Entre os seus e os outros: Horizonte, Mobilidade e Cosmopolítica Guarani
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8/9/2019 Entre os seus e os outros: Horizonte, Mobilidade e Cosmopoltica Guarani
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
ENTRE OS SEUS E OS OUTROSHORIZONTE, MOBILIDADE E COSMOPOLTICA GUARANI
Luiz Gustavo S. Pradella
Porto Alegre
2009Porto Alegre
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2009
ENTRE OS SEUS E OS OUTROSHORIZONTE, MOBILIDADE E COSMOPOLTICA GUARANI
Dissertao apresentada para a conclusodo curso de Ps-Graduao emAntropologia Social, na UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul como
requisito para a obteno do ttulo demestre em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Sergio Baptista da Silva
Luiz Gustavo Souza Pradella
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LUIZ GUSTAVO SOUZA PRADELLA
ENTRE OS SEUS E OS OUTROSHORIZONTE, MOBILIDADE E COSMOPOLTICA GUARANI
Dissertao apresentada para a conclusodo curso de Ps-Graduao emAntropologia Social, na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul comorequisito para a obteno do ttulo demestre em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Sergio Baptista da Silva
COMISSO EXAMINADORA
_______________________________
Prof. Dr. Bernardo Lewgoy
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
_______________________________
Prof. Dr. Jos Carlos dos Anjos
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
_______________________________
Prof. Dr. Jos Otvio Catafesto
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, maio de 2009
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El horizonte que cada amanecer vemos adelante,No es el mismo que vemos cada tarde detrs?Cuantas estrellas vieron desfilar nuestros ojos
Al ras del agua oscura...No ha sido cada aurora en su esplendorEl reflejo de nuestra gran nostalgia?Se marcha pese a todo, se marcha no es verdad?
Nazin Hikmet, El Viaje
...o caminho uma montanha, uma descida,depois um terreno plano depois uma subida,depois outra descida...
Vher Poty Bentes
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NDICE GERAL
AGRADECIMENTOS..........................................................................................................................................6
RESUMO ......................................................... ............................................................ .......................................... 7
CONVENES.....................................................................................................................................................9
NDICE DE IMAGENS......................................................................................................................................10
PREMBULO.....................................................................................................................................................11
PRIMEIROS PASSOS ............................................................................................................................................11
INTRODUO ......................................................... ........................................................... ............................... 13
SOBRE O MTODO ..............................................................................................................................................16 ORGANIZAO DOS CAPTULOS.........................................................................................................................24
CAPTULO I PROJEO, ESPAO E DESENCONTRO................................................... ..................... 26
1.1.CARTOGRAFIA DE SI SOBRE O OUTRO:.........................................................................................................26 1.2.PROJEES: ...................................................... ........................................................... ............................... 301.3.DEMARCAO DO OUTRO COMO EXERCCIO DE FORA:.............................................................................34
CAPTULO II GUARANI...............................................................................................................................39
2.1.UM POVO CONTINENTAL:............................................................................................................................39 2.2.ENTRE BRASILEIROS: .................................................. ........................................................... ..................... 412.3.CONTEXTO ETNOGRFICO: ................................................... ........................................................... ........... 46
2.4.INTERLOCUES
:........................................................................................................................................50 2.5.O GUAT NA BIBLIOGRAFIA:.......................................................................................................................59 CAPTULO III A PESSOA, O COSMOS E O CAMINHO.........................................................................68
3.1.A PESSOA DIVDUA: .................................................... ........................................................... ..................... 683.2.CRIANDO CORPOS QUE CAMINHAM:............................................................................................................76 3.3. MOVENDO-SE PELO COSMOS:.....................................................................................................................82
CAPTULO IV - A TRAJETRIA POVOADA POR OUTROS...................................................................94
4.1.NA TRILHA DAS DIVINDADES:.....................................................................................................................94 4.2.ENTRE OS JURU E OUTROS OBSTCULOS:................................................................................................107 4.3.ALTERIDADE, POTENCIAL E APROXIMAO:.............................................................................................122
CAPTULO V ESPAOS DE EXCLUSO, INCORPORAO E IMAGINATIVIDADE..................131
5.1.ESPAOS DE EXCLUSO E INCORPORAO: ........................................................ ...................................... 1315.2.POSSIBILIDADES IMAGINATIVAS: .................................................... .......................................................... 141
CONSIDERAES FINAIS............................................................................................................................149
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................................................................154
ANEXOS .......................................................... ............................................................ ...................................... 162
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a todos os professores do curso Ps Graduao em Antropologia Social,
especialmente ao meu orientador Sergio Baptista da Silva, por todos os ensinamentos.
Ao CNPq/CAPES e Universidade Federal do Rio Grande do Sul pelos suportes
pedaggicos e materiais indispensveis.
Aos amigos e colegas Airan Milititsky Aguiar, Amanda Kizzy Nicolle Schimidt dos
Santos, Ana Popp, Andr Sarmento, Bin Mauir Zwetsch, Bruno Nascimento, Daniel
Francisco de Bem, Diego Billie Eltz, Diego Soca, Eduardo Martinelli, Guilherme Xun
Heurich, Joo Maurcio KarumbFarias, Jos Rodrigo Saldanha, Jos Vicente Mertz, Juliana
Matosinho de Oliveira, Leonardo Vigolo, Luiz Felipe Rosado, Luiz Fernando Karaj
Fagundes, Marcio Wolk, Mrcio de Azeredo Pereira, Maria Paula Prates, Mnica Arnt,
Patrcia Carvalho Rosa, Paulo Ricardo Capra, Rebeca Hennermann Vergara, Rita Rauber,
Rita Lewkowicz pela inspirao; especialmente para aqueles que, dentre estes, se fizeram
presentes, auxiliando das mais diversas formas, das trocas de idias iniciais s revises. Sem
sua ajuda esta dissertao no seria possvel.
Ana Marcela pelo companheirismo, carinho e pacincia.
minha famlia, principalmente aos meus avs, pelo apoio e compreenso desde os
primeiros passos.
Sou grato, sobretudo aos Guarani nominalmente a Alexandre e Pauliciana Acosta,
Alcindo Vher, Florentina e Marcolino Bentes, Anncio Oliveira, Santiago Franco, Drio
Tup Moreira, Mario Kara Moreira pelas lies passo-a-passo de valorosa sabedoria e pelagrandiosa trajetria e simplicidade. Especialmente ao professor Vher Poty Bentes sem o
qual esta etnografia no existiria.
Ha'evet, xeirkuery. Epyt por.
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RESUMO
Com base em cinco anos de etnografia junto aos grupos guarani, no estado brasileiro do Rio
Grande do Sul e em dilogo com a bibliografia etnolgica, esta dissertao versa sobre a
mobilidade entre os coletivos guarani. Metodologicamente, a pesquisa na qual ela se baseia
interage com a proposta de uma antropologia de rotas, em detrimento ao localismo de uma
antropologia de campo. Com o objetivo de compreender os diferentes aspectos do caminhar,
so adotados distintos prismas tericos sob os quais este fenmeno analisado. Imbricada na
cosmopoltica destes grupos, a mobilidade encontra-se intrinsecamente relacionada s
aproximaes e afastamentos nas relaes com as alteridades, sejam estas humanas ou extra-
humanas. A mobilidade possui tambm grande peso nas concepes e cuidados em torno da
pessoa divdua que caminha e, igualmente, se constitui na busca pelo estado de perfeio
(aguyj) e/ou pela terra sem males ( yvy maray). Encontra-se, portanto, estreitamente
relacionada ao xamanismo, em seus mais diversos aspectos, permeia o modo de ser e a viso
de mundo destas coletividades.
Palavras-chave: modo de ser guarani, mobilidade, cosmopoltica, xamanismo,territorialidade, espao, imaginatividade.
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ABSTRACT
Based on five years of ethnography with the guarani groups in the Brazilian state of Rio
Grande do Sul and in dialogue with the ethnological literature, this dissertation is about theguaranis mobility. Methodologically, the research interacts with the proposal originated in
an routes anthropology rather than a fields anthropology. Aiming to understand the different
aspects of walking, we adopt different theoretical prisms under which this phenomenon is
analyzed. Imbricated in these groups cosmopolitics, the mobility is intrinsically related to the
removals and approaches in relations with otherness, whether human or extra-human.
Mobility also has great influence on construction and care of the dividuals person in
movement, and also is the quest for the condition of perfection (aguyj) and/or the land
without evil (yvy maray). It is therefore closely related to shamanism, in its several aspects,
permeates the way of being and world view of these communities.
Keyword: guaranis way of being, mobility, comopolitic, shamanism, territoriality, space,imaginativity.
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CONVENES
A grafia adotada nesta dissertao a mesma atualmente utilizada por professores
guarani mby no leste do Rio Grande do Sul, podendo diferir das formas grficas corriqueirasadotadas em outras pocas e contextos. Busco apresentar os termos micos sempre que
possvel no corpo do texto, sempre grafados em itlico ou entre parnteses, acompanhando
sua traduo. Nenhuma das palavras no idioma guarani ter qualquer classe de flexo (gnero
ou nmero) a no ser quando constarem nos relatos ou em citaes bibliogrficas. No caso de
citaes, por fidelidade s fontes documentadas opto por preservar os termos guarani como
foram grafados. As citaes em outros idiomas que no o portugus sero traduzidas e
acompanhas em sua verso original em forma de notas de rodap. As vogais anasaladas esto
grafadas com til ou trema. As imagens componentes foram separadas em dois grupos: aquelas
que esto diretamente relacionadas ao texto e outras que possuem um carter secundrio. O
primeiro grupo de imagens apresenta-se continuamente distribudo pelos captulos e
subcaptulos enquanto o segundo est disposto ao final desta dissertao como anexos.
