HESPANHA, Antonio Manuel. as Fronteiras Do Poder. O Mundo Dos Rústicos

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  • Revista Seqncia, n 51, p. 47-105, dez. 2005 47

    AS FRONTEIRAS DO PODER. O MUNDO DOS RSTICOS

    Antnio Manuel Hespanha*

    Sumrio: Introduo: Mundos submersos: o direito erudito a contrapelo; 1. Tradi-cional/erudito; 2. Convivncia de instncias: antagonismos e conflitos velados; 3. Oralidade/escritura; 4. Litigiosidade no Antigo Regime; 5. Silvcolas, camponeses, rsticos; 6. O rstico: ingenuidade e ignorncia; 7. In rustico est praesumptio ignoran-tia: a questo dos privilgios dos rsticos; 8. O costume: entre iura propria e ius commune; 9. Os juzes locais: s margens da erudio; 10. O perfil do juiz: entre a prudentia e a peritia; 11. As fontes do direito no mundo dos rsticos; 12. O mundo da magistratura popular; 13. Juzes, rbulas e outras figuras na justia tradicional; 14. Saber e ignorncia: a negao do outro; 15. Erudio, escrita e poder; Consideraes finais: A doce violncia da razo jurdica. Referncias.

    * Professor Catedrtico de Histria do Direito na Universidade Nova de Lisboa, Portugal.

    Resumo: O artigo historiogrfico analisa a experincia portuguesa na transio de um direito costumeiro que foi se transformando, a partir do Sc. XV, em uma categoria de fonte do direito francamente secundria frente legislao real e o direito comum, que pas-saram a regular cada vez mais extensamente a vida social. No plano da administrao da justia, ocorreu o mesmo processo, quando, a partir do Sc. XV, a progressiva interveno da justia real (erudita), teria gradualmente substitudo a autonomia jurdica dos conse-lhos e dos senhorios (rsticos).Palavras-Chave: Administrao da justia em Portugal; Direito comum; Direito consuetu-dinrio; Erudito; Rstico.

    Abstract: This historiographic paper aims at analyzing the Portuguese experience considering the transition of common law, which changed itself from the XVth century, in a purely secondary law category, when compared to the real legislation and common law that controlled more and more extensively social life. Concerning justice management, it was the same process, from XVth century, when a continuous intervention of real justice (erudite) would gradually have substituted the juridical autonomy of Councils as well as the landlords one (peasants).Keywords: Justice Management in Portugal; Common Law; Consuetudinary Right; Eru-dite; Peasants

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    Introduo: Mundos submersos: o direito erudito a contrapelo

    As fontes histricas tanto nos mostram muitas vezes enganosamente o que nelas buscamos como tambm se mantm aparentemente silenciosas em relao ao que achamos que devessem dizer. Na realidade, o problema no das fontes, mas da prpria natureza do dilogo historiogrfico, cheio de equvocos e mal entendidos. As fontes no foram escritas pura e simplesmente a pensar em ns, nunca pretendem satisfazer nossas curiosidades. Mesmo quando intencionalmente produzidas para falar ao futuro, encriptam suas mensagens numa linguagem que, sendo a delas, no a nossa.

    Disso decorre a necessidade de aprendermos a l-las, para que saibamos reconstituir os cdigos com os quais constroem suas mensagens.

    Os juristas, por exemplo, quase nunca falam daquilo que, a seu ver, no direito: mesmo que isso diga respeito a quase todas as pessoas e corresponda ao prprio direito do cotidiano1 ou seja, as regras obrigatrias da vida.

    Quando se estuda histria, ainda preciso ultrapassar o discurso ex-plcito das fontes. Sobretudo, quando se torna patente a no coincidncia entre os modelos jurdicos das fontes legais os doutrinais mais ainda e a generalidade das situaes vividas.

    O tratamento doutrinal e mesmo o legal do mundo jurdico do Antigo Regime constitui um bom exemplo disso.

    H alguns anos, interessamo-nos em entender o sistema de administra-o da justia em Portugal nos sculos XVII e XVIII. Pela literatura da poca e dados recolhidos nos arquivos, sabamos que, at as grandes reformas judi-cirias do sculo XIX, o peso numrico das magistraturas eruditas era muito pequeno. O nmero de juzes de fora os nicos que, desde 1539, eram obri-gados a ter uma formao jurdica universitria no ia alm de um dcimo do total de juzes dos concelhos2. Os demais eram juzes que, quando muito, sabiam ler e escrever, embora as fontes evidenciem que muitas vezes nem isso ocorresse. Com isto, rapidamente se compreende que todo o discurso

    1 Sobre esta no correspondncia entre o direito dos juristas e o direito do cotidiano, cf., por todos, Sarat, ____.

    2 Nmeros mais precisos, em Hespanha, 1994, As vsperas do Leviathan; sntese em Hespanha, 1986, Centro e periferia no sistema poltico portugus do antigo regime, p. 35-60.

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    dos juristas eruditos sobre a organizao judicial baseada na aplicao do direito letrado, romano ou cannico, e, depois, na lei escrita do reino3 as-sentava-se numa fico ou mesmo numa deliberada recusa da realidade. O discurso dos historiadores parafraseia piamente as afirmaes dos juristas, principalmente por isso corresponder a uma viso historiogrfica translatcia sobre uma alegada precoce centralizao do poder em Portugal.

    Realmente, a ideia vulgarmente transmitida pela historiografia das fontes de direito totalmente voltada descrio das fontes dos tribunais centrais e aos problemas doutrinais levantados a este propsito pelos juristas eruditos a de que, a partir do sculo XV, os costumes gerais e locais tinham passado categoria de fontes de direito francamente secundrias. No s a legislao real e o direito comum regulariam cada vez mais extensamente a vida social, como a doutrina teria subordinado definitivamente o costume lei, substituindo sua antiga definio como um autnomo consenso tcito do povo (tacitus consensus populi), dependente de uma tolerncia consciente do rei (conscientia et patientia regis). Assim, entre os sculos XVI e XVIII, teria se vivido sob franco predomnio do direito rgio e do direito comum, este ltimo contido na Glosa de Acrsio, nos comentrios de Brtolo e, mais recentemente, na communis opinio dos modernos 4.

    No plano da administrao da justia, a viso a mesma. A partir do sculo XV, a progressiva interveno da justia real atravs dos juizes de fora e dos corregedores teria gradualmente substitudo a autonomia jurdica dos concelhos e dos senhorios. A expanso do aparelho de justia real teria alar-gado o mbito de aplicao do direito rgio (jus proprium) e do direito erudito (ius commune) este, sobretudo a partir de 1539, quando se passa a exigir de corregedores e juizes de fora uma formao universitria em direito.

    E, na verdade, muitos factores se combinam para tornar esta imagem verossmil.

    No plano poltico-ideolgico, afirma-se, na historiografia portuguesa, a persistncia do mito da tal tempor centralizao do poder real, que, no sculo XVIII, j servia para contrastar Portugal com o feudalismo centro eu-

    3 Sobre os sistemas das fontes de direito nesta poca, ver, por todos, SILVA, 1980.4 Sobre todos estes conceitos, v. SILVA, 1980.

