Do Contrato Social

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Jean-Jacques Rousseau Do Contrato Social ou Princpios do Direito Poltico ndice Livro Primeiro Captulo I - Objeto deste primeiro livro Captulo II - Das primeiras sociedades Captulo III - Do direito do mais forte Captulo IV - Da escravido Captulo V - De como sempre preciso remontar a uma conveno anterior Captulo VI - Do pacto social Captulo VII - Do soberano Captulo VIII - Do estado civil Captulo IX - Do domnio real Livro Segundo Captulo I - A soberania inalienvel Captulo II - A soberania indivisvel Captulo III - Se pode errar a vontade geral Captulo IV - Dos limites do poder soberano Captulo V - Do direito de vida e de morte Captulo VI - Da lei Captulo VII - Do legislador Captulo VIII - Do povo Captulo IX - Continuao Captulo X - Continuao Captulo XI - Dos vrios sistemas de legislao Captulo XII - Diviso das leis Livro Terceiro Captulo I - Do governo em geral Captulo II - Do princpio que constitui as vrias formas de governo Captulo III - Diviso dos governos Captulo IV - Da democracia Captulo V - Da aristocracia Captulo VI - Da monarquia Captulo VII - Dos governos mistos Captulo VIII - Que qualquer forma de governo no convm a qualquer pas Captulo IX - Indcios de um bom governo Captulo X - Dos abusos do governo e de sua tendncia a degenerar Captulo XI - Da morte do corpo poltico Captulo XII - Como se mantm a autoridade soberana Captulo XIII - Continuao Captulo XIV - Continuao Captulo XV - Dos deputados ou representantes Captulo XVI - De como a instituio do governo no de modo algum um contrato Captulo XVII - Da instituio do governo Captulo XVIII - Meio de prevenir as usurpaes do governo Livro Quarto Captulo I - De como a vontade geral indestrutvel Captulo II - Dos sufrgios Captulo III - Das eleies Captulo IV - Dos comcios romanos Captulo V - Do tribunato Captulo VI - Da ditadura Captulo VII - Da censura Captulo VIII - Da religio civil Captulo IX - Concluso ADVERTNCIA Este pequeno tratado foi extrado duma obra mais extensa, outrora iniciada sem que houvesse consultado minhas foras e de h muito abandonada. Dos vrios trechos que se podiam tomar ao que estava feito, este o mais considervel e pareceu-me o menos indigno de ser oferecido ao pblico. O resto no mais existe. LIVRO PRIMEIRO Quero indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de administrao legtima e segura, tomando os homens como so e as leis como podem ser. Esforar-me-ei sempre, nessa procura, para unir o que o direito permite ao que o interesse prescreve, a fim de que no fiquem separadas a justia e a utilidade. Entro na matria sem demonstrar a importncia de meu assunto. Perguntar-me-o se sou prncipe ou legislador, para escrever sobre poltica. Respondo que no. e que por isso escrevo sobre poltica. Se fosse prncipe ou legislador, no perderia meu tempo, dizendo o que deve ser feito; haveria de faz-lo, ou calar-me. Tendo nascido cidado de um Estado livre e membro do soberano, embora fraca seja a influncia que minha opinio possa ter nos negcios pblicos, o direito de neles votar basta para impor o dever de instruir-me a seu respeito, sentindo-me feliz todas as vezes que medito sobre os governos, por sempre encontrar, em minhas cogitaes, motivos para amar o governo do meu pas! CAPTULO I Objeto deste primeiro livro O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se cr senhor dos demais, no deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal mudana? Ignoro-o. Que poder legitim-la? Creio poder resolver esta questo. Se considerasse somente a fora e o efeito que dela resulta, diria: "Quando um povo obrigado a obedecer e o faz, age acertadamente; assim que pode sacudir esse jugo e o faz, age melhor ainda, porque, recuperando a liberdade pelo mesmo direito por que lha arrebataram, ou tem ele o direito de retom-la ou no o tinham de subtra-la". A ordem social, porm, um direito sagrado que serve de base a todos os outros. Tal direito, no entanto, no se origina da natureza: funda-se, portanto, em convenes. Trata-se, pois, de saber que convenes so essas. Antes de alcanar esse ponto, preciso deixar estabelecido o que acabo de adiantar. CAPITULO II Das primeiras sociedades A mais antiga de todas as sociedades, e a nica natural, a da famlia; ainda assim s se prendem os filhos ao pai enquanto dele necessitam para a prpria conservao. Desde que tal necessidade cessa, desfaz-se o liame natural. Os filhos, isentos da obedincia que devem ao pai, e este, isento dos cuidados que deve aos filhos, voltam todos a ser igualmente independentes. Se continuam unidos, j no natural, mas voluntariamente, e a prpria famlia s se mantm por conveno. Essa liberdade comum uma consequncia da natureza do homem. Sua primeira lei consiste em zelar pela prpria conservao, seus primeiros cuidados so aqueles que se deve a si mesmo, e, assim que alcana a idade da razo, sendo o nico juiz dos meios adequados para conservar-se, torna-se, por isso, senhor de si. A famlia , pois, se assim se quiser, o primeiro modelo das sociedades polticas: o chefe a imagem do pai; o povo, a dos filhos, e todos, tendo nascido iguais e livres, s alienam sua liberdade em proveito prprio. A diferena toda est em que, na famlia, o amor do pai pelos filhos o paga pelos cuidados que lhes dispensa, enquanto no Estado o prazer de mandar substitui tal amor, que o chefe no dedica a seus povos. Grotius nega que todo o poder humano se estabelea em favor daqueles que so governados: cita, como exemplo, a escravido. Sua maneira mais comum de raciocinar sempre estabelecer o direito pelo fato. Poder-se-ia recorrer a mtodo mais consequente, no, porm, mais favorvel aos tiranos. Resta, pois, em dvida, segundo Grotius, se o gnero humano pertence a uma centena de homens ou se esses cem homens pertencem ao gnero humano. No decorrer de todo o seu livro parece inclinar-se pela primeira suposio, sendo essa tambm a opinio de Hobbes. Vemos assim, a espcie humana dividida como manadas de gado, tendo cada uma seu chefe, que a guarda para devor-la. Assim como um pastor de natureza superior de seu rebanho, os pastores de homens, que so os chefes, tambm possuem natureza superior de seus povos. Desse modo - segundo Filo - raciocinava o imperador Calgula, chegando, por essa analogia, fcil concluso de que os reis eram deuses, ou os povos, animais. O raciocnio de Calgula leva ao de Hobbes e ao de Grotius. Aristteles, antes de todos eles, tambm dissera que os homens em absoluto no so naturalmente iguais, mas nascem uns destinados escravido e outros dominao. Aristteles tinha razo, mas tomava efeito pela causa. Todo homem nascido na escravido, nasce para ela; nada mais certo. Os escravos tudo perdem sob seus grilhes, at o desejo de escapar deles; amam o cativeiro como os companheiros de Ulisses amavam o seu embrutecimento. Se h, pois, escravos pela natureza, porque houve escravos contra a natureza. A fora fez os primeiros escravos, sua covardia os perpetuou. Nada disse do rei Ado, nem do imperador No, pai dos trs grandes monarcas que dividiram entre si o universo, como o fizeram os filhos de Saturno, que muitos julgaram reconhecer neles. Espero que apreciem minha moderao, pois, descendendo diretamente de um desses prncipes, e talvez do ramo mais velho, quem sabe se no chegaria, depois da verificao dos ttulos, concluso de ser eu o legtimo rei do gnero humano? Seja como for, no se pode deixar de concordar quanto a ter sido Ado o soberano do mundo, como o foi Robinson em sua ilha, por isso que era nico habitante da terra, e o que havia de cmodo nesse imprio era o monarca, firme em seu trono, no temer rebelies, guerras ou conspiradores. CAPTULO III Do direito do mais forte O mais forte nunca suficientemente forte para ser sempre o senhor, seno transformando sua fora em direito e a obedincia em dever. Da o direito do mais forte - direito aparentemente tomado com ironia e na realidade estabelecido como princpio. Jamais alcanaremos uma explicao dessa palavra? A fora um poder fsico; no imagino que moralidade possa resultar de seus efeitos. Ceder fora constitui ato de necessidade, no de vontade; quando muito, ato de prudncia. Em que sentido poder representar um dever? Suponhamos, por um momento, esse pretenso direito. Afirmo que ele s redundar em inexplicvel galimatias, pois, desde que a fora faz o direito, o efeito toma lugar da causa - toda a fora que sobrepujar a primeira, suced-la- nesse direito. Desde que se pode desobedecer impunemente, torna-se legtimo faz-lo e, visto que o mais forte tem sempre razo, basta somente agir de modo a ser o mais forte. Ora, que direito ser esse, que perece quando cessa a fora? Se se impe obedecer pela fora, no se tem necessidade de obedecer por dever, e, se no se for mais forado a obedecer, j no se estar mais obrigado a faz-lo. V-se, pois, que a palavra direito nada acrescenta fora - nesse passo, no significa absolutamente nada. Obedecei aos poderes. Se isso quer dizer - cedei fora, o preceito bom, mas suprfluo; sustento que jamais ser violado. Reconheo que todo o poder vem de Deus, mas tambm todas as doenas. Por isso ser proibido chamar o mdico? Quando um bandido me ataca num recanto da floresta, no somente sou obrigado a dar-lhe minha bolsa, mas, se pudera salv-la, estaria obrigado em conscincia a d-Ia, visto que, enfim, a pistola do bandido tambm um poder? Convenhamos, pois, em que a fora no faz o direito e que s se obrigado a obedecer aos poderes legtimos. Desse modo, est sempre de p minha pergunta inicial. CAPITULO IV Da escravido Visto que homem algum tem autoridade natural sobre seus semelhantes e que a fora no produz qualquer direito, s restam as convenes como base de toda a autoridade legtima existente entre os homens. Se um particular, diz Grotius, pode alienar sua liberdade e tornar-se escravo de um senhor, por que no o poderia fazer todo um povo e tornar-se sdito de um rei? Nessa frase existem muitas palavras equvocas a exigir explicao, mas prendamo-nos s palavra alienar. Alienar dar ou vender. Ora, um homem, que se faz escravo de outro, no se d; quando muito, vende-se pela subsistncia. Mas um povo, por que se venderia? O rei, longe de prover subsistncia de seus sditos, apenas dele tira a sua e, de acordo com Rabelais, um rei no vive com pouco. Os sditos do, pois, a sua pessoa sob a condio de que se tomem tambm seus bens? No vejo o que lhes resta. Diro que o dspota assegura aos sditos a tranquilidade civil. Seja, mas qual a vantagem para eles, se as guerras em que so lanados pela ambio do dspota, a sua insacivel avidez, as vexaes impostas pelo seu ministrio os arrunam mais do que as prprias dissenses? Que ganham com isso, se mesmo essa tranquilidade uma de suas misrias? Vive-se tranquilo tambm nas masmorras e tanto bastar para que nos sintamos bem nelas? Os gregos, encerrados no antro do Ciclope, viviam tranquilos, esperando a vez de ser devorados. Afirmar que um homem se d gratuitamente constitui uma afirmao absurda e inconcebvel; tal ato ilegtimo e nulo, to s porque aquele que o pratica no se encontra no completo domnio de seus sentidos. Afirmar a mesma coisa de todo um povo, supor um povo de loucos: a loucura no cria direito. Mesmo quando cada um pudesse alienar-se a si mesmo, no poderia alienar seus