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NDICE DE IMAGENSImagem 1 - Mapa Mundi criado em 1500 pelo navegador e cartgrafo Juan De La Cosa a
pedido dos Reis de Espanha, com base em todos os mapas conhecidos pelos navegadores at
ento. Fonte: Wikimedia Commons. (acessado em 10/01/2009) ............................................27Imagem 2 - Mapa da Amrica Meridional de 1558 de Diogo Homem. Fonte: WikimediaCommons. (acessado em 10/01/2009) ......................................................................................29
Imagem 3 Panorama aproximado da presena guarani na atualidade. Imagem de satliteobtida atravs do software Google Earth. ...............................................................................39
Imagem 4 Imagem de satlite das teko do entorno da Bacia Hidrogrfica do Lago Guabae parte da Bacia Hidrogrfica da Laguna dos Patos. Imagens obtidas atravs do softwareGoogle Earth. ...........................................................................................................................47
Imagem 5 Drio Tup dana o Tangar com Arlindo Nhmnd em frente casa
cerimonial. Maio de 2007. Imagens de Luiz Fernando Fagundes e Mnica Arnt. ..................52Imagem 1 - Santiago Franco durante o 3 Encontro Continental Guarani em So Gabriel das
Misses, Fevereiro de 2009. Imagem cedida por Vher Poty, autoria desconhecida.............53
Imagem 7 - Kara Marcolino e Kunh Kara Florentina na teko Jataty, Janeiro de 2009.Imagens de Vher Poty.............................................................................................................55
Imagem 8 - Vher Poty com seus avs, kara Marcolino e kunh kara Florentina durante amudana destes da T.I. Salto do Jacu para a T.I. Cantagalo, em novembro de 2007. Imagemde autoria prpria. ...................................................................................................................56
Imagem 9 O kara Alexandre Acosta em trs momentos. No milharal junto a Drio Tup em
novembro de 2003 autoria prpria; sentado em meio mata em janeiro de 2005 autoriaprpria; e tomando kaa (mate) na casa de Vher Poty em maio de 2006 autoria de VherPoty. ..........................................................................................................................................58
Imagem 10 - Pararet caminha no amb construdo por seu pai Vher Poty. Setembro de2006. Imagem de Luiz Fernando Caldas Fagundes.................................................................79
Imagem 11 Alegoria dos Planos do Cosmos Guarani. Imagem de autoria prpria. ............83
Imagem 12 -rvore de desdobramento da palavra. Imagem de autoria prpria. ..................98
NDICE DE ANEXOSAnexo 1 - Outdoors da campanha antiindigenista promovida pela empresa Aracruz Celulosee empresas associadas no Esprito Santo. Imagens de autoria do Centro de Mdia
Independente de Vitria/ES. (acessado em outubro de 2008)............................................... 162
Anexo 2 -Imagens da priso do lder mby guarani Santiago Franco e as mulheres de sua famlia durante o recolhimento de seus pertences, em julho de 2008 na estrada do Conde,municpio de Eldorado do Sul/RS. Imagens de autoria de Guilherme Orlandini Heurich... 163
Anexo 3 - Tabela referente ao Tempo de permanncia (moradia) guarani e kaingang nomunicpio de Porto Alegre. Originalmente publicada no Relatrio do Estudo quantitativo equalitativo dos Coletivos Indgenas em Porto Alegre e Regies Limtrofes (SILVA et al, 2008
p.78)....................................................................................................................................... 164
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PREMBULO
PRIMEIROS PASSOSEspera-se de toda pessoa que tem como intento empreender uma longa jornada, assim
como daquele que inicia um longo texto, certas consideraes e definies prvias. Do grau
de conhecimento mnimo da rota a ser tomada, s condies fsicas do viajante, com quem
este escolhe viajar, e o que preciso levar consigo fatores que poderiam comprometer todo
o empreendimento. espervel tambm ao menos idealmente que aquele que inicia uma
viagem tenha claro para si os riscos decorrentes em suas escolhas, mas tambm as motivaes
que o conduz rumo a um horizonte que lhe inspira empreender passo a passo o caminhar.
No entanto, nem todos os caminhos so retos, e nem todas as escritas lineares. Certas
definies no acontecem como o previamente planejado. Cada trajetria possui sua cota de
fatores inesperados e acidentes, atalhos, mas tambm rumos sem sada, diante dos quais o
viajante pode ser levado a reavaliar definies anteriores, antes to certas e resolutas. O
caminhante nem sempre possui um horizonte claro; pode no ter em conta as situaes com as
quais se deparar. Tambm eventuais companhias de viagem podem tomar rumos divergentes
ao seu prprio rumo ou, pelo contrrio, reconhecendo a convergncia de rotas, viajantes quese encontram ao longo de suas jornadas podem optar por caminharem juntos.
O horizonte daqueles que empreendem jornadas a p passvel de ser afetado por
relevos de todo tipo que afetam cada um a seu modo, intenes, disposies e humores dos
viajantes. Certas trajetrias podem enveredar por montanhas em que o terreno pode dar
empreitada ares de escalada. Subidas em que o flego e a resistncia dos viajantes so
testados e, diante do desafio da subida, nem todos conseguem atingir o cume. Para aqueles
que por ventura o fazem, os pontos mais altos da montanha geralmente recompensam ospassos dolorosos com um horizonte ainda mais amplo.
Outras rotas saindo dos relevos planos podem levar a descidas sem grandes
dificuldades, qui em direo a vales ou outros lugares baixos onde a sombra de montes e
talvez de rvores, a ausncia de um horizonte percebvel, tem o poder de desafiar o
caminhante em suas certezas, seu autocontrole e talvez em sua perseverana. Cada rota
oferece sua cota de desafios que, por sua vez, incitam o caminhante a dois movimentos
contrrios, desistncia ou perseverana. No entanto, ainda assim ambos implicam emmovimento.
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Nos obstculos e desafios do caminho, aonde alguns enxergam limites outros vem
ultrapassagem. E aqui onde se encontram tambm as implicaes da diferena. Antes de ser
empreendida a jornada no existe por mais planejada que seja. Dos primeiros passos ao seu
desfecho, de seus limites s suas potencialidades, do ponto onde se encontra at a linha do
horizonte, conquanto ande e em seu andar enxergue sentido o viajante quem faz o caminho e
ao mesmo tempo se faz ele prprio no caminho, se hace camino al andar1.
Os Guarani caminham e ainda que tambm caminhemos, eles caminham de forma
distinta, inspirados por um horizonte diferente do nosso. Nossos passos no tm o mesmo
peso, como certa vez diria um de seus velhos, apesar do nosso mpeto de soerguer pedras e
deixar marcas duradouras no espao e no tempo. Os rastros deles esto por toda parte: sutis
como as pegadas na areia de uma mulher que no tempo mtico se fez divindade, recusam-se a
desvanecer, persistindo em seu ultrapassar.
Cada qual em seu rumo e a seu tempo, estamos sempre eles, ns e os outros a um
passo entre o encontro e a coliso.
1 Trecho dos versos do poeta espanhol Antonio Machado ...caminante no hay camino, se hace camino alandar...
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INTRODUO
Por que os guarani caminham? talvez desde a chegada dos primeiros europeusletrados a este que se convencionou chamar Novo Mundo esta questo tem sido registrada.
To atual quanto possvel, ela permanece ecoando no s nas reflexes dos indigenistas e
especialistas, mas tambm na mente dos tcnicos e funcionrios de instituies pblicas e
privadas relacionadas questo indgena.
Ao longo dos anos um sem nmero de possveis respostas foram sugeridas. Algumas
implicaram em caracterizaes dos Guarani como indgenas imperialistas sempre atrs de
novos territrios, outras, por sua vez, remetiam suposta e ontolgica escassez de recursos qual estavam condicionados (esta ltima verso que, durante um bom tempo tambm
justificaria a antropofagia). Outra remeteria ainda substituio transcendental nos termos de
um abandono do mundo na busca pelas terras imortais. Mas e se invertermos a questo? A
pergunta por que no caminhamos poderia ser respondida por uns poucos fatores? No
estaramos encadeando-nos atravs de determinismos? O que poderamos responder sobre
nossa mobilidade?
A resposta bvia (e tradicionalmente espervel) buscaria explicitar a dicotomia entre
sociedades sedentrias e sociedades nmades como diferena entre o nosso modo de ser
sedentrio e o modo de ser nmade destas populaes.
Esta, no entanto, no constitui uma boa via para a resposta quando notamos que as
categorias - nomadismo e sedentarismo foram cunhadas por meio da supresso de
outras tantas formas dissonantes de relao com o espao. Cada qual ao seu modo, as duas
so, portanto, resultantes de processos de homogeneizao e ocultamento das mais variadas
formas de mobilidade e ocupao, e relaes diferenciadas com os espaos em perodos de
tempo distintos. As diferentes coletividades guarani no se relacionam com o espao da
mesma forma que os grupos bedunos do Saara. Logo, no haveria sentido em ocultarmos esta
diferena, e faz-lo certamente comprometeria qualquer possibilidade de anlise.
Jeguat, ou somente guat, so os termos guarani que designam a ao de se mover
no espao, geralmente em referncia ao ato de caminhar, mas tambm se refere a
deslocamentos de outra ordem no xamanismo e na poltica. H de se ter em mente que, em se
tratando da interao entre grupos humanos e o espao, parece haver uma mirade de
concepes e formas de interao com marcos, paisagens e fronteiras. Cada uma destas
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formas, gerida em consonncia com conjuntos de referenciais simblicos especficos, se
relaciona a vises de mundo e noes de corpos e espao.
Livre de um sentido de erra ncia do vagar pelo vagar, e no to cristalizado em
homogeneidades ou dicotomias, o termo mobilidade apresenta-se como alternativa
categoria nmade. Dotada ainda de maior flexibilidade a idia de mobilidade abrange o
sentido de deslocamento, que no necessariamente faz oposio a permanncias peridicas,
caracterstica importante da forma como os Guarani se relacionam com o espao em seus
diversos aspectos.
Longe de ser uma via desconhecida, esta mobilidade foi objeto de inmeras anlises
co-empreendidas por etnlogos e outros especialistas, que a partir de perspectivas tericas
distintas, lanaram mo de interpretaes sobre estes deslocamentos, quer sejam atuais ou
histricos.
