

que realiza, mas passa a valorizar o trabalhoem si  como meio de emancipação. “Isso fazcom que se dilua, na situação de trabalho,o aspecto, porventura mais característico daatividade que está sendo desenvolvida e queé a qualificação potencial” (FORACCHI,1965, p. 157). Com efeito, a ideologia dotrabalho compartilhado pelo jovem tende aacentuar o conteúdo emancipador da situa-ção do trabalho, conforme pode ser apreen-

dido por suas consequências mais imediatas. A relativa autonomia na própria manuten-ção, a experiência e a ampliação de contatossão os efeitos sociais imediatos contidos nasrepresentações construídas sobre o traba-lho. Contudo, Foracchi alerta para o fato deque os efeitos socializadores do trabalho sóapresentam uma implicação emancipadoraquando suscitam a formação de novos vín-

culos. Esse seria, pois, o sentido paradoxal

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da emancipação obtida com o trabalho: “a possibilidade de estabelecer ou de criar no-vos vínculos ”(Ibid., p. 158). A autora entãoquestiona qual seria o significado do proces-so de transformação do jovem em estudante,tal como foi evidenciado pela análise socio-lógica da situação de trabalho.

Em primeiro lugar, focalizando apenasas implicações socializadoras, esse processoacarreta na redefinição de papéis, na elabo-ração de novos estilos de vínculo não maisrestritos às relações interpessoais, mas nonível da classe. Foracchi destaca, então, osefeitos positivos desse processo que, focali-zado nas suas implicações socializadoras, não

corresponderia a uma modalidade de opres-são do adulto sobre o jovem. Entretanto,suas implicações negativas são as que maisse impõem à análise e as que mais reforçama alienação do jovem estudante em face dosobjetivos que lhe são socialmente oferecidos.

Em segundo lugar, os efeitos desse mes-mo processo no plano da situação de traba-lho são sociologicamente encarados como

situações de convivência. A experiência que o jovem adquiriu com o trabalho proporciona--lhe nova percepção dos limites sociais da au-tonomia. Foracchi ressalta que, por tratar-sede um agente social específico, o jovem estu-dante universitário, a natureza e o significadosocial da atividade por ele desenvolvida sãoplasmados, de um lado, por sua condição deestudante e, de outro, pela situação de clas-se. Trata-se, como se observa, de um trabalho

socialmente determinado que corresponde aotrabalho de classe média e, como tal, é frag-mentado, parcial e subsidiário. Com efeito, “o

 jovem que se transforma em estudante atravésdo trabalho, é o jovem de classe média empe-nhado, consciente ou inconscientemente, emobjetivar o projeto de ascensão social de suacamada de origem” (Foracchi, 1965, p. 169).

Em terceiro lugar destaca-se que algu-

mas manifestações do processo de trans-

formação do jovem em estudante foramfocalizadas no plano da transformação e daconsolidação da ordem social. Conformenossa autora de referência, as determinaçõessociais de classe, que se encontravam ape-nas esboçadas nas dimensões socializadorasdo processo de trabalho passam a ser ple-namente demarcadas, tornaram-se nítidasquando investigadas no plano da expansão eda consolidação das relações sociais de pro-dução vigentes. Chama-se a atenção para osrequisitos da constituição do sistema global,para os recursos de afirmação social da classemédia, para a ação que desenvolve com vistasà implantação da ordem social competitiva,

para os efeitos e proporções da mobilidadeocupacional, segundo a qual se revelaria “amarca de uma camada em ascensão que pro-cura expandir-se, consolidar-se e deter – nãoimportando a que preço – o controle do pro-cesso de transformação social (FORACCHI,1965, p. 169).

Para compreender o significado da açãoestudantil, Foracchi interpretou as represen-

tações do jovem estudante, relativas à formu-lação de um projeto de carreira profissional. A resposta possível e a resposta adequada àsua indagação inicial (Por que o jovem es-tudante se engaja numa ação de conteúdoradical?) são obtidas no exame da sua pró-pria condição social de estudante, isto é, nasfronteiras do seu vinculamento e envolvi-mento no sistema que o produz. Conformesuas palavras:

