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Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. 1 Clarice Lispector FeLiCidade CLandestina 1. BIOBIBLIOGRAFIA Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, na antiga União Soviética, no ano de 1920. Veio para o Brasil ainda crian- ça, passando a residir na capital pernambucana. Já no Rio de Janeiro, formou-se em direito, não exercendo a profissão. Casou-se com o diplomata Gurgel Valente, o que lhe valeu conhecer vários países, travando amiza- de com escritores estrangeiros. Separada, voltou para o Brasil, dedicando-se, exclusivamente, à literatura. Clarice Lispector causou surpresa ao escrever, com apenas 19 anos de idade, o romance Perto do coração selvagem, obra de clara concepção introspectiva, fazen- do-nos lembrar os bons momentos de Machado de Assis (1839-1908), romancista e contista realista de Memórias póstumas de Brás Cubas e O alienista, e Graciliano Ramos (1892-1953), romancista modernista de São Bernardo. Romancista e contista, além de cronista e autora de livros infantis, Clarice Lispector é um dos expoen- tes da Geração de 45 do Modernismo. Irmã da roman- cista Elisa Lispector (1911-1989), autora de O dia mais longo de Teresa (1965), Clarice Lispector foi a escritora que mais se destacou na questão existencialista na li- teratura brasileira. Fumante inveterada, certa vez dor- miu com o cigarro aceso, acordando entre as chamas do lençol, ocasionando-lhe algumas marcas nas mãos e nos pés. Clarice Lispector morreu em 1977, aos 57 anos de idade. OBRAS Romances Perto do coração selvagem (1944); O lustre (1946); A cidade sitiada (1949); A maçã no escuro (1961); A pai- xão segundo G.H. (1964); Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969); Água viva (1973); A hora da estrela (1977). Contos Alguns contos (1952); Laços de família (1960); A legião estrangeira (1964); A felicidade clandestina (1971); A imi- tação da rosa (1973); A via-crúcis do corpo (1974); Onde estiveste de noite? (1974); A bela e a fera (1979). Crônicas Visão do esplendor (1975); Para não esquecer (1978); A descoberta do mundo (1984). Livros infantis O mistério do coelhinho pensante (1967); A mulher que matou os peixes (1969); A vida íntima de Laura (1974); Quase verdade (1978). Outros De corpo inteiro (entrevistas, 1975); Um sopro de vida (‘pulsações’, 1978). Estilo de época Pertencente ao Modernismo brasileiro, Clarice Lis- pector situa-se na chamada Geração de 45, cujo início coincide com o final da Segunda Guerra Mundial, esten- dendo-se até o início dos anos 1960. Nesta época, o Brasil vivia um período politicamente difícil, com a deposição de Getúlio Vargas e a eleição de Eurico Gaspar Dutra. Era o começo de uma redemocratiza- ção nacional. Em 1950, Getúlio Vargas volta à Presidência, dessa vez eleito pelo voto popular. Entretanto, por causa de sua conturbada administração, que contrariava as eli- tes, suicidou-se em 1954. Café Filho assume o controle da nação. Um ano depois, Juscelino Kubistschek foi eleito pre- sidente, cujo lema de campanha, “50 anos em 5”, foi pos- to em prática com a chegada das fábricas estrangeiras e a construção da nova capital federal, Brasília. No campo literário, a Geração de 45 procurou, de certa forma, inovar, principalmente na área linguística, notadamente com Guimarães Rosa e Clarice Lispector; o primeiro, de caráter regionalista; a segunda, intimista. Além deles, fazem parte desta geração: Dalton Trevisan, João Cabral de Melo Neto, Rubem Fonseca, Mario Quin- tana, Fernando Sabino, Rubem Braga, Dias Gomes, Aria- no Suassuna, Jorge Andrade e Josué Montello. 2. Características centrais de Clarice Lispector Notável prosadora, Clarice Lispector é uma das poucas

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Clarice LispectorFeLiCidade

CLandestina1. BIOBIBLIOGRAFIA

Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, na antiga União Soviética, no ano de 1920. Veio para o Brasil ainda crian-ça, passando a residir na capital pernambucana. Já no Rio de Janeiro, formou-se em direito, não exercendo a profissão. Casou-se com o diplomata Gurgel Valente, o que lhe valeu conhecer vários países, travando amiza-de com escritores estrangeiros. Separada, voltou para o Brasil, dedicando-se, exclusivamente, à literatura.

Clarice Lispector causou surpresa ao escrever, com apenas 19 anos de idade, o romance Perto do coração selvagem, obra de clara concepção introspectiva, fazen-do-nos lembrar os bons momentos de Machado de Assis (1839-1908), romancista e contista realista de Memórias póstumas de Brás Cubas e O alienista, e Graciliano Ramos (1892-1953), romancista modernista de São Bernardo.

Romancista e contista, além de cronista e autora de livros infantis, Clarice Lispector é um dos expoen-tes da Geração de 45 do Modernismo. Irmã da roman-cista Elisa Lispector (1911-1989), autora de O dia mais longo de Teresa (1965), Clarice Lispector foi a escritora que mais se destacou na questão existencialista na li-teratura brasileira. Fumante inveterada, certa vez dor-miu com o cigarro aceso, acordando entre as chamas do lençol, ocasionando-lhe algumas marcas nas mãos e nos pés.

Clarice Lispector morreu em 1977, aos 57 anos de idade.

ObrasRomancesPerto do coração selvagem (1944); O lustre (1946);

A cidade sitiada (1949); A maçã no escuro (1961); A pai-xão segundo G.H. (1964); Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969); Água viva (1973); A hora da estrela (1977).

ContosAlguns contos (1952); Laços de família (1960); A legião

estrangeira (1964); A felicidade clandestina (1971); A imi-tação da rosa (1973); A via-crúcis do corpo (1974); Onde estiveste de noite? (1974); A bela e a fera (1979).

CrônicasVisão do esplendor (1975); Para não esquecer (1978);

A descoberta do mundo (1984).

Livros infantisO mistério do coelhinho pensante (1967); A mulher que

matou os peixes (1969); A vida íntima de Laura (1974); Quase verdade (1978).

OutrosDe corpo inteiro (entrevistas, 1975); Um sopro de vida

(‘pulsações’, 1978).

Estilo de épocaPertencente ao Modernismo brasileiro, Clarice Lis-

pector situa-se na chamada Geração de 45, cujo início coincide com o final da Segunda Guerra Mundial, esten-dendo-se até o início dos anos 1960.

Nesta época, o Brasil vivia um período politicamente difícil, com a deposição de Getúlio Vargas e a eleição de Eurico Gaspar Dutra. Era o começo de uma redemocratiza-ção nacional. Em 1950, Getúlio Vargas volta à Presidência, dessa vez eleito pelo voto popular. Entretanto, por causa de sua conturbada administração, que contrariava as eli-tes, suicidou-se em 1954. Café Filho assume o controle da nação. Um ano depois, Juscelino Kubistschek foi eleito pre-sidente, cujo lema de campanha, “50 anos em 5”, foi pos-to em prática com a chegada das fábricas estrangeiras e a construção da nova capital federal, Brasília.