Os primeiros registros acerca da mobilidade guarani levam um tom de espanto e
reprovao. Durante o perodo colonial missionrios catlicos documentariam, a partir de sua
tica catequizadora, os deslocamentos de multides que inspiradas pelas palavras de xams
(que os estes padres chamavam de falsrios e feiticeiros), punham-se a caminhar em busca de
uma terra no tocada pela morte. Com o passar dos sculos no foram poucos os escritos queabordaram o tema do caminhar. O interesse pela mobilidade guarani ainda que no tratada
nestes termos est presente nos trabalhos de Kurt Unkel Nimuendaj (1914), Len Cadogan
(1958), Egon Schaden (1969, 1974) e Hlne Clastres (1978), hoje considerados autores de
obras clssicas da etnologia relacionada a estes grupos.
Uma temtica to atual quanto antes, a mobilidade segue sendo atualmente objeto de
reflexo dos etnlogos. Entre as produes das ltimas duas dcadas merecem destaque as
reflexes propostas por Maria Ins Ladeira (1992, 2001), Ivori Garlet (1997), Flavia Mello(2001), Celeste Cicarone (2001) e Elizabeth Pissolato (2006), cada qual contribuindo com
possibilidades interpretativas, abordando as questes referentes aojeguat.
O jeguat ser analisado nesta dissertao atravs de prismas tericos distintos,
buscando fazer dialogar diferentes possibilidades interpretativas, tanto aquelas presentes na
bibliografia clssica e contempornea, relacionada s populaes guarani, quanto outras
propostas interpretativas originadas em etnografias junto de outras coletividades humanas.
Este quadro de etnografias diversas, por sua vez, pode ser dividido entre os trabalhos
etnogrficos realizados junto s populaes autctones da Amaznia, e queles que se deram
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entre coletivos humanos em outros continentes. O primeiro grupo engloba os trabalhos de
Eduardo Viveiros de Castro (1996, 2002), Carlos Fausto (2001) e Philippe Descola (2005)
entre outros. O segundo est ancorado nas reflexes de Nancy Munn (2006) entre os
aborgines australianos. Marilyn Strathern [1988] (2006) junto aos Melansios e Vincent
Crapanzano (2004, 2005) entre grupos amerndios norte-americanos.
Tendo igualmente como base pesquisas etnogrficas realizadas por aproximadamente
quatro anos de etnografia entre os grupos guarani Mby eNhandeva no Brasil meridional,
esta dissertao, busca contribuir para o entendimento dojeguat e em seus diversos aspectos
a ele relacionados, entre estes esto includos
concepo da pessoa dividua voltada para o movimento;as relaes estabelecidas com
as alteridades habitantes do cosmos; as constries impostas pelas possibilidades
imaginativas; a localicidade do corpo perceptivo enquanto elemento constituinte da
mobilidade guarani.
Penso que a pertinncia prtica desta dissertao encontra-se nas possibilidades
inscritas em uma compreenso mais aprofundada do modo de ser guarani. Esta certamente
pode vir a resultar tanto em benefcios para estas populaes, quanto numa disposio
diferenciada por parte daqueles que atuam junto a elas, sejam os formuladores ou gestores depolticas pblicas, sejam membros de organizaes no-governamentais ou quaisquer outros
apoiadores de suas causas.
Para exemplificar as conseqncias de polticas pblicas que no levam em conta as
especificidades da mobilidade e relao com os espaos destas populaes em seu sentido
mais amplo, recorro a um incidente recente, bem conhecido entre pesquisadores e envolvidos
com coletivos indgenas no Rio Grande do Sul. Aps construrem e equiparem um posto de
sade em uma das terras indgenas guarani neste estado, antes mesmo de sua inaugurao osgestores da Fundao Nacional de Sade (FUNASA) se depararam com problema: a
comunidade a ser atendida havia desaparecido se espalhando por diferentes reas, por
motivos que estes tcnicos no eram capazes de conceber.
Este apenas um em meio a tantos outros episdios de desencontro e incompreenso
em relao mobilidade guarani que seguem ocorrendo em diferentes esferas governamentais
e privadas. Espero com esta dissertao estar contribuindo para a diminuio (ao menos em
alguns centmetros) desta enorme distncia entre vises de mundo.
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SOBRE O MTODO
Refletir sobre a metodologia empregada na pesquisa que deu origem a esta dissertao
no se fez tarefa das mais simples ou livre de dvidas. J no basta mais repetir o mesmo
corolrio que fala em trabalho de campo, observao participante e descrio densa.
Nesta conjuntura em que se encontram amplamente difundidos, tais termos parecem ter se
tornado igualmente difusos, seus significados aparentemente foram extravasados em um sem
nmero de apropriaes nas quais passam a abarcar mtodos de pesquisa distintos entre si.
Desse modo uma estadia contnua de meses junto a um grupo humano seja qual for e
uma visita de final de semana so igualmente referidas como trabalho de campo,
observao participante, como se diferenas de tempo, de freqncia e da qualidade da
interao fossem fatores menores que em nada influenciam na qualidade das experincias
do(a) pesquisador(a). Tambm no parece haver nada de inusitado nisso, uma vez que nos
encontramos em uma conjuntura em que existem peritos indicados por agncias
governamentais para a realizao de pareceres antropolgicos de reconhecimento consideram
possvel em questo de horas levantar todas as informaes necessrias para este tipo de
documentao oficial.2
Em suas consideraes, Geertz (2001, p101) identifica o nexo entre as diferentes
prticas antropolgicas existentes como sendo de natureza eminentemente metodolgica,
procedimentos distintos tratados nos mesmos termos, como se fossem um mesmo mtodo.
Fica evidente, portanto, tanto o peso e a influncia de uma tradio de trabalho de campo que
tem como cnone a etnografia de Malinowski ([1922] 1976) entre os trobriandeses, quanto a
inadequao deste modelo em muitos contextos em que so realizadas etnografias.
Nesta conjuntura, espervel que concordemos com Geertz quando este autor coloca
como desafio vital para o prosseguimento da disciplina a renovao da prtica do trabalho
de campo. Mesmo que as constataes que lhe servem de motivos sejam questionveis - a
ausncia de grandes teorias interpretativas e um contexto em que os nativos so cidados e
2 Refiro-me, sobretudo, visita da antroploga da Fundao Nacional do ndio e coordenadora-geral deIdentificao e Delimitao, Nadja Havt Bind. Em 2005, aps breve levantamento documental e uma visitade pouco mais de uma hora a dois lderes Kaingang acampados com suas famlias no Morro do Osso (parquenatural municipal localizado na zona sul da cidade de Porto Alegre, e espao em litgio entre ambientalistas,moradores de condomnios de luxo no entorno, e famlias desta etnia), a referida especialista considerou-seapta para elaborar um parecer em que definia as impossibilidades de realizao de um grupo de trabalho que
avaliasse da presena kaingang naquele local. Em suas palavras No foi possvel encontrar nos relatos,artigos e documentos consultados elementos relativos ocupao kaingangue no Morro do Osso, seja antigaou atual. Entendo que a falta desses elementos tornaria extremamente frgil a argumentao da terra indgena[...] estando tal argumentao praticamente restrita tese das famlias [...].
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os primitivos uma minoria (2001: 104). Suas meditaes sobre o mtodo da disciplina se do
com base na comparao entre duas etnografias marcadamente distintas: uma classificada
como de raiz, alinhada aos moldes clssicos do trabalho de campo ala Malinowski, e outra
se contrapondo criticamente a este modelo metodolgico propondo a sua superao atravs de
inovao. So tomados como exemplos paradigmticos a etnografia de Pierre Clastres sobre
os Ach-Guayaki ([1972] 1996) de um lado, e a antropologia de rotas proposta por James
Clifford (1997) do outro.
Comparadas as antropologias de ambos, a de Clastres pensada nos termos da
imerso total no simples e no distante, como via real [local] para o resgate das formas
elementares da vida social (GEERTZ 2001, p.108). ainda entendida dentro de um modelo
de procedimentos das viagens aos trpicos buscando constituir com base no empiricamente
observado reflexes sobre conjuntos de mitos, estruturas profundas e diferenas indelveis.
A segunda apresentada como uma proposta antropolgica descentrada e
desconstrutiva, surgida da crtica aos preceitos metodolgicos consagrados pela
antropologia. Poderia ser enquadrada nos termos de uma nova disciplina, livre da premissa da
autoridade etnogrfica, e abdicadora do trabalho de campo solitrio entre povos exticos
habitantes de terras longnquas, enquanto forma privilegiada de produo da compreenso e
posio definidora da verdadeira antropologia e dos verdadeiros antroplogos (ibidem,
p.108).
Segundo Geertz (2001), Clifford (1997) no s questiona o fazer antropolgico e a
funo autorizadora, nos termos de um poder normativo que resulta da possibilidade de
definir quem so os outros, os nativos, mas tambm coloca a prova o localismo
metodolgico que nega alteridade a possibilidade de deslocamento. No se trata de negar o
deslocamento do antroplogo em sua trajetria na direo de seus observados, mas
reconhecer que estes tambm estabelecem relaes e referncias que esto para alm do local
mesmo sem que estejam fisicamente em deslocamento. O campo substitudo pela viagem, e
esta, em que as rotas se cruzam se torna o local no-localizvel de uma relao de
freqentao.
A viagem emergiu como uma ampla e crescente gamade experincias: prticas de entrecursos e interaesproblematizando o localismo de muitas das maiscomuns concepes de cultura. Nestas concepes aexistncia social autntica e, ou deveria ser, centrada emlugares circunscritos como jardins de onde a palavra
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cultura derivou em seu sentido europeu. O habitat foicompreendido como a base local da vida coletiva,enquanto viajar foi encarado como um suplemento;razes sempre precederam rotas. Mas o que aconteceria,comeo a me perguntar, se a viagem fosse libertada, se
assemelhando a um complexo e persuasivo espectro deexperincias humanas? Prticas de deslocamentopoderiam emergir como constitutivas de sentidosculturais ao invs de serem encaradas como sua simplestransferncia ou extenso (CLIFFORD, 1997, p. 3,traduo prpria).3
No lugar de um fazer antropolgico pautado por cientistas-viajantes estrangeiros
especializados nas pessoas de dentro, Clifford advoga fruns de trabalhos de campos de rotas
variadas, espaos de polmicas respeitosas. Em ltima instncia, este autor defende aconstituio de uma antropologia crtica e consciente de suas heranas e capaz de se
reinventar enquanto lcus reflexivo da dominao cultural, refletindo inclusive a respeito da
dominao cultural exercida atravs de seus prprios protocolos de pesquisa.