É enquanto projeto de profissional , é, enquanto cate-goria transitória, ciente da sua transitoriedade, con-vencida, por isso mesmo, que sua razão de ser é o seuprojeto e que a carreira é o seu projeto, que o estudantepode desvendar, no ato de superação da sua própriacondição restrita, os caminhos da emancipação,como meta e como destino. Por essa razão, importainvestigar os fatores e as condições sociais presentesna elaboração do seu projeto de carreira e como atra-vés dele, o estudante atinge o limite da sua condiçãotransitória. (FORACCHI, 1965, p. 172-173)

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Sua análise volta-se para as condiçõessociais em que se desenvolve o projeto decarreira ou, em outras palavras, para as ex-pectativas e exigências da situação que o jo-vem incorpora ou rejeita no seu projeto deatuação profissional. A autora identifica umconflito latente, atribuído ao caráter pessoalda escolha do jovem que se opôs às aspira-ções familiares e à interferência da famíliana escolha da profissão. Nesse contexto, asdimensões básicas da formação universitáriaexpressam as formas possíveis de participa-ção social que o curso proporciona ao jovem.Convergem, assim, ambas as dimensões parauma única situação concreta e insatisfatória

que é o curso, enquanto limite do projeto decarreira. O curso passa a ser, então, “o quadrode referência sobre o qual o estudante projetaos seus anseios de participação. Representaria,assim, o modo possível e efetivo de o estudantenegar, dentro da especificidade da sua condição,a ordem social que o produz ” (FORACCHI,1965, p. 190, grifos no original). Diante daslimitações do curso para assegurar o alcance

da carreira, ele passa a ser questionado emseus fundamentos. Desse modo, o estudanteengaja-se na luta pela reforma universitárianão por uma questão meramente pedagó-gica, mas por seus aspectos supostamentesecundários que se sustentam num propósi-to amplo de transformação do jovem e doprofissional. Em resumo: as reformas queos estudantes reputam indispensáveis nãoincidem única e diretamente sobre o curso.

Conforme transparecem nas representações,elas são somente o quadro social de referên-cia, a situação mediadora na qual as necessi-dades de formação intelectual e os requisitosda atuação profissional são projetados semque possam ser atendidos. As deficiênciasatribuídas ao curso relacionam-se, por con-seguinte, à limitação das modalidades exis-tentes de participação na sociedade global e

com o propósito de redefini-las. Revelam-se

assim as representações da carreira e do curso“como dois universos distintos e estanques”.“O profissional opõe-se então, ao estudante,conspurcando inclusive a pureza da forma-ção profissional pelo tipo de prática que sevê obrigado a desenvolver” (Ibid., p. 191).

O padrão profissional vigente é analisa-do pelo estudante com base em sua experi-ência de trabalho ou como antecipação daatuação profissional. A formulação antecipa-da de concepções sobre a profissão, apoiadana experiência proporcionada pelo curso e oscontrastes verificados entre este e o padrãoprofissional, colabora para que sejam ela-borados projetos profissionais com base nas

exigências imediatas da situação e a realida-de concreta dos valores profissionais que, decerto modo, repudiam as aspirações contidasnas representações de carreira. No caso doestudante, parece haver como que um con-trole deliberado dos mecanismos perceptivosque postergaria o reconhecimento dos fato-res subjacentes ao êxito profissional.

O aspecto decisivo é que as reivindica-

ções de carreira levam o estudante a perceber,gradativamente, que as implicações sociais dasua ação são amplas, ou seja, que mais que opadrão vigente de carreira, o que ele realmen-te deseja transformar é a ordem que o produz.Contudo, é preciso saber por que e como opadrão de carreira se corrompe. Em primeirolugar, as implicações monetárias do êxito nãose apresentam como dados; muito pelo con-trário, ele supõe conquistar, por intermédio

da carreira, sucesso profissional acompanhadode êxito financeiro. Em segundo lugar, na an-tevisão do profissional, em razão de sua con-dição de estudante, ele comprova que o êxitona carreira deve ser precedido por êxito finan-ceiro, e não vice-versa. Então, o que ressalta aanálise não é tanto o momento da escolha dacarreira, mas principalmente o fato de que elanão se processa, para o estudante, com seus

reais pressupostos, os quais, só depois de qua-

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se consumados os processos de aprendizagemsurgiriam com toda a nitidez. Com efeito, con-tra tais pressupostos se insurgirá o estudante:contra os requisitos econômicos da carreira eas consequentes restrições a que se encontramsubmetidos aqueles que não podem incorporá--los e manipulá-los em seu próprio benefício.Veem-se, então, reduzidos a uma única possi-bilidade: a de voltarem à condição de assalaria-dos, desmascarando, nesse retorno, o conteúdodito emancipador da carreira profissional. Oprojeto de carreira constituído no âmbito dasrelações sociais propiciadas por sua condiçãode classe média repete, apenas, a ilusão eman-cipadora que já fora contrariada no trabalho.