No campo literário, a Geração de 45 procurou, de certa forma, inovar, principalmente na área linguística, notadamente com Guimarães Rosa e Clarice Lispector; o primeiro, de caráter regionalista; a segunda, intimista. Além deles, fazem parte desta geração: Dalton Trevisan, João Cabral de Melo Neto, Rubem Fonseca, Mario Quin-tana, Fernando Sabino, Rubem Braga, Dias Gomes, Aria-no Suassuna, Jorge Andrade e Josué Montello.

2. CaracterísticascentraisdeClariceLispector

Notável prosadora, Clarice Lispector é uma das poucas

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grandes mulheres de nossa literatura. Colocada ao lado de Cecília Meireles (1901-1964), autora de Vaga Música (1942), e Lígia Fagundes Telles (1923), autora de Ciranda de pedra, Clarice Lispector-escritora tem como principais caracterís-ticas:

• prosa introspectiva;• universo feminino;• linguagem insólita e metafórica;• existencialismo;• temática social.O que vem a ser cada uma dessas características?

A seguir, procuraremos, de forma superficial e sucinta, definir cada uma das características para que tenhamos uma noção da importância dessa escritora que tão bem soube representar o feminino numa literatura, basica-mente, machista e preconceituosa, que é a literatura brasileira.

PrOsa intrOsPectivaPara Clarice Lispector não interessa, propriamente,

o enredo, e sim o amadurecimento da personagem na presença do leitor, seguindo, dessa maneira, a linha ma-chadiana, em que o leitor acaba fazendo o papel de um analista, enquanto a personagem faz o do analisado. Portanto, o enredo é mera desculpa para a autora des-fiar toda uma gama de subjetividade presente na per-sonagem e colocá-la aos olhos nus do leitor. Assim, po-demos considerá-la uma escritora universal, pois o que, realmente, interessa é a essência humana, isto é, aquilo que é inerente ao ser humano. O trecho abaixo, retirado do conto “Os desastres de Sofia”, dá-nos o exemplo:

Não, eu não era engraçada. Sem nem ao mesmo saber, eu era muito séria. Não, eu não era doidinha, a realidade era o meu destino, e era o que em mim doía nos outros. E, por Deus, eu não era um tesouro. Mas se eu antes já ha-via descoberto em mim todo o ávido veneno com que se nasce e com que se rói a vida — só naquele instante de mel e flores descobria de que modo eu curava: quem me amasse, assim eu teria curado quem sofresse de mim. Eu era a escura ignorância com suas fomes e risos, com as pe-quenas mortes alimentando a minha vida inevitável – que podia eu fazer? e já sabia que eu era inevitável. Mas eu não prestava, eu fora tudo o que aquele homem tivera naquele momento. (p. 118)

UniversO femininONão podemos, nem devemos confundir essa litera-

tura feminina com literatura feminista. Clarice Lispector não era uma feminista, como a maioria dos escritores não são taxados de machistas.

Linguagem insóLita e metafóricaO que faz um escritor ser grande não é somente o con-

teúdo por ele explorado, mas também a forma, ou seja, a linguagem empregada. No caso de Clarice Lispector per-cebemos um grande domínio de figuras de linguagem, principalmente, metáforas, que nada mais são do que com-parações imaginárias, muitas delas causadoras de belas sur-presas, como a que aparece em “A repartição dos pães”:

Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. (p. 89)

O existencialismOÉ a corrente filosófica que põe a existência no centro de

suas especulações. É o modo como o ser se encontra no mundo. Um texto introspectivo favorece esse tipo de filo-sofia, já que a personagem, ou mesmo o narrador, explora os anseios, frustrações, sonhos, fantasias… Para Sartre, o ser é tomado por aquilo a que chamou de náusea, isto é, a forma emocional violenta de angústia. O trecho abaixo, retirado do conto “O ovo e a galinha”, exemplifica:

Ou é isso mesmo que eles querem que aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo o que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o di-nheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria trai-ção. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo. (p. 57)

temática sOcialComo todo bom escritor, Clarice Lispector também é

uma autora engajada em seu tempo. Fiel à proposta do próprio Jean-Paul Sartre, em que a literatura visa cons-cientizar as pessoas e, consequentemente, a transforma-ção da sociedade, Clarice Lispector só fez confirmar ainda mais a sua posição de destaque em nossa literatura.

3. OQUEÉOEXISTENCIALISMOSEGUNDOSARTRE

Antes de começarmos a entender o que vem a ser,

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propriamente, o existencialismo sartreano, é importan-te ressaltarmos o sentido da palavra, que já nos dá uma boa ideia para ingressarmos, de forma mais segura, nes-se universo que causa tanta controvérsia entre os mais diversos especialistas no assunto.

Segundo o professor João da Penha, em sua peque-na obra O que é o existencialismo, a palavra existência, de-rivada de existere, significa sair de uma casa, um domínio, um esconderijo. Mais precisamente: existência, na origem, é sinônimo de mostrar-se, exibir-se, movimento para fora. Daí, denominar-se existencialista toda filosofia que trata diretamente da existência humana. (p. 11)

Jean-Paul Sartre, talvez o mais popular filósofo do sé-culo XX, retoma, de maneira contundente, o que havia sido colocado por diversos filósofos anteriores, como o dinamarquês, Sören Kierkegaard, considerado este o Pai do existencialismo, e o alemão Heidegger, isto é, as ques-tões existencialistas.

Considerando-se mais um ideólogo do que propria-mente um filósofo, Sartre levou até as últimas consequên-cias as suas convicções, sendo, por esse motivo, criticado por uma gama de intelectuais da sua época. Até mesmo no Brasil, Sartre encontrou ferrenhos opositores, chegando alguns deles, às raias do xingamento.

Como todo existencialista, Sartre parte do mesmo ponto que os outros filósofos, isto é, do homem concre-to. O que vai diferenciá-lo dos demais é o seu ateísmo. E, a partir disso, tem-se uma ausência de valores, prin-cípios e normas. Ao homem resta a sua subjetividade, sem, contudo, desligar-se do fundamento racional.

Propondo uma análise do indivíduo, Sartre procura romper com as limitações provenientes do marxismo. Com isso, o filósofo francês conclui que o homem é liber-dade, escolhendo o que realmente deseja ser. Quando isso acontece, ele, o homem, tem o poder de criar o seu próprio valor, valor este determinado pelo grau de liberdade com que se realiza. Portanto, se o destino não existe, o homem é que escolhe ser. Lembremos aqui da famosa palestra rea-lizada por Sartre em Araraquara, em que disse:

Neste momento, por conseguinte, encontramos o pro-blema da existência. Isso significa que, no fundo, a noção de projeto, a noção que nos conduzia aos limites do terre-no da liberdade e algumas outras noções semelhantes nos remetem a esta ideia de desraigamento do presente. Ao fato de que somos objeto, mas ultrapassamos o objeto. Ela nos conduz, em suma, a uma realidade prática do homem, onde existir e fazer-se são uma só e mesma coisa e esta rea-lidade prática, que nela mesma escapa à ciência embora a fundamente, é justamente o que a ideologia da existência se propõe a estudar. (p. 81)

A literatura, por exemplo, tem o poder de refletir estas escolhas, ocasionando o que Sartre denominou de náusea, isto é, a angústia, a dor, o desespero etc. Ao escolher, o homem estabelece um vínculo com a própria humanidade. Para Sartre, existe uma ausência de critérios racionais, mas não podemos negar que é o existencialismo o responsável por conduzi-lo ao Humanismo.