Trabalho de campo, informante e coleta de dados muito da prpria
terminologia ainda hoje empregada pela maioria dos antroplogos em relao sua
metodologia fazem aluso a um perodo em que as fronteiras entre as cincias humanas e as
chamadas cincias duras eram obscuras, e a antropologia, em especial, se constitua emdilogo com certo militarismo pragmtico que poca era elucidativo dos projetos das
grandes naes colonialistas.
() nas primeiras dcadas do sculo XX, quandoantroplogos, hoje tidos como pilares da disciplina,saam para realizar seus trabalhos de campo, aantropologia esteve ligada aos interesses de Estado.Eminentes antroplogos ingleses, logo no incio dosculo passado, tornaram-se fervorosos defensores do
que poderamos chamar de uma antropologia aplicada(...) uma tentativa de tornar a antropologia - nesta poca,ainda em fase de consolidao - uma cinciareconhecidamente til aos olhos do governo ingls.Podemos destacar nomes importantes como pioneirosnesta rea, tais como Audrey Richards, Isaac Shapera,Myers Fortes, Evans-pritchard e at mesmo BronislawMalinowski e Radcliffe-Brown, todos preocupados em
3 No original Travel emerged as na increasigly complex range of experiences: pratices of crossing andinteractions that troubled the localism of many common assumptions about culture. In this assumptionsauthentic social existence is, or should be, centered in circumscribed places like gardens where the word
culture derived its European meanings. Dwelling was understood to be the local ground of coletive life,travel a supplement; roots aways precede routes. But what would happen, I began to ask, if travel wereuntethered, seen as complex and pervasive spectrum of human experiences? Practices of displacement mightemerge as constitutive of cultural meanings rather than as their simple transfer or extension.
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contribuir para o reconhecimento da antropologiaenquanto servio pblico [...] ministravam cursos paraadministradores coloniais sob o argumento de que oconhecimento do povo nativo poderia facilitar suaadministrao (RUBEN & MATTOS, 2002 s.p.).
O cientista comprometido com um projeto de antropologia aplicada, indo a campo a
servio de um estado nacional que geralmente tinha seus interesses contemplados em sua
coleta de informaes, buscava compreender e mapear outras sociedades, sistemas parentais
ou econmicos, organizaes polticas ou religiosas; no leste da frica ou nas remotas ilhas
do Pacfico Sul, ou ainda onde quer que estivessem instalados, ou na iminncia de se
instalarem administraes coloniais, negociantes e missionrios.
A crtica de Clifford (1997) apresentada por Geertz (2001) ecoa no s na Escola
Britnica e sua aplicao da antropologia administrao colonial, mas tambm na
constituio de certa antropologia de guerra presente desde longa data entre os acadmicos
estadunidenses. As terminologias se encaixam com perfeio: do campo colonial ao campo de
guerra assessorando o exrcito, diversos antroplogos se colocaram a servio da causa de
guerra aliada, no s durante a segunda guerra mundial, mas tambm depois dela.
O caso da antropologia norte-americana , sem dvida,o mais rico exemplo de antroplogos comprometidosno somente com questes sociais como com interessesdo governo em tempos de guerra.(...) a maior evidnciada utilizao da antropologia na Amrica do Norte foi aparticipao em massa de antroplogos e antroplogasem agncias do governo poca da segunda guerramundial, atuando principalmente pelo Office ofStrategic Services - OSS -, rgo predecessor da hojemundialmente conhecida CIA, criado em 1942 pelopresidente Roosevelt. Entre os principais antroplogosque atuaram neste perodo podemos lembrar de Cora
Dubois, Anne Fuller, Alexander Lesser, AlfredMetraux, George Murdock, Gregory Bateson, RuthBenedict, s para ficarmos com alguns dos maisimportantes (RUBEN & MATTOS, 2002, s.p.).
Ribeiro (2005) tambm reconhece uma continuidade processual neste vnculo entre
antropologia e estado. Refletindo sobre o campo poltico e epistemolgico da antropologia,
identifica uma conexo entre as dinmicas dos estados nacionais, enquanto foras
sociolgicas e histricas que lhe atravessa e, em grande medida, definem o tratamento e o
destino dos outros em cenrios nacionais e internacionais. O autor tambm reconhece nesta
tendncia uma relao hegemonia dos discursos e tratamentos anglo-saxes sobre a
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diferena na antropologia. Ribeiro reitera que esta tendncia tem como conseqncia a
dificuldade por parte de seus operadores, para repensar a antropologia em outros termos, em
um novo contexto. Em uma poca de globalizao exacerbada poucos antroplogos tm
demonstrado disposio para discutir significativamente sobre a natureza corrente de sua
prtica e transformaes que ela atravessa em escala global (idem, p.2). Ainda assim as
conseqncias desta tendncia se mostram cada vez mais evidentes.
Se antes a voz imperativa do cientista ao descrever o que de fato era sobre um
grupo humano quase desconhecido encontrava-se imbuda da autoridade da presena
etnogrfica, hoje nos deparamos com nativos intensamente etnografados, informados e
presentes at mesmo nas mesas redondas e nos grupos de trabalho dos encontros de
antropologia. As prerrogativas da autoridade etnogrfica capazes de definir aquilo que de
fato acerca dos nativos se reduziram em proporo inversa em ampliou-se o nmero de
pesquisadores em um mesmo campo, possibilitando um nmero crescente de revises
crticas por seus pares informados.4
A constituio de uma antropologia crtica e consciente de suas heranas , talvez o
primeiro passo para uma transformao. No se trata tanto de abrir mo de certas premissas
metodolgicas bsicas, como o contato intenso e diferenciado com o outro para sua
compreenso, quanto de reconhecer que na relao, ainda que existente, reduzida ou mesmo
ocultada pelo prelado da observao, que a prtica da antropologia fundamenta seu mtodo.
Poder a antropologia ser reinventada como um frumde trabalhos de campos em rotas diversas um lugaronde o conhecimento de diferentes contextos se engajaem dilogo crtico da dominao cultural que seestender sobre seus prprios protocolos de pesquisa? Aresposta no clara: poderoso, e flexvel, as forascentralizantes permanecem. Os legados do campo sofortes na disciplina e densamente, talvez,produtivamente, ambguos (CLIFFORD, 1997, p. 91,traduo prpria).5
4 A despeito da sugesto de Clifford (1997) em favor da constituio de fruns etnogrficos, com algumasexcees, a reflexo sobre o campo continua se dando individualmente, ainda que seu produto final sejaapresentado em encontros e congressos. Estes que por sua vez se consagraram como espaos decompartilhamento cientfico, se do em um ritmo cada vez mais corrido tendo que abranger um nmero cadavez maior de participantes e, proporcionalmente, reduzindo o espao para trocas de reflexes coletivas. Oscongressos cientficos atuais se assemelham cada vez mais aos meios de produo em massa das sociedadesindustriais, j que nestes tambm o fordismo encontra um terreno frtil.
5 No original Can anthropology be reinvented as a forum for variously routed fieldworks a site wheredifferent contextual knowledges engage in critical dialogue of cultural dominance which extends to its own
protocols of research? The answer is unclear: powerful, newly flexible, centralizing forces remain. Thelegacies of the field are strong in the discipline and deeply, perhaps, productively, ambiguous.
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Concordando ou no com tal necessidade de mudana, no h como negar que nossa
forma de ir a campo distinta da forma de outros lugares e pocas, diferente, sobretudo, secomparada antropologia tal qual ela realizada nos centros de pesquisa onde ainda se
permitido alguma fidelidade a certas premissas de um fazer antropolgico aos moldes dos
clssicos. No contexto da academia brasileira parece existir no s uma aceitao, mas
tambm um endossamento atravs de certo silncio quanto inadequao metodolgica que
enfrentamos. Soma-se a isso ainda algum descaso com o desenvolvimento histrico de uma
metodologia prpria cujas premissas de tempo e espao do fazer antropolgico para no
entrarmos na questo sobre o tempo e o espao dos nativos so atropeladas. Isso tende aacontecer cada vez que deixamo-nos assumir os mesmos prazos e ndices de avaliao das
cincias duras e laboratoriais, num contexto em que os gestores de recursos e tempo se do ao
direito de avaliar todos os fazeres cientficos pelas mesmas regras.
Seja devido a presses externas, seja pelas transformaes dos contextos em que se
do nossas etnografias, nossa inadequao evidente. No entanto, como muito se diz na
cultura popular a necessidade a me da inveno, a dvida decorrente da inadequao
parece se revelar um benefcio ao invs de um revs, e talvez, aps a mar desconstrutivistaestejamos nos encaminhando para outro momento de criatividade metodolgica na
antropologia.
Neste contexto de globalismo o ofcio do antroplogo precisa ser repensado no que
se refere sua operacionalidade. Esta etnografia foi formulada como uma tentativa de
operacionalizar algumas das propostas de Clifford, compartilhando tambm algumas de suas
dvidas. A metodologia clssica segue claramente produzindo sentido e sendo referencial,
ainda que sem se fazer preferencialmente prtica, persiste ora como possibilidade, ora comocontraponto. Existem muitas sutilezas nos limites estabelecidos entre ambas as propostas,
ainda mais se considerarmos suas similaridades enquanto experincia de imerso, marco
biogrfico, ritual de passagem e encontro negociado.