Percebe então o jovem, que o seu futuro é limi-tado pela própria situação de classe, enquantomanifestação de uma estrutura de classes.

Com efeito, se considerarmos que os es-tudantes, em razão de sua própria condiçãosocial, desenvolvem uma participação socialcomum, estabelecem contatos intensos e com-partilham de uma mesma situação existencial,concluiremos que eles reúnem algumas condi-

ções objetivas para se perceberem como parterepresentativa de uma classe social. Na origemda consciência da situação encontra-se a lutaou a negação daquilo que representa o funda-mento da situação de classe: a condição das ba-ses econômicas que definem os canais do êxitoprofissional. Justamente esse fundamento lheé negado no reconhecimento da classe, comocategoria, e de si próprio, como elemento daclasse. Definindo as aspirações da classe, o es-

tudante deixa, também, de se identificar comelas, só reconhecendo o fundamento econômi-co da ascensão de classe no momento em queeste se apresenta como limitação ao seu projetode carreira. Ao desenvolvê-lo, ou seja, ao orien-tar sua ação em termos de luta pela carreira,o estudante apreende as limitações da classe aque pertence. Tendo isso em vista, Foracchiafirma que “a forma de consciência possível para

o estudante, enquanto categoria da classe média,

se realiza através do seu projeto de carreira ” (FO-RACCHI, 1965, p. 205, grifos no original).Em resumo: o estudante não aceita o padrãoprofissional vigente, que tem o sucesso econô-mico como condição prévia, e deseja modificá--lo, pois não conta com os requisitos materiais,considerados indispensáveis à realização deuma carreira profissional autônoma, ao con-trário do que acontece com os estudantes dasclasses altas.

 A autora reconhece, assim, dois momen-tos definidos na constituição do projeto decarreira. Numa primeira etapa, o objetivo,incorporado como projeto, consuma-se natransformação da pessoa, o que proporciona

ao jovem um novo conhecimento de si e, emconsequência, uma nova visão de mundo. Acarreira a que o jovem se destinava é excluídade seu projeto pessoal por intermédio de umaopção que a nega, já que ela representa maisuma imposição exterior das circunstâncias doque um apelo interior inerente à própria perso-nalidade do jovem. Negando seu percurso an-terior por identificar nele a marca da imposição

das circunstâncias, o estudante nega tambémas circunstâncias que o impuseram. Nega, so-bretudo, sua vinculação à família e, ao mesmotempo, a legitimidade do sistema que as impôscomo aspirações. Num segundo momento, aopção feita pelo estudante não pressupõe so-mente a negação da carreira como tal, mas éestendida à realidade que o produz. Dessa for-ma, ele passa a negar a realidade dada e o modode atuação profissional, criticado e negado pelo

projeto. A realidade negada seria, portanto,o perfil da realidade global, visualizado pelaatuação profissional. Nesse caso, o projeto decarreira formulado pelo estudante revestir-se-áde um sentido que transcende sua profissiona-lização e passa a ser percebido como o modo detransformar as exigências da situação.

O reconhecimento da magnitude da ta-refa a que se propôs – modificar o atual esta-

do de coisas – faz que o estudante reconheça

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as precárias condições que tem para realizá-laapenas com seu esforço pessoal. Por isso é damaior importância o diálogo que se estabeleceentre o estudante e o profissional. Nele ficamformulados os propósitos, e ao mesmo tempose tornam mais objetivos e concretos os fatores,que interferem sobre a realização da carreira.Isso permite, por sua vez, imprimir ao projetode carreira contornos mais objetivos e menospessoais. Dito de outro modo, a distensão doslimites da ação sobre as condições da carreiraesbarra na amplitude e na profundidade daspressões vinculadoras do sistema. Além disso,nesse diálogo, o estudante encontra com a difi-culdade maior, expressa na constatação de que

“as possibilidades existentes de alterar o padrão profissional, em termos da ordem e do sistema, só poderão concretizar-se nos limites da sua própriacondição de estudante e na atuação que, enquan-to tal, for capaz de desenvolver ” (FORACCHI,1965, p. 209, grifos no original).