Mas por que isso teria causado tanta ira nos outros filósofos?

Sartre criou polêmica ao discutir a fórmula emprega-da pelos existencialistas anteriores, a existência precede a essência. Mas isso não é correto? Para o filósofo fran-cês, não. Para ele, somente o ser humano é que pode encaixar-se em tal fórmula. Mas por quê? O próprio Sar-tre responde:

O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coe-rente. Se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, descobre-se, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer.

João da Penha, p. 44.

Portanto, para Sartre a existência precede a essência no que concerne ao ser humano. É interessante ainda ressaltarmos que esse ateísmo sartreano é o ponto dife-rencial do existencialismo cristão de Kierkegaard (1813--1855), filósofo e teólogo dinamarquês, considerado, como vimos anteriormente, o Pai do existencialismo, au-tor de, entre outras obras, O alternativo e Temor e tremor.

Em Felicidade clandestina, um livro de contos em que vários temas pertinentes ao existencialismo sartreano podem ser claramente identificados, mais uma vez Cla-rice Lispector, com a maestria de um grande escritor, faz-nos pensar sobre o ser e a sua relação com tudo e com todos que o cercam. O trecho abaixo pertence ao conto “A repartição dos pães”:

Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo hu-mano. Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as mon-tanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávi-dos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe. (p. 91)

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“felicidade clandestina”Uma menina “gorda, baixa, sardenta e de cabelos

excessivamente crespos, meio arruivados” é filha de um dono de livraria. Sente inveja das amigas bonitas, es-guias e altas. Uma dessas meninas, que narra a história, por ser uma leitora compulsiva, se submetia a humilha-ções da filha do livreiro para ter livros emprestados. Em especial, pelo Reinações de Narizinho, de Monteiro Lo-bato, um livro grosso, pesado, de valor muito acima das posses da sedenta leitora. Então, começa a sofrer uma “tortura chinesa” com a promessa de empréstimo no dia seguinte e no outro, e no outro… e nada: um sofri-mento. Até o dia em que a mãe da menina cruel, que era uma boa mulher, descobre o que estava acontecendo e obriga a filha a emprestar o livro, com devolução por tempo indeterminado. Aquilo foi “tudo o que uma pes-soa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer”.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada. (p. 10)

“Uma amizade sincera”Narrado em 1a pessoa, por uma personagem mascu-

lina, em que se sobressai novamente o tema da amizade e, novamente, de maneira insólita. Dois amigos, que sa-biam que nutriam um pelo outro uma amizade sincera, salvaram-na separando-se, pois, juntos, não tinham as-sunto, tornando-se dois companheiros solitários. Daí a providencial separação, apesar de ambos saberem que, mesmo não se encontrando mais, seriam para sempre amigos sinceros:

A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás, ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão como-vido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso, que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros. (p. 14)

“miOPia PrOgressiva”Narrado em 3ª pessoa, o conto traz a história de

um menino que não sabia se era ou não inteligente: às

vezes dizia algo que despertava nos adultos um olhar de satisfação e quando resolvia repetir o que tinha dito, muitas vezes esses adultos não davam a atenção como ele esperava que deveriam dar. Então, “ser ou não inteli-gente dependia da instabilidade dos outros”, sendo que o menino buscava insistentemente apoderar-se da cha-ve de sua inteligência, repetindo suas próprias frases de sucesso.

Que a sua própria chave não estava com ele, a isso ain-da menino habituou-se a saber, e dava piscadelas que, ao franzirem o nariz, deslocavam os óculos. E que a chave não estava com ninguém, isso ele foi aos poucos adivinhando sem nenhuma desilusão, sua tranquila miopia exigindo lentes cada vez mais fortes. (p. 16-17)

Às vezes, o menino ficava muito inspirado. Foi o que lhe aconteceu quando lhe disseram que ele iria passar “um dia inteiro” na casa de uma prima casada, sem filhos, e que adorava crianças. Logo o menino começou a pensar em como agiria: se diria algo inte-ligente logo de entrada ou se seria muito “bem com-portado” — o amor da prima de apenas “um dia intei-ro” deveria ser estável e o menino não poderia correr o risco de ser erroneamente julgado, apesar de enten-der que aquela prima teria por ele um amor sem sele-ção, sem impor condições, apenas o amaria. Abando-nou esses pensamentos para passar a pensar em que cheiro teria a casa da prima, o que teria dentro das gavetas, como seria o quintal em que ele iria brincar e, finalmente, pensou em como seria a tal prima e “de que modo deveria encarar o amor que a prima tinha por ele”. Mas foi só quando chegou, que pensou que havia esquecido de pensar em um detalhe: “a prima tinha um dente de ouro do lado esquerdo”. Essa visão, da qual ele duvidou, já que era míope, desequilibrou toda a ideia que havia montado, pois deparou-se com algo que não havia contado. A prima disse-lhe para ir brincar sozinho enquanto ela arrumava a casa, dando ao menino “um dia inteiro vazio e cheio de sol”.

Lá pelas tantas, limpando os óculos, tentou, embo-ra com certa isenção, o golpe da inteligência e fez uma observação sobre as plantas do quintal. Pois quando ele dizia alto uma observação, ele era julgado muito obser-vador. Mas sua fria observação sobre as plantas recebeu em resposta um “pois é”, entre vassouradas no chão. Então foi ao banheiro onde resolveu que, já que tudo falhara, ele iria brincar de “não ser julgado”: por um dia inteiro ele não seria nada, simplesmente não seria. E abriu a porta num safanão de liberdade. (p. 21)

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A prima não queria nada daquele menino de óculos, senão que ele fosse o seu filho e seu ideal inatingível se realizasse e o menino, pela primeira vez, viu o mundo claramente, sem precisar dos seus óculos.

“restOs dO carnaval”Narrado em 1ª pessoa, este conto tem o seguinte

enredo: quando o carnaval ia se aproximando, grande agitação tomava conta da menina de oito anos. Apesar de nunca a terem levado a um baile infantil, sentia-se imensamente feliz com um lança-perfume e um pacote de confete que ganhava para ficar até umas onze ho-ras da noite à porta do sobrado onde morava em Recife, observando a diversão alheia. Até o susto com os mas-carados era essencial para aquela menina. Um dia, pela primeira vez, ela ganhou uma fantasia de rosa, feita de papel crepom pela mãe de uma amiga, que, por bonda-de, aproveitando o que sobrara da fantasia da filha e ob-servando o “mudo desespero de inveja” da menina, re-solveu presenteá-la. E, apesar de pensar que recebera os restos da fantasia da amiga, resolveu engolir o orgulho que nela era feroz e aceitou com humildade a “esmola”:

[…] o jogo de dados de um destino é irracional? É im-piedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem ba-tom e ruge — minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa — mas o rosto ainda nu não tinha a más-cara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil —, fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpen-tinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava. […] E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. (p. 26)

Somente horas depois, ela foi salva por um “rapaz” de 12 anos, muito bonito que parou diante dela e cobriu- -lhe os cabelos de confetes e, sem nada falar, sorriu para ela, fazendo com que se sentisse de novo uma rosa.