filhos, pois estes nascem homens e livres, sua liberdade pertence-lhes e ningum, seno eles, goza do direito de dispor dela. Antes que cheguem idade da razo, o pai, em seu nome, pode estipular condies para sua conservao e seu bem-estar, mas no pode d-los irrevogvel e incondicionalmente, porque tal doao contrria aos fins da natureza e ultrapassa os direitos da paternidade. Seria pois necessrio, para que um governo arbitrrio fosse legtimo, que o povo, em cada gerao, fosse senhor de aceit-lo ou rejeit-lo, mas, ento, esse governo no mais seria arbitrrio. Renunciar liberdade renunciar qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e at aos prprios deveres. No h recompensa possvel para quem a tudo renuncia. Tal renncia no se compadece com a natureza do homem, e destituir-se voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a moral idade de suas aes. Enfim, uma intil e contraditria conveno a que, de um lado, estipula uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obedincia sem limites. No est claro que no se tem compromisso algum com aqueles de quem se tem o direito de tudo exigir? E essa condio nica, sem equivalente, sem compensao, no levar nulidade do ato? Pois que direito meu escravo ter contra mim, desde que tudo que possui me pertence e desde que, sendo meu o seu direito, esse direito meu contra mim mesmo passa a constituir uma palavra sem qualquer sentido? Grotius e outros autores encontram na guerra outra origem do pretenso direito de escravido. Tendo o vencedor, segundo eles, o direito de matar o vencido, este pode resgatar a vida pelo preo da sua liberdade, conveno tanto mais legtima quanto resulta em proveito de ambas as partes. claro que esse pretenso direito de matar os vencidos de modo algum resulta do estado de guerra. Apenas porque, vivendo em sua primitiva independncia, no mantm entre si uma relao suficientemente constante para constituir quer o estado de paz quer o de guerra, os homens em absoluto no so naturalmente inimigos. a relao entre as coisas e no a relao entre os homens que gera a guerra, e, no podendo o estado de guerra originar-se de simples relaes pessoais, mas unicamente das relaes reais, no pode existir a guerra particular ou de homem para homem, nem no estado de natureza, no qual no h propriedade constante, nem no estado social, em que tudo se encontra sob a autoridade das leis.Os combates particulares, os duelos, os recontros so atos que de maneira alguma constituem um estado; quanto s guerras privadas, autorizadas pelas ordenaes de Lus IX, rei de Frana, e suspensas pela Paz de Deus, so abusos do governo feudal, sistema absurdo, se jamais foi sistema, contrrio aos princpios do Direito Natural e a qualquer boa politia. A guerra no representa, pois, de modo algum, uma relao de homem para homem, mas uma relao de Estado para Estado, na qual os particulares s acidentalmente se tornam inimigos, no o sendo nem como homens, nem como cidados, mas como soldados, e no como membros da ptria, mas como seus defensores. Enfim, cada Estado s pode ter como inimigos outros Estados e no homens, pois que no se pode estabelecer qualquer relao verdadeira entre coisas de natureza diversa. Esse princpio est mesmo de acordo com as mximas estabelecidas em todos os tempos e com a prtica constante dos povos civilizados. As declaraes de guerra so avisos menos s potncias do que a seus vassalos. O estrangeiro, seja rei, particular ou povo, que rouba, mata ou detm os sditos, sem de incio declarar guerra ao prncipe, no um inimigo, um bandido. Um prncipe justo, mesmo em plena guerra, apossa-se de tudo o que pertence ao pblico em pas inimigo, mas respeita as pessoas e os bens dos particulares; ele respeita os direitos sobre os quais os seus se fundam. Estando o fim da guerra na destruio do Estado inimigo, tem-se o direito de matar, no seu curso, os defensores enquanto estiverem de armas na mo; no momento, porm, em que as depem e se rendem, deixando de ser inimigos ou seus instrumentos, tornam-se simplesmente homens, no mais se tendo direito sua vida. Algumas vezes, pode-se eliminar o Estado sem matar um nico de seus membros; ora, a guerra no concede nenhum direito que no os necessrios sua finalidade. Esses princpios no so os de Grotius, no se fundamentam na autoridade dos poetas, mas derivam da natureza das coisas e se fundam na razo. Relativamente ao direito de conquista, no dispe ele de outro fundamento alm da lei do mais forte. Se a guerra no confere jamais ao vencedor o direito de massacrar os povos vencidos, esse direito, que ele no tem, no poder servir de base ao direito de escraviz-los. S se tem o direito de matar o inimigo quando no se pode torn-lo escravo; logo, o direito de transform-lo em escravo no vem do direito de mat-lo, constituindo, pois, troca inqua o faz-lo comprar, pelo preo da liberdade, sua vida, sobre a qual no se tem qualquer direito. No claro que se cai num crculo vicioso fundando o direito de vida e de morte no de escravido, e o direito de escravido no de vida e de morte? Supondo-se mesmo a existncia desse terrvel direito de tudo matar, afirmo que um escravo feito na guerra ou um povo dominado no tem qualquer obrigao para com seu senhor, seno obedec-lo enquanto a isso forado. O vencedor no lhe concedeu graa ao tomar um equivalente da sua vida; em lugar de mat-lo sem proveito, matou-o utilmente. Longe, pois; de ter adquirido sobre ele qualquer autoridade alm da fora, persiste entre eles, como anteriormente, o estado de guerra, sendo a prpria relao entre eles um efeito desse estado, e o gozo do direito de guerra no supe qualquer tratado de paz. Firmaram uma conveno - seja; mas essa conveno, longe de destruir o estado de guerra, supe sua continuidade. Assim, seja qual for o modo de encarar as coisas, nulo o direito de escravido no s por ser ilegtimo, mas por ser absurdo e nada significar. As palavras escravido e direito so contraditrias, excluem-se mutuamente. Quer de um homem a outro, quer de um homem a um povo, ser sempre igualmente insensato este discurso: "Estabeleo contigo uma conveno ficando tudo a teu cargo e tudo em meu proveito, conveno essa a que obedecerei enquanto me aprouver e que tu observars enquanto for do meu agrado". CAPTULO V De como sempre preciso remontar a uma conveno anterior Ainda que houvera concordado com tudo que at aqui refutei, no se encontrariam em melhor situao os fautores do despotismo. Haver sempre grande diferena entre subjugar uma multido e reger uma sociedade. Sejam homens isolados, quantos possam ser submetidos sucessivamente a um s, e no verei nisso seno um senhor e escravos, de modo algum considerando-os um povo e seu chefe. Trata-se, caso se queira, de uma agregao, mas no de uma associao; nela no existe nem bem pblico, nem corpo poltico. Mesmo qutal homem domine a metade do mundo, sempre ser um particular; seu interesse, isolado do dos outros, ser sempre um interesse privado. Se esse homem vem a perecer, seu imprio, depois dele, fica esparso e sem ligao, como um carvalho, depois de consumido pelo fogo, se desfaz e se transforma num monte de cinzas. Um povo, diz Grotius, pode dar-se a um rei. Portanto, segundo Grotius, um povo povo antes de dar-se a um rei. Essa doao mesma um ato civil, supe uma deliberao pblica. Antes, pois, de examinar o ato pelo qual um povo elege um rei, conviria examinar o ato pelo qual um povo povo, pois esse ato, sendo necessariamente anterior ao outro, constitui o verdadeiro fundamento da sociedade. Com efeito, caso no haja conveno anterior, a menos que a eleio fosse unnime, onde estaria a obrigao de se submeterem os menos numerosos escolha dos mais numerosos? Donde sai o direito de cem, que querem um senhor, votar em nome de dez, que no o querem de modo algum? A lei da plural idade dos sufrgios , ela prpria, a instituio de uma conveno e supe, ao menos por uma vez, a unanimidade. CAPTULO VI Do pacto social Suponhamos os homens chegando quele ponto em que os obstculos prejudiciais sua conservao no estado de natureza sobrepujam, pela sua resistncia, as foras de que cada indivduo dispe para manter-se nesse estado. Ento, esse estado primitivo j no pode subsistir, e o gnero humano, se no mudasse de modo de vida, pereceria. Ora, como os homens no podem engendrar novas foras, mas somente unir e orientar as j existentes, no tm eles outro meio de conservar-se seno formando, por agregao, um conjunto de foras, que possa sobrepujar a resistncia, impelindo-as para um s mvel, levando-as a operar em concerto. Essa soma de foras s pode nascer do concurso de muitos; sendo, porm, a fora e a liberdade de cada indivduo os instrumentos primordiais de sua conservao, como poderia ele empenh-los sem prejudicar e sem negligenciar os cuidados que a si mesmo deve? Essa dificuldade, reconduzindo ao meu assunto, poder ser enunciada como segue: "Encontrar uma forma de associao que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a fora comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, s obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim to livre quanto antes". Esse, o problema fundamental cuja soluo o contrato social oferece. As clusulas desse contrato so de tal modo determinadas pela natureza do ato, que a menor modificao as tornaria vs e de nenhum efeito, de modo que, embora talvez jamais enunciadas de maneira formal, so as mesmas em toda a parte, e tacitamente mantidas e reconhecidas em todos os lugares, at quando, violando-se o pacto social, cada um volta a seus primeiros direitos e retoma sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual renunciara quela. Essas clusulas, quando bem compreendidas, reduzem-se todas a uma s: a alienao total de cada associado, com todos os seus direitos, comunidade toda, porque, em primeiro lugar, cada um dando-se completamente, a condio igual para todos, e, sendo a condio igual para todos, ningum se interessa por torn-la onerosa para os demais. Ademais, fazendo-se a alienao sem reservas, a unio to perfeita quanto possa ser e a nenhum associado restar algo mais a reclamar, pois, se restassem alguns direitos aos particulares, como no haveria nesse caso um superior comum que pudesse decidir entre eles e o pblico, cada qual, sendo de certo modo seu prprio juiz, logo pretenderia s-lo de todos; o estado de natureza subsistiria, e a associao se tornaria necessariamente tirnica ou v. Enfim, cada um dando-se a todos no se d a ningum e, no existindo um associado sobre o qual no se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior fora para conservar o que se tem. Se separar-se, pois, do pacto social aquilo que no pertence sua essncia, ver-se- que ele se reduz aos seguintes termos: "Cada um de ns pe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direo suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisvel do todo". Imediatamente, esse ato de associao produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos so os votos da assembleia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pblica, que se forma, desse modo, pela unio de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o de repblica ou de corpo poltico, o qual chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potncia quando comparado a seus semelhantes. Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular, cidados, enquanto partcipes da autoridade soberana, e sditos enquanto submetidos s leis do Estado. Esses termos, no entanto, confundem-se frequentemente e so usados indistintamente; basta saber distingui-las quando so empregados com inteira preciso. CAPTULO VII Do soberano V-se, por essa frmula, que o ato de associao compreende um compromisso recproco entre o pblico e os particulares, e que cada indivduo, contratando, por assim dizer, consigo mesmo, se compromete numa dupla relao: como membro do soberano em relao aos particulares, e como membro do Estado em relao ao soberano. No se pode, porm, aplicar a essa situao a mxima do Direito Civil que afirma ningum estar obrigado aos compromissos tomados consigo mesmo, pois existe grande diferena entre obrigar-se consigo mesmo e em relao a um todo do qual se faz parte. Impe-se notar ainda que a deliberao pblica, que pode obrigar todos os sditos em relao ao soberano, devido s duas relaes diferentes segundo as quais cada um deles encarado, no pode, pela razo contrria, obrigar o soberano em relao a si mesmo, sendo consequentemente contra a natureza do corpo poltico impor-se o soberano uma lei que no possa infringir. No podendo considerar-se a no ser numa nica e mesma relao, encontrar-se- ento no caso de um particular contratando consigo mesmo, por onde se v que no h nem pode haver qualquer espcie de lei fundamental obrigatria para o corpo do povo, nem sequer o contrato social. Tal no significa no poder esse corpo comprometer-se com outrem, no que no derrogar o contrato, pois, em relao ao estrangeiro, torna-se um ser singelo, um indivduo. Mas o corpo poltico ou o soberano, no existindo seno pela integridade do contrato, no pode obrigar-se, mesmo com outrem, a nada que derrogue esse ato primitivo, como alienar uma parte de si mesmo ou submeter-se a outro soberano. Violar o ato pelo qual existe seria destruir-se, e o que nada nada produz. Desde o momento em que essa multido se encontra assim reunida em um corpo, no se pode ofender um dos membros sem atacar o corpo, nem, ainda menos, ofender o corpo sem que os membros se ressintam. Eis como o dever e o interesse obrigam igualmente as duas partes contratantes a se auxiliarem mutuamente, e os mesmos homens devem procurar reunir, nessa dupla relao, todas as vantagens que dela provm. Ora, o soberano, sendo formado to s pelos particulares que o compem, no visa nem pode visar a interesse contrrio ao deles, e, consequentemente, o poder soberano no necessita de qualquer garantia em face de seus sditos, por ser impossvel ao corpo desejar prejudicar a todos os seus membros, e veremos, logo a seguir, que no pode tambm prejudicar a nenhum deles em particular. O soberano, somente por s-lo, sempre aquilo que deve ser. O mesmo no se d, porm, com os sditos em relao ao soberano, a quem, apesar do interesse comum, ningum responderia por seus compromissos, se no encontrasse meios de assegurar-se a fidelidade dos sditos. Cada indivduo, com efeito, pode, como homem, ter uma vontade particular, contrria ou diversa da vontade geral que tem como cidado. Seu interesse particular pode ser muito diferente do interesse comum. Sua existncia, absoluta e naturalmente independente, pode lev-lo a considerar o que deve causa comum como uma contribuio gratuita, cuja perda prejudicar menos aos outros, do que ser oneroso o cumprimento a si prprio. Considerando a pessoa moral que constitui o Estado como um ente de razo, porquanto no um homem, ele desfrutar dos direitos do cidado sem querer desempenhar os deveres de sdito - injustia cujo progresso determinaria a runa do corpo poltico. A fim de que o pacto social no represente, pois, um formulrio vo, compreende ele tacitamente este compromisso, o nico que poder dar fora aos outros: aquele que recusar obedecer vontade geral a tanto ser constrangido por todo um corpo, o que no significa seno que o foraro a ser livre, pois essa a condio que, entregando cada cidado ia, o garante contra qualquer dependncia pessoal. Essa condio constitui o artifcio e o jogo de toda a mquina poltica, e a nica a legitimar os compromissos civis, os quais, sem isso, se tornariam absurdos, tirnicos e sujeitos aos maiores abusos. CAPTULO VIII Do estado civil A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudana muito notvel, substituindo na sua conduta o instinto pela justia e dando s suas aes a moral idade que antes lhes faltava. s ento que, tomando a voz do dever o lugar do impulso fsico, e o direito o lugar do apetite, o homem, at a levando em considerao apenas sua pessoa, v-se forado a agir baseando-se em outros princpios e a consultar a razo antes de ouvir suas inclinaes. Embora nesse estado se prive de muitas vantagens que frui da natureza, ganha outras de igual monta: suas faculdades se exercem e se desenvolvem, suas ideias se alargam, seus sentimentos se enobrecem, toda a sua alma se eleva a tal ponto, que, se os abusos dessa nova condio no o degradassem frequentemente a uma condio inferior quela donde saiu, deveria sem cessar bendizer o instante feliz que dela o arrancou para sempre e fez, de um animal estpido e limitado, um ser inteligente e um homem. Reduzamos todo esse balano a termos de fcil comparao. O que o homem perde pelo contrato social a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcanar. O que com ele ganha a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui. A fim de no fazer um julgamento errado dessas compensaes, impe-se distinguir entre a liberdade natural, que s conhece limites nas foras do indivduo, e a liberdade civil, que se limita pela vontade geral, e, mais, distinguir a posse, que no seno o efeito da fora ou o direito do primeiro ocupante, da propriedade, que s pode fundar-se num ttulo positivo. Poder-se-ia, a propsito do que ficou acima, acrescentar aquisio do estado civil a liberdade moral, nica a tornar o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, porque o impulso do puro apetite escravido, e a obedincia lei que se estatuiu a si mesma liberdade. Mas j disse muito acerca desse princpio e o sentido filosfico da palavra liberdade, neste ponto, no pertence a meu assunto. CAPTULO IX Do domnio real Cada membro da comunidade d-se a ela no momento de sua formao, tal como se encontra naquele instante; ele e todas as suas foras, das quais fazem parte os bens que possui. O que no significa que, por esse ato, a posse mude de natureza ao mudar de mo e se tome propriedade nas do soberano, mas sim que, como as foras da Cidade so incomparavelmente maiores do que as de um particular, a posse pblica tambm, na realidade, mais forte e irrevogvel, sem ser mais legtima, pelos menos para os estrangeiros. Tal coisa se d porque o Estado, perante seus membros, senhor de todos os seus bens pelo contrato social, contrato esse que, no Estado, serve de base a todos os direitos, mas no senhor daqueles bens perante as outras potncias seno pelo direito de primeiro ocupante, que tomou dos particulares. O direito do primeiro ocupante, embora mais real do que o do mais forte, s se toma um verdadeiro direito depois de estabelecido o de propriedade. Todo o homem tem naturalmente direito a quanto lhe for necessrio, mas o ato positivo, que o torna proprietrio de qualquer bem, o afasta de tudo mais. Tomada a sua parte, deve a ela limitar-se, no gozando mais de direito algum comunidade. Eis por que o direito de primeiro ocupante, to frgil no estado de natureza, se torna respeitvel para todos os homens civis. Por esse direito, respeita-se menos o que pertence a outrem, do que aquilo que no pertence a si mesmo. Em geral, so necessrias as seguintes condies para autorizar o direito de primeiro ocupante de qualquer pedao de cho: primeiro, que esse terreno no esteja ainda habitado, por ningum; segundo, que dele s se ocupe a poro de que se tem necessidade para subsistir; terceiro, que dele se tome posse no por uma cerimnia v, mas pelo trabalho e pela cultura, nicos sinais de propriedade que devem ser respeitados pelos outros, na ausncia de ttulos jurdicos. Com efeito, concedendo-se necessidade e ao trabalho o direito de primeiro ocupante, no se estar levando-o o mais longe possvel? Poder-se- no estabelecer limites para esse direito? Bastar pr o p num terreno comum para logo pretender ser o senhor? Bastar a fora, capaz de afastar dele num momento os outros homens, para destitu-los do direito de novamente voltar a ele? Como poder um homem ou um povo assenhorear-se de um territrio imenso e privar dele todo o gnero humano, a no ser por usurpao punvel, por isso que tira do resto dos homens o abrigo e os alimentos que a natureza lhes deu em comum? Quando Nuez Balboa tomou, na costa, posse de todo o mar do Sul e de toda a Amrica meridional, em nome da coroa de Castela, tanto bastaria para desapossar todos os habitantes e da excluir todos os prncipes do mundo? Com tal razo, tais cerimnias se multiplicariam inutilmente e o rei catlico no precisaria seno de inopino tomar, de seu gabinete, posse de todo o universo, apenas posteriormente excluindo de seu imprio o que antes possuam os outros prncipes. Concebe-se como as terras dos particulares reunidas e contguas se tornam territrio pblico e como o direito de soberania, estendendo-se dos sditos ao terreno por eles ocupado, se torna, ao mesmo tempo, real e pessoal, colocando os possuidores numa dependncia ainda maior e fazendo de suas prprias foras as garantias de sua fidelidade. Essa vantagem no parece haver sido muito bem compreendida pelos antigos monarcas que, intitulando-se simplesmente rei dos persas, dos citas, dos macednios, pareciam considerar-se mais chefes dos homens do que senhores do pas. Os de hoje chamam-se, mais habilmente, reis de Frana, da Espanha e da Inglaterra, etc.; dominando assim o territrio, sentem-se bem seguros de a dominar os habitantes. O singular dessa alienao que a comunidade, aceitando os bens dos particulares, longe de despoj-los, no faz seno assegurar a posse legtima, cambiando a usurpao por um direito verdadeiro, e o gozo, pela propriedade. Passando ento os possuidores a serem considerados depositrios do bem pblico, estando respeitados seus direitos por todos os membros do Estado e sustentados por todas as suas foras contra o estrangeiro, adquirem, por assim dizer, tudo o que deram por uma cesso vantajosa ao pblico e mais ainda a eles mesmos. O paradoxo explica-se facilmente pela distino entre os direitos de que o soberano e o proprietrio gozam sobre os mesmos bens, como se ver mais adiante. Pode tambm acontecer que os homens comecem a unir-se antes de possuir qualquer coisa e que, apossando-se depois de um terreno bastante a todos, o fruam em comum ou dividam entre si, seja em partes iguais, seja de acordo com propores estabelecidas pelo soberano. De qualquer forma que se realize tal aquisio, o direito que cada particular tem sobre seus prprios bens est sempre subordinado ao direito que a comunidade tem sobre todos, sem o que no teria solidez o liame social, nem fora verdadeira o exerccio da soberania. Terminarei este captulo e este livro por uma observao que dever servir de base a todo o sistema social: o pacto fundamental, em lugar de destruir a igualdade natural, pelo contrrio substitui por uma