Carta 34

download Carta 34

of 2

Transcript of Carta 34

  • 8/19/2019 Carta 34

    1/2

    Krishna disse: Contempla-Me, Arjuna. Se Eu deixassede agir um só instante, o universo todo desapareceria. Nada tenhoa ganhar na ação; sou o Senhor único. Por que atuo então?Porque amo o mundo. Deus está desligado porque ama; umamor assim verdadeiro, desfaz nossas ligações. Onde quer quehaja apego pelas coisas mundanas, há atração física entre gruposde partículas de matéria; algo que atraia os corpos cada vez

    mais próximos e que não se podem juntar bem, produz dor, porém,onde há amor real não existem de nenhum modo atraçõesfísicas. Tais amantes podem estar a mil milhas de distância umdo outro e seu amor será sempre o mesmo; não morre, e jamaisprovocará dor.Obter este desapego pode ser o trabalho de uma vida,porém, logo que o tivermos alcançado, nos encontraremos nameta do amor e conquistaremos a liberdade; nos libertaremosdas cadeias da natureza e a contemplaremos tal qual é. Nãoconseguirá mais prendermos; seremos inteiramente livres e nãotomaremos em consideração o resultado das ações. Para quenos preocuparmos com os resultados?

    Pedis recompensa a vossos filhos. Nosso dever consisteem trabalhar para eles, e aí termina o assunto. Em tudo, aquiloque fizerdes por um semelhante, por uma cidade ou por um Estado,assumi idêntica atitude: não espereis recompensa. Se podeistomar invariavelmente a posição de quem dá livremente,sem pedir recompensa alguma, então vosso trabalho não produziráligações. Estas somente vêm quando esperamos recompensa.Se agir como escravos produz egoísmo e trevas, agindocomo senhores de nossas próprias mentes gozaremos a felicidadede retidão e justiça; porém vemos que no mundo o reto e36o justo são palavras vãs de crianças. Há duas coisas que guiama conduta do homem: o poder e a compaixão. O exercício do

    poder leva invariavelmente ao egoísmo. Os homens e as mulheresaproveitam-se tanto quanto possível do poder, ou dasvantagens que dele podem tirar.A compaixão é a essência do céu. Para ser bons, devemosser clementes. Até a justiça e o direito devem ser apoiadosna clemência. Pensar em tirar proveito da obra quê realizamos,prejudica nosso progresso espiritual; ainda mais: provoca a miséria.Há outra maneira de levar à prática a misericórdia e a caridadealtruísta: é considerar as obras como adoração (quandocremos num Deus pessoal). Deste modo abandonamos ofruto de nossas ações ao Senhor; e adorando assim, não temoso direito de esperar nenhuma gratidão pelas obras que fazemos.

    O Senhor age incessantemente e está sempre livre de ligações.Assim como a, água não pode molhar a folha do Loto,assim também a obra não pode escravizar o homem altruísta. Oaltruísta e desligado pode viver em meio da multidão de umacidade pecadora e não ser manchado pelo pecado.Esta ideia de abnegação absoluta está ilustrada no seguinteconto: Depois da batalha de Kurukshetra, os cinco irmãospândavas celebraram um imponente sacrifício, dando aomesmo tempo esmolas aos pobres. Todos estavam assombradosante a magnificência do sacrifício e diziam que nunca sevira outro igual no mundo. Mas depois da cerimônia chegou alium pequeno rato, cuja metade do corpo era dourada e outrametade parda. Principiou então a espojar-se no assoalho da sala

    do sacrifício, e depois disse: Isto não é sacrifício. Como?,disseram, dizes que isto não é sacrifício? Ignoras quantodinheiro e joias foram distribuídos aos pobres e quanto cada

  • 8/19/2019 Carta 34

    2/2

    37um deles se tornou rico e feliz? Este foi o sacrifício maior queum homem já realizou.Porém o ratinho retrucou: Certa vez, numa pequena aldeiaresidia um pobre brâmane com sua esposa, seu filho e suanora. Eram muito pobres e viviam das pequenas dádivas quelhes eram oferecidas por pregarem e ensinarem. Aquela cidade

    passou por um período de fome durante três anos e o pobrebrâmane sofreu muito mais do que outrora. Finalmente, quandoà família que há dias já não se alimentava, o pai trouxe umamaçã e um pouco de farinha de cevada que tivera a sorte deconseguir, dividiu tudo em quatro partes iguais e deu uma acada familiar. Preparavam-se para comê-la, porém nesse momentobateram à porta. O pai a abriu e apareceu um hóspede.(É bom saber que na índia um hóspede é pessoa sagrada: éconsiderado como um Deus enquanto dura a hospedagem, edeve ser tratado com devoção). Então o pobre brâmane lhe disse:Entrai, Senhor; bem-vindo sejais. Pôs diante do hóspedeseu alimento, que ele comeu rapidamente, dizendo: Oh! Senhor,

    faz dias que não como, e este alimento ainda veio aumentara minha fome. Então a esposa disse a seu marido:Dá-lhe a minha parte, ao que ele disse: não. Porém ela insistiu,dizendo: Está aqui um esfomeado e nosso dever comochefes de família é dar-lhe de comer. Como esposa cumpro omeu dever dando a minha parte, visto que não tens nada maispara lhe oferecer. E a deu. Mas, depois de comê-la, o hóspedeainda estava com fome. Em vista disso, o filho disse: Tomaitambém a minha parte. O dever de um filho é ajudar os pais acumprirem suas obrigações. O hóspede comeu, mas não semostrou satisfeito, e por isto a esposa do filho lhe deu a sua ração.O hóspede saiu bendizendo-os. Naquela mesma noite, osquatro morreram de fome.