“O grande PasseiO”Margarida, protagonista deste conto narrado em 3a

pessoa, era chamada de Mocinha e “era uma velha se-quinha que, doce e obstinada, não parecia compreen-der que estava só no mundo”. Vivia de favores e esmolas, contentando-se em comer muito pouco e viver sem ne-nhum conforto. Passou, então, a dormir no quarto dos fundos de uma casa grande, por um ato de caridade da

família proprietária. Uma das moças da casa, não mais aguentando de curiosidade, perguntou à misteriosa Mo-cinha por que ela acordava de madrugada e por onde ela andava quando desaparecia o dia todo e a velhinha, com um sorriso, respondeu-lhe que ficava passeando.

Acharam graça que uma velha, vivendo de caridade, andasse a passear. Mas era verdade. Mocinha nascera no Maranhão, onde sempre vivera. Viera para o Rio não há muito, com uma senhora muito boa que pretendia in-terná-la num asilo, mas depois não pudera ser: a senhora viajara para Minas e dera algum dinheiro para Mocinha se arrumar no Rio. E a velha passeava para ficar conhecendo a cidade. Bastava aliás uma pessoa sentar-se no banco de uma praça e já via o Rio de Janeiro. (p. 29)

Mas chegou um dia em que aquela família começou a não ter mais paciência com Mocinha. Resolveu-se en-tão que os filhos da casa, que iam passar o final de sema-na em Petrópolis, levariam a velha de carro e a deixariam aos cuidados da família de Arnaldo, irmão deles, a quem não mais visitavam. Durante a viagem, a velha senho-ra tem algumas recordações entre um cochilo e outro, lembrando-se do filho (morto atropelado por um bonde no Maranhão), da filha Maria Rosa (que morrera de par-to) e do marido, que também morrera, deixando-a tão sozinha no mundo. Não sentia saudades deles, apenas se lembrava. Em Petrópolis, Arnaldo não aceita hospe-dar Mocinha, dando-lhe um dinheiro para que voltasse ao Rio, dizendo-lhe que sua casa não era asilo e ela que retornasse à casa da família do Rio. Ela aceita o dinheiro e, mesmo sendo destratada por aquelas pessoas da casa de Arnaldo, que se fartavam à mesa, sem nem sequer oferecer-lhe um café, agradece “— obrigada, Deus lhe ajude”, e sai pelas ruas de Petrópolis, afastando-se cada vez mais da estação até alcançar a estrada.

A estrada subia muito. A estrada era mais bonita que o Rio de Janeiro, e subia muito. Mocinha sentou-se numa pedra que havia junto de uma árvore, para poder apreciar. O céu estava altíssimo, sem nenhuma nuvem. E tinha muito passarinho que voava do abismo para a estrada. A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco da árvore e morreu. (p. 37)

“cOme, meU filhO”Neste curto conto, quase uma crônica, há um diálogo

entre Paulinho e sua mãe. Paulinho é um menino que não para de falar, só para não precisar comer, enquanto a mãe incansável insiste para que o menino se alimente.

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— Não fala tanto, come. — Mas você está olhando desse jeito para mim, mas

não é para eu comer, é porque você está gostando muito de mim, adivinhei ou errei?

— Adivinhou. Come, Paulinho.— Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não

pensar só em comida, mas você vai e não esquece (p. 39).

“PerdOandO deUs”Narrado em 1ª pessoa por uma mulher que se sentia

livre e satisfeita quando fazia uma caminhada pela ave-nida Copacabana, “via tudo, e à toa”.

Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepo-tência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia — e não possivelmente um equívoco de sentimento — que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia cari-nho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor so-lene, respeito, medo, e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu ca-rinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.

E foi quando quase pisei num enorme rato morto. (p. 40-41)

Aquele rato enorme, mesmo que morto, foi para a mulher uma visão aterradora, já que sentia um medo infinito de ratos. Ela se perguntava por que Deus havia de insultá-la com tamanha grosseria e brutalidade, já que tudo o que pensava naquela caminhada era no seu carinho. Naquele grande amor que estava sentindo até tudo ser quebrado pela presença daquele rato horroro-so. Na sua incompreensão, pensa até em se vingar de Deus, mas depois vai compreendendo que amar não é mesmo fácil, que ela só queria amar o que lhe convinha, que era muito teimosa e, às vezes, era preciso que lhe dissessem isso com brutalidade, que ela nunca poderia ser a mãe de todas as coisas enquanto desejasse que os seres fossem mortos, ainda que fosse aquele rato asque-roso e que seu orgulho não a deixava aceitar sua verda-deira natureza.

[…] Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha

vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe. (p. 44)

“tentaçãO” Narrado em 3ª pessoa onisciente, o conto gira em

torno de um encontro entre uma menina ruiva e um cachorro da raça bassê (portanto, também ruivo). Iden-tificando-se com o cão como sendo ele a sua outra metade, a menina sabia que não podia perder tempo, comunicando-se com ele rapidamente. E um pedindo ao outro: Ela com sua infância impossível, o centro da ino-cência que só se abriria quando ela fosse mulher. Ele, com sua natureza aprisionada. (p. 70)

E a dona do bassê, já impaciente com aquela situação, fez com que o cão se afastasse da menina para acompa-nhar a sua dona. A menina espantada, com o acontecimen-to nas mãos, acompanhou-o até vê-lo dobrar a esquina. Este, por sua vez, foi mais duro e não olhou uma vez sequer para trás.

No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos — lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profun-dos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pedia.

Mas ambos eram comprometidos. (p. 46)

“O OvO e a galinha”Um dos mais insólitos contos de Clarice Lispector,

“O ovo e a galinha” é mais uma dissertação sobre o ovo, em que a narradora vai tratando de assuntos filosóficos como a oposição Vida x Morte, tendo como base a velha pergunta: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? O mais interessante é que Clarice Lispector responde a esta pergunta sem titubear:

[…] Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida. — A galinha vive como em sonho. Não tem senso da realidade. Todo o susto da gali-nha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. — A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido da galinha é o ovo. — Ela não sabe se explicar: “sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a sua vida, “não sei mais o que sinto” etc.. (p. 52)

Sem uma ordenação, o conto (ou simplesmente uma

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narrativa) é um belo exemplo da prosa introspectiva de Clarice Lispector. Diante de um simples ovo em cima da mesa, num certo dia de manhã, a narradora deva-neia, fazendo com que um simples fato cotidiano (o do ovo estar em cima da mesa) vire motivo para toda uma questão existencial:

E me faz sorrir o meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem me dado a mais malicio-sa das liberdades, não sou boba e aproveito. Inclusive faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois apro-veito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro, inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações da Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo ter a neces-sária modéstia de viver. E também o tempo que me deram e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilí-citas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplici-dade (p. 56-57).

“cem anOs de PerdãO”Narrado em 1a pessoa por uma menina pequena que

se especializou em roubar rosas e pitangas. Na primeira vez em que roubou uma rosa, armou um plano: entra-ria em uma grande casa, onde o jardineiro não estava à vista; as janelas, por causa do sol, estavam fechadas; naquela rua não passavam bondes e, raramente, passa-vam carros e ainda, para tornar o plano perfeito, ela teria a sua amiguinha a vigiar caso aparecesse alguém.