igualdade moral e legtima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade fsica entre os homens, que, podendo ser desiguais na fora ou no gnio, todos se tornam iguais por conveno e direito. LIVRO SEGUNDO CAPTULO I A soberania inalienvel A primeira e a mais importante consequncia decorrente dos princpios at aqui estabelecidos que s a vontade geral pode dirigir as foras do Estado de acordo com a finalidade de sua instituio, que o bem comum, porque, se a oposio dos interesses particulares tornou necessrio o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o possibilitou. O que existe de comum nesses vrios interesses forma o liame social e, se no houvesse um ponto em que todos os interesses concordassem, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, somente com base nesse interesse comum que a sociedade deve ser governada. Afirmo, pois, que a soberania, no sendo seno o exerccio da vontade geral, jamais pode alienar-se, e que o soberano, que nada seno um ser coletivo, s pode ser representado por si mesmo. O poder pode transmitir-se; no, porm, vontade.Se no , com efeito, impossvel que uma vontade particular concorde com a vontade geral em certo ponto, pelo menos impossvel que tal acordo se estabelea duradouro e constante, pois a vontade particular tende pela sua natureza s predilees e a vontade geral, igualdade. Menor possibilidade haver ainda de alcanar-se uma garantia desse acordo; ainda quando devera sempre existir, no seria um produto da arte, mas do acaso. O soberano pode muito bem dizer: "Quero, neste momento, aquilo que tal homem deseja, ou, pelo menos, aquilo que ele diz desejar". Mas no poder dizer: "O que esse homem quiser amanh, eu tambm o quererei", por ser absurdo submeter-se a vontade a grilhes futuros e por no depender de nenhuma vontade o consentir em algo contrrio ao bem do ser que deseja. Se, pois, o povo promete simplesmente obedecer, dissolve-se por esse ato, perde sua qualidade de povo - desde que h um senhor, no h mais soberano e, a partir de ento, destri-se o corpo poltico. Isso no quer dizer que no possam as ordens dos chefes ser consideradas vontades gerais, desde que o soberano, livre para tanto, no se oponha. Em tal caso, pelo silncio universal deve-se presumir o consentimento do povo. O que se explicar mais amplamente. CAPTULO II A soberania indivisvel A soberania indivisvel pela mesma razo por que inalienvel, pois a vontade ou geral, ou no o ; ou a do corpo do povo, ou somente de uma parte. No primeiro caso, essa vontade declarada um ato de soberania e faz lei; no segundo, no passa de uma vontade particular ou de um ato de magistratura, quando muito, de um decreto. Nossos polticos, porm, no podendo dividir a soberania em seu princpio, fazem-no em seu objeto. Dividem-na em fora e vontade, em poder legislativo e poder executivo, em direitos de impostos, de justia e de guerra, em administrao interior e em poder de tratar com o estrangeiro. Algumas vezes, confundem todas essas partes, e, outras vezes, separam-nas. Fazem do soberano um ser fantstico e formado de peas ajustadas, tal como se formassem um homem de inmeros corpos, dos quais um tivesse os olhos, outro os braos, outro os ps, e nada mais alm disso. Contam que os charlates do Japo despedaam uma criana aos olhos dos espectadores e depois, jogando ao ar, um aps outro, todos os membros, volta ao cho a criana viva e completamente recomposta. Mais ou menos assim fazem-se os passes de mgica de nossos polticos: depois de desmembrarem o corpo social, por uma sorte digna das feiras, renem as peas, no se sabe como. Esse erro provm de no disporem de noes exatas sobre a autoridade soberana e de terem tomado por partes dessa autoridade o que no passa de emanaes suas. Assim, por exemplo, tiveram-se por atos de soberania o ato de declarar guerra e o de fazer a paz, que no o so, pois cada um desses atos no uma lei, mas unicamente uma aplicao da lei, um ato particular que determina o caso da lei, como claramente se ver quando for definida a ideia que se prende palavra lei. Examinando-se igualmente as outras divises, ver-se- que se incorre em erro todas as vezes que se cr estar a soberania dividida, pois os direitos, tomados por partes dessa soberania, subordinam-se todos a ela, e supem sempre vontades supremas, s quais esses direitos s do execuo. No se poder dizer o quanto essa falta de exatido lanou de obscuridade nas concluses dos autores em matria de Direito Poltico, quando quiseram julgar os direitos correspondentes aos reis e aos povos de acordo com os princpios que tinham estabelecido. Todos podem ver nos captulos III e IV do primeiro livro de Grotius, como esse sbio e seu tradutor Barbeyrac confundem-se, embaraam-se em seus sofismas por medo de dizer demais sobre o assunto ou de no dizer o bastante segundo seus pontos de vista, fazendo colidir os interesses que pretendiam conciliar. Grotius, refugiado em Frana, descontente com sua ptria e desejando agradar a Lus XIII, a quem seu livro dedicado, nada poupa para despojar os povos de todos os seus direitos e para deles revestir os reis, com a melhor arte possvel. Tambm foi essa a inclinao de Barbeyrac, que dedicou sua traduo ao rei da Inglaterra, Jorge I. Mas, infelizmente, a expulso de Jaime II, que ele chama de abdicao, forou-o a manter-se em reserva, a esquivar-se, a tergiversar, a fim de no fazer de Guilherme um usurpador. Se esses dois escritores tivessem adotado os verdadeiros princpios, desapareceriam todas as dificuldades, e teriam sempre sido consequentes; mas, ento, tristemente diriam a verdade e cortejariam somente ao povo. Ora, a verdade no leva fortuna, e o povo no d embaixadas, ctedras ou penses. CAPTULO III Se pode errar a vontade geral Conclui-se do precedente que a vontade geral sempre certa e tende sempre utilidade pblica; donde no se segue, contudo, que as deliberaes do povo tenham sempre a mesma exatido. Deseja-se sempre o prprio bem, mas nem sempre se sabe onde ele est. Jamais se corrompe o povo, mas frequentemente o enganam e s ento que ele parece desejar o que mau. H comumente muita diferena entre a vontade de todos e a vontade geral. Esta se prende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e no passa de uma soma das vontades particulares. Quando se retiram, porm, dessas mesmas vontades, os a-mais e os a-menos que nela se destroem mutuamente, resta, como soma das diferenas, a vontade geral. Se, quando o povo suficientemente informado delibera, no tivessem os cidados qualquer comunicao entre si, do grande nmero de pequenas diferenas resultaria sempre a vontade geral e a deliberao seria sempre boa. Mas quando se estabelecem faces, associaes parciais a expensas da grande, a vontade de cada uma dessas associaes torna-se geral em relao a seus membros e particular em relao ao Estado: poder-se- ento dizer no haver mais tantos votantes quantos so os homens, mas somente tantos quantas so as associaes. As diferenas tornam-se menos numerosas e do um resultado menos geral. E, finalmente, quando uma dessas associaes for to grande que se sobreponha a todas as outras, no se ter mais como resultado uma soma das pequenas diferenas, mas uma diferena nica - ento, no h mais vontade geral, e a opinio que dela se assenhoreia no passa de uma opinio particular. Importa, pois, para alcanar o verdadeiro enunciado da vontade geral, que no haja no Estado sociedade parcial e que cada cidado s opine de acordo consigo mesmo. Foi essa a nica e sublime instituio do grande Licurgo. Caso haja sociedades parciais, preciso multiplicar-lhes o nmero a fim de impedir-lhes a desigualdade, como o fizeram Slon, Numa e Srvio. Tais precaues so as nicas convenientes para que a vontade geral sempre se esclarea e no se engane o povo. CAPITULO IV Dos limites do poder soberano No sendo o Estado ou a Cidade mais que uma pessoa moral, cuja vida consiste na unio de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados o de sua prpria conservao, torna-se-lhe necessria uma fora universal e compulsiva para mover e dispor cada parte da maneira mais conveniente a todos. Assim como a natureza d a cada homem poder absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social d ao corpo poltico um poder absoluto sobre todos os seus, e esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, ganha, como j disse, o nome de soberania. Mas, alm da pessoa pblica, temos de considerar as pessoas particulares que a compem, e cuja vida e liberdade naturalmente independem dela. Trata-se, pois, de distinguir os direitos respectivos dos cidados e do soberano, e os deveres que os primeiros devem desempenhar na qualidade de sditos, do direito natural de que devem gozar na qualidade de homens. Relativamente a quanto, pelo pacto social, cada um aliena de seu poder, de seus bens e da prpria liberdade, convm-se em que representa to s aquela parte de tudo isso cujo uso interessa comunidade. preciso convir, tambm, em que s o soberano pode julgar dessa importncia. Todos os servios que um cidado pode prestar ao Estado, ele os deve desde que o soberano os pea; este, porm, de sua parte, no pode onerar os sditos com qualquer pena intil comunidade, nem sequer pode desej-lo, pois, sob a lei da razo, no menos do que sob a da natureza, nada se faz sem causa. Os compromissos que nos ligam ao corpo social s so obrigatrios por serem mtuos, e tal sua natureza, que, ao cumpri-los, no se pode trabalhar por outrem sem tambm trabalhar para si mesmo. Por que sempre certa a vontade geral e por que desejam todos constantemente a felicidade de cada um, seno por no haver ningum que no se aproprie da expresso cada um e no pense em si mesmo ao votar por todos? - eis a prova de que a igualdade de direito e a noo de justia, por aquela determinada, derivam da preferncia que cada um tem por si mesmo, e, consequentemente, da natureza do homem; a prova de que a vontade geral, para ser verdadeiramente geral, deve s-lo tanto no objeto quanto na essncia; a prova de que essa vontade deve partir de todos para aplicar-se a todos, e de que perde sua explicao natural quando tende a algum objetivo individual e determinado, porque ento, julgando aquilo que nos estranho, no temos qualquer princpio verdadeiro de equidade para guiar-nos. Com efeito, desde que se trata de um fato ou de um direito particular sobre algo que no esteja regulamentado por conveno geral e anterior, a questo se torna contenciosa: um processo em que os particulares interessados representam uma das partes e o pblico a outra, mas no qual no vejo nem que lei observar, nem que juiz deva pronunciar-se. Seria ridculo querer, nesse caso, recorrer-se a uma deciso expressa da vontade geral que mais no pode representar do que a concluso de uma das partes e, consequentemente, no passa, para a outra parte, de uma vontade estranha, particular, nessa ocasio induzida injustia e sujeita a erro. Assim, do mesmo modo que uma vontade particular no pode representar a vontade geral, esta, por sua vez, muda de natureza ao ter objeto particular e no pode, como geral, pronunciar-se nem sobre um homem, nem sobre um fato. Quando, por exemplo, o povo de Atenas nomeava ou destitua seus chefes, concedia honrarias a um, impunha penas a outro e, por mltiplos decretos especiais, indistintamente