A escolha no se d entre (...) o antroplogo como herie o modelo do general de brigada ps-moderno. Ela estentre sustentar uma tradio de pesquisa sobre a qual se
erigiu uma disciplina inexata e parcialmente formada,mas moralmente essencial, e, de outro, deslocar,reelaborar, renegociar, reimaginar ou reinventaressa tradio, em favor de uma abordagem mais
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multiplamente centrada, pluralista e dialgica, queveja como uma espcie de relquia colonial o bisbilhotara vida de pessoas que no esto em condio debisbilhotar a nossa (GEERTZ, 2001, p.110).
Acompanhar, e ser acompanhado por aqueles que tenho como interlocutores nesses
diferentes espaos, receb-los em minha casa e ser recebido por eles, permitiu estabelecer
relaes menos assimtricas que um polido distanciamento britnico exigiria. Momentos de
inverso no foram poucos, e por vezes a sensao era de que eu era o nativo e o nativo o
etnlogo. Nestas vezes me flagrei pensando: o que teriam dito e pensado os trobriandeses
sobre a sala da casa de Malinowski, sobre sua famlia e seus hbitos, se tivessem acaso a
oportunidade de freqent-la? Talvez os nativos nem sequer precisassem se deslocar at a
Inglaterra, j que possuam um exemplar de europeu morando em uma barraca no ptio de sua
aldeia.
Quem, exatamente, est sendo observado? Quem estlocalizado quando a tenda do etngrafo permitida nocentro da vila? Antroplogos observadores culturaisfrequentemente esto eles prprios enredados, sob a
vigilncia (por exemplo, das crianas onipresentes, queno os deixam sozinhos). (CLIFFORD, 1997, p. 20,traduo prpria).6
Nesse contexto onde tudo parece estar invertido, longe de aderir a certo pessimismo
e colocar em dvida o futuro da diferena, ou da disciplina (questo debatida a exausto
durante todo o sculo XX) no decorrer desta pesquisa me deparei com a fora da presena do
Outro e seus discursos carregados de crticas e certezas de que as fronteiras e marcos de
alteridade no esto exatamente onde se supunha estarem.
Por vezes assumi a posio de observador de homens reunidos para avaliar acusaes
entre duas partes; de parentes que se encontram depois de muito tempo afastados, entre outros
momentos de transigncia. Tambm estive vez ou outra na fila do hospital, e em manhs em
uma ou outra teko participando de caminhadas pela mata. Em algumas tardes ouvi o canto
das crianas em ensaios de grupos de cantos e danas tradicionais. Pude igualmente
presenciar diversas situaes muito menos agradveis como o racismo nas ruas de uma cidade
6 No original Who, exactly, is being observed? Who is localized when the ethnographers tent is permitted inthe Center of a village? Cultural observers, anthropologists, are often themselves in the fishbowl, undersurveillance (for example, by omnipresent kids, who wont leave them alone)
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ou dentro da universidade na qual me graduei, algumas s quais reagi, outras que me
deixaram sem reao.
Em 4 de Fevereiro de 2006, por ocasio do aniversriode 250 anos da morte do personagem histrico SepTiaraj, lder nas guerras guaranticas, cinco mil pessoasda etnia Guarani, advindas de distintos estados e pases,reuniram-se no local de sua morte, na cidade de SoGabriel, estado do Rio Grande do Sul (...) Numa tarde,eu e outros pesquisadores acompanhvamos umafamlia Mby-Guarani nos arredores do parque onde,em 1756, teria morrido Sep. Pelas ruas da cidade
jovens e crianas guarani Mby, Nhandeva e Kaiow passeavam em clima festivo, como em toda a ocasiode reencontro com seus parentes. Ao dobrarmos umaesquina ouvimos, num tom entre o conselho e abrincadeira, em alto e bom som, uma me que, aps nosavistar, disse para sua filha: - Te esconde filha, olha ondio! O ndio vai te pegar! Este dito nos deixouimediatamente envergonhados. Os Guarani de sua parteno esboaram qualquer reao de desagrado, pelocontrrio, a pouca importncia que deram ao ocorridonos indicou uma possvel familiaridade com aquelasituao (SOUZA PRADELLA, 2008, p. 72).
Ainda que no atravs das categorias de parentesco guarani, acabei por me tornaraparentado da forma como se comumente se aparentam os brancos. Meu principal
interlocutor me fez padrinho de sua filha. Diante do nus da proximidade, no tenho tanta
certeza das intenes contidas no preceito metodolgico do distanciamento. Este me parece
cada vez mais um empecilho preceitual que uma necessidade na pesquisa. nesse sentido que
endosso a afirmao de Egon Schaden, to atual quanto no momento em que foi escrita.
Se em toda cincia humana h liames mais ntimos queo simples vnculo racional que prende o estudioso a seuobjeto, isto vale de maneira muito particular para opesquisador da cultura guarani, cujo entendimentorequer um alto grau de identificao ou, pelo menos, desintonia com a ndole da tribo (SCHADEN apudMELI, 1992, p.76)
O registro textual se deu aps ou durante as conversas, poucas vezes acompanhadas de
desenhos e descries que formaram a seu modo, no tanto um dirio, mas uma colcha deretalhos de informaes. O tempo de convvio de cinco anos permitiu interlocues
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prolongadas, mas tambm consultas rpidas por telefone ou via e-mail.
Minhas entrevistas no foram entrevistas strictu sensu, j que uma entrevista exigiria
um ritmo que incompatvel com o tempo de uma fala ponderada como demanda a cincia da
oralidade guarani. Quando fiz uso de um gravador de audio foi para registrar momentos
especficos em que perguntas e respostas foram rememoradas, geralmente com base no
anteriormente dito, em outros contextos e situaes.
O carter multilocalizado da pesquisa e a convivncia prolongada possibilitaram
perceber e registrar com maior nitidez dvidas, tristezas e angstias, mudanas de opinio e
esquecimentos, rearranjos de idias, e tambm diferenas na importncia conferida a assuntos
distintos conforme os lugares (ou junto s pessoas) s quais poderiam ou no ser abordados.
Tambm foram subsumidas as negociaes que fazem parte de todo convvio entre
diferentes. Estabelecer relaes simtricas nem sempre se mostrou uma tarefa fcil, j que
algumas assimetrias s se fazem notveis no contraste existente na relao. Penso tambm
que nenhum manual metodolgico com o qual tive contato apresentou mtodos etnogrficos
substanciais a serem empregados frente a certas situaes inusitadas positivas e negativas
nesta freqentao dos espaos e percursos guarani.
Assim como Clifford (1997) me questiono sobre as possibilidades, limites e riscos dainovao deste campo de saber. O caminho no claro e a necessidade de rememorar o valor
da vigilncia epistemolgica (BOURDIEU et al., 1990, p. 14) e da reflexo em torno das
questes ticas no permite que esqueamos as ameaas por trs de cada possvel m
utilizao da disciplina.
ORGANIZAO DOS CAPTULOS
O contedo desta dissertao est dividido em sete partes: cinco captulo mais esta
introduo e um ltimo texto de consideraes finais.
O primeiro captulo, Projeo, espao e desencontro, destina-se entre outras coisas,
a uma reviso e anlise de alguns aspectos histricos do desencontro entre vises de mundo e
entendimentos acerca do outro, protagonizado por populaes indgenas no encontro com
outras de matriz europia. Neste tambm apresentada uma sucinta apreciao acerca da
construo e da projeo da alegoria do outro com base na constituio do ndio enquanto
figura alegrica e generalidade constituda no imaginrio ocidental. Tomando como exemplo
etnogrfico a mobilidade guarani e seu constrangimento frente s demarcaes espaciais das
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CAPTULO IPROJEO, ESPAO E DESENCONTRO
1.1.CARTOGRAFIA DE SI SOBRE O OUTRO:
A pedido do reino espanhol, no porto de Santa Maria, no ano de 1500 o navegador e
cartgrafo Juan De La Cosa confeccionaria o primeiro mapa mundi a incluir todas as
informaes cartogrficas sobre o globo at ento conhecidas na Europa. Nele constariam,
pela primeira vez, representaes do continente recm descoberto que seria posteriormente
chamado de Amrica pelos europeus. Nesta carta o ocidente foi representado em seu topo, o
Oriente em sua base, o Norte situado direita e o sul esquerda.
Em seu tempo considerado uma faanha sem igual, a Carta de Marear delas ndiaslogo se tornaria lendria entre os cartgrafos e navegadores dos sculos seguintes, uma
referncia para muitos outros mapas posteriormente criados.
Atravs de seus traados De La Cosa tambm representaria os continentes de frica
e Europa e parte da sia decorados por figuras representando caravelas e cidades, fortes e
reis, escudos e bandeiras, personagens bblicos e figuras mitolgicas. Na Carta de Marear
vislumbra-se muitas referncias histricas, geogrficas e imaginativas presentes no quadro
referencial ibrico daquele tempo, pois, contrastando com a preciso de forma destinada aocontinente europeu, as representaes relacionadas sia e Amrica no possuem definio
quanto sua forma.
As ilhas mesoamericanas do futuro Caribe e costa norte da futura Amrica do Sul
aparecem povoadas, no de homens e animais, mas de nominaes espanholas e iluminuras de
caravelas que contrastam com o verde do interior do continente. A nica figura humana em
meio representao do continente americano encontra-se no poente das Antilhas. Trata-se de
So Cristvo, padroeiro dos viajantes e navegadores, levando sobre os ombros o meninoJesus. Segundo Enrique de Leguina (1877, p. 123) uma homenagem do cartgrafo ao
navegador Cristovo Colombo que descobrira oficialmente o continente chegando a uma ilha
em 1492, a propagar o cristianismo entre os povos pagos.
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Imagem 2 -Mapa Mundicriado em 1500
pelo navegador
e cartgrafoJuan De LaCosa a pedidodos Reis deEspanha, combase em todosos mapasconhecidos
pelosnavegadoresat ento.