[…] E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos lite-ralmente para longe da casa.

O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era mi-nha. (p. 61)

Sempre que roubava rosas ou pitangas, procedia da mesma forma, com o coração batendo forte: a amiga vi-giando, ela entrando, quebrando o talo e fugindo — era uma glória que ninguém tirava dela.

Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de ro-sas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens. (p. 62)

“a legiãO estrangeira”A partir de um pintinho trazido para os seus filhos

na época do Natal, a narradora, usando novamente da

técnica do flash-back (recurso memorialístico), discorre sobre a sua relação com Ofélia (em que ódio e amor se confundem), menina que causava nela certo complexo de inferioridade, pois a menina, filha de arrogantes vizi-nhos, dava-lhe conselhos sobre a educação dos filhos, sobre as despesas com a casa etc.

Se me perguntassem sobre Ofélia e seus pais, teria respondido com o decoro da honestidade: mas os co-nheci. Diante do mesmo júri ao qual responderia: mal me conheço — e para cada cara de jurado diria com o mesmo límpido olhar de quem se hipnotizou para a obediência: mal vos conheço. Mas às vezes acordo do longo sono e volto-me com docilidade para o delicado abismo da desordem.

Estou tentando falar sobre aquela família que sumiu há anos sem deixar traços em mim, e de quem me ficara ape-nas uma imagem esverdeada pela distância. (p. 63)

E ao descobrir o pintinho na cozinha, a menina se despe daquela “roupa” de adulta, deixando-se ver des-pida de criança. Era a chance de a narradora se impor, mostrar-se superior àquela frágil criatura, que não se conteve, após os seus carinhos no pintinho, ao vê-lo morto no chão da cozinha:

A uma distância infinita eu via o chão. Ofélia, tentei eu inutilmente atingir a distância o coração da menina cala-da. Oh, não se assuste muito! às vezes a gente mata por amor, mas juro que um dia a gente esquece, juro! a gente não ama bem, ouça, repeti como se pudesse alcançá-la antes que, desistindo de servir ao verdadeiro, ela fosse al-tivamente servir ao nada. Eu que não me lembrara de lhe avisar que sem o medo havia o mundo. Mas juro que isso é a respiração. Eu estava muito cansada, sentei-me no ban-co da cozinha.

Onde agora estou, batendo devagar o bolo de amanhã. Sentada, como se durante todos esses anos eu tivesse com paciência esperado na cozinha. O amarelo é o mesmo, o bico é o mesmo. Como na Páscoa nos é prometido, em de-zembro ele volta. Ofélia é que não voltou: cresceu. Foi ser a princesa hindu por quem no deserto sua tribo esperava. (p. 81)

“Os Obedientes”

Narrado em 3ª pessoa onisciente, este conto tem como tema a solidão entre duas pessoas casadas, que levavam uma vida correta, honesta, mas sem nenhum atrativo:

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Como foi que cada um deles chegou à conclusão de que, sozinho, sem o outro, viveria mais — seria caminho longo para se reconstruir, e de inútil trabalho, pois de vá-rios cantos muitos já chegaram ao mesmo ponto. (p. 87)

A questão existencialista está fortemente presente neste conto. A descoberta do casal de que, apesar de toda uma vida lado a lado, deixaram de realizar muitos sonhos, caindo na mais profunda frustração:

Sonhadores, eles passaram a sofrer sonhadores, era he-roico suportar. Calados quanto ao entrevisto por cada um, discordando quanto à hora mais conveniente de jantar, um servindo de sacrifício para o outro, amor é sacrifício. (p. 88)

“a rePartiçãO dOs Pães”Narrado em 1a pessoa, o conto é um dos tantos insó-

litos saídos da pena existencialista de Clarice Lispector. Num sábado, o narrador e outras pessoas estrangeiras são convidados a um farto almoço, que, para ele, bem poderia ser trocado por uma quinta-feira. Clarice Lispec-tor, usando de uma metáfora — a do trem descarrilado —, mostra a impossibilidade dos convidados de saírem dali. De repente, aludindo à Santa Ceia, a anfitriã come-ça a lavar os pés dos convidados:

[…] Então aquela mulher dava o melhor não importa-va a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangei-ro. Constrangidos, olhávamos. (p. 90)

Logo após, o narrador passa a descrever a farta mesa que se mostrava diante dos olhos dos estrangeiros:

A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos toma-tes de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepi-nos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos — tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. (p. 90)

Todos, enfim, estavam ocupados em comer, não ha-vendo holocausto, pois, ao mesmo tempo que eles que-riam comer, tudo aquilo que estava sobre a mesa queria ser comido. E estavam todos ocupados como quem la-vra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come (p. 92). E o narrador comeu como quem não en-gana o que come. E, numa referência metalinguística,

comeu a comida e não o seu nome. E termina, dizendo: Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós co-memos. Pão é amor entre estranhos. (p. 92)

“Uma esPerança”Narrado em 1ª pessoa por uma mãe que conta a vi-

sita de um inseto verde — a esperança — que pousou na parede da casa, “e mais magra e verde não podia ser”.

— Ela quase não tem corpo, queixei-me.— Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos

são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças. (p. 93)

Ela não voava, só andava muito devagar e quando já estava prestes a ser devorada por uma aranha, que saíra detrás de um quadro, o menino mata a aranha para pou-par a esperança (também conhecida por louva-a-Deus ou bendito, conforme a crendice popular é um inseto que não deve ser morto, deve ser protegido em sua for-ma frágil, delicada e inofensiva). “Não havia dúvida: a es-perança pousara em casa, alma e corpo”:

Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperan-ça bem menor que esta, pousara no meu braço. Não sen-ti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexi o braço e pensei: “e essa agora? que devo fa-zer?” Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada. (p. 95)

“macacOs”Narrado em 1ª pessoa, este conto gira em torno da

identificação da narradora com a macaquinha Lisette. Segundo o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, ao co-mentar os contos de A legião estrangeira, há uma oposi-ção entre o Eu × o Outro. Este Outro pode ser um animal (como acontece no conto “Macacos”) ou uma criança (como em “A legião estrangeira”) ou uma coisa (como em “O ovo e a galinha”).