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    ropeu, enaltecendo a aco da coroa na correco dos abusos feudais. A mesma centralizao que, no sc XIX, tanto contribuiu para legitimar historicamente o poder moderador do rei previsto na Carta Constitucional de 1826. E que mais tarde, com o decadentismo do fim de sculo, serviu para explicar a apenas latncia de um pas esvaziado de sua cidadania e dinmica local pelos desgnios polticos de uma corte monopolizadora, distante e imobilista.

    Por outro lado, no campo mais preciso da ideologia e da dogmtica dos juristas, essa ideia de expropriao dos poderes locais pelo centro parecia um processo natural. A separao entre Estado e sociedade civil, o monoplio das competncias deliberativas do poder central e, portanto, a atribuio periferia de competncias meramente executivas, constituam inelutveis fac-tores de um processo histrico necessrio e desejvel de desenvolvimento de uma razo natural no domnio da organizao poltico-administrativa. Se, em Portugal, tal processo tinha ocorrido precocemente, tanto melhor.

    A par destes ingredientes ideolgicos, o estado das fontes contribuiu tambm para esta ocultao do mundo das justias locais.

    A organizao da vida jurdica local baseada na oralidade defen-dia-a mal do esquecimento da histria. Os costumes raro tinham sido, que se saiba, reduzidos a escrito: do final do sculo XIV, conhece-se cerca de uma dezena de redaes de costumes. Mas evidente que isto corresponde apenas a uma pequena parte do direito consuetudinrio. O resto, apesar da expressa cominao das Ordenaes de que os costumes fossem reduzidos a escrito (Ord. Af., 1, 27, 8; Ord. Man., 1, 46, 8; Ord. Fil., 1, 66, 28), perdeu-se ou est disperso nas declaraes de posturas que por vezes se encontram nos livros de vereaes das cmaras.

    Quanto s sentenas dos juzes locais, parte delas no foi sequer reduzi-da a escrito, dado que as Ordenes promoviam a simplicidade e a oralidade do processo nos tribunais locais, satisfazendo-se frequentemente com a mera redaco do assento final (protocolo) pelo escrivo. O que nomeadamente impede o conhecimento das motivaes da sentena (rationes decidendi) e da argumentao do juiz. Mesmo em relao a sentenas escritas que, contra a regra comum do direito portugus, poderiam nem mesmo apresentar a motivao , poucas esto disponveis para estudo. De facto, a generalidade das colees de sentenas apenas recolhe as dos tribu nais superiores, as quais

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    raramente do uma descrio apropriada da deciso recorrida. As inditas jazem nos caticos arquivos judiciais ou municipais.

    Se, em virtude destes preconceitos e problemas de fontes, a historio-grafia tradicional teve razes para ignorar o direito local e o labor das ma-gistraturas populares, a estas razes somou-se a imagem que a literatura da poca deu deste mundo jurdico marginalizado.

    aqui que se comea a situar a questo que agora nos interessa, a do estatuto deste mundo submerso, margem da cultura erudita.

    A doutrina jurdica no muito prolixa a respeito destas questes. Os principais juristas portugueses da poca so, na verdade, pessoas diversamen-te ligadas aos meios do direito rgio ou erudito: professores universitrios, desembargadores ou advogados dos tribunais superiores; ou seja, letrados e oficiais do rei. certo que muitos deles tinham feito sua carreira pela pro-vncia, e que alguns recordavam questes ento surgidas. Mas sua viso do foro local era decisivamente influenciada pela formao universitria ou pela situao profissional e poltica em que se encontravam, como funcionrios do rei. Sua ateno s era atrada pelas magistraturas locais quando, comentando as Ordenaes, encontravam os ttulos a elas dedicados. Porm, ao falar deste mundo, utilizavam fontes doutrinais do direito comum alheias realidade portuguesa direi mais, a qualquer realidade exterior ao mundo dos juristas cultos , e reproduziam frmulas doutrinais estereotipadas, sob as quais no se consegue entrever a natureza e a dinmica da vida jurdica local5.

    Os concelhos, seu direito e seus magistrados aparecem a como se fos-sem municpios romanos ou cidades italianas contemporneas dos grandes juristas de trezentos. E se acaso a prpria realidade local portuguesa to gritantemente diferente que suscite uma observao particular, esta nor-malmente dirigida pela tica do jurista erudito, que tende a desvalorizar a realidade jurdica autnoma dos concelhos, caracterizando-a apenas, do ponto de vista negativo, como uma situao de ausncia ou de desconheci-

    5 Esta repetio de ditos e esteretipos clssicos, to tpica do discurso jurdico do direito comum, tambm no inocente, tanto do ponto de vista das estratgias argumentativas, como das lutas simblicas. Como instrumento de aumento de prestgio intelectual, o recurso s fontes clssicas exibia um saber distinto e elegante; como apoio da argumentao, o recurso a tpicos tradicional-mente invocados, para mais decorados das referidas distino e elegncia, suscitava o consenso. Cf., neste sentido COSTA, 1969, p. 202 ss..

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    mento do direito entenda-se, do direito erudito e no como presena de um outro ordenamento jurdico diferente e alternativo. Nesta perspectiva, por exemplo, a caracterstica dominante dos juizes locais no pode deixar de ser a ignorantia, rusticitas, ou imperitia, j que o padro de cultura jurdica no o direito local, mas o direito rgio ou erudito.

    Recusar as propostas desta historiografia atitude correta quando se pretende obter, neste domnio, uma viso do passado vlida para outras reas alm da corte e de umas quantas cidades onde existia justia erudita implica, porm, em uma tarefa um tanto rdua: a de substituir o discurso fantasmagrico das fontes sobre a omnipresena e a normalidade (em sentido estatstico e normativo) de uma justia letrada e de um direito erudito, por uma descrio histrica da vida jurdica real fora dos grandes centros.

    Baseada na oralidade desprezada pelas fontes escritas, a justia perif-rica partilha, de fato, o destino de todos os fenmenos sociais minoritrios e reprimidos que, para serem recuperados sociolgica e historicamente, levantam srios problemas metodolgicos.

    Qualquer avano do conhecimento nesses domnios exige meios episte-molgicos alternativos para suprir as lacunas criadas pelos mtodos tradicio-nais. Como hiptese de trabalho, fizemos uma leitura sintomal das fontes, tendo por referncia modelos tpicos de organizao da prtica jurdica desenvolvidos pela antropologia e sociologia jurdicas. Leitura essa que permite descobrir, sob o vu do discurso jurdico erudito, as realidades prticas apenas afloradas.

    Para tanto, utilizamos a distino entre sociedades domina das por uma matriz tradicional de distribuio do poder (traditionale Herrschaft) e sociedades dominadas por um sistema poltico de natureza legal-racional (rationale Herrschaft). Tipologia bastante difundida a partir de Max Weber, os recentes estudos de antropologia e de sociologia do direito no s vieram a confirmar suas linhas fundamentais como tambm a libertaram de todo o normativismo da tradio Weberiana.

    Na literatura mais atual, esta distino expressa sob a forma de oposio entre sociedades pr-racionais e racionais, tradicionais e modernas, camponesas e capitalistas.