Foracchi demonstra que as limitações aoprojeto de carreira do jovem são, em últimaanálise, os limites da situação de classe. Outros-

sim, é a partir da condição de estudante que o jovem de classe média percebe que o seu futuroprofissional é instável e incerto. “Ser estudanteé, sob esse aspecto, uma condição especial quepressupõe o preparo gradativo e dosado a umaatividade profissional futura, o que equivalea dizer, a um modo definido de participar dasociedade do seu tempo. É portanto, uma vir-tualidade, eminentemente voltada para o futu-ro” (Ibid., p. 211). Assim, o futuro revelado ao

estudante universitário seria necessariamente ofuturo possível no contexto da classe, e o pro-

 jeto de carreira que delineou assume os con-tornos de projeto de ascensão de classe. O pro-

 jeto de carreira passa a ser, então, o momentopreliminar da práxis efetiva, que transforma oestudante em força do futuro, em agente dina-mizador do projeto de classe. Conclui-se, a esserespeito, que os caminhos da profissionalizaçãosão percebidos como veios condutores ao êxitoe ao prestígio social como parte integrante doprojeto de classe, como meio de preservação desua situação de classe intermediária na estratifi-cação social, contendo assim todas as contradi-ções, ambivalências e limitações da classe socialde onde se origina o estudante universitário.Esse vínculo com as classes médias teria refle-

xos nas formas de ação do estudante, como asque nossa autora evidencia estarem presentesno movimento estudantil.

A práxis estudantil: os limites do

radicalismo pequeno burguês

Como demonstrou Foracchi (1965), oestudante, ao elaborar seu projeto de car-

reira, depara-se com um padrão de atuaçãoprofissional que nem sempre é compatívelcom o que almeja ou com o que lhe é pro-piciado em termos de aprendizado. Isso,inicialmente, o leva a defender mudançascurriculares em seu curso. A crítica ao currí-culo converte-se em crítica à universidade eadesão à luta pela reforma universitária 8. Aoadquirir consciência de que os obstáculos àrealização de seu projeto profissional se de-

vem ao “subdesenvolvimento”9, o estudante já não se limita a reivindicar as “modifica-

8 A proposta de reforma universitária se integraria a um conjunto de reformas estruturais, “as reformas de base”, quesetores populares demandavam, tais como a reformas agrária, urbana e tributária, que marcaram os primeiros anosda década de 1960 e foram bloqueadas com o golpe militar de 1964.

9 “O subdesenvolvimento, entendido em termos estruturais, não deixa larga margem à concretização de projetosde ascensão elaborados em escala social. O sistema social não dispõe de requisitos suficientemente flexíveis paraabsorver as reinvindicações estudantis embora não possa ao mesmo tempo impedi-las de se manifestarem.”

(Foracchi, 1982, p. 60)

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ções de curso ou de currículo, mas já estáem condições de radicalizar o seu engaja-mento, ou seja, de identificar-se com gru-pos que lutam pela transformação da socie-dade” (FORACCHI, 1965, p. 218).

 A análise alcança por essa via duas for-mulações: “as possibilidades de atuação sópoderão concretizar-se nos limites da condi-ção de estudante e a de que as proporções daação, quando colocadas em termos de carrei-ra, transcendem os limites socialmente defi-nidos pela condição de estudante” (Ibid., p.220). Na primeira, a autora procura enfati-zar a existência de uma ação especificamenteestudantil, de cunho reivindicativo, fundada

nas aspirações por reformulação dos padrõesda carreira e no projeto de carreira. Na se-gunda, indica que o jovem estudante, aoengajar-se no movimento estudantil, apre-ende as limitações sociais de sua condiçãode estudante enquanto categoria vinculada àclasse média ascendente. Por essa via, ela di-reciona a investigação para a ação dos jovensnos marcos do movimento estudantil, anali-

sando as condições sociais da participação doestudante, a luta pela reforma universitáriae a práxis estudantil, que passa a ser carac-terizada como a expressão do radicalismopequeno burguês.

Retomando o ponto de partida da análi-se de Foracchi sobre o Movimento Estudantilencontramos a origem de classe do estudante.