Em “Macacos”, o cotidiano ordinário é sublimado quan-do, após o primeiro contato que teve com um macaco — Estávamos sem água e sem empregada, fazia-se fila para carne, o calor rebentara (p. 51) —, a narradora se deparou na rua com um vendedor de micos. E lá estava Lisette com pulseiras e sua saiazinha de baiana. Levou-a para casa:

Quanto a essa, era mulher em miniatura. Três dias es-teve conosco. Era de uma tal delicadeza de ossos. De uma

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tal extrema doçura. Mais que os olhos, o olhar era arre-dondado. Cada movimento, e os brincos estremeciam; a saia sempre arrumada, o colar vermelho brilhante. Dormia muito, mas para comer era sóbria e cansada. Seus raros carinhos eram só mordida leve que não deixava marca. (p. 97)

Adoecida, Lisette é levada ao hospital. Lá, a narrado-ra é repreendida pelo enfermeiro, que lhe disse que não se devia comprar animais na rua, pois muitos já vinham doentes. Notem a ironia da narradora, um dos traços marcantes de Clarice Lispector: Não, tinha-se que com-prar macaca certa, saber da origem, ter pelo menos cinco anos de garantia do amor, saber do que fizera ou não fize-ra, como se fosse para casar. (p. 98)

Lisette ficou no hospital, inalando oxigênio, após ser ela oferecida ao enfermeiro caso sobrevivesse. Mas Li-sette não resistiu e morreu:

O menor me perguntou: “Você acha que ela morreu de brincos?” Eu disse que sim. Uma semana depois o mais ve-lho me disse: “Você parece tanto com Lisette!” “Eu também gosto de você”, respondi. (p. 99)

“Os desastres de sOfia”Narrado em 1ª pessoa e usando a técnica do flash-

-back, a história gira em torno do relacionamento entre a aluna de nove anos e o seu professor primário. Ao desco-brir que ele estava ali em sua controlada impaciência para ensinar, a menina, num misto de atração e repúdio, faz de tudo para irritá-lo, falando alto, mexendo com os co-legas, interrompendo as suas explicações. Cada vez mais Sofia se interessava por aquele professor grande, gordo, de ombros contraídos, vestindo terno menor que o seu número. Entretanto, o professor passou a ignorá-la, nem mesmo olhando para ela. Numa redação feita em sala de aula, que se esforçou para ser a primeira a entregá-la e sentir-se superior aos seus colegas e ao professor, Sofia, inconscientemente, despertou a atenção do professor, quando este leu o que escrevera. Segundo o professor, no encontro entre os dois a sós na sala, ela havia escrito que a felicidade estava no interior de cada um e não do lado de fora. Ao confessar a admiração pela sua redação, Sofia se “desmorona” para aí viver o seu momento de epifania: a descoberta do que é o verdadeiro amor. É a partir daí que Sofia vivenciará sentimentos que jamais pensaria em vivenciá-los, principalmente ao saber que, aos 13 anos de idade, aquele que a despertou para os mais profundos sentimentos, havia morrido:

Mas ainda não divisara o fim sombreado do par-que, e meus passos foram se tornando mais vagarosos,

excessivamente cansados. Eu não podia mais. Talvez por cansaço, mas eu sucumbia. Eram passos cada vez mais lentos e a folhagem das árvores se balançava lenta. Eram passos um pouco deslumbrados. Em hesitação fui paran-do, as árvores rodavam altas. É que uma doçura toda esta-nha fatigava meu coração. Intimidada, eu hesitava. Estava sozinha na relva, mal em pé, sem nenhum apoio, a mão no peito cansado como a de uma virgem anunciada. E de cansaço abaixando àquela suavidade primeira uma cabe-ça finalmente humilde que de muito longe talvez lembras-se a de uma mulher. A copa das árvores se balançava para a frente, para trás. “Você é uma menina muito engraça-da, você é uma doidinha”, dissera ele. Era como um amor. (p. 117-118)

“a criada”Com foco narrativo em 3a pessoa, este conto tem o se-

guinte enredo: uma criada, “seu nome era Eremita. Tinha 19 anos. Rosto confiante, algumas espinhas”. Uma moça doce e prestimosa, apesar de responder, às vezes, com má criação e justificar depois que ela era assim mesmo, desde pequena. Tinha medo de trovoadas, tinha fome de pão (e era o único momento em que deixava de ser serena), “que comia depressa como se pudessem tirá-lo”, tinha vergonha de falar. Era gentil e tinha um noivo, que dizia que a respeitava muito. Eremita tinha as suas au-sências. Às vezes, era tomada por uma tristeza infinita, seus olhos paravam vazios e, em um suspiro, voltava de “seu repouso de tristeza”, com olhos completos de bran-dura e ignorância, parecia que voltava de uma floresta, para a qual havia descoberto um atalho.

[…] Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera nas suas florestas. (p. 124)

“a mensagem”Narrado em 3ª pessoa, este conto trata da angústia.

Um dia, um casal se encontra e diz um ao outro que am-bos sentem angústia, então, forma-se o pacto horrível, porque somente naquele único dia eles se compreen-deram com perfeição.

Ele, que recebera até então somente o afeto da mãe, por vergonha, preferiu tratar a moça por camarada. Eram ambos poetas e muito infelizes e precisavam um do outro temporariamente. Eram obstinados rivais, ape-sar de ela ser tão feminina e ele tão indeciso, mas viril. Além de tristes, eram orgulhosos e audaciosos, como se fossem homossexuais de sexo oposto. (p. 128)

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Ensaiavam o tempo todo, o momento em que cada um pudesse dar o grande voo solitário e o adeus um ao outro:

Talvez estivessem tão prontos para se soltarem um do outro como uma gota de água quase a cair, e apenas es-perassem algo que simbolizasse a plenitude da angústia para poderem se separar. Talvez, maduros como uma gota de água, tivessem provocado o acontecimento de que fa-larei. (p. 132)

Detestavam a palavra poesia, mas experiência não, falavam sem pudor e, às vezes, até confundiam com mensagem.

Chegou o dia em que estavam eles, rapaz e moça, prontos para um acontecimento: de repente, viram-se diante de uma grande casa antiga, vazia, enraizada, an-gustiada e calma. Uma mansão que eles olhavam como crianças diante de uma escadaria. Ficaram ali por uns instantes, presos pelo fascínio e pelo horror. Divididos estavam entre o sonho de serem escritores (futuro in-ventado por eles mesmos) e o divertimento que era muito diferente da angústia que os salvaria.

O rapaz, com um cinismo reconfortante, olhou curio-so a moça e pensou se seria possível que uma mulher soubesse o que é a angústia realmente. E viu que ela não passava de uma moça e que mulher servia mesmo era para outra coisa, não se podia negar.

Despediram-se, ela tomou o ônibus e partiu e ele teve vontade de chorar… E agora, quem o deixaria que fosse longe demais e se perdesse?

Apenas um instante de fraqueza e vacilação. Mas den-tro desse sistema de duro juízo final, que não permite nem um segundo de incredulidade senão o ideal desaba, ele olhou estonteado a longa rua — e tudo agora estava es-tragado e seco como se ele tivesse a boca cheia de poeira. Agora e enfim sozinho, estava sem defesa à mercê da men-tira pressurosa com que os outros tentavam ensiná-lo a ser um homem. Mas e a mensagem?! a mensagem esfarelada na poeira que o vento arrastava para as grades do esgoto. Mamãe, disse ele. (p. 141)

E a palavra “angústia” (num processo metalinguís-tico) passa a ser analisada, assim como a relação entre angústia-mulher:

Vendo-a afastar-se, ele a examinou incrédulo, com um interesse divertido, “será possível que mulher possa real-mente saber o que é angústia?” E a dúvida fez com que ele se sentisse muito forte. “Não, mulher servia mesmo era

para outra coisa, isso não se podia negar.” E era de um ami-go que ele precisava. (p. 139)

“meninO a bicO de Pena”O menino é aquele em quem acabam de nascer os

primeiros dentes, não se sabe se será médico ou car-pinteiro. É muito difícil desenhar esse menino (diz o narrador em 1ª pessoa), já que, mesmo a bico de pena, é ainda muito pequeno “e assim continuará progredin-do até que, pouco a pouco — pela bondade necessária com que nos salvamos — ele passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à expressão, da existên-cia à vida”. Por enquanto, ele senta-se no chão, ensaia os primeiros passos, cai, levanta, chora, cansa e dorme. Súbito, o menino desperta e que horror!, não vê a sua mãe, “o que ele pensa estoura em choro pela casa toda”.