    No domnio do direito, o contraste entre estes dois tipos de organiza-o social (ao que se liga uma dualidade de organizao simblica) j foi

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    descrito em vrios trabalhos, principalmente de antroplogos6. Segundo Boaventura de Sousa Santos que utilizou os instrumentos tericos dessas correntes na sua investigao sobre o direito no oficial das favelas do Rio de Janeiro7 ,os traos distintivos da prtica jurdica dessas sociedades marginalizadas dos nossos dias (cujas estruturas e prticas culturais e sim-blicas esto intimamente relacionadas com as das sociedades tradicionais) podem descrever-se da seguinte forma.

    Geralmente, os conflitos tm um carter trans-individual, no se redu-zindo a uma questo puramente privada. A comunidade mostra-se, de certo modo, empenhada nos diferendos entre seus membros. Isto se explica pela forte solidariedade decorrente do teor marcadamente coletivista da vida social. Alm disso, a natureza tradicional e imanente (isto , no voluntarista e arbitrria) da ordem jurdica transforma qualquer conflito sobre o direito numa questo que ultrapassa o nvel meramente tcnico e que pe em causa os fundamentos (considerados indisponveis) da vida social. Ou seja, sendo a ordem jurdica resultado de uma tradio social quase sagrada, e no o produto arbitrrio de uma vontade (individual ou coletiva), o ato anti-jurdico tido como algo alm de uma simples transgresso: torna-se um desafio s regras fundamentais da vida em comum.

    este carcter trans-individual dos conflitos que explica, por um lado, a fluidez das fronteiras entre o direito (ius), a moral (fas) e o costume (mos), alm da referncia permanente no discurso jurdico tradicional padres ticos de conduta praecepta iuris sunt haec: honeste vivere, alterum non Iaedere, suum cuique tribuere: aquilo que deve ser considerado como fundamento do direito viver honestamente (scl., de acordo com a natureza das coisas), no prejudicar outrem e dar a cada qual o seu lugar.

    Soma-se a isto a censura tico-religiosa dirigida ao conflito e s pessoas conflituosas. Alm de transformar o pecado numa sombra quase necessria do crime, a Igreja considerava negativamente o recurso justia para resolver

    6 Cf. Fallers (1969), Gluckmann (1965, a e b), Nader (1969), Hocker (1975), bem como a vasta bibliografia citada em Santos (1980) e Spittler (1980). V. ainda os textos publicados pela UNESCO, no quadro das Runions dexperts pour examiner les premiers rsultats de recherches sur les conditions du transfert des connaissances (Veneza, 26-30.06.1978).

    7 Santos (1974); cf. desenvolvimentos sobre a sua investigao em SANTOS, TNSC.

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    diferendos, promovendo, antes, formas de composio amigvel, tuteladas por ela mesma ou pela comunidade (compromissum, arbitragem).

    Este carcter comunitrio da dissenso tambm explica a indistino entre sanes penais e civis, da qual resultam quer a penalizao de questes hoje em dia nitidamente civis (por exemplo, a priso por dvidas), quer a civilizao de questes actualmente de natureza penal (por exemplo, a aceitao de penas puramente privadas de reparao penal)8. Este carcter comunitrio dos conflitos explica ainda a interveno activa do tribunal e da prpria sociedade (atravs dos seus elementos mais respeitados, os honoratio-res, ancios) na busca de um equilbrio entre os interesses conflituantes, que permita resolver o litgio de forma durvel (SANTOS, 1980, p. 17).

    1 Tradicional/erudito

    Uma segunda caracterstica consiste na precariedade dos meios coercivos institucionalizados, demonstrando que a resoluo dos conflitos se assenta numa violncia doce do discurso, orientada obteno de um consenso que possibilite no s satisfazer momentaneamente os interesses, mas tambm encontrar um equilbrio estvel. Este objectivo atinge-se por diversos meios. Por um lado, atravs de um grande investimento retrico-argumentativo e at emocional tendente criao das bases do consenso. O discurso jurdico socor-re-se de todos os lugares retricos aceites, mobiliza toda uma riqueza emocional e tpica e, longe de isolar a questo numa moldura tcnica e abstracta (neutra, do ponto de vista das convenes colectivas), favorece constantemente sua ligao com outros registros valorativos da vida social (tica, religio, mundo das virtudes), salientando o carcter socialmente indispensvel da obteno de um acordo (e, por conseqncia, os deveres das partes nesse sentido).

    A prpria estratgia da deciso, por outro lado, deve facilitar a concilia-o das partes. Assim, a deciso tende a ser no uma forma de adjudicao, em que um juiz neutro profere uma deciso que pode ser inexoravelmente sacrificadora de uma das partes, mas uma forma de mediao assente numa certa reciprocidade de cedncias e ganhos (SANTOS, 1980, p. 21).

    8 Cf. Hespanha, JD.

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    A terceira caracterstica o fraco grau de institucionalizao das ins-tncias decisrias das questes jurdicas.

    Isto concretiza-se primeiramente no carcter no autnomo das institui-es jurisdicionais, que so integradas ou presidi das no por profissionais de carreira, especializados e escolhidos em funo das suas qualificaes tcnicas, mas por indivduos investidos de um prestgio social anterior sua designao como juzes (honoratiores, notveis), que exercem essa funo a par de outras papis e dignidades sociais, no pos suindo qualquer formao tcnica.

    Em segundo lugar, o carc ter no tcnico da linguagem jurdica ou, pelo menos, o facto de o seu baixo grau de especializao no provocar a distanciao entre o tribunal e o auditrio (SANTOS, 1980, p. 34) permite um controlo e uma participao pblica no desenrolar do processo e, finalmente, na deciso.

    A simplificao dos processos, em terceiro lugar, traduz uma ten-tativa de aproximar as prticas judiciais dos rituais e formalidades da vida quotidiana, eliminando todos os protocolos em que os aspectos materiais so sacrificados em face aos aspectos formais. Ou, melhor dizendo, em que a soluo socialmente evidente e justa abandonada por razes formais por exemplo, a fixao definitiva do objecto do proceso de acordo com a Iitis contestatio; a existncia de critrios pr-estabelecidos de apreciao da prova; a perda de direitos materiais por prescrio de prazos ou por violao de certas formalidades processuais.

    Finalmente, a institucionalizao dbil revela-se ainda no carcter omni-inclusivo do discurso jurdico, em que o caso jurdico no se distingue do caso vivido. Ou seja, onde pouco ou nada se sacrifica na modelao do caso da vida para efeitos do seu processamento jurdico. Isto explica, nomeadamente, essa incapacidade, tantas vezes patente, de auto-domnio dos membros das comunidades tradicionais perante o formalismo do direito moderno, ao qual so irrelevantes muitas circunstncias e motivos que a vida consideraria como absolutamente relevantes (SANTOS, 1980, p. 26).

    2 Convivncia de instncias: antagonismos e conflitos velados

    O antagonismo entre as prticas jurdicas tradicionais e as que se de-senvolveram no Estado contemporneo no deve fazer perder de vista ao

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    menos nas sociedades em que coexistem os dois tipos de prtica que as relaes entre ambas no eram de oposio total. Com efeito, quer a lei, quer as formalidades do processo erudito podem ser apropriadas pelo direito tradicional. No entanto, essa apropriao modifica desde logo as regras de sua utilizao no discurso jurdico. A lei ou a frmula doutrinal perde sua qualidade de critrio decisivo e imperativo na inveno da soluo jurdica, e passa a ser apenas um tpico entre tantos outros, num sistema argumen-tativo cuja estratgia agora dominada pela preocupao de alcanar um acordo. O que acontece com a lei, ocorre igualmente com as frmulas e os actos do processo erudito quando aplicados no contexto do processo tradi-cional (SPITTLER, 1980, p. 6). Tais factos se explicam pela presena, nessas sociedades dualistas (a partir deste aspecto), de um modelo legal-racional de legitimao do poder, do qual faz parte a crena no carcter decisivo da forma jurdica escrita, tanto no plano das normas como do processo9.