Fonte:WikimediaCommons.(acessado em10/01/2009)
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No se tratava propriamente de um desconhecimento por parte do cartgrafo, quanto
ao fato do Novo Mundo, ser ou no efetivamente habitado. Antes da confeco do mapa De
La Cosa j havia anteriormente tomado parte em muitas iniciativas de explorao. Fora
capito de uma das naus da famosa expedio de Colombo de 1492 (LEGUINA, 1877, p.91);
navegara o rio Orinoco adentro, embrenhando-se na floresta Amaznica junto expedio de
Alonso de Ojeda, em pelo menos uma ocasio, fora at mesmo flechado ele prprio pelos
nativos que ausentara de seu mapa.
A carta do cartgrafo navegador De La Cosa representa o mpeto de explorao
espanhol que, h poca, se mostrou incapaz de (re)conhecer os povos daquele estranho Novo
Mundo. Inbil tambm para suplantar as distncias entre seu quadro de referncia e buscar
compreender as concepes dos habitantes do continente que alcanara. A diversidade
humana no estava no seu horizonte, seja no continente africano, seja nas terras da Amrica.
Foi o descobrimento da Amrica que, como se sabe,forneceu ao Ocidente a ocasio de seu primeiroencontro com aqueles que, desde ento, seriamchamados de selvagens. Pela primeira vez os europeusviram-se confrontados com um tipo de sociedaderadicalmente diferente de tudo o que at entoconheciam, precisaram pensar uma realidade social queno podia ter lugar em sua representao tradicional doser social: em outras palavras, o mundo dos selvagensera literalmente impensvel para o pensamento europeu.(P.CLASTRES, [1980] 2004, p.232)
O lcus do outro no-europeu parece inexistir mesmo quando se trata de representar
a frica e parte da sia. As ilustraes distribudas pelo mapa esto absolutamente inscritas
em referncias europias, nos conformes com sua prpria viso de mundo. So escudos e
castelos medievais, monstros marinhos, rosas dos ventos e caravelas. Os humanos sopersonagens bblicos, santos, reis magos, reis e cruzados, todos eles de tez branca como a sua
prpria.
Tudo aponta para a confirmao das interpretaes de Todorov [1997] (2003) que ao
analisar os escritos referentes s impresses de Cristovo Colombo, apresenta uma boa
hiptese de explicao. As referncias destes navegantes permaneciam ancoradas ainda em
um imaginrio pleno de imagens do medievo, na qual no havia lcus para a alteridade com a
qual se depararam no contato com povos amerndios.
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Imagem 3 -Mapa da Amrica Meridional de 1558 de Diogo Homem. Fonte: WikimediaCommons. (acessado em 10/01/2009)
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Em 1558, outra vez a Amrica seria representada a partir dos referenciais de um
europeu, desta vez, no atlas encomendado ao cartgrafo portugus Diogo Homem pela coroa
da Espanha. Formado por 29 pginas de pergaminhos cobertas por iluminuras, este atlas
abrangia de forma nunca antes concebida, todo o acmulo de conhecimento cartogrfico
ibrico sobre o velho e o novo mundo. Em um destes mapas referente Amrica
Meridional Homem reproduz algumas das tendncias presentes no mapa de De La Cosa,
evidenciando o mesmo desconhecimento quanto forma da Amrica do Sul. Novamente nas
representaes da costa do Atlntico podem ser vistas inmeras denominaes, contrastando
com o os poucos nomes do interior do continente.
No entanto, diferente do mapa de 1500, a carta de Diogo Homem representa tambm
grandes rios, rvores, lees (um deles negro, como um jaguar), castelos, estandartes de
Portugal e da Espanha (sobre o territrio que pretensamente controlavam). Seus humanos, por
outro lado so homens de pele escura, em sua maioria nus, ou sumariamente vestidos, levando
consigo com arcos e flechas junto de rvores e de casas coletivas. Esta segue at os nossos
dias sendo a representao recorrente do ndio no senso comum. Suas iluminuras baseadas
nos relatos de viajantes e desbravadores espalham-se sobre o continente com a finalidade de
preencher os espaos vazios deixados entre as parcas referncias escritas. Peru, Amrica,
Quatambis Pars (Pas dos Quatambis) , brasilis, Terra argenta (Terra da Prata), Mundus
Nouus (Mundo Novo) e Terra Incognita (Terra desconhecida).
possvel afirmar que o mapa da Amrica de Diogo Homem traz em si a
representao vislumbrada de um mundo estranho que desafia suas possibilidades
imaginativas. Nele, a imagem de um outro genrico da hbitos e formas distintas comea a ser
desenhada. Mais um momento a se somar na gnese da alegoria do ndio, alegoria esta que
naquela primeira centena de anos passar a povoar o imaginrio dos cristos europeus, sditos
de diferentes coroas.
1.2.PROJEES:
O mapeamento detalhado da costa dava-se atravs do registro dos elementos
passveis de futura explorao no interior das ilhas e nas terras continentais. Logo, mapas do
Novo Mundo mais detalhados que os de autoria de De La Cosa e de Homem comearam a
circular entre os europeus, sendo a cartografia o prenncio da dominao e da guerra
(LACOSTES, 1988).
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So diversos os empecilhos impedem que afirmemos com segurana qual eram os
entendimentos e relaes dos grupos humanos com os espaos que percorriam e habitavam,
para alm das suposies e paralelos com as populaes autctones atuais. Ainda assim, as
narrativas coloniais trazem algumas pistas de quais eram as imagens conferidas aos europeus
recm-chegados pelos autctones da Amrica: das perspectivas grupos amerndios, o
desencontro no fora menor. Nestes primeiros momentos do contado consideravam a
possibilidade destes portugueses serem deidades enviadas at eles pelos seus prprios deuses
e, baseando-se nessa crena, homens e mulheres Tupi entregaram seus filhos para que fossem
levados s terras imortais. No entanto, ao fim da viagem, aps serem acomodados em pores
imundos entre macacos e papagaios, estes jovens tupi seriam exibidos e escravizados em
cidades da Europa (THOMAS, 1981, p.35).
Geralmente, a necessidade de explicao do outro, seja na perspectiva dos europeus,
seja do ponto de vista dos coletivos originrios, era suprida com a projeo de concepes
originadas e ancoradas em pr-textos, presentes nos imaginrios destas coletividades. Fosse se
tratando de noes de espao e de tempo, preceitos de organizao, parentesco e sacralidade,
as distncias entre formas de humanidade distintas mostravam-se to amplas quanto s
distncias ocenicas que separavam seus continentes, ainda que por vezes houvessem algumas
coincidentes aproximaes.
Em suas prprias referncias os europeus veriam as terras ocupadas pelos povos das
terras baixas do continente australis ocidental como as provncias de um imprio, ou mesmo
reinos medievais. Da mesma forma que aquele que falasse por um grupo seria concebido, na
cosmoviso europia, tal qual a imagem de um rei. Ou ainda, num movimento contrrio, a
estranheza com relao a to distintos modos de ser nunca seria completamente abandonada.
O outro seria caracterizado tambm como aquele cuja identificao se daria justamente pela
ausncia das instituies semelhantes quelas existentes no contexto europeu - sem f, lei, ou
rei.7 Tambm aos selvagens estariam ausentes e lhes seria negado os preceitos de uma
crena verdadeira, uma legislao legtima e um soberano empoderado (P.CLASTRES,
2002, p.45).
Supunha-se tambm, a existncia de uma mesma espacialidade, dessa forma os
7
A expresso fruto das observaes de Pero de Magalhes Gandavo, que em 1576, ao notar a ausncia dosfonemas f, l e r entre os Tupi da costa atlntica, utilizada para caracterizar seu parco entendimento sobreestes povos atravs da ausncia de elementos constituintes das referncias culturais europias.(MAGALHES GANDAVO, 1999).
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agrupamentos dos povos nativos seriam chamados de aldeias pelos portugueses e
espanhis, em correlao com as aldeias existentes em suas prprias ptrias, e do lado dos
amerndios possvel especularmos se no teriam eles pensado em um primeiro momente que
estes outros de alm mar, que naquele momento se aproximavam, no estariam ali de
passagem, ou se desejariam tornar-se parentes.
Supunha-se ainda do lado europeu que as aldeias dos gentis das terras descobertas
permanecessem continuamente em um mesmo lugar como as cidades da velha Europa,
enquadradas em um constante localismo.8 Junto de algumas destas aldeias os recm
chegados ergueriam suas construes, a partir das quais reorganizariam pouco a pouco os
espaos a imagem e semelhana da organizao existente nas cidades europias no continente
que viria a se chamar Amrica.
Os critrios de nominao do espao e das coletividades no seria propriamente um
problema: a rea onde se encontrava gente vinculada a determinado lder, assim como sua
prpria gente, receberia o nome do lder em questo ou a denominao conferida por um
grupo anteriormente contatado ou mais aproximado dos exploradores. Dessa forma tambm
seriam batizados alguns rios, lagos e montes junto dos quais se encontravam populaes
autctones.
(...) encontraram os guarani formando conjuntosterritoriais mais ou menos extensos que chamaram deprovncias, reconhecidas pelos seus nomes prprios:Cario, Tobatn, Guarambar, Itatn, Mbaracay, gentedo Guair, do Paran, do Paraguai, do Uruguai e os doTapes (...) (MELI, 1993, p.295)
Seguindo esta lgica, o coletivo pelo qual falava Paragu seria denominado gente
do Paragu ou somente os Paragu, sendo esta tambm a denominao do local em quese encontravam Paraguai (MELI, 1993, p.296). Nos casos de rios, lagos e outras
particularidades do relevo a denominao apresentada pelos guias, geralmente grupos de
originrios aliados, por vezes era mantida, recebendo um acento europeizado, sendo, por
vezes, substituda pela denominao de alguma data especfica vinculada aos dias de santos
(DEVREUX, 2002).
A estes povos distintos, falantes de uma mesma lngua, detentores de formas rituais
8 Reconhecendo o movimento como central cosmoviso e ao idioma navajo Crapanzano (2004, p.32) tambmse pergunta como esse localismo de ter parecido para pessoas amerndias que durante sculos senomilnios estavam em movimento at que fossem confinadas em reservas.