[…] Quase desfalece em soluços, com urgência ele tem que se transformar numa coisa que pode ser vista e ouvida senão ele ficará só, tem que se transformar em compreen-sível senão ninguém o compreenderá, senão ninguém irá para o seu silêncio, ninguém o conhece se ele não disser e contar, farei tudo o que for necessário para que eu seja dos outros e outros sejam meus, pularei por cima de minha felicidade real que só me traria abandono, e serei popular, faço a barganha de ser amado, é inteiramente mágico chorar para ter em troca: mãe. (p. 145)

A mãe tira-lhe a fralda molhada e coloca outra bem sequinha e os seus olhinhos também ficam assim: “secos como a fralda nova”.

“Uma história de tantO amOr”Narrado em 3a pessoa este conto gira em torno do se-

guinte enredo: uma menina de tanto observar galinhas, passa a conhecer-lhes a alma e os mais íntimos anseios. Essa menina tinha duas galinhas: Pedrina e Petronilha. Às vezes, achava que uma delas estava doente do fígado e pedia, então, a uma tia, um remédio para tratá-las.

[…] A tia continuava a lhe dar o remédio, um líqui-do escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café — e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem ho-mens e as galinhas de serem galinhas; tanto o homem como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não ha-via farmácia perto para ela consultar. (p. 148)

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Outro problema era quando a menina achava que as galinhas estavam magras demais: ela “não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa”. A fa-mília da menina resolve, um dia, levá-la para passear na casa de um parente e quando ela volta, sua tia conta que haviam comido Petronilha. A menina passa a odiar a todos na casa, menos a sua mãe, que não gostava de comer ga-linha e os empregados que haviam comido carne de vaca. Mas por seu pai sente uma raiva muito grande. Sua mãe, percebendo-lhe a angústia, explica à menina:

— Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Da-qui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena. (p. 149)

Pedrina acabou morrendo de morte morrida e mais tarde, quando a sua outra galinha, a Eponina foi para a panela, a menina, que já estava maiorzinha, entendeu que aquele era o destino fatal de quem nasce galinha.

[…] As galinhas pareciam ter uma presciência do pró-prio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo. (p. 150)

[…] E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo galinha tinha outra acepção. (p. 148)

Como a menina não esqueceu o que a sua mãe dis-se sobre bichos amados, ela foi quem mais comeu com prazer a Eponina, que se incorporaria nela para sempre, ainda mais porque a galinha fora preparada ao molho pardo e a menina, como num ritual pagão, “comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue”.

[…] Nessa refeição tinha ciúmes de quem também co-mia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens. (p. 150)

“as ágUas dO mUndO”A mulher e o mar — o mais ininteligível dos seres vi-

vos e a mais ininteligível das existências humanas. No silêncio da praia vazia, às seis horas da manhã, a mulher, sozinha, com coragem, entra no mar gelado e ele, o mar, não está sozinho “porque é salgado e grande” (eis o as-sunto para este conto em 3ª pessoa).

[…] Nessa hora ela se conhece menos ainda do que co-nhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se co-nhecer exige coragem. (p. 152)

Ela deixa que a primeira onda lhe cubra o corpo, de-pois mergulha e os cabelos escorrem água salgada no rosto e, enfim, com a concha das mãos cheia de água salgada, bebe uns bons goles e agora o mar estava tam-bém dentro dela. Depois de ficar de pé parada no mar e já sabendo o que quer “caminha dentro da água de volta à praia”, pisa na areia. Brilham em seu corpo: água, sal e sol. E a mulher “sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano”.

“a qUinta história”Neste pequeno conto, narrado em 1ª pessoa, Clarice

Lispector trabalha com o processo metalinguístico, isto, com a reflexão sobre o fazer literário. Trata-se de peque-nas histórias (ou cinco versões) de como matar baratas (aliás, uma das obsessões da autora). De uma receita (para matar baratas) dada a ela por uma senhora que ouvira se queixar de baratas, a narradora vai mostrando ao leitor as várias maneiras de se contar uma mesma história. O início do conto nos faz remeter ao livro A hora da estrela, em que vários títulos para a novela são oferecidos:

Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem. (p. 154)

“encarnação invoLuntária”Narrado em 1ª pessoa, assim se inicia o conto:

Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e te-nho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. (p. 158)

O maior risco de se encarnar em uma vida atraente e perigosa é não querer mais o “retorno a mim mes-mo”. Porque estava muito ocupada com seus deveres e prazeres, incomodava-a muito encarnar a vida de uma missionária que conhecera, um dia, no avião, mas já era tarde, pois a encarnação acontecia sempre involunta-riamente e, por mais que tivesse implorado a Deus que não queria ser aquela missionária — “quando entrei no avião estava tão sadiamente amoral. Estava, não, estou!” —, fingindo ler uma revista enquanto ela lia a Bíblia, já não houve mais jeito, só mesmo dali a dias conseguiria recomeçar a sua própria vida que “talvez nunca tinha sido própria, senão no momento de nascer, e o resto tinha sido encarnações”. Certa vez, em uma outra via-gem, encontrou uma perfumadíssima prostituta, que fumava e olhava de maneira sensual para um homem

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que já começava a se interessar por ela. A mulher passa a se comportar como a prostituta, tentando seduzir um homem gordo que escolhera para experimentar uma alma de prostituta, mas o homem não tirava os olhos do jornal que estava lendo — “e meu perfume era discreto demais. Falhou tudo”.

“dUas histórias a meU mOdO” Também com foco narrativo em 1ª pessoa, o narra-

dor conta um bom e divertido exercício de escrever que praticou certa vez. Tomou-se como tema duas histórias de vinho, inventadas por Marcel Aymé: na primeira, Féli-cien Guérillot, casado com Leontina (mulher “nem mais bonita, nem bem feita do que o necessário para a tran-quilidade de um honesto homem”), rico proprietário de vinhedos, mas que sofria da maldição de não gostar de vinhos e vivia a procurar aquele que o libertaria “de não amar a excelência do que é excelente”. A esposa era a sua cúmplice na ocultação de tamanha vergonha. Mas, eis que, Marcel Aymé não quer mais escrever esta his-tória, chateia-se e bebe vinho para esquecer: desistiu de inventar uma história para Félicien, lamentando-se muito que este personagem não fosse alguém que o in-teressasse e passa a outra história: à de Etienne Duvilé e este gostava de vinho, mas não podia comprá-lo, pois tinha em casa muitos filhos, esposa e um sogro — famí-lia pobre que vivia sonhando em ter uma mesa farta, en-quanto Duvillé não parava de sonhar com o vinho. E de tão desesperado pela bebida tem um pesadelo e acorda odiando o sogro e esse ódio “mais uma sede parecia”. E acordado já manifestava a doença: “queria beber todo o mundo, e no distrito policial manifestou o desejo de beber o comissário”. Então, até hoje, Duvillé permanece no asilo de alienados e os médicos, sem compreendê-lo, pretendem curá-lo dando água mineral, que acaba ape-nas com pequenas sedes e não com a grande.