    A referncia ao direito escrito prende-se, assim, necessidade de criar uma atmosfera de oficialidade e de normatividade que facilite a aceitao da soluo (SANTOS, 1980, p. 19). Alm disso, a forma escrita favorece a imagem de distanciao entre o tribunal e as partes e, deste modo, refora essa ideia moderna mas de algum modo presente no direito mais antigo10, embebida na igualdade da justia de que a realizao da justia exige a heteronomia do rgo decisrio.

    De qualquer modo, numa sociedade tradicional (ou dualista, pluralista), o uso de modelos jurdicos modernos convive com outros modelos tradicio-nais, e combina-se com estes para composio e legitimao de estratgias jurdicas que no so as do Estado contemporneo. Estudos sobre ambientes

    9 WEBER, 1956.10 A ideia actual de que o tribunal deve ser neutral est prxima mas no se identifica completamente

    com a antiga idia de que o juiz no pode fazer da deciso uma coisa sua (facere litem suam), ou seja, dependente dos seus interesses ou critrios pessoais. Realmente, o juiz pode deixar-se mover por sentimentos (de simpatia, de misericrdia, de amizade), pois isso faz parte da natureza humana; o que no pode ultrapassar os limites que distinguem sentimentos comuns de sentimentos particulares. Por outro lado, a ideia de igualdade decorre do princpio de que no se pode infligir um prejuzo ilegtimo a nenhuma das partes. Mas pode tratar-se benevolamente uma delas se a outra no for prejudicada com isso. Assim, possvel perdoar um criminoso se o ofendido tambm o perdoar. Ou se, pura e simplesmente, no houver um particular ofendido.

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    to diferentes como a Prssia do sculo XVIII11, a ndia do sculo XIX ou a frica do sculo XX12 do disto ilustraes convincentes.

    Estas relaes entre os dois tipos de prticas jurdicas levaram tese de que o desenvolvimento da justia tradicional (dispute institutions) pressupe a coexistncia de uma justia institucionalizada na forma estadual (courts), sob cuja ameaa se actuaria nos tribunais locais, importando, ao mesmo tempo, alguns dos seus elementos processuais. Esse processo poderia significar tanto a pretenso da justia tradicional de obter legitimidade pelo mimetismo das formas, como a de obter um certo reconhecimento do Estado a formas de justia que este tenderia a considerar esprias13.

    Contudo, seria errado partir destas consideraes para uma concepo na qual a justias tradicional e estadual se integrassem harmoniosa e comple-mentarmente num sistema global de resoluo de conflitos. Ou ainda, como as fontes histricas eruditas muitas vezes deixam supor, que a diviso do trabalho entre ambas resultaria de uma deciso do legislador, o qual, sen-satamente, deixaria aos povos o julgamento das questes menores, a fim de, simultaneamente, preparar as decises dos tribunais superiores (organizadas de acordo com as regras processuais eruditas) e os libertar, em parte, da sua carga. Pelo contrrio, embora esses dois mundos no sejam estanques, as relaes entre eles so sempre conflituais, e as trocas s se fazem custa de converses funcionais dos elementos apropriados.

    Assim, no se deve falar de continuidade entre ambos, mas de ruptura e de conflito, ainda que encobertos14. Fundamentalmente, a justia tradicional nunca se conforma com o estatuto de apenas primeira instncia da justia

    11 Bauernstaat Preussen12 Law in colonial Africa (v. Hespanha, Law and colonial dominance).13 Tal a tese de Spittler (1980, p. 4-32) que explica a difuso, em certas sociedades, de instituies

    no-judiciais (nichtgerichtliche lnstitutionen, dispute institutions) com base, no no seu carcter universal (tese universalista) ou na sua ligao a um determinado estilo cultural (tese culturalista), mas na sua dependncia das instituies judiciais. A tese central deste artigo de que a grande expanso e xito das instituies judiciais no oficiais, ultimamente estudadas pelos etnlogos, tem a ver com a existncia dos tribunais estaduais, no sentido em que as comunidades tradicionais teriam necessidade de evitar a auto-defesa sem carem no campo de aco dos tribunais oficiais, em relao aos quais haveria uma profunda antipatia.

    14 Para uma anlise semelhante das relaes entre a cultura oral e a cultura escrita, cf. BUML, 1980, p. 237 ss.

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    estadual, pois no aceita de bom grado uma estrutura judicial e processual muitas vezes totalmente s avessas da sua lgica e dos seus modelos de obteno de consenso e de legitimao.

    Com efeito, os tribunais tradicionais diferem dos estaduais, quer no plano do direito processual, quer no plano do direito material (quanto a este ltimo, pelo facto de se submeterem a normas jurdicas tradicionais diferentes das normas do direito oficial e erudito). No direito processual erudito, h regras que esto nos antpodas da organizao do processo tradicional: primeiro, a utilizao da linguagem tcnica, maxime, do latim; segundo, as regras sobre a interveno das partes no processo (necessidade de representao por um advogado ou procurador, limitao do direito de uso da palavra); terceiro, a estrutura dos meios de prova (predomnio da forma escrita) e o sistema de sanes (preponderncia das sanes de tipo penal v.g., priso ou multas pblicas em substituio das de natureza privatista, que apenas visam a reparao do ofendido).

    Tudo isto transformava o processo escrito em algo estranho s partes, cuja legitimidade no aceitavam e a que, portanto, tentavam escapar.

    3 Oralidade/escritura

    O entendimento da oposio entre prticas jurdicas tradicionais e as dos modelos estadualistas pode ser enriquecido com uma referncia a uma problemtica terica vizinha a das diferenas entre culturas (e, portanto, culturas jurdicas) orais e escritas.

    Existe hoje um importante trabalho de reflexo que, ao romper com a ideia da homologia entre expresso escrita e oral, permite evidenciar as caractersticas prprias das culturas orais e escritas, no apenas no plano das tecnologias da comunicao, como nos prprios processos intelectuais e culturais, que, agora se descobre, esto intimamente ligados s tcnicas de expresso e de comunicao.

    Tais como descritas pelo autor que lanou esta problemtica15, as ca-ractersticas das culturas orais correspondem aos grandes traos daquilo a

    15 GOODY, 1977; WIATT, 1963. Sobre a sua obra v. o prefcio da traduo francesa do seu livro (BAZIN; BENSA, 1979). Outras obras fundadoras, V. adiante n.

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    que se costuma chamar de prtica jurdica tradicional. Ou seja, o carcter tradicional e, ao mesmo tempo, flexvel da cultura.