exercia todos os atos do governo, o povo no tinha mais vontade geral propriamente dita, no agia mais como soberano, mas como magistrado. Isto parecer contrrio s ideias comuns, mas dai-me tempo para expor as minhas prprias ideias. Deve-se compreender, nesse sentido, que, menos do que o nmero de votos, aquilo que generaliza a vontade o interesse comum que os une, pois nessa instituio cada um necessariamente se submete s condies que impe aos outros: admirvel acordo entre o interesse e a justia, que d s deliberaes comuns um carter de equidade que vimos desaparecer na discusso de qualquer negcio particular, pela falta de um interesse comum que una e identifique a regra do juiz da parte. Por qualquer via que se remonte ao princpio, chega-se sempre mesma concluso, a saber: o pacto social estabelece entre os cidados tal igualdade, que eles se comprometem todos nas mesmas condies e devem todos gozar dos mesmos direitos. Igualmente, devido natureza do pacto, todo o ato de soberania, isto , todo o ato autntico da vontade geral, obriga ou favorece igualmente todos os cidados, de modo que o soberano conhece unicamente o corpo da nao e no distingue nenhum dos que a compem. Que ser, pois, propriamente, um ato de soberania? No uma conveno entre o superior e o inferior, mas uma conveno do corpo com cada um de seus membros: conveno legtima por ter como base o contrato social, equitativa por ser comum a todos, til por no poder ter outro objetivo que no o bem geral, e slida por ter como garantia a fora pblica e o poder supremo. Enquanto os sditos s estiverem submetidos a tais convenes, no obedecem a ningum, mas somente prpria vontade, e perguntar at onde se estendem os direitos respectivos do soberano e dos cidados perguntar at que ponto estes podem comprometer-se consigo mesmos, cada um perante todos e todos perante cada um. V-se por a que o poder soberano, por mais absoluto, sagrado e inviolvel que seja, no passa nem pode passar dos limites das convenes gerais, e que todo o homem pode dispor plenamente do que lhe foi deixado, por essas convenes, de seus bens e de sua liberdade, de sorte que o soberano jamais tem o direito de onerar mais a um cidado do que a outro, porque, ento, tornando-se particular a questo, seu, poder no mais competente. Uma vez admitidas tais distines, a tal ponto falso que no contrato social haja por parte dos particulares qualquer verdadeira renncia, que sua situao, por efeito desse contrato, se torna realmente prefervel que antes dele existia, e, em vez de uma alienao, no fizeram seno uma troca vantajosa de um modo de vida incerto e precrio por outro melhor e mais seguro, da independncia natural pela liberdade, do poder de prejudicar a outrem pela segurana prpria, e de sua fora, que outras podiam dominar, por um direito que a unio social torna invencvel. A prpria vida, que devotaram ao Estado, por este continuamente protegida e, quando se expem para defend-lo, que fazem, seno retribuir-lhe o que dele receberam? Que fazem que no fariam, mais frequentemente e com maior perigo, no estado de natureza, quando, dando-se combates inevitveis, defendiam, com perigo da prpria vida, aquilo que lhes serve para conserv-la? verdade que todos tm de combater, quando necessrio, pela ptria, mas tambm ningum ter jamais de combater por si mesmo. Quanto nossa segurana, no ganhamos ainda em correr uma parte dos riscos que teramos de correr por ns mesmos se ela nos fosse subtrada? CAPITULO V Do direito de vida e de morte Pergunta-se como os particulares, no gozando, de forma alguma, do direito de dispor da prpria vida, podem transmitir ao soberano esse mesmo direito que no tm. A questo s parece difcil de resolver por estar mal enunciada. Todo o homem dispe do direito de arriscar sua prpria vida para conserv-la. Jamais se disse, daquele que se lana por uma janela para escapar a um incndio, que seja culpado de suicdio? Jamais se atribuiu tal crime quele que perece numa tempestade cujo perigo no ignorava ao embarcar? O tratado social tem como fim a conservao dos contratantes. Quem deseja os fins, tambm deseja os meios, e tais meios so inseparveis de alguns riscos e, at, de algumas perdas. Quem deseja conservar sua vida custa dos outros, tambm deve d-la por eles quando necessrio. Ora, o cidado no mais juiz do perigo ao qual a lei quer que se exponha e, quando o prncipe lhe diz: " til ao Estado que morras", deve morrer, pois foi exatamente por essa condio que at ento viveu em segurana e que sua vida no mais mera ddiva da natureza, porm um dom condicional do Estado. A pena de morte infligida aos criminosos pode ser considerada, aproximadamente, do mesmo ponto de vista - para no tornar-se vtima de um assassino que se consente em morrer, caso se venha a ser assassino. Em tal tratado, longe de dispor da prpria vida, s se pensa em garanti-la, e no se presume que, por isso, qualquer dos contratantes premedite fazer-se enforcar. Ademais, qualquer malfeitor, atacando o direito social, pelos seus crimes torna-se rebelde e traidor da ptria, deixa de ser um seu membro ao violar suas leis e at lhe move guerra. A conservao do Estado ento incompatvel com a sua, sendo preciso que um dos dois perea, e, quando se faz que um culpado morra, menos como cidado do que como inimigo. Os processos e o julgamento so as provas e a declarao de ter ele rompido o tratado social, no sendo mais, consequentemente, membro do Estado. Ora, como ele se reconhecera tal ao menos por sua residncia, deve ser isolado pelo exlio, como infrator do pacto, ou pela morte, como inimigo pblico. Porque, no sendo tal inimigo uma pessoa moral, mas um homem, ento o direito da guerra o de matar o vencido. Mas, dir-se-, a condenao de um criminoso um ato particular. Estou de acordo; alm disso, essa condenao no pertence ao soberano - um direito que ele pode conferir sem poder ele prprio exercer. Todas as minhas ideias se entrelaam, mas no posso exp-las ao mesmo tempo. Ademais, a frequncia dos suplcios sempre um sinal de fraqueza ou de preguia do governo. No existe nenhum mau que no possa tornar-se bom para alguma coisa. S se tem o direito de matar, mesmo para exemplo, aquele que no se pode conservar sem perigo. Quanto ao direito de conceder graa ou de isentar um culpado da pena estabelecida pela lei e pronunciada pelo juiz, s pertence quele que esteja acima do juiz e da lei, isto , ao soberano; embora neste particular seu direito no seja muito ntido e muito raros os casos em que pode us-lo. Num Estado bem governado, h poucas punies, no porque se concedam muitas graas, mas por haver poucos criminosos; o grande nmero de crimes assegura a sua impunidade quando o Estado definha. Na repblica romana, nem o senado nem os cnsules jamais tentaram conceder graa, e mesmo o povo no o fazia, embora por vezes revogasse seu prprio julgamento. As graas frequentes anunciam que em breve os criminosos delas no tero mais necessidade e todos podem ver aonde isso leva. Sinto, porm, que meu corao murmura e retm minha pena: deixemos essas questes para serem discutidas pelo homem justo que nunca falhou e nunca tenha tido, ele prprio, necessidade de graa. CAPTULO VI Da lei Pelo pacto social demos existncia e vida ao corpo poltico. Trata-se, agora, de lhe dar, pela legislao, movimento e vontade, porque o ato primitivo, pelo qual esse corpo se forma e se une, nada determina ainda daquilo que dever fazer para conservar-se. Aquilo que est bem e consoante ordem, assim o pela natureza das coisas e independentemente das convenes humanas. Toda a justia vem de Deus, que a sua nica fonte; se soubssemos, porm, receb-la de to alto, no teramos necessidade nem de governo, nem de leis. H, sem dvida, uma justia universal emanada somente da razo; tal justia, porm, deve ser recproca para ser admitida entre ns. Considerando-se humanamente as coisas, as leis da justia, dada a falta de sano natural, tornam-se vs para os homens; s fazem o bem do mau e o mal do justo, pois este as observa com todos, sem que ningum as observe com ele. So, pois, necessrias convenes e leis para unir os direitos aos deveres, e conduzir a justia a seu objetivo. No estado de natureza, no qual tudo comum, nada devo queles a quem nada prometi; s reconheo como de outrem aquilo que me intil. Isso no acontece no estado civil, no qual todos os direitos so fixados pela Lei. Mas que ser, finalmente, uma lei? Enquanto se contentarem em ligar a essa palavra somente ideias metafsicas, continuar-se- a raciocinar sem fazer-se compreender, e, quando se disser o que uma lei da natureza, no se saber melhor o que uma lei do Estado. J disse no haver vontade geral visando objeto particular. Com efeito, esse objeto particular encontra-se dentro ou fora do Estado. Se est fora do Estado, uma vontade que lhe estranha no geral em relao a ele. Se est no Estado, faz parte dele: forma-se ento, entre o todo e a parte, uma relao que produz dois seres separados, sendo a parte um deles, e o todo, menos essa parte, o outro. Mas o todo menos uma parte no o todo e, enquanto subsistir essa relao, no existe o todo, seno duas partes desiguais. Segue-se que a vontade de uma no mais geral em relao outra. Mas, quando todo o povo estatui algo para todo o povo, s considera a si mesmo e, caso se estabelea ento uma relao, ser entre todo o objeto sob certo ponto de vista e todo o objeto sob outro ponto de vista, sem qualquer diviso do todo. Ento, a matria sobre a qual se estatui geral como a vontade que a estatui. A esse ato dou o nome de lei. Quando digo que o objeto das leis sempre geral, por isso entendo que a Lei considera os sditos como corpo e as aes como abstratas, e jamais um homem como um indivduo ou uma ao particular. Desse modo, a Lei poder muito bem estatuir que haver privilgios, mas ela no poder conced-los nominalmente a ningum: a Lei pode estabelecer diversas classes de cidados, especificar at as qualidades que daro direito a essas classes, mas no poder nomear este ou aquele para serem admitidos nelas; pode estabelecer um governo real e uma sucesso hereditria, mas no pode eleger um rei ou nomear uma famlia real. Em suma, qualquer funo relativa a um objeto individual no pertence, de modo algum, ao poder legislativo. Baseando-se nessa ideia, v-se logo que no se deve mais perguntar a quem cabe fazer as leis, pois so atos da vontade geral, nem se o prncipe, est acima das leis, visto que membro do Estado; ou se a Lei poder ser injusta, pois ningum injusto consigo mesmo, ou como se pode ser livre e estar sujeito s leis, desde que estas no passam de registros de nossas vontades. V-se ainda que, reunindo a Lei a universalidade da vontade e a do objeto, aquilo que um homem, quem quer seja, ordena por sua conta, no mais uma lei: o que ordena, mesmo o soberano, sobre um objeto particular no uma lei, mas um decreto, no ato de soberania, mas de magistratura. Chamo pois de repblica todo o Estado regido por leis, sob qualquer forma de administrao que possa conhecer, pois s nesse caso governa o interesse pblico e a coisa pblica passa a ser qualquer coisa. Todo o governo legtimo republicano. Explicarei logo adiante o que governo. As leis no so, propriamente, mais do que as condies da associao civil. O povo, submetido s leis, deve ser o seu autor. S queles que se