 As condições sociais da participação do estu-dante no processo político brasileiro são inter-

pretadas tendo como referência a “sua classe deorigem que é, predominantemente, a pequenaburguesia ascendente, denominadas por algunsautores de ‘nova classe média’” (FORACCHI,1965, p. 221). A práxis estudantil desenvolver-

-se-ia nessa conjuntura política como expressãoradical da práxis pequeno-burguesa. Seu pro-

 jeto de transformação da sociedade, contidona luta pela Reforma Universitária, teria comolimites os interesses defendidos pela pequenaburguesia, o que leva a autora a deter-se nascaracterísticas da atuação política dessa cama-da. Afastada da alternativa proletária e margi-nalizada no processo capitalista de produção,a classe média é a categoria intermediária quese comprime entre as contradições do sistema,não contando com um estilo de atuação quea singularize ou com uma filosofia prática quelhe descortine perspectivas imediatas de futu-ro10. Isso porque, ao constituir-se como classe

emergente, a classe média estaria posicionadaem relação às demais classes em uma posiçãode dependência.

Com efeito, a condição assalariada a vincula,positivamente, às camadas populares, fazendo-a,não raro, compartilhar das suas reivindicaçõesnem que seja, exclusivamente nos moldes de umtímido ou subjetivo apoio. Por outro lado, essamesma condição de assalariada a vincula em ter-mo de dependência e subordinação à experiência

acumulada e à visão histórica das camadas do-minantes, incapacitando-a para efetiva tomadade posição que exija ruptura desses vínculos. Ovínculo de dependência, inerente a sua condiçãoassalariada, faz com que a pequena burguesiaaja compelida pelo temor de perder a situaçãode dependência e os escassos benefícios que eladesfruta (FORACCHI, 1965, p. 222).

Isso denotaria a incapacidade do movi-mento estudantil, por seu vínculo de classe,

de oferecer primeiramente uma saída revo-lucionária à situação nacional. A fragilida-de ideológica e organizativa do movimentoteria, assim, a marca da pequena burguesia,essa classe ambígua que não tem unidade

10 “O que os torna representantes da pequena-burguesia é o fato de que sua mentalidade não ultrapassa o limites queessa não ultrapassa na vida, de que são consequentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos problemas esoluções para os quais o interesse material e a posição social impelem, na prática, a pequena –burguesia” (Marx,

1958, p. 43. Apud . Foracchi, 1965, p. 225)

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política por ser produto da polarização dasclasses. Foracchi se interessa por compreen-der como essa ambiguidade de orientações sereflete no comportamento político do estu-dante e nas feições do movimento estudantil.

Importa-nos nesse aspecto apenas reterque a autora problematizou o significado dapolitização, visto a partir da perspectiva do

 jovem, que seria o de propiciar a formaçãode laços de solidariedade interna, fazendoque ele percebesse, com maior nitidez, asdimensões sociais da condição de jovem ede estudante. O que ressalta de sua análiseé o fato de que “esse mundo novo, aber-to às suas aspirações de jovem, essa inédita

oportunidade de diálogo com iguais, cor-responderia, em termos de conhecimento ede ação, à contrapartida radical da atuaçãoda classe que só agora o jovem passa a per-ceber como possibilidade” (FORACCHI,1965, p. 224). Como a autora destaca, oconvívio no ambiente universitário é quepropiciará ao jovem estudante a elabora-ção de uma nova representação de si e dos

papéis que deve desempenhar. Ou seja, so-mente na condição de estudante ele é capazde reconhecer, com maior êxito do que ou-tros jovens, o sentido da vinculação de suacamada de origem às camadas dominantese de percebê-la como obstáculo à concreti-zação do seu projeto profissional.

Se o movimento estudantil adquirisse aconotação de enfrentamento radical ao siste-ma, ele se daria por intermédio e influência de

uma vanguarda materializada nas organiza-ções partidárias e correntes políticas atuantesno movimento estudantil, que cumpririama função de politizar as lutas dos estudantes,promovendo a vinculação da luta estrita-mente estudantil a uma crítica do sistema declasses. Contudo, isso só se efetivaria com oestabelecimento de uma aliança popular a serformada pelo alinhamento das lutas estudan-

tis às acusadas pautas das classes subalternas e

exploradas nas relações sociais de produção,notadamente da operária e camponesa. Por-tanto, a atuação radical só seria virtualmenterevolucionária na medida em que os estudan-tes negassem seus vínculos com a classe médiae aderissem ao projeto do proletariado urbanoe dos trabalhadores rurais.