    Desprovidas de textos que possam tornar-se elementos cannicos ou modelares fixos, as culturas tradicionais vivem de uma tradio que se transmite de boca em boca. Em cada transmisso, esta tradio se modifica, quer pela incorporao de novos elementos que passam a fazer corpo com os antigos, quer pela obliterao discreta dos elementos antigos que deixaram de ter actualidade nos novos contextos comunicativos ou culturais. A cultura , por isso, sucessivamente efmera, destituda de profundidade histrica. Nela, o presente se encontra nivelado com as sucessivas fatias do passado, numa tradio anti-histrica.

    Este facto, verificado na generalidade dos domnios culturais, pode tam-bm ser notado na cultura jurdica. As ordens jurdicas medievais e primo-modernas tm ainda esse carcter aditivo: coexistem as normas mais antigas com as mais recentes, integrando-se incessantemente o direito antigo com o direito novo, sendo os textos antigos objecto de modificaes no explcitas (v. o caso mais famoso das interpolaes em direito romano), gozando o costume de um poder constitutivo ou revocatrio das normas jurdicas (Cf. HESPANHA, 1987, p. 97.). Eis aqui um trao da cultura jurdica mesmo de uma cultura jurdica que j recorria massivamente escrita que se reporta ao que foi dito das culturas orais. Trao esse que se prolonga durante todo o perodo do direito comum.

    Outra importante caracterstica das culturas orais sua inaptido ao pensamento analtico. Com efeito, o tratamento analtico do discurso apenas possvel perante um texto escrito. S este permite cindir e descontextualizar cada elemento do discurso, verificar sua ligao com outros ocorrentes no restante do texto e testar sua utilizao em momentos sucessivos da exposi-o. Da que os processos intelectuais da definio, da elaborao de regras abstractas, de listas, de tabelas ou de frmulas etc, no se tenham tornado possveis seno quando se atingiu o nvel da escrita.

    Nas culturas orais, estas operaes mentais so substitudas por outras menos exigentes quanto ao grau de abstraco e de generalizao, como o raciocnio pelo exemplo ou seja, a organizao do discurso (e do processo mental) em torno de modelos concretos, em que todo o contexto existencial,

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    emotivo e histrico est presente, e a partir do qual se processa, por com-paraes, distines e variaes mnimas, uma hermenutica profunda do caso, bem como uma eventual extenso a outros casos, do saber obtido, sem que se proceda a qualquer reduo ou dissecao analtica.

    No domnio do direito, isto apresenta um grande paralelismo com a vitalidade do modelo argumentativo e concretizador16 (precedentes, analogia, casusmo) nos mecanismos tradicionais do achamento da soluo jurdica. Modelo esse que ainda deixa marcas no mtodo jurdico tardo-medieval, prolongando-se, em algumas zonas, at bem mais tarde.

    Estas diferenas entre os mecanismos intelectuais das culturas jurdicas escritas e orais contribui tambm para explicar a inacessibilidade do discurso jurdico letrado fundado nos processos lgico-intelectuais tpicos da cultura escrita (como, por exemplo, a glosa, o comentrio, a citao, as classificaes, as definies) aos operadores do direito nas culturas jurdicas orais.

    Quanto a oralidade, um terceiro factor a ser destacado a insero do discurso num clima emocional e afectivo, provocado pela impossibilidade de distanciamento, inevitvel no discurso falado, entre o locutor e o universo dos destinatrios. O auditrio est, no discurso oral, mais sujeito manipulao emocional do locutor. A retrica (por oposio lgica e dialctica) jus-tamente a arte de fazer apelo ao consenso na base no pela validade do que dito, mas pela expressividade da aco de dizer. Em direito, este facto no apenas explica o papel do rbula (ou seja, do discurso do advogado dirigido para manipulao emocional e dramtica do auditrio), como confirma, numa perspectiva complementar, o que j se disse sobre as incessantes referncias do discurso a registros culturais e sociolgicos extra jurdicos.

    Por fim, em contraste com as culturas escritas, em que o documento escrito ocupa um papel probatrio fundamental ligado sua permanncia e sua fixidez (verba volant, scripta manent)17, o carcter especfico da prova nas culturas orais repousa no testemunho, que, no podendo ser confirmado

    16 Sobre ele, HESPANHA, 1997, p. 110 ss. e bibliografia a citada.17 Cf., sobre as relaes entre memria e escrita, Bouza (1999), onde, de resto, se explicam as conexes

    visveis que existem, na cultura europeia moderna, entre capacidade de escrever e a plena realizao do homem, justamente no papel determinante que memria ocupa na configurao da natureza humana.

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    de outra forma, crido na base da sua autoridade, no tendo validade, pela verosimilhana daquilo que diz, mas pela credibilidade da testemunha ou pelo carcter sagrado (sacramental) do juramento que o acompanhe18. Por outro lado, h tambm relaes evidentes com o imprio do argumento da autoridade, sob o qual a cultura jurdica se baseou at o momento em que finalmente pde dominar as tcnicas de justificao que pertencem ao uni-verso do discurso escrito (argumentao analtica e racional).

    Os mundos da cultura oral e da cultura escrita no se encontram isola-dos, porque a tradio oral pode se manter eficaz e estruturante no seio de uma cultura j dominada pela expresso escrita.

    Num artigo em que contesta a dicotomia entre as duas culturas19, Fernan-do Bouza salienta que, na Ibria da poca moderna, as linguagens oral, escrita, iconolgica, dramatrgica e mmica se combinavam como meios alternativos e sectorialmente especializados de comunicao (BOUZA, 1999, p. 31 ss.). Em todo caso, deve ter-se em conta que a recepo das tradies orais numa cultura escrita s possvel atravs de uma profunda reconverso, quer de seu contedo, quer de seu papel, no sistema de comunicao social.

    Na verdade, a tradio oral perde o seu papel de enciclopdia cultural da sociedade (Havelock) para se tornar um subsistema marginalizado, que constitui apenas um quadro de referncia cultural s camadas iletradas. Por outro lado, no momento em que a tradio oral parcialmente incorporada tradio escrita, ela submetida a um trabalho de escolha e de traduo que a torne compatvel com os prncipes estruturais, as necessidades e os interesses da cultura escrita.

    No domnio do direito, isto explica, por exemplo, o carcter aparente-mente fragmentrio das redaces de costumes, em que se procurava distin-guir o fundamental do acessrio, o que estava vivo na conscincia popular daquilo que j tinha cado no olvido. Tudo isto no esquecendo que, sendo caro o suporte da escrita (pergaminho, papel) e demorado o prprio acto de escrever, razes puramente prticas limitassem ao essencial a transposio escrita do interminvel fluxo das palavras.

    18 Sobre o juramento, fundamental, v. Prodi (1992).19 E, mais do que isso, a identificao do escrito com o moderno e o oral com o tradicional.

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    Para mais, estas fluidas fronteiras entre cultura oral e escrita devem ser traadas levando-se em conta que nem todos os que no sabiam ler pertenciam forosamente ao mundo da cultura oral. Pelo contrrio, muitos deles ingressavam nas franjas da cultura literria recorrendo a algum que fosse alfabetizado. o caso, por exemplo, dos juzes iletrados, que even-tualmente pediam a mediao do assessor para julgar segundo o direito erudito20. Frequentemente utilizavam os processos prestigiados da cultura escrita, trazendo tinteiro e pena pendurados ao cinto como relatam alguns juristas a propsito dos rsticos sabidos ou copiando os ambientes burocrticos do direito escrito pondo em cima da mesa uma mquina de escrever, como conta Boaventura Sousa Santos, acerca dos operadores do direito popular nas favelas de Pasrgada.