associam cabe regulamentar as condies da sociedade. Mas, como as regulamentaro? Ser por um comum acordo, por uma inspirao sbita? O corpo poltico dispe de um rgo para enunciar suas vontades? Quem lhe dar areviso necessria para constituir e publicar antecipadamente os atos relativos a tais vontades? Ou como as manifestaria em caso de urgncia? Como uma multido cega, que frequentemente no sabe o que deseja porque raramente sabe o que lhe convm, cumpriria por si mesma empresa to grande e to difcil quanto um sistema de legislao? O povo, por si, quer sempre o bem, mas por si nem sempre o encontra. A vontade geral sempre certa, mas o julgamento que a orienta nem sempre esclarecido. preciso faz-la ver os objetos tais como so, algumas vezes tais como eles devem parecer-lhe, mostrar-lhe o caminho certo que procura, defend-la da seduo das vontades particulares, aproximar a seus olhos os lugares e os tempos, pr em balano a tentao das vantagens presentes e sensveis com o perigo dos males distantes e ocultos. Os particulares discernem o bem que rejeitam; o pblico quer o bem que no discerne. Todos necessitam, igualmente, de guias. A uns preciso obrigar a conformar a vontade razo, e ao outro, ensinar a conhecer o que quer. Ento, das luzes pblicas resulta a unio do entendimento e da vontade no corpo social, da o perfeito concurso das partes e, enfim, a maior fora do todo. Eis donde nasce a necessidade de um Legislador. CAPTULO VII Do Legislador Para descobrir as melhores regras de sociedade que convenham s naes, precisar-se-ia de uma inteligncia superior, que visse todas as paixes dos homens e no participasse de nenhuma delas, que no tivesse nenhuma relao com a nossa natureza e a conhecesse a fundo; cuja felicidade fosse independente de ns e, contudo, quisesse dedicar-se a ns que, finalmente, almejando uma glria distante, pudesse trabalhar num sculo e fru-la em outro. Seriam precisos deuses para dar leis aos homens. O mesmo raciocnio que Calgula fazia quanto ao fato, Plato fazia quanto ao direito para definir o homem civil ou real que ele procura no seu livro De Regno. Mas, se verdade que um grande prncipe um homem raro, que se diria de um grande Legislador? Aquele s tem de seguir o modelo que este deve propor. Este o mecnico que inventa a mquina, aquele no passa do trabalhador que a monta e a faz movimentar-se. "No nascimento das sociedades", diz Montesquieu, "so os chefes das repblicas que fazem a instituio e, depois, a instituio que forma os chefes das repblicas. Aquele que ousa empreender a instituio de um povo deve sentir-se com capacidade para, por assim dizer, mudar a natureza humana, transformar cada indivduo, que por si mesmo um todo perfeito e solitrio, em parte de um todo maior, do qual de certo modo esse indivduo recebe sua vida e seu ser; alterar a constituio do homem para fortific-la; substituir a existncia fsica e independente, que todos ns recebemos da natureza, por uma existncia parcial e moral. Em uma palavra, preciso que destitua o homem de suas prprias foras para lhe dar outras que lhe sejam estranhas e das quais no possa fazer uso sem socorro alheio. Na medida em que tais foras naturais estiverem mortas e aniquiladas, mais as adquiridas sero grandes e duradouras, e mais slida e perfeita a instituio, de modo que, se cada cidado nada for, nada poder seno graas a todos os outros, e se a fora adquirida pelo todo for igualou superior soma das foras naturais de todos os indivduos, poderemos ento dizer que a legislao est no mais alto grau de perfeio que possa atingir. O Legislador, sob todos os aspectos, um homem extraordinrio no Estado. Se o deve ser pelo gnio, no o ser menos pelo oficio. Este no magistratura, nem soberania. Tal oficio, que constitui a repblica, no pertence sua constituio, por ser uma funo particular e superior que nada tem de comum com o imprio humano, pois, se aquele que governa os homens no deve governar as leis, o que governa as leis no deve tambm governar os homens: de outra forma, suas leis, instrumentos de suas paixes, frequentemente no fariam mais do que perpetuar suas injustias e jamais ele poderia evitar que pontos de vista particulares alterassem a integridade de sua obra. Quando Licurgo deu leis sua ptria, comeou por abdicar a sua realeza. Era costume da maioria das cidades gregas confiar o estabelecimento de suas leis a estrangeiros. As repblicas modernas da Itlia imitaram, frequentemente, esse uso; a de Genebra assim o fez e deu-se bem. Roma, na poca mais bela, viu renascer em seu seio todos os crimes da tirania e esteve em vias de perecer por haver reunido nas mesmas cabeas a autoridade legislativa e o poder soberano. Os prprios decnviros, no entanto, nunca se arrogaram o direito de ditar uma lei fundada somente na sua autoridade. "Nada do que vos propomos", diziam ao povo, "poder transformar-se em lei sem o vosso consentimento. Romanos, sede vs mesmos os autores das leis que devem fazer vossa felicidade. Aquele, pois, que redige as leis, no tem nem deve ter qualquer direito legislativo. O prprio povo no poderia, se o desejasse, despojar-se desse direito incomunicvel, porque, segundo o pacto fundamental, s a vontade geral obriga os particulares e s podemos estar certos de que uma vontade particular conforme vontade geral depois de submet-la ao sufrgio livre do povo. J o tinha dito, mas no intil repeti-lo. Assim, na obra da legislao encontramos, ao mesmo tempo, dois elementos que parecem incompatveis: uma empresa acima das foras humanas e, para execut-la, uma autoridade que nada . Outra dificuldade merece ateno. Os sbios que desejassem falar ao vulgo na linguagem deste, em lugar da sua prpria linguagem, no poderiam ser compreendidos, pois h inmeras espcies de ideias impossveis de traduzir-se na lngua do povo. Os pontos de vista muito gerais e os objetivos muito distantes encontram-se igualmente fora de seu alcance; cada indivduo, no discernindo outro plano de governo alm daquele que se relaciona com seu interesse particular, dificilmente percebe as vantagens que pode tirar das contnuas privaes que as boas leis lhe impem. A fim de que um povo nascente possa compreender as ss mximas da poltica, e seguir as regras fundamentais da razo de Estado, seria necessrio que o efeito pudesse tornar-se causa, que o esprito social - que deve ser a obra da instituio - presidisse prpria instituio, e que os homens fossem antes das leis o que deveriam tornar-se depois delas. Desse modo, pois, o Legislador, no podendo empregar nem a fora nem o raciocnio, recorre necessariamente a uma autoridade de outra ordem, que possa conduzir sem violncia e persuadir sem convencer. Eis o que, em todos os tempos, forou os pais das naes a recorrerem interveno do cu e a honrar nos deuses sua prpria sabedoria, a fim de que os povos, submetidos s leis do Estado como s da natureza e reconhecendo os mesmos poderes na formao do homem e na da Cidade, obedecessem com liberdade e se curvassem docilmente ao jugo da felicidade pblica. Essa razo- sublime, que escapa ao alcance dos homens vulgares, aquela cujas decises o Legislador pe na boca dos imortais, para guiar pela autoridade divina os que a prudncia humana no poderia abalar. No todo homem, porm, que pode fazer os deuses falarem, nem ser acreditado quando se apresenta como seu intrprete. A grande alma do Legislador o verdadeiro milagre que dever autenticar sua misso. Qualquer homem pode gravar tbuas de pedra, comprar um orculo, fingir um comrcio secreto com qualquer divindade, adestrar um pssaro para lhe falar na orelha, ou encontrar outros meios grosseiros de impor-se ao povo. Aquele que s souber isso, poder at reunir casualmente um grupo de insensatos, mas jamais fundar um imprio, e sua estranha obra logo perecer consigo. Prestgios vos tecem um liame passageiro; s a sabedoria o torna duradouro. A lei judaica, sempre subsistente, e a do filho de Ismael, lei que h dez sculos rege a metade do mundo, indicam ainda hoje os grandes homens que a ditaram e, enquanto a orgulhosa filosofia ou o cego esprito faccioso no veem neles mais do que impostores de sorte, o verdadeiro poltico admira nas suas Instituies esse grande e poderoso gnio que preside os estabelecimentos duradouros. No se deve concluir, de tudo isso, como Warburton, que a poltica e a religio tm, entre ns, um objeto comum, mas sim que, na origem das naes, uma serve de instrumento outra. CAPTULO VIII Do povo Assim como, antes de erguer um grande edifcio, o arquiteto observa e sonda o solo para verificar se sustentar o peso da construo, o instituidor sbio no comea por redigir leis boas em si mesmas, mas antes examina se o povo a que se destinam mostra-se apto a receb-Las. Por esse motivo Plato recusou dar leis aos rcades e aos cirnios, pois sabia serem ricos esses dois povos e no poderem admitir a igualdade; por isso, tambm houve em Creta boas leis e homens ruins, pois Minos havia simplesmente disciplinado um povo cheio de vcios. Brilharam na terra inmeras naes que jamais poderiam viver sob leis boas e mesmo aquelas que o poderiam durante toda a sua existncia no dispuseram, para tanto, seno de um perodo muito curto. A maioria dos povos, como dos homens, s so dceis na juventude; envelhecendo, tornam-se incorrigveis. Desde que se estabelecem os costumes e se enrazam os preconceitos, constitui empresa perigosa e v querer reform-los. O povo nem sequer admite que se toque em seus males para destru-los, como aqueles doentes, tolos e sem coragem, que tremem em presena do mdico. Isso no significa que, a exemplo de algumas doenas que transtornam a cabea dos homens e lhes arrancam a recordao do passado, no haja certas vezes, no decurso da vida dos Estados, pocas violentas nas quais as revolues ocasionam nos povos o que algumas crises determinam nos indivduos, fazendo com que o horror do passado substitua o esquecimento - o Estado, abrasado por guerras civis, por assim dizer renasce das cinzas e retoma o vigor da juventude, escapando aos braos da morte. Assim aconteceu em Esparta ao tempo de Licurgo, em Roma depois dos Tarqunios e, entre ns, na Holanda e na Sua aps a expulso dos tiranos. Tais acontecimentos, no entanto, so raros; formam excees cuja razo se encontra sempre na constituio especial do Estado excetuado. No poderiam sequer acontecer por duas vezes no seio do mesmo povo, porquanto ele pode tornar-se livre quando apenas brbaro, mas j no o poder quando se esgotou o expediente civil. Neste caso, as perturbaes podem destru-lo sem que as revolues alcancem restabelec-lo; desde que seus grilhes se quebrem, ele tomba desfeito e no existe mais. Da por diante, necessita de um senhor, no de um libertador. Povos livres, lembrai-vos sempre desta mxima: "Pode-se adquirir a liberdade, mas nunca recuper-la. A juventude no a infncia. H para as naes, como para os homens, uma poca de juventude ou, se quiserem, de maturidade, pela qual preciso aguardar antes de submet-los - naes e homens - a leis; a maturidade de um povo nem sempre, porm, facilmente reconhecvel e, caso seja antecipada, pe-se a obra a perder. Certo povo j ao nascer disciplinvel, outro no o seno ao fim de dez sculos. Os russos jamais sero verdadeiramente policiados, porque o foram cedo demais. Pedro tinha o gnio imitativo; no possua o verdadeiro