Enquanto isso, Aymé, talvez de sede e piedade, ele mes-mo tomado, espera que a família de Duvillé o envie à boa terra de Arbois, onde aquele primeiro homem, Félicien Guérillot, depois de aventuras que mereceriam ser conta-das, o gosto pelo vinho já pegou. E, como não nos dizem de que modo, também por aqui ficamos, com duas histórias não bem contadas, nem por Aymé nem por nós mas de vi-nho quer-se pouco da fala e mais do vinho. (p. 163)

“O PrimeirO beijO”Neste conto que encerra Felicidade clandestina, nar-

rado em 3a pessoa, em começo de namoro, a namorada, com todo ciúme a que tem direito, pergunta ao namo-rado se ele já havia beijado uma mulher antes dela. Ele

diz que sim e tenta explicar, sem saber muito bem como começar. Conta que, certa vez, estando num ônibus de excursão, que subia a serra, viu-se, em meio a algazarra dos companheiros, com uma sede absurda, que tendia só a aumentar: “brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sen-tir, puxa vida!”. Aquela sede estava tomando-lhe o corpo todo e a brisa já dava lugar ao sol de meio-dia. Talvez ainda tivesse de esperar muito até poder matar aquela sede alucinante. Quando, enfim, o ônibus parou num chafariz, ele conseguiu chegar ao líquido milagroso an-tes de todos e bebeu a água até se saciar.

Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de está-tua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.

E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.

Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intri-gado: mas não é de uma mulher que sai líquido vivificador, o líquido germinador da vida… Olhou a estátua nua.

Ele a havia beijado. (p. 166)

Naquele momento, o menino tornara-se homem (sentindo jorrar de “uma fonte oculta nele a verdade”), pois percebera, pela primeira vez, por causa daquele pri-meiro beijo, que uma parte de seu corpo antes relaxada, agora mostrava-se com “uma tensão agressiva”. O susto transformou-se em orgulho e, com o coração batendo forte, sentiu que a vida era nova, transformada.

4. bibliOgrafia

LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina, Rio de Ja-neiro: Nova Fronteira, 1981.

PENHA, João da. O que é existencialismo, Rio de Janei-ro: Brasiliense, 2001.

SARTRE, Jean-Paul. Sartre no Brasil: a Conferência de Araraquara, Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra / Unesp, 1986.

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1. (UFCE) A respeito do estilo da escritora Clarice Lis-pector, pode-se dizer (assinale Verdadeiro ou Falso):I. Uma importante característica de sua obra é a capta-

ção do fluxo da consciência, num verdadeiro mergu-lho na subjetividade da personagem.

II. Em suas obras, a reflexão sobre a existência humana desencadeia-se, muitas vezes, a partir de aconteci-mentos aparentemente triviais.

III. Suas personagens são construídas com a objetivida-de de uma perspectiva determinista e mecanicista.

IV. A autora revela uma percepção aguda de detalhes.V. A erudição e a complexidade sintática de sua linguagem a

aproximam de escritores como Euclides da Cunha.

a) V – V – F – V – Fb) F – V – F – V – Fc) V – V – F – F – Vd) V – V – V – V – Fe) F – V – F – V – F

2. (U. F. Santa Maria-RS) Considere as afirmativas:I. Frequentemente, as personagens de contos de Clari-

ce Lispector vivem perturbações psicológicas desen-cadeadas por visões que lhe são reveladoras.

II. As situações focalizadas na ficção de Clarice Lispec-tor contemplam uma ansiedade por profundas mu-danças sociopolíticas em torno das quais as persona-gens debatem-se com ardor.

III. Os contos de Clarice Lispector apresentam passa-gens em que as referências ao mundo nebuloso e abstrato se refletem na composição, colocando em questão o sentido convencional da narrativa.

Está(ão) correta(s):a) apenas I. d) apenas II e III.b) apenas I e II. e) apenas III.c) apenas I e III.

3. Além de Clarice Lispector, que outro autor do Mo-dernismo brasileiro explorou a prosa introspectiva, re-cebendo forte influência machadiana?a) José Lins do Regob) Jorge Amadoc) José Américo de Almeidad) Graciliano Ramose) Marques Rebelo

4. A figura presente no seguinte trecho, retirado do conto “A repartição dos pães”, do livro Felicidade clan-destina, de Clarice Lispector — Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e mor-re, e come — chama-se:a) metonímia.b) catacrese.c) polissíndeto.d) hipérbato.e) antonomásia.

Leia o trecho a seguir, do conto “Os desastres de So-fia”, retirado do livro Felicidade clandestina, de Clarice Lispector, para responder às questões de 5 a 8.

Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão, e passara pesadamen-te a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos dele.

O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros con-traídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio de ouro encimando o nariz grosso e romano. E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu silên-cio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu adivinhara. Passei a me com-portar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os cole-gas, interrompia a lição com piadinhas, até que ele dizia, vermelho:

— Cale-se ou expulso a senhora da sala.Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me

mandar! Ele não mandava, senão estaria me obedecendo. Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o objeto do ódio daquele homem que de certo modo eu amava. Não o amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta desastrada-mente proteger um adulto, com a cólera de que ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos.

5. (Fuvest-SP) Qual o significado que se pode dar a e passara pesadamente a ensinar no curso primário?

6. (Fuvest-SP) Que significado se pode dar à expressão ombros contraídos, de que a autora se serve para carac-terizar o professor?

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7. (Fuvest-SP) Quais as expressões que, no texto, exem-plificam o sentido de passei a me comportar mal?

8. (Fuvest-SP) O sentimento que o narrador-persona-gem tem pelo professor é ambíguo ou não? Explique.

9. (UFRS, adaptada) A prosa de Clarice Lispector:a) filia-se à ficção romântica do século XIX, ao criar he-

roínas idealizadas e mitificar a figura da mulher.

b) define-se como literatura feminista por excelência, ao propor uma visão da mulher oprimida num uni-verso masculino.

c) prende-se à crítica de costumes, ao analisar com grande senso de humor uma sociedade urbana em transformação.

d) explora até as últimas consequências, utilizando em-bora a temática urbana, a linha do romance neonatu-ralista da geração de 1930.

e) renova, define e intensifica a tendência introspectiva de determinada corrente de ficção da segunda gera-ção modernista.

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5. O sentido da frase pode ser entendido como alguém que já está enfastiado. A autora usou o termo pesadamen-te, referindo-se ao fato de o professor ser gordo, pesado.

6. Clarice Lispector usou uma metonímia (a parte pelo todo) para caracterizar a personalidade do professor.

7. Falava alto, mexia com os colegas, interrompia o professor.

8. Sim, o sentimento que a narradora-personagem nutria pelo professor era ambíguo já que ela, ao mesmo tempo em que o destratava, sentia-se atraída por ele.

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