    Nem sempre os letrados abandonavam os modelos comunicativos da oralidade. Num estudo muito original sobre a eloquncia jurdica na Espanha liberal o mesmo se poderia dizer, na mesma poca, para Portugal ou para o Brasil , Carlos Petit mostra como, no mundo jurdico e poltico, onde se mani-festava a opinio pblica (ffentlichkeit, para tomar um conceito conhecido, de J. Habermas), o modelo da comunicao era o discurso forense ou parlamentar (ou, ainda, as lies ditadas e recolhidas por ouvintes), e no o texto escrito. No fundo, neste mundo elitista, a eloquncia natural, a expresso oral fcil e fluente, denotava uma distino intelectual inata, que o trabalho de escrita, polido e apurado, podia apenas imitar. A eloquncia e a seduo pessoal, que constituem os primores da comunicao oral excelente, substituam a erudio e o rigor, que caracterizam a excelncia da comunicao escrita21.

    Este mundo da oralidade das elites liberais no , seguramente, o mesmo dos rsticos. Mas compartilha com ele as capacidades especficas do discurso oral naturalidade, aderncia vida e impregnao emotiva. E, nesse sentido, torna-se distintivo de novas elites, cuja estratgia simblica era a de, pelas luzes naturais, se tornarem distintas dos burocratas, praxistas, pesadamente eruditos e escreventes prolixos, das monarquias pr-revolucionrias.

    20 De ver, sobre esta problemtica de relaes entre cultura oral cultura escrita, o artigo de Buml (1980, p. 237 ss.).

    21 O tema da naturalidade da eloquncia perante a artificialidade do saber letrado era mais antigo; Fernando Bouza refere como a verdadeira eloquncia andava, na cultura hispnica moderna, ligada nobreza natural (BOUZA, 1999, p. 45).

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    4 Litigiosidade no Antigo Regime

    Os estudos sobre a litigiosidade no Antigo Regime22, embora frequente-mente voltados litigiosidade dos tribunais superiores ou seja, ao mundo erudito , no cessam de confirmar estas perspectivas sobre a irredutibilidade e a especificidade do direito popular tradicional.

    Nos trabalhos de Nicole Castan (1980b, em especial) se evidenciam as formas de resoluo dos conflitos que se situadas fora do mundo dos tribunais da coroa. De facto, em muitos casos, estes no eram mais do que um ltimo recurso, necessrio apenas quando tinham fracassado os meios tradicionais e no institucionalizados de conciliao das partes. Tais como as exaces fiscais, tambm as intromisses da justia real na resoluo de conflitos eram vistas com antipatia. O receio do recurso justia oficial era compartilhado pelos pobres, sem meios econmicos para se permitirem o luxo de uma causa em tribunal, e pelos ricos que, por seu turno, temiam que sua riqueza despertasse a cupidez do aparelho judicial. Da, provm a generalizao da ideia de que mais vale um mau acordo do que uma boa demanda23, que tambm seria promovida pelos tpicos cristos sobre a solidariedade, principalmente depois do conclio de Trento.

    Perante esta recusa da utilizao da justia do Estado, surgia uma panplia de meios para a resoluo de conflitos, desde a arbitragem quer levada a cabo pelos pares das partes (arbitragem horizontal), quer pelos notveis (arbitragem vertical, organizada principalmente pelos senhores ou pelos clrigos) (CASTAN, 1980b, p. 15)24 at os resduos da justia privada, sobretudo em reas como questes de honra e de propriedade.

    22 Os estudos sobre a litigiosidade no Antigo Regime so hoje muito abun dantes. Em Frana, os estudos pioneiros so os de Nicole Castan , para a histria, (1980 a e b), e, para tempos mais recentes, os de R. Schnapper (1979). Para a Espanha, clssico, Kagan (1981). Em geral, para a Europa, Baket (1978). Interpretao scio-antropolgica, Kagan (1981), Abel (1973), Shapiro (1975), Felstiner (1974), Fallers (1969), Toharia (1974), Santos, 1980. [cf. Savants nota 26]. Cf. ainda, numa perpspectiva tanto histrica como actual, Hespanha [____] (ed.), Justia e litigiosidade ...com prefcio e textos.

    23 Castan (1980, p. 15); para Espanha, Kagan (1981, p. 202). O que prova a ideia de Gerd Spittler de que a litigiosidade informal se desenvolve, em parte, sombra do Leviathan (ou seja, sob a ameaa de interveno da justia oficial).

    24 Um outro tipo de arbitragem era a tcnica, realizada pelos especialistas em direito erudito (cf. CAS-TAN, 1980, p. 44). Aqui, no entanto, no se tratava de mais um afloramento de uma justia tradicional, mas antes de um processo mais econmico e informal de realizar a justia oficial.

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    Cabia prpria justia oficial a responsabilidade da sobrevivncia desta justia tradicional, devido a sua incapacidade para satisfazer rpida e eficazmente a composio social de interesses.

    Em resumo, pode dizer-se de acordo com N. Castan que, ainda no final do Antigo Regime, o sistema legalista do direito e o correspondente sistema estadual de justia no dominavam de forma alguma toda a prtica jurdica, e que as relaes dos indivduos com o Estado, principalmente na provncia, so ainda muito frustres em questes de justia25. O reforo do poder do Estado neste domnio mais do que o aumento de actos criminosos poderia estar na origem do agravamento da criminalidade em fins do sculo XVIII.

    A obra de Richard H. Kagan (1981) embora incidindo principalmente na prtica judicial de um tribunal superior (a Chancileria de Valladolid) teste-munha tambm uma oposio, ainda no sculo XVIII, entre formas tradicio-nais e modernas de resoluo de conflitos na Espanha: entre o pleyto, que corria num tribunal oficial e erudito, submetido s regras do direito escrito, e os antigos juzos ex aequo et bono (juicios de alvedrio) proferidos pelos juizes tradicionais e honorrios dos municpios e aldeias, submetidos ao direito tradicional parcialmente contido nos antigos fueros.

    Este j largo discurso sobre a justia popular serve para nos introduzir, sem surpresas e com apoio em factos concretos, no mundo da poltica e do direito tradicionais. E, sobretudo, para conhecer seus sujeitos, pois a prpria autonomia deste mundo pressupunha que seus habitantes gozassem de um estatuto poltico pessoal muito diferenciado, segundo o ponto de vista dos detentores do poder central.

    Logo partida, este passo num mundo submergido enfrenta dificulda-des que decorrem do facto de, em geral, no dispormos de fontes escritas que permitam documentar directamente a prtica jurdica tradicional at por ela se no basear no emprego da forma escrita, embora, como j o dissemos, isso no exclusse sua utilizao espordica. Por outro lado, o pouco que se

    25 Segundo o autor, o aumento da criminalidade (da criminalidade oficial, perante os tribunais do Estado), nos finais do Antigo Regime, poderia ser explicado mais pela dissoluo das comunidades tradicionais e, por isso, pela crise dos mecanismos de composio no judicial dos conflitos do que pelo agravamento de factores de crise social. A assuno, pelo Estado, desta tarefa de resoluo de litgios defrontava-se, no entanto, com problemas srios, tanto de resistncia local a esta intromisso, como de falta de meios estaduais para ocorrer a ela.