gnio, aquele que cria, que do nada tira tudo. Algumas das coisas que empreendeu eram boas, a maioria delas, inconvenientes. Reconheceu que seu povo era brbaro, mas no que ainda no amadurecera para a disciplina. Quis civiliz-lo, quando se impunha somente aguerri-lo, Desejou, sobretudo, fazer alemes e ingleses, quando devia comear por formar russos; impediu seus sditos de jamais se tornarem o que poderiam ser ao persuadi-los de que eram o que no so. Desse modo, um preceptor francs forma seu aluno para brilhar por um momento na infncia e, depois, nunca mais ser nada. O imprio da Rssia querer subjugar a Europa e acabar ele mesmo subjugado. Os trtaros, seus sditos ou vizinhos, tornar-se-o seus e nossos senhores: tal revoluo parece-me infalvel. Todos os reis da Europa trabalham concertadamente para aceler-la. CAPTULO IX Continuao Assim como a natureza deu limites estatura de um homem bem conformado, alm dos quais produz gigantes ou anes, do mesmo modo existem, relativamente melhor constituio de um Estado, limites da possvel extenso, a fim de que no seja demasiado grande para ser bem governado, nem muito pequeno para manter-se por si mesmo. Em todo o corpo poltico h um mximo de fora que no se deve ultrapassar e do qual o Estado frequentemente se afasta por muito crescer. Quanto mais se estende o liame social, tanto mais se afrouxa, e em geral um Estado pequeno proporcionalmente mais forte do que um grande. Mil razes demonstram essa mxima. Em primeiro lugar, a administrao torna-se mais difcil nas grandes distncias, como um peso se torna mais pesado na ponta de uma alavanca mais longa. Torna-se tambm mais onerosa na medida em que se multiplicam seus graus, pois, primeiro, cada cidade tem a sua administrao, que o povo paga; cada distrito, a sua, tambm paga pelo povo; depois, cada provncia; e ainda, os grandes governos, as satrapias, os vice-reinos - que preciso pagar cada vez mais caro na medida em que se sobe, e sempre custa do povo infeliz -; finalmente, encontramos a administrao suprema que tudo esmaga. Tantas sobrecargas esgotam continuamente os sditos. Longe de serem melhor governados por todas essas ordens diferentes, o so muito menos do que se houvesse uma s acima deles. No entanto, mal restam recursos para os casos extraordinrios e, quando se tem de recorrer a eles, o Estado est sempre borda da runa. Isso no tudo: no somente o governo tem menos fora e presteza para fazer observar as leis, impedir as vexaes, mitigar os abusos, prevenir as empresas sediciosas que possam surgir nos lugares afastados, como ainda o povo tem menor afeio pelos chefes que nunca v, pela ptria que a seus olhos como o mundo, e pelos seus concidados cuja maioria lhe estranha. As mesmas leis no podem convir a tantas provncias diferentes, que tm costumes diversos, vivem em climas opostos e no podem submeter-se mesma forma de governo. Leis diferentes s suscitam perturbaes e confuso entre povos que, vivendo sob os mesmos chefes e em contnua comunicao, frequentando-se ou casando-se uns com os outros, nunca sabem se seu patrimnio verdadeiramente lhes pertence. OS talentos ficam ofuscados, as virtudes ignoradas, os vcios impunes, nessa multido de homens desconhecidos uns dos outros, que a sede da administrao suprema rene num mesmo lugar. Os chefes, perdidos no trabalho, nada veem com seus prprios olhos e os delegados governam o Estado. Enfim, as medidas que se precisam tomar para manter autoridade geral, qual tantos funcionrios distantes querem se subtrair ou enganar, absorvem todos os cuidados pblicos. Nada mais deles resta para a felicidade do povo, seno apenas um pouco para sua defesa em caso de necessidade. Desse modo, um corpo demasiadamente grande por sua constituio se enfraquece e perece esmagado sob seu prprio peso. Por outro lado, o Estado deve dar a si mesmo certa base para ter solidez, para resistir aos reveses, que no deixar de experimentar, e aos esforos a que estar obrigado para sustentar-se, pois todos os povos tm uma espcie de fora centrfuga pela qual agem continuamente uns contra os outros e tendem a crescer a expensas de seus vizinhos, como os turbilhes de Descartes. Eis como os fracos arriscam a ser em breve devorados e nenhum poder de forma alguma conservar-se seno se colocando, juntamente com todos, numa espcie de equilbrio que torna mais ou menos igual a compreenso em todos os pontos. V-se, por a, que h razes para expandir-se e razes para contrair-se. No dos menores talentos do poltico encontrar, entre umas e outras, a proporo mais vantajosa para a conservao do Estado. Pode-se, em geral, dizer que as primeiras, sendo somente exteriores e relativas, devem ser subordinadas s outras, que so internas e absolutas. Uma constituio sbia e forte a primeira coisa que se precisa alcanar e deve-se antes contar com o vigor que nasce de um bom governo, do que com os recursos que um grande territrio prodigaliza. Alm disso, j se viram Estados constitudos de tal forma que a necessidade das conquistas fazia parte de sua prpria constituio e que, para se manterem, se encontraram forados a crescer incessantemente. Talvez muito se felicitassem por to feliz necessidade, que lhes mostraria, contudo, com o trmino de sua grandeza, o momento inevitvel da runa. CAPTULO X Continuao Pode-se medir um corpo poltico de dois modos, a saber: pela extenso do territrio e pelo nmero de habitantes. H, entre uma e outra medida, uma relao conveniente para dar ao Estado sua verdadeira grandeza. So os homens que fazem o Estado e a terra que alimenta os homens: a relao estar, pois, em bastar a terra para a manuteno dos habitantes e em haver tantos habitantes quantos possa a terra alimentar. Nessa proporo se encontra o mximo de fora de uma dada poro de povo, pois que, se h terra em demasia, a guarda onerosa, a cultura insuficiente, o produto suprfluo - eis a causa prxima de guerras defensivas; se no suficiente, o Estado v-se merc dos vizinhos para sua manuteno - eis a causa prxima das guerras ofensivas. Todo povo que no tem, por sua posio, outra alternativa seno o comrcio ou a guerra, fraco por natureza; depende dos vizinhos e depende dos acontecimentos, s ter existncia incerta e curta Subjuga e mudar a situao, ou subjugado e nada ser. S pode conservar-se livre fora de pequenez de grandeza. No possvel apresentar em cmputo uma relao fixa entre a extenso da terra e o nmero de bitantes que se bastem reciprocamente, por causa tanto das diferenas que se encontram na qualidade do solo, no seu grau de fertilidade, na natureza de suas produes, na influncia dos climas, quanto pelas que se observam no temperamento dos homens que as habitam, alguns dos quais consomem pouco num pas frtil, e outros, muito num solo ingrato. Precisa-se levar em considerao, ainda, a menor ou maior fecundidade das mulheres, o que possa ter o pas de mais ou menos favorvel populao, a poro com que pode o Legislador esperar concorrer com seus estabelecimentos, de modo que no deve basear seu julgamento naquilo que v, mas no que prev, sem deter-se tanto no estado atual da populao quanto naquele a que deve chegar naturalmente. Por fim, h inmeras ocasies em que os acidentes especiais do lugar exigem ou permitem que se abarque mais terreno do que parece necessrio. Assim, expandir-se- bastante numa regio montanhosa, onde as produes naturais, como as florestas e os pastos, exigem menos trabalho; onde a experincia mostra que as mulheres so mais fecundas do que nas plancies, e onde vastas terras inclinadas no oferecem seno uma pequena base horizontal, a nica com que se conta para a vegetao. Pode-se, pelo contrrio, comprimir-se borda do mar, at em rochedos e areias quase estreis, porque a a pesca pode substituir em grande parte os produtos da terra e permanecerem os homens mais unidos para repelir os piratas, tendo-se, alis, mais facilidades para aliviar o pas dos habitantes que o sobrecarregam, encaminhando-os para as colnias. A tais condies para formar um povo, deve-se acrescentar uma, que no pode suprir a qualquer das demais, mas sem a qual todas so inteis - o gozo da abundncia e da paz, pois o momento em que se forma um Estado, como aquele em que se forma um batalho, o instante em que o corpo se mostra menos capaz de resistncia e mais fcil de ser destrudo. Resistir-se- melhor numa desordem absoluta do que num momento de fermentao, no qual cada um se preocupa com sua dignidade, e ningum com o perigo. O Estado subverter-se- inevitavelmente se sobrevier a guerra, a fome ou a sedio. Na verdade, h muitos governos estabelecidos durante essas tempestades, mas, ento, so esses mesmos governos que destroem o Estado. Os usurpadores suscitam ou escolhem essas pocas de perturbao para conseguir ditar, graas ao temor pblico, leis destrutivas que o povo jamais adotaria com sangue frio. A escolha do momento da instituio representa um dos caracteres mais seguros pelos quais se pode distinguir a obra do Legislador da de um tirano. Qual o povo, pois, que est apto legislao? Aquele que, encontrando-se j ligado por qualquer lao de origem, interesse ou conveno, ainda no sofreu o verdadeiro jugo das leis; que no tem nem costumes nem supersties muito arraigadas; que no teme ser arrasado por uma invaso sbita; que, sem imiscuir-se nas brigas entre seus vizinhos, pode resistir sozinho a cada um deles, ou ligar-se a um para expulsar o outro; aquele de que cada membro pode ser conhecido por todos e no qual no se est de modo algum forado a sobrecarregar um homem com um fardo mais pesado do que possa suportar; o que pode viver sem os outros povos e que qualquer outro povo pode dispensar; o que no nem rico nem pobre e pode bastar-se a si mesmo; enfim, aquele que une, consistncia de um povo antigo, a docilidade de um povo novo. A obra da legislao torna-se difcil menos pelo que preciso estabelecer do que pelo que preciso destruir, e o sucesso mostra-se to raro dada a impossibilidade de encontrar a simplicidade da natureza associada s necessidades da sociedade. verdade que todas essas condies dificilmente se encontram reunidas. Eis por que tambm vemos poucos Estados bem constitudos. Ainda existe na Europa uma regio apta legislao: a ilha da Crsega. O valor e a constncia com que esse bravo povo reconquistou e defende a liberdade bem mereceriam que algum homem sbio lhe ensinasse a conserv-la. Tenho o pressentimento de que, um dia, essa ilhazinha espantar a Europa. CAPTULO XI Dos vrios sistemas de legislao Se quisermos saber no que consiste, precisamente, o maior de todos os bens, qual deva ser a finalidade de todos os sistemas de legislao, verificar-se- que se resume nestes dois objetivos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque qualquer dependncia particular corresponde a outro tanto de fora tomada ao corpo do Estado, e a igualdade, porque a liberdade no pode subsistir sem ela. J expliquei o que a liberdade civil: quanto igualdade, no se deve entender por essa palavra que sejam absolutamente os mesmos os graus de poder e de riqueza, mas, quanto ao poder, que esteja distanciado de qualquer violncia e nunca se exera seno em virtude do posto e das leis e, quanto riqueza, que nenhum cidado seja suficientemente opulento para poder comprar outro e no haja nenhum to pobre que se veja constrangido a vender-se; o