Diante desses aspectos a autora salien-ta que é imperativo reter que o movimen-to estudantil deve ser considerado dentrodos limites da condição de estudante, que,como vimos, é transitória e parcial. Assim,sua potencialidade revolucionária estaria li-mitada pelas próprias características sociaisda condição de estudante universitário. Isso

quer dizer que o mesmo processo social quepreside a constituição do estudante atuariacomo força limitadora da práxis estudantil.

 Ao lado do processo de constituição do estudantecomo categoria social, engendra-se um estilo depráxis política que desvenda, ao mesmo tempo, apeculiaridade da sua própria condição e aspectosda situação global que a constitui. Transforman-do-se em estudante, o jovem é levado a agir e,agindo, torna-se capaz de compreender e criar dis-

posições positivas para modificar as condições queo transformam em estudante, impedindo-o porémde sê-lo com autonomia: as condições inseridas naproblemática da sua classe de origem. Em outraspalavras, isso quer dizer que as mesmas condiçõessociais que presidiram o processo de constituiçãodo estudante e que estavam, portanto, integradasao projeto familiar de ascensão e de transformaçãoda ordem social exercem uma influência limitado-ra sobre a ação do estudante como tal. [...] Ouseja, ser estudante equivale a viver, nos limites deuma condição social particular, a ambiguidade da

situação de classe (FORACCHI, 1965, p. 241).

Torna-se evidente que em suas conside-rações a ação pequeno-burguesa traduz umamodalidade de consciência da situação deli-mitada pelas características sociais da sua pró-pria situação de classe. É por conta dessa am-biguidade (a situação vacilante entre a adesãoa um projeto de desenvolvimento nacionalque altere as relações vigentes entre as clas-

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ses sociais e a preservação de seus privilégioscomo classe intermediária e dependente daclasse capitalista) que o movimento estudan-til teria limitações para contrapor-se à ordemsocial. Com efeito, segundo Foracchi, a açãodo estudante só adquire amplitude societária“sob condição de estar conjugada com a ação dasdemais forças sociais de renovação, que se mani-

 festam na sociedade brasileira ” (FORACCHI,1965, p. 249). Somente na medida em quea ação do estudante estiver identificada comum processo de ampla luta social por transfor-mações e em aliança com outros setores po-pulares é que ela poderá se revestir de algumaconotação “revolucionária”.

O movimento estudantil, expressãoradical da ambígua polarização ideológicada pequena-burguesia, é percebido por Fo-racchi como um setor propício a compor omovimento de massas urbanas que estariaminteressadas na transformação do status quo.Com efeito, ela identifica, de um lado, a ra-dicalização como componente necessário docomportamento do jovem na sociedade ca-

pitalista, e de outro a própria situação socialda pequena-burguesia que estaria envolvidana luta pela transformação da ordem vigen-te. Ela descortina, assim, o significado socialda ação radical tal como se desenvolvia nasociedade de sua época. Como conclusão daanálise da práxis estudantil, Foracchi (1965)destaca a ambiguidade da pequena burguesiatal como entrevista na análise do movimentoestudantil. Ela apresentaria, portanto, algu-

mas características singulares, a saber:

a) negação da classe como condição determinan-te da ação; b) afirmação da prioridade necessáriada consciência sobre a ação; c) a preocupação delastrear a ação em reivindicações específicas e par-ciais. Essa esquematização sumária nos possibilitareconhecer, em linhas gerais, alguns limites so-cialmente interpostos à práxis pequeno-burguesa:1) o confinamento estrutural lhe permitiria atin-gir, apenas de modo indireto, a sociedade comoum todo; 2) a ambígua polarização ideológica e

o sentido paradoxal de seu engajamento equiva-leriam a manifestações sócias da impossibilidadeestrutural de reconhecer-se e de agir política eunitariamente como classe; 3) a delimitação doalcance social da ação se expressaria através daatomização desse estilo de práxis em categoriassocialmente transitórias, como o estudante, por

exemplo (FORACCHI, 1965, p. 291).

Podemos, assim, concluir que a peque-na burguesia, dadas as condições do seu in-sulamento estrutural e dado o teor das suasrelações de dependência com as camadasdominantes, não pode formular qualquerreivindicação global que lhe seja própria en-quanto classe. “Há um processo de reifica-ção das forças de renovação que fragmenta acapacidade reivindicativa em setores sociaisespecíficos, criando obstáculos para a incor-poração de uma reivindicação unitária e paraa elaboração de um estilo correspondente deluta política” (Ibid., p. 294).