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    reduziu a escrito e se conservou nos arquivos judiciais foi vtima da usura do tempo e da mediao da cultura para-erudita dos escrives.

    Por isso, foi adoptada uma estratgia de investigao diferente neste trabalho, baseada na procura de vestgios desse direito tradicional precisa-mente nas obras de direito erudito.

    Apesar do tom irreal e fictcio tantas vezes adoptado pelo discurso do direito erudito26, a realidade desse mundo jurdico no assimilado era de tal modo gritante que, forosamente, ele tinha de estar presente no horizonte do jurista letrado, seja como alternativa cultural e jurdica que se tentava combater e depreciar, seja como realidade no assimilada que exigia um enquadramento dogmtico e institucional especfico.

    5 Silvcolas, camponeses, rsticos

    Comearemos esta exposio sobre o lugar atribudo prtica jurdica tradicional nas obras de direito erudito pela descrio dos quadros dogm-ticos e institucionais em que se tentou inseri-la.

    Na literatura erudita, este mundo do direito tradicional, no erudito e no escrito, era designado por mundo dos rsticos27.

    A definio deste universo surge j na literatura clssica do direito comum. Segundo Brtolo, os rsticos so os que vivem fora das cidades ou das terras importantes (omnes qui habitant extra muros civitatis vel castri, tamen idem intellegeremus de castris et commitatuis ubi non esse copia hominum et sic non sunt castra insignia) [os homens que habitam fora dos muros de uma cidade ou castelo, embora tambm o digamos dos castelos e povoaes onde no haja muitos homens e que, deste modo, no sejam castelos importantes]28.

    26 Sobre a funo ideolgica e poltica desse irrealismo ou carcter fantasmagrico do discurso jurdico e erudito, v. Costa (1969, p. 202 ss.).

    27 Literatura sobre os rsticos (privilgios, udicia): Andreas Tiraquellus (1582) Renatus Chopinus (1575 e 1634), Iohannis Albini (1601), lustus Henning Boehmer (1733), Siculus Flaccus (1601), Joh. Wilh. Goebel (1723), Benedictus Carpzovius (1678), lohannis Suevi (1582); e outras obras que focam, sobretudo, as obrigaes feudais dos rsticos e dos camponeses.

    28 Bartolus, Comm. ad Dig. infort. (D. 2, 29, 7, 8, 2); idntica definio dada por Baldo: rusticus dicitur quolibet habitans extra muros civitatis, vel habitans in castro, in quo est hominum penuria [diz-se rstico aquele que habita fora dos muros da cidade, ou de um castelo, onde haja poucos homens], (Comm. D. de iure codic., l. conficiantur, codicilli. cit., t. III, p. 170).

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    Ainda mais expressiva , contudo, a definio de Alexandre de mola, que se refere claramente ao que, em sua opinio, justificava o estatuto especial dos rsticos: a ignorncia e a rudeza (rus ticus proprie est, qui opere, & con-versatione est rusticus) [rstico propriamente dito aquele que rude no comportamento e na maneira de falar] (Imola, 1563).

    Rstico no era, de facto, uma expresso neutra no discurso da Baixa Idade Mdia, como veremos mais adiante em pormenor. Longe de cons-tituir uma simples evocao do mundo rural, ela continha uma conotao nitidamente pejorativa, equivalente a grosseiro (grossus, grossolanus), rude e ignorante, por oposio a um ideal de cultura literria que, cada vez mais, se vinha impondo.

    Esta imagem degradada da rusticidade no decorria apenas de uma observao ligeira sobre a diversidade dos hbitos e das maneiras. Enraiza-va-se em representaes mais profundas sobre a natureza dos homens, que, como veremos, tanto se aplicavam aos rsticos da Europa como aos nativos descobertos nas terras do ultramar29.

    Se explorarmos a referncia de Brtolo e de Baldo pequenez das comunidades rsticas, entramos num tema de profundidade antropolgica ainda maior. Na verdade, os filsofos e polticos repetiam, desde a poca clssica, que o homem um animal social, e que, por isso, as deficincias de sociabilidade se transformam em deficincias de humanidade. Quem no se comunica com outros homens, como os que vivem em lugares isolados ou nas florestas (silvcola, homo in sylva), no integralmente humano por lhe faltar esse componente de sociabilidade.

    O tema explorado por So Toms de Aquino quando se interroga sobre a salvao daqueles que, por viverem isolados, nunca mantiveram contacto com a mensagem de Cristo30. Para ele, o problema est ligado questo da relao entre ignorncia e pecado tema que desenvolve na Summa theologica, Ia.Iiae, qu. 76 ss. A ignorncia de que um acto pecado pode ser causa do pecado e, por isso, desculp-lo (qu. 76 a.1, resp. e ad 3). Mas esta ignorncia que positivamente impede a cincia, distinguindo-se, assim, da mera in-

    29 Sobre esta aproximao, qual voltaremos, v. PROSPERI, 1996, p. 551 ss..30 S. Toms.

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    conscincia (Ia.Iiae, qu. 76, a.2, resp.) tem que ser desculpvel e invencvel para que ela mesma no seja pecado (qu. 76, a. 2).

    A situao dos selvagens (homines in sylva) foi discutida por So Toms neste contexto, embora sua posio tenha oscilado. Ora, adopta pontos de vista muito rigorosos: estes infiis no tm, em direitos termos, culpa da sua infidelidade, pois nunca foram postos em contacto com a verdade. Alguns podero salvar-se, por especial graa de Deus, que lhes manda missionrios ou os ilumina por meio de anjos, despertando neles o desejo de converso (votum sacramentum), que corresponde a um baptismo como que espontneo e informal, suficiente para a salvao. Outros, porm, perder-se-o. O pecado original afectara toda a humanidade. A rigor, porm, a condenao de to-dos era um acto de justia. S a graa de Deus, enviando o seu Filho terra ou dispensando actos individuais de graa, eximia alguns desse tremendo destino colectivo (HERMANN, 1992, p. 65-67).

    Mais tarde, a explicao outra, fortemente ligada ao problema da desculpabilidade da ignorncia, independentemente do contexto de vida:

    Respondo [a uma anterior objeco] dizendo que a ignorncia difere do desco-nhecimento, pois este uma simples negao do conhecimento; de onde aquele a quem falta o conhecimento de algumas coisas, pode dizer-se que as ignora [...] No entanto, a ignorncia importa a privao do conhecimento; ou seja a falta a algum de um conhecimento de coisas que, de nascena, era apto para conhecer. Na verdade, h coisas que todos devem conhecer, tal como aquelas coisas sem o conhecimento das quais no se pode praticar correctamente os actos devidos. De onde todos tm que que saber as coisas da f, bem como os preceitos universais de direito. [...] Em contrapartida, no se imputa negligncia a algum que no sabe aquilo que no pode saber. De onde se diga que esta ignorncia invencvel, pois no pode ser superada pelo estudo. (ibid., qu. 76, a.2, resp.).

    Nesta perspectiva, a situao dos homines nutriti in sylva agrava-se, pois o isolamento no os priva do conhecimento da lei divina e da lei natural. Embora permanea implcita uma ideia de que se trata de uma humanidade algo decada, porque privada de uma comunicao regular com os crentes, da comunho com a Igreja. E, portanto, dependente de uma especial graa de Deus para encetar o caminha da salvao, apesar da sua intuio da lei divina e dos primeiros princpios do direito natural.