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semelhantes, seria conferido a denominao guarinva (gente de guerra) ou guarinjara
(senhores da guerra) que, em seu contorno reduzido e europeizado, tomaria forma do termo
guarani (Montoya 1876).9
Via de regra, quase todos os outros aspectos da alteridade recebiam o mesmo
tratamento de contato em desencontro pelo europeu. Xams caminhantes, grandes
oradores(as) a quem os autctones chamavam kara10 (ou seu feminino kunh kara) ou
karaba, seriam tratados(as) como feiticeiros(as), contra quem seus prprios clrigos se
contraporiam atravs do doutrinamento da verdadeira religio. Para a surpresa e horror dos
clrigos cristos os feiticeiros no se contrapunham s suas crenas como faziam os mouros
(uma das principais alteridades do homem europeu pr-colombiano), mas as assimilavam
conforme a sua convenincia. Esta assimilao geralmente com o intuito de estabelecer uma
simetria ou mesmo superioridade de potncia em relao s curas se dava atravs da mistura
dos aspectos de seu xamanismo com os da verdadeira f (VIVEIROS DE CASTRO, 2002a:
185; FAUSTO, 2005, p.393).11
Nas insurreies resultantes da presena colonial, uma srie de tcnicas ora de
incorporao, ora de afastamento seguiriam nos conformes de economias blicas da
alteridade (FAUSTO 2001) alargada pela presena destes outros diversos. Meli (1986.
p.170) resgata das primeiras documentaes jesuticas os rituais de refutao do batismo
empreendidos na rebelio de 1567 liderada por Ober, onde grupos guarani antes reduzidos
em misses renunciavam ao nome cristo, recebendo nomes nativos em rituais orquestrados
por xams profetas kara. Ao mesmo tempo, aspectos da religio crist relacionados ao poder
ttulos, deferncias e procedimentos clericais eram incorporados por esses mesmos grupos
em suas prprias perspectivas. Alguns kara chegavam mesmo a afirmar serem Jesus ou o
papas em seus discursos profticos (ibidem p. 30).
Em grande parte das vezes os meios frgeis de comunicao estabelecidos entre
9 Quinteros & Guarania apresentam ainda outra possibilidade interpretativa a partir de uma anlise detalhada dossignificados presentes no termo Guarani. Segundo os lnguistas gua- pode ser tomado como gentlico; rasignificaria pessoa (como em hra, ex.: yvyrahra, carpinteiro, de yvyr, madeira), ao ofcio; nicolorido, brilhante, pintado. Pintura corporal que os autores associam de igual maneira a guerra (2000: 25).
10 Hlne Clastres (1978: 38) afirma que Montoya em seu Tesoro de la lengua Guarany j registra o significado
literal da palavra karacomo tendo kara- o sentido de habilidade e destreza e indicar perseverana.11 Mais adiante, no quarto captulo desta dissertao este aspecto ser novamente abordado com o intuito dedemonstrar como certos elementos apropriados dos discursos jesutas estabelecem relao com a lgica do
jeguat.
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euroreferenciados12 e autctones s serviriam para evidenciar a distncia entre concepes de
mundo. Na tica de Todorov (2003) os europeus conquistariam as Amricas sem, no entanto,
descobrir de fato seus habitantes.
(...) aquilo que no sculo XVI se dizia dos ndios,compouqussimas transformaes ainda um discursoamplamente vigente (...) tudo aquilo que no possa seridentificado atravs da comparao s formaseuroreferenciadas conceber a poltica, organizar oespao e pensar o corpo no existe. Nesse sentido ondio como uma criana, algum a ser ensinado.Suas formas particulares de poltica, espacialidade,corporalidade e religiosidade so ignoradas, deixadas delado em nome do certo [que mais certo , tanto mais sealinhe s formas euroreferenciadas] (SALDANHA &SOUZA PRADELLA, 2008, p.64)
Para a maior parte destas coletividades, centenas de anos de contato no
significariam necessariamente um encontro: em seu lugar presenciariam um sem nmero de
contatos em desencontro que colocariam em cheque no s sua autonomia (SOUZA
PRADELLA, 2008:62), mas em larga escala, os levaria a uma quase aniquilao atravs da
imposio de formas de culturas de terror(TAUSSIG, 1993, p.30) por parte dos estrangeiros
sobre os autctones.
1.3.DEMARCAO DO OUTRO COMO EXERCCIO DE FORA:
O desencontro permanece ainda na atualidade, marcado por relaes de dominao e
tentativas de imposio de concepes euroreferenciadas s coletividades autctones. O
contato segue se dando invariavelmente enraizado em uma srie de constrangimentos
cosmolgicos e projees atravs dos quais a populao euroreferenciada concebe o outroindgena, nos termos de como deve ser seu corpo, seu pensamento, seu comportamento e sua
relao com o cosmos. Tais constrangimentos se evidenciam em um desejo de sedentarizar e
demarcar o lugar dos povos originrios, geralmente remetendo-os a lugares distantes e
isolados, onde estes possam permanecer fiis a concepes de ndio criadas e sustentadas
12
O termo euroreferenciamento e suas variaes aqui empregado com o intuito de refinar a idia deeurocentrismo para alm da metfora espacial como centro a Europa. Possui paralelos com o conceito deeuropeizismo sugerido por Gustavo Lins Ribeiro (1993:09). Buscando abranger tambm uma noo decultura enquanto emaranhados ou constelaes de referncias (BARTH 2000:127).
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pelos brancos13.
Busca-se definir assim, de antemo, geralmente em um tom tutelar, os espaos pelos
quais os povos originrios devem circular, bem como aqueles em que os ndios no devem ser
encontrados. importante deixar evidente que demarcar os espaos demarcar o outro, ou
seja, demarcar a priori as relaes e os limites desse outro que no se conhece. Designaes
como estas so geralmente realizadas sobre os povos indgenas, em grande medida sem
qualquer participao destes ou sequer a audincia de sua opinio.
Com pouca margem para dvidas os ndios que caminham so entendidos como
grandes empecilhos para os projetos privados e governamentais. A mobilidade dos grupos
autctones desafia a perspectiva de implementao e formulao de servios nas chamadas
polticas pblicas, sejam estes bsicos ou especficos. Tanto seus formuladores como
aqueles que as executam dificilmente compreendem o mpeto de caminhar que leva grupos
at ento assistidos e/ou em terras demarcadas a se colocarem a beira de estradas em lugares
onde qualquer assistncia dificilmente os alcanar. Passam ento a ser enxergados como
semi-homens, ilgicos ou pr-lgicos em suas atitudes, cuja tutela estatal deve se esforar por,
na tica de alguns, preservar e isolar e, na tica de outros, integrar e corrigir.
Apesar do discurso politicamente correto de respeito s culturas minoritrias emvoga na ltima dcada, na maior parte das vezes as polticas pblicas levam apenas
parcialmente em conta as especificidades destas coletividades. Parece mesmo haver um
limite, ainda que nebuloso, que define o que pode ser negocivel, se perdendo tambm em um
jogo de batata quente entre diferentes instituies no que se refere suas atribuies. H
mesmo certa polifonia divergente (PIRES, 2007, p.162) em meio qual so
desconsiderados tantos os direitos quanto as especificidades destas populaes.
Dentro e fora dos meios acadmicos resiste ainda a noo de diferena culturalenquanto fruto do isolamento em consonncia com as polticas de reserva de terras, que
considera o confinamento fsico da alteridade como a nica forma de preservar a
autenticidade das culturas indgenas como se tais culturas fossem estticas e no-histricas
(OLIVEIRA, 1999).
Em alguns setores da sociedade brasileira de vis desenvolvimentista, cuja influncia
poltica e econmica considervel, os povos originrios ainda so vistos como signo do
13 Emprego aqui o termo mico na lngua portuguesa utilizado em diversas lnguas pelas coletividadesautctones da Amrica em referncia s pessoas das sociedades euroreferenciadas.
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atraso, resqucios de um tempo passado, empecilhos aos muitos projetos de explorao dos
chamados recursos naturais, especulao imobiliria e monocultura. Posies como estas
esto presentes nos principais conflitos entre indgenas e no-indgenas no Brasil. Com base
nessa significao muitos episdios tm ganhado notoriedade na imprensa nacional. Para ser
sinttico, cito apenas trs exemplos atuais: a campanha antiindgena promovida pela papeleira
Aracruz do Brasil e seus apoiadores14, o litgio entre os latifundirios do arroz e os povos
indgenas de Raposa Serra do Sol em Roraima15 e os conflitos semelhantes por conta da
expanso do agronegcio, entre fazendeiros advindos do sul e do sudeste nos ltimos
cinqenta anos, e povos autctones no Mato Grosso do Sul.
Tanto no primeiro exemplo como no ltimo esto envolvidas coletividades guarani,
respectivamente grupos mby e kaiow. Profundamente impactadas com a derrubada das
matas e privao dos espaos com as quais possuam relaes ancestrais e dos quais retiravam
a caa e os remdios necessrios para suas existncias, estas coletividades entendem os
cercamentos e a monocultura que hoje marcam a paisagem de diversos estados no Brasil
atravs da lente de uma escatologia nos conformes com suas cosmologias. A percepo das
polticas de confinamento apresentadas atravs de metforas manifesta no s a importncia
do caminhar, mas tambm sua inviabilidade em um mundo em que tais deslocamentos ficam
cada vez mais difceis, em parte devido violenta sobreposio de rotas originrias por
fronteiras nacionais e a conseqente privatizao de espaos e recursos.
Entre os Guarani parece haver um entendimento de que a poltica de reservas um
mal necessrio frente ao aumento da presena dos brancos e suas conseqncias, como a
perda da possibilidade de caminhar, de se relacionar com os espaos, tal qual se fazia num
passado no muito distante. As metforas recorrentes para a poltica de reservas do conta de
uma relao assimtrica estabelecida entre brancos e ndios, na qual os primeiros tratam os
segundos como animais a serem criados em cercados ou cativeiros16. Esta percepo pode ser
vislumbrada nos depoimentos de dois interlocutores.