que supe, nos grandes, moderao de bens e de crdito e, nos pequenos, moderao da avareza e da cupidez. Tal igualdade, dizem, uma quimera do esprito especulativo, que no pode existir na prtica. Mas, se o abuso inevitvel, segue-se que no precisemos pelo menos regulament-lo? Precisamente por sempre tender a fora das coisas a destruir a igualdade, a fora da legislao deve sempre tender a mant-la. Esses objetivos gerais de todas as boas instituies devem, porm, ser modificados em cada pas pelas relaes oriundas tanto da situao local quanto do carter dos habitantes. Sobre tais relaes precisa-se conceder a cada povo um sistema particular de instituio, que seja o melhor, no talvez em si mesmo, mas para o Estado a que se destina. Se, por exemplo, o solo ingrato e estril ou a regio muito acanhada para os habitantes, voltai-vos para a indstria e as artes, cuja produo trocareis pelas mercadorias que vos faltam. No caso contrrio - ocupais plancies ricas e colinas frteis? Numa boa terra faltam homens? -, dedicai todo o vosso cuidado agricultura, que multiplica os homens, e expulsai as artes, que s contribuiro para acabar de despovoar a regio reunindo em alguns pontos do territrio os poucos habitantes existentes. Ocupais praias extensas e cmodas? - cobri o mar com navios, cultivai o comrcio e a navegao; tereis uma existncia brilhante e curta. Se o mar s banhar em vossas costas rochedos quase inacessveis, permanecei brbaros e ictifagos: vivereis mais tranquilos, talvez melhores, e seguramente mais felizes. Em uma palavra, alm das mximas comuns a todos, cada povo rene em si alguma coisa que o dirige de modo todo especial e torna sua legislao adequada somente a si mesmo. Assim, outrora os hebreus e, mais recentemente, os rabes tiveram a religio como objetivo principal; os atenienses, as letras; Cartago e Tiro, o comrcio; Rodes, a marinha; Esparta, a guerra; e Roma, a virtude. O autor de Do Esprito das Leis em inmeros exemplos mostrou por que meio o Legislador orienta a instituio para cada um desses objetivos. O que torna a constituio de um Estado verdadeiramente slida e duradoura que sejam as convenincias de tal modo observadas, que as relaes naturais e as leis permaneam sempre de acordo nos mesmos pontos, e que estas s faam, por assim dizer, assegurar, acompanhar e retificar aquelas. Mas, se o Legislador, enganando-se em seu objetivo, toma um princpio diverso daquele que nasce da natureza das coisas; quando um tende servido e a outra liberdade, um s riquezas e a outra populao, um paz e a out s conquistas - ver-se-o as leis enfraquecerem insensivelmente, a constituio alterar-se. E o Estado no cessar de agitar-se at ser destrudo ou modificado, e a natureza invencvel retomar seu imprio. CAPTULO XII Diviso das leis A fim de ordenar o todo ou para dar a melhor forma possvel coisa pblica, h vrias relaes a considerar. Primeiro, a ao do corpo inteiro agindo sobre si mesmo, isto , a relao do todo com o todo, ou do soberano com o Estado; como logo veremos, tal relao compe-se da relao dos termos intermedirios. As leis que regulamentam essa relao recebem o nome de leis polticas e chamam-se tambm leis fundamentais, no sem alguma razo no caso de serem sbias, pois, se existe em cada Estado somente uma boa maneira de orden-lo, o povo que a encontrou deve conserv-la; se a ordem estabelecida , porm, m, por que se tomariam por fundamentais leis que a impedem de ser boa? Alis, seja qual for a situao, o povo sempre senhor de mudar suas leis, mesmo as melhores, pois, se for de seu agrado fazer o mal a si mesmo, quem ter o direito de impedi-lo? A segunda relao a dos membros entre si ou com o corpo inteiro, e essa relao dever ser, no primeiro caso, to pequena, e, no segundo, to grande quanto possvel, de modo que cada cidado se encontre em perfeita independncia de todos os outros e em uma excessiva dependncia da polis - o que se consegue sempre graas aos mesmos meios, pois s a fora do Estado faz a liberdade de seus membros. desta segunda relao que nascem as leis civis. Pode-se considerar um terceiro tipo de relao entre o homem e a Lei, a saber, a da desobedincia pena, dando origem ao estabelecimento das leis criminais que, no fundo, instituem menos uma espcie particular de leis do que a sano de todas as outras. A essas trs espcies de leis, junta-se uma quarta, a mais importante de todas, que no se grava nem no mrmore, nem no bronze, mas nos coraes da cidados; que faz a verdadeira constituio do Estado; que todos os dias ganha novas foras; que, quando as outras leis envelhecem ou se extinguem, as reanima ou as supre, conserva um povo no esprito de sua instituio e insensivelmente substitui a fora da autoridade pela do hbito. Refiro-me aos usos e costumes e, sobretudo, opinio, essa parte desconhecida por nossos polticos, mas da qual depende o sucesso de todas as outras; parte de que se ocupa em segredo o grande Legislador, enquanto parece limitar-se a regulamentos particulares que no so seno o arco da abbada, da qual os costumes, mais lentos para nascerem, formam por fim a chave indestrutvel. Entre essas vrias classes, as leis polticas, que constituem a forma do Governo, so as nicas ligadas ao meu assunto. LIVRO TERCEIRO Antes de falar das vrias formas de Governo, procuremos firmar o sentido preciso dessa palavra, que ainda no foi bem explicado. CAPTULO I Do governo em geral Advirto ao leitor que este captulo deve ser lido pausadamente e que no conheo a arte de ser claro para quem no quer ser atento. Toda ao livre tem duas causas que concorrem em sua produo: uma moral, que a vontade que determina o ato, e a outra fsica, que o poder que a executa. Quando me dirijo a um objeto, preciso, primeiro, que eu queira ir at ele e, em segundo lugar, que meus ps me levem at l. Queira um paraltico correr e no o queira um homem gil, ambos ficaro no mesmo lugar. O corpo poltico tem os mesmos mveis. Distinguem-se nele a fora e a vontade, esta sob o nome de poder legislativo e aquela, de poder executivo. Nada nele se faz, nem se deve fazer, sem o seu concurso. Vimos que o poder legislativo pertence ao povo e no pode pertencer seno a ele. Fcil ver, pelo contrrio, baseando-se nos princpios acima estabelecidos, que o poder executivo no pode pertencer generalidade como legisladora ou soberana, porque esse poder s consiste em atos particulares que no so absolutamente da alada da Lei, nem consequentemente da do soberano, cujos atos todos s podem ser leis. Necessita, pois, a fora pblica de um agente prprio que a rena e ponha em ao segundo as diretrizes da vontade geral, que sirva comunicao entre o Estado e o soberano, que de qualquer modo determine na pessoa pblica o que no homem faz a unio entre a alma e o corpo. Eis qual , no Estado, a razo do Governo, confundida erroneamente com o soberano, do qual no seno o ministro. Que ser, pois, o Governo? um corpo intermedirio estabelecido entre os sditos e o soberano para sua mtua correspondncia, encarregado da execuo das leis e da manuteno da liberdade, tanto civil como poltica. Os membros desse corpo chamam-se magistrados ou reis, isto , governantes, e o corpo em seu todo recebe o nome de prncipe. Tm muita razo aqueles que pretendem no ser um contrato, em absoluto, o ato pelo qual um povo se submete a chefes. Isto no passa, de modo algum, de uma comisso, de um emprego, no qual, como simples funcionrios do soberano, exercem em seu nome o poder de que ele os fez depositrios, e que pode limitar, modificar e retomar quando lhe aprouver. Sendo incompatvel com a natureza do corpo social, a alienao de tal direito contrria ao objetivo da associao. Chamo, pois, de Governo ou administrao suprema o exerccio legtimo do poder executivo, e de prncipe ou magistrado o homem ou o corpo encarregado dessa administrao. no Governo que se encontram as foras intermedirias, cujas relaes compem a relao do to com o todo, ou do soberano com o Estado. Pode-se representar esta ltima relao por aquela entre os extremos de uma proporo contnua, cuja mdia proporcional o Governo. O Governo recebe do soberano as ordens que d ao povo e, para que o Estado permanea em bom equilbrio, preciso que, tudo compensado, haja igualdade entre o produto ou o poder do Governo, tomado em si mesmo, e o produto ou a potncia dos cidados, que de um lado so soberanos e de outro, sditos. Alm disso, jamais se poderia alterar qualquer dos trs termos sem romper, de pronto, a proporo. Se o soberano quer governar ou se o magistrado quer fazer leis ou, ainda, se os sditos recusam-se a obedecer, a desordem toma o lugar da regra, a fora e a vontade no agem mais de acordo e o Estado, em dissoluo, cai assim no despotismo ou na anarquia. Enfim, como no h seno uma mdia proporcional para cada relao, no h maique um bom governo possvel para cada Estado. Como porm, inmeros acontecimentos podem mudar as relaes de um povo, no s diversos governos podem ser bons para diferentes povos, mas tambm para o mesmo povo em pocas diferentes. Pretendendo dar uma ideia das vrias relaes que podem reinar entre esses dois extremos, tomarei como exemplo o nmero do povo, por ser uma relao mais fcil de exprimir. Suponhamos que o Estado se componha de dez mil cidados. O soberano no pode ser considerado seno coletivamente e como um corpo; cada particular, porm, na qualidade de sdito, considerado como indivduo; assim, o soberano est para o sdito como dez mil esto para um, isto , cada membro do Estado tem por sua a dcima milsima parte da autoridade soberana, conquanto esteja inteiramente submetido a ele. Seja o povo composto de cem mil homens, e no muda a situao dos sditos, suportando cada um igualmente todo o imprio das leis, enquanto seu sufrgio, reduzido a um centsimo de milsimo, tem dez vezes menos influncia na redao delas. O sdito permanecendo sempre um, a relao com o soberano aumenta em razo do nmero de cidados. Conclui-se que, quanto mais o Estado aumenta, mais diminui a liberdade. Quando digo que a relao aumenta, quero afirmar que se distancia da igualdade. Eis como, quanto maior for a relao na acepo dos gemetras, tanto menor o ser na acepo comumNa primeira, a relao, considerada segundo a quantidade, mede-se pelo quociente e, na outra acepo, considerada segundo a identidade, estimada pela semelhana. Ora, quanto menos se relacionem as vontades particulares com a vontade geral, isto , os costumes com as leis, tanto mais dever a fora repressora aumentar. Conclui-se, pois, que o Governo, para ser bom, deve ser relativamente mais forte na medida em que o povo for mais numeroso. Por outro lado, o crescimento do Estado oferecendo aos depositrios da autoridade pblica mais tentaes e meios de abusar de seu poder, mais fora deve ter o Governo para conter o povo e mais fora dever ter o soberano, de sua parte, para conter o Governo. No me refiro aqui a uma fora absoluta, mas fora relativa das vrias partes do Estado. Segue-se, dessa dupla relao, que a proporo contnua entre o soberano, o prncipe e o povo no absolutamente uma ideia arbitrria, mas uma consequncia necessria da natureza do corpo poltico. Segue-se, ainda, que um dos extremos, a saber, o povo, enquanto sdito, sendo fixo e representado pela unidade, todas as vezes que aumentar ou diminuir a razo dupla, tambm a razo simples aumentar ou diminuir, modifi