Como se observa, a autora situa sua aná-lise no contexto político e social de sua épocapara poder identificar os limites e os alcancesdo movimento estudantil universitário. Sendo

um tipo de ação específica, sua ação emergiriaa partir de condições determinadas pela estru-tura social. A abordagem difere de posiçõesvoluntaristas que não percebiam a ação dosestudantes a partir de seus vínculos de classe.É justamente essa vinculação que caracteri-zaria o movimento estudantil. Com isso elapode concluir que, por seus vínculos com aperspectiva de classe média, o radicalismo es-

tudantil não teria feição revolucionária. Comefeito, a particularidade desse radicalismo nãoestaria na superação revolucionária dos anta-gonismos de classe que impedem o desenvol-vimento das forças produtivas nacionais, masapenas na tentativa de superar os obstáculosaos projetos de mobilidade social das classesmédias. O que leva Foracchi a identificar quea função transformadora das camadas médias,manifesta pelo setor radicalizado da pequena

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burguesia, não comprometeria o status quo vi-gente. Ou seja, no movimento estudantil uni-versitário se evidenciariam as característicasmais nítidas do radicalismo pequeno burguês,tal como este poderia ser apreendido na cons-tituição do estudante como categoria social.

 A análise da condição social do estudan-te e do movimento estudantil universitário,presente na tese de Foracchi, refere-se à con-

 juntura dos anos iniciais de 1960 e observaa atuação estudantil no período do governo

 João Goulart. Esse quadro de referência so-freria profunda alteração com o golpe militarem 1964, reposicionando o papel do movi-mento estudantil, sua força e suas formas de

ação. Isso foi marcado pela mudança de status  do movimento estudantil – de força impul-sionadora das reformas de base no governo de

 João Goulart em uma das principais forças deoposição ao regime militar. Com efeito, essamudança redefiniria o âmbito de atuação e osquadros de referência do movimento estudan-til, conferindo um caráter menos abstrato aoseu radicalismo e projetando novas formas de

engajamento na luta política, comprometendoa luta daquela geração para com a restauraçãoda democracia no Brasil. Isso levou Foracchi arecolocar em novos quadros teóricos a análisedo movimento estudantil nos textos de 1968e de 1972. Entre as inovações interpretativasposteriores, Foracchi especificaria a distinçãoentre os movimentos estudantil e juvenil.

O movimento hippy , na sua impotência e na sualimitação é, por excelência, o movimento de ju-ventude que leva às últimas consequências asvirtualidades sociais e intelectuais da condição de

 jovem. O movimento estudantil, na sua virulên-cia revolucionária ou reformista, na proporção emque refina a sua prática contestadora, balizando-a,sempre, por considerações táticas ou estratégicas,negocia conciliações e compromissos, aceita ostermos da luta, propondo-se alvos políticos, sendopolítico e fazendo política, entrando, em últimaanálise, no jogo dos adultos, acatando um estilo decontestação adulta” (FORACCHI, 1972, p. 93).

O movimento estudantil é interpretadopela autora por um prisma diverso daquelecom que analisa o movimento de juventude.

 Acentua-se, como característica dele, a identifi-cação política com correntes radicais de esquer-da, o qual retira conteúdos “revolucionários” àssuas reivindicações e se avalia, com pessimismo,a consistência das suas posições políticas (Ibid.,p. 109). Contudo, como a própria autora es-clarece, “não se trata de questionar a vinculaçãopequeno-burguesa ou diluir a sua importânciaexplicativa, pois ela é um dado que remonta àorigem social do estudante. Trata-se na verdadede assumi-la teoricamente, reequacionando oseu sentido analítico” (Id., 1968, p. 67).