14 Atravs de outdoors (ver anexo 1) e campanhas publicitrias nos meios de comunicao em massa e utilizandode um discurso antiindgena desenvolvimentista a empresa buscou contrapor o progresso levado pelaindstria ao norte do estado do Esprito Santo, e o atraso ou empecilho da ao da FUNAI quesupostamente teria trazido ndios quela mesma regio.
15 Episdio amplamente utilizado como subterfgio para que se atualizasse em alguns meios de mdia a figura domal selvagem, no mais o canibal de outrora, agora um selvagem conspirador contra a soberania nacional e
suposto aliado de grupos estrangeiros obscuros cujo objetivo maior a internacionalizao da Amaznia.16 No sub-captulo 4.2 intitulado Entre os juru e outros obstculos apresentarei de forma mais aprofundada
algumas destas metforas.
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Antes a gente ia andando. Com o p no cho, ia e podiaparar assim, em qualquer lugar. Ia andando at o mato el ficava um pouquinho, descansar. Agora procura mato,no tem. Procura caa, no tem. Se pega e sai andandotem cerca, tudo cercado,juru17cercou tudo, enferpou aterra. Fez cercadinho e botou a Guaranizada pra nopoder mais andar. Agora tudo isso j foi feito ento agente tem que brigar pelo cercadinho, cuidar pra teronde ficar (Valdecir Timteo, T.I. Cantagalo, agosto de2008)
(...) percebi que os juru to criando os Mby que nemgalinha, assim tudo preso, do mesmo jeito do galinheiro.Fica ento e do milhozinho pro Mby, pra ele nocaminhar. (Ver Poty Benites, Porto Alegre, fevereirode 2007)
Existe uma diferena geracional de percepo sobre as demarcaes. Os jovens
guarani em sua maioria entendem a demarcao das reservas como um subterfgio necessrio
ocupao massiva dos brancos, j os velhos por sua vez, tendem a reforar a idia de que a
terra segue sendo como sempre fora: de suas deidades, que a criaram imperfeita (yvy koaxy)
para benefcio e nus de todos, sendo os brancos e seu modo de ser somente mais um
indcio desta imperfeio projetada18.
No foi o branco que criou a terra, Nhnder a deixoupara que caminhssemos sobre ela (...). H muito temposabemos quem criou as coisas da terra, sabemos quemcriou os bichos e os deixou tambm aqui na terra. Porisso sempre digo que os brancos no podem ter cimesda terra, pois Nhnder a criou para que pisssemossobre ela. Nhmand continua iluminando incansvelesta terra porque seus filhos aqui caminham. (kunh
karaPauliciana, T.I. Cantagalo, agosto de 2008) 19
Atravs destes elementos apresentados, vale ressaltar o carter de constatao inicial
assumidos pelo desencontro entre concepes de espacialidade e mobilidade entre populaes
17Juru atualmente a denominao guarani (Mby e Nhandeva) mais freqente para os eurodescendentes.Possui pelo menos dois significados: boca peluda em referncia as barbas dos antigos espanhis eportugueses, e tambm da boca para fora em referncia ao pouco valor que estes outros conferem palavra.
18 Este assunto ser retomado posteriormente de forma mais aprofundada.19 Durante a reunio da Comisso Nacional de Terra Yvy Rup. Pronunciada originalmente no idioma guarani,
foi traduzida por Santiago Franco e integra o documentrio Essa pergunta vai ficar sem resposta, a serlanado na segunda metade de 2009, cuja temtica a expulso da famlia de Santiago e de que forma ela foipercebida entre os Guarani. A reunio da Comisso Nacional de Terra Yvy Rup, ocorreu na Terra Indgenado Cantagalo em novembro de 2008.
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autctones e exgenas. Traz-se aqui o entendimento autctone guarani da imposio de um
sedentarismo atravs das demarcaes que, analisado a partir de sua mito-lgica
considerado ilegtimo, j que o mundo das divindades, no dos brancos que, para
garantirem a hegemonia de sua forma de organizar o espao, colocam os Guarani em posio
de subordinao (LVI-STRAUSS, [1968] 2006).
Este primeiro captulo teve como foco a retomada dos aspectos histricos do
desencontro de vises de mundo ocorrido no continente americano entre autctones e
euroreferentes. Foram tratadas igualmente as implicaes da projeo/construo da imagem
do outro a partir das prprias referncias; o surgimento da figura do ndio genericamente
concebido pelo imaginrio ocidental (SOUZA PRADELLA 2008) no imaginrio ocidental; a
dificuldade de dilogo no contato entre povos com noes distintas de espacialidade; e a
demarcao do outro (e de seu territrio) conforme as prprias referncias enquanto
exerccio de fora, com a mobilidade indgena sendo submetida s demarcaes espaciais das
sociedades de matriz europia.
Tomando o desencontro como tema de fundo das relaes entre as populaes
autctones e aquelas de matriz europia, no captulo seguinte sero apresentados aspectos
relevantes das coletividades guarani: iniciando com um breve panorama de sua presena no
continente sul-americano, apontando tambm as especificidades do contexto brasileiro,
descrevendo a regio em que se desenrola esta etnografia e apresentando os interlocutores
nesta pesquisa. Ao fim deste mesmo captulo, ainda que de maneira um tanto sinttica, a
bibliografia sobre a mobilidade entre estas populaes ser tambm apresentada.
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CAPTULO II GUARANI
2.1.UM POVO CONTINENTAL:
Os Guarani podem ser definidos como um conjunto de povos falantes de formas
dialetais componentes da lngua guarani. Esta por sua vez integra numa esfera mais ampla a
famlia lingstica Tupi-Guarani, que parte constituinte do grande tronco lingstico Tupi.
Estima-se que o quadro demogrfico das coletividades guarani no perodo pr-
cabralino chegasse cerca de um milho e meio (P. CLASTRES, 2003, p.109). Aps a
chegada dos europeus, este volume populacional foi drasticamente reduzido como resultado
de epidemias, polticas coloniais de escravido e etnocdio (idem, p. 79) perpetuadas durante
sculos pelos europeus e seus descendentes.
Imagem 4 Panorama aproximado da presena guarani na atualidade. Imagem de satlite obtida atravs dosoftware Google Earth.
Apesar da imensa queda populacional, na atualidade os Guarani so consideradosuma das maiores coletividades originrias na poro meridional da Amrica do Sul. Divididos
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em pelo menos sete parcialidades20 Kaiow, Mby, Nhandeva, Ava-Xiriguano, Guarayo,
Izoceo e Tapiet, cada uma delas, constitudas na forma de redes de parentesco extensas.
Interagem com amplas e distintas regies ainda que geralmente (e oficialmente) estejam
habitando arquiplagos de reas de pequeno e mdio porte, em situao fundiria diversa
das faixas de domnio nas margens das estradas estatais s terras indgenas reservadas nos
territrios nacionais do Paraguai, da Argentina, do Uruguai, do Brasil e da Bolvia.
Segundo boa parte da bibliografia, cada uma das parcialidades possui caractersticas
distintas historicamente constitudas as quais se evidenciam nos aspectos lingsticos
diferenciados, cada qual formando um dialeto. Cada uma destas tambm se distingue das
outras, no que se refere diversidade de relaes estabelecidas histrica e
contemporaneamente com outros povos de matriz indgena, negra e/ou europia.
Alguns autores consideram a possibilidade das parcialidades Xiriguano, Guarayo,
Izozeo e Tapiet se originarem de grupos aruake changuaranicizados (RODRIGUES,
1985, p.42). Ainda assim, conforme Quinteros & Guarania, todas as parcialidades
compartilham entre si elementos de guaranicidade (avacidade) ou modos de ser
semelhantes que, em diferentes circunstncias histricas, foram chamados Guarani
(QUINTEROS & GUARANIA, 2000, p.24). Logo, apesar da diversidade dialetal, as
parcialidades guarani conservam grau significativo de proximidade, tanto em relao matriz
lingstica, quanto no que se refere aos aspectos cosmolgicos. Portanto, um Mby que
atualmente viva no litoral do Esprito Santo com pouco esforo capaz de compreender e de
ser compreendido por umXiriguano habitante nos charcos aos ps da cordilheira boliviana.
De forma similar, estas parcialidades no reconhecem como limites as fronteiras
nacionais sobrepostas aos seus territrios. Alm do Brasil, existem grupos kaiow tambm
presentes na poro norte do Paraguai e leste da Bolvia, populaes mby e nhandeva podem
ser encontradas no s no sul e sudeste do Brasil, mas tambm nas regies do norte da
Argentina, no Paraguai e em uma ou duas reas no Uruguai (LADEIRA 1992).
Onde quer que os grupos de duas ou mais parcialidades guarani se encontrem,
circulando e coabitando uma mesma regio, o carter da relao estabelecida entre estes pode
possibilitar tanto um grau relativo de aproximao lingstica e ritual, como, num sentido
contrrio, medidas de distino e distanciamento.
20 Denominadas por alguns autores como subgrupos tnicos (SCHADEN 1974; LADEIRA 1992).
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2.2.ENTRE BRASILEIROS:
No territrio brasileiro, podem ser atualmente encontradas trs das sete parcialidades
Guarani. So elas a Kaiow (cuja autodenominao Pai-Tavyter), a Mby e a Nhandeva
(tambm chamadaXirip) (SCHADEN, 1974, p. 7; LADEIRA, 1992, p.62).
Os Kaiow so a maior coletividade contando com cerca de 19.000 pessoas localizadas no
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, dispostas em reas cada vez menores, em franco processo
de confinamento por empresas de expanso do agronegcio (agrobusiness). No contexto
brasileiro osMby cuja coletividade em torno de 5.000 a 6.000 pessoas e osNhandeva aproximadamente 10.000 pessoas compartilham um mesmo territrio transitando por um
arquiplago de pequenas reas que tm o litoral do Esprito Santo e o Oeste do Rio Grande
do Sul (LADEIRA 1992, p38) como fronteiras norte/sul e o litoral atlntico como limite ao
leste. Existem tambm grupos familiares Mby originrios de uma mesma famlia que se
dirigiram para o Brasil aps a Guerra do Paraguai vivendo na regio norte do pa