Considerações finais

 A obra de Foracchi insere-se no pensa-mento social brasileiro marcando o momentode formação da Sociologia da Juventude. Emseus trabalhos se encontra uma concepçãodialética sobre a juventude. Essa é percebidasimultaneamente como uma fase de vida, uma

força de renovação social e um determinadoestilo de existência. O jovem adquire feiçõesconcretas como ser socialmente dependenteem busca de recursos que lhe permitam efetivara conquista da autonomia. Vive sua condição

 juvenil a partir de certa posição na estrutura so-cial que é propiciada por sua classe de origemde tal modo que o conhecimento da juventudepressupõe o reconhecimento de sua situaçãode classe. Sua compreensão da condição ju-

venil enfatiza a posição subalterna do jovemdiante do adulto e da ambivalência que marcaesse processo de transição. Ao longo dessa tran-sição se efetuam os processos de socializaçãonos quais se evidencia a construção social do

 jovem como categoria sociológica. Com isso,demonstra que a juventude, os jovens, os es-tudantes e o movimento estudantil constituemcategorias sociológicas específicas que trazem as

contradições das relações sociais que os consti-

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tuem. Com efeito, sua obra oferece a possibi-lidade para diferenciarmos as situações juvenise reconhecermos a existência de múltiplas ju-ventudes por conta das condições de classe edos processos de socialização experimentadospelos jovens.

No caso do seu estudo clássico, a categoriasingular foi o jovem estudante universitário.Por força das contradições de sua vinculação aomodo de produção capitalista ele se constituisujeito histórico por meio do movimento estu-dantil. Compreende-se esse movimento comoessencialmente político, que daria expressão aum radicalismo pequeno burguês devido à ori-gem de classe do estudante universitário. Deste

debate é mister reter que, por intermédio domovimento estudantil, os jovens passaram afigurar como agentes na luta política nacionale incidir na definição da agenda do Estado. En-

tretanto, como movimento social de massas,ele se revela inconstante, registrando períodosde ascensão e de refluxos de mobilização, assimcomo assume formas e conteúdos diferencia-dos conforme a conjuntura política. Levandoisso em consideração é possível compreenderas mudanças pelas quais passou o movimentoestudantil brasileiro e o movimento juvenil emsua apreensão mais ampla.

Retomar os temas estudados por Ma-rialice Foracchi, atualizando-os à luz dascontradições atuais da sociedade brasilei-ra ou, ainda, valer-se de seu legado teóricopara pensar as condições sociais de jovens esuas formas de ação em outros contextos são

exercícios igualmente desafiadores. Poderãoser realizados por quem aceitar o desafio deretomar essa vertente crítica no desenvolvi-mento da Sociologia da Juventude no Brasil.

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Resumo

 Marialice Foracchi e a formação da Sociologia da Juventude no Brasil 

Neste ensaio se interpretam as principais contribuições teóricas legadas por Marialice Foracchi à Sociologia da Juven-tude. Inicialmente aborda a origem desse campo disciplinar e os autores que a influenciaram. Segue apresentando oconjunto de sua obra e debatendo sua perspectiva interpretativa. Aborda o processo social de transformação do jovem

em estudante, destacando os vínculos de manutenção e os estilos de dependência atribuídos à situação de classe. Reto-ma sua análise do processo de transição da dependência à autonomia por meio da inserção no trabalho, da profissio-nalização e dos projetos de carreira. Discute o movimento estudantil, por meio do qual os jovens se constituem comosujeitos históricos, apontando os limites do radicalismo de pequeno burguês que o caracteriza. Conclui que a obradessa autora possibilita diferenciar as situações juvenis por conta das situações de classe e dos processos de socialização.

Palavras-Chave: Marialice Foracchi; Sociologia da Juventude; Situação de Classe; Profissionalização; MovimentoEstudantil.

Abstract

 Marialice Foracchi and the formation of the Sociology of Youth in Brazil 

This essay discusses the main theoretical contributions bequeathed by Marialice Foracchi to the Sociology of Youth.It deals initially with the origins of such disciplinary field and the authors who influenced it. In continuation, it pro-vides a presentation of Foracchi’s work and discusses her interpretative perspective. In so doing, the paper approachesthe process of social transformation of a young person into a student, highlighting the ties of maintenance and thedependency styles attributed to its class situation, and resumes her analysis of the process of transition from the situ-ation of dependence to that of autonomy through the youth’s insertion into the labor market, its professionalizationand career projects. Furthermore, the essay discusses the student movement, whereby the youths become historicalsubjects, pointing to the limits of the petit bourgeois radicalism that characterizes it. In its conclusions, the essaypoints out that Foracchi’s work offers the possibility of differentiating juvenile situations based on class situation andsocialization processes.

Keywords: Marialice Foracchi; Sociology of Youth; Class Situation; Professionalization; Student Movement.

Résumé

 Marialice Foracchi et la formation de la sociologie de la jeunesse au Brésil