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    De qualquer forma, o que estas luzes inatas e necessrias sobre os fundamentos da religio e do direito no garantiam era o conhecimento detalhado da lei. Sobre essa intuio natural, tinha que se construir uma conscincia mais explcita das regras de vida, incluindo as regras de vida religiosa. Era esse o objectivo da missionao e, em geral, da educao. A Igreja mandava (mittere, missio)31 pessoas que, pela difuso de um saber su-plementar, pusessem estes homens no caminho (educare) de que o pecado original os tinha desviado.

    a partir desta ideia de reeducao pela reintegrao dos selvagens na comunidade dos homens que como veremos se construir, j na poca moderna, a teoria da legitimidade de forar os nativos das terras descobertas a aceitar a missionao e o comrcio, duas formas excelentes de promover a intercomunicao entre os homens. Ou, para a Europa, a estratgia de agrupar os habitantes dispersos e isolados de regies mais afastadas da civilizao urbana como a Crsega ou a Esccia em povoaes de certa dimenso, onde ganhassem com o convvio mtuo e pudessem,ser poltica e culturalmente enquadrados.

    O jesuta Silvestro Landino, constata que:

    a gente vive muito desunida pelas partes destes montes da Crsega e sem outro exerccio seno habitar a maior parte no campo na companhia dos animais e dispersa em pequenas aldeias, de seis ou sete cabanas que mal tm a forma de casa e longe umas das outras muitas milhas, de modo que alguns apenas vm algumas vezes missa de festa. (apud PROSPERI, 1996, p. 640).

    Depois de tal constatao, prope Crsega uma estratgia de reagru-pamento similar a utilizada em relao s populaes irredentes da cultura dominante: preciso destruir estes redutos de cabanas e casotas nas quais a gente vive como desunida ... obrig-los pela fora a viverem unidos e faz-los pela fora viver unidos numa terra grande ou numa cidade (ib., 641).

    A ideia de que o isolamento degrada mantm-se ainda nos finais do Antigo Regime. Este tema utilizado por um mdico-legista marselhs quando considera desatinados os homens que habitassem nos vales de difcil

    31 Cf., sobre a misso, Pesch, 1992, 66 n. 6; cf., ainda, PROSPERI, 1996.

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    acesso, justamente em virtude do isolamento em que viviam, destacando, ao mesmo tempo, a importncia da urbanidade como factor de humanizao (FODERE, 1797, p. 63 ss.).

    destas profundas consideraes de carcter antropolgico que surge uma mutao significativa no imaginrio culto sobre os rsticos que, de acor-do com estudos recentes (PROSPERI, 1996, p. 555 ss.), evoluiu decisivamente entre o fim da idade mdia e meados do sculo XVI.

    Enquanto que, antes, os rsticos eram apenas gente ignorante e bruta, o efeito combinado do bucolismo renascentista e dos descobrimentos re-cupera, primeiramente, uma ideia de ingenuidade e pureza caracterstica do meio campons. Posteriormente, uma conscincia proto-antropolgica de alteridade cultural, que valorizava progressivamente os rsticos como portadores de uma outra cultura, ainda que indesejvel e objecto de uma poltica de reeducao.

    Baseado nos escritos de missionologia jesutica dirigidos Crsega, Adriano Prosperi explica muito bem os passos desta evoluo. Caractersticas das atitudes tardo-medievais so ainda os ferozes requisitrios de Lutero contra os camponeses alemes32. Depois, algumas perspectivas ednicas dos humanistas sobre a bondade natural dos camponeses, a que se juntaro os primeiros relatos tambm eles idlicos dos primeiros descobridores, sobretudo na Amrica33.

    J num plano mais reflectido e com evidentes implicaes antropol-gicas, o tratamento dado questo pelos telogos juristas da Escola Penin-sular do Direito natural antes de todos Francisco Vitria, mas tambm, como veremos mais detalhadamente, Lus de Molina mostra os nativos como portadores de uma outra cultura, embora em seu esprito no esteja, de modo nenhum, uma atitude pietista e respeitadora perante ela. Por isso, eles no falam tanto de educar (docere), como se deve fazer com os meni-nos, mas de re-educar (dedocere), pressupondo tanto a extirpao dos erros como o ensino da boa doutrina. O passo seguinte ser o da aproximao de

    32 Vivem como os animais domsticos ou os porcos privados de razo, diz Lutero dos camponeses da Saxnia (ct. PROSPERI, 1996, p. 555).

    33 Basta lembrar, entre ns, a descrio dos nativos brasileiros contida na carta de Pro Vaz de Caminha. Outros testemunhos em Pgaden (1988); para o mundo portugus, Dias.

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    selvagens do exterior e selvagens do interior, definindo positivamente os ndios como os nossos rsticos de l e propondo para eles um tratamento poltico e humano semelhante ao que se dava aos camponeses europeus 34, como reconhecendo nos rsticos os ndios de c, e copiando, na Europa, a estratgia missionria que dava provas nas ndias Orientais e Ocidentais (PROSPERI, 1996, p. 557 ss.).

    6 O rstico: ingenuidade e ignorncia

    Na literatura jurdica, o mundo dos rsticos tambm era dotado de uma es-pecificidade tal que tornava impossvel a aplicao estrita do direito comum.

    Ainda aqui, a atitude do jurista erudito para com esse mundo um misto de simpatia, mais retrica do que genuna, suscitada pelo estado virginal da inocncia primitiva, de condescendncia arrogante sua ignorncia e estupi-dez e, finalmente, de desprezo mal disfarado pela insignificncia (tambm econmica) das questes jurdicas que, neste mudo, apareciam. O rstico era, por um lado, a criatura franca, ingnua, incapaz de malcia, desprovida de capacidade de avaliao exacta das coisas em termos eco nmicos e, por isso, susceptvel de ser enganada. A mente sincera e aberta dos camponeses aconselha a presuno de que no actuam com dolo [inteno], escreve Chapinus (De privilegiis..., cit., l. 1, p. 2, c. 4). A partir disso, deduzia-se que a inteno de enganar (dolus) no era presumvel nos contratos dos rsticos, que seus contratos de censo no encobriam contratos usurrios35, que podiam rescindir a venda feita com leso (i.e., abaixo de um preo razovel), que lhes bastava o juramento para fazer a prova de actos aos quais, de outro, fosse necessrio documento escrito36. E, por ltimo, que sua responsabilidade penal no era plena, pelo menos para certos tipos de crime (MENOCHIO, 1571, c. 194; GOEBEL, 1723, p. 196 ss.).

    34 a estratgia de Francisco de Vitria, dirigida, antes de tudo, a afastar a doutrina aristotlica dos servos por natureza (v. infra) e a demonstrar que o gnero humano era indivisvel. Cf. PROSPERI, 1996, p. 556.

    35 O censo (consignativo ou reservativo) era uma das formas costumadas de iludir a proibio cannica da usura.

    36 Por exemplo, a prova de pagamento, pois se entendia que o rstico no era to avisado que se lem-brasse de pedir recibo. No entanto, este regime de prova tinha tambm que ver com caractersticas centrais das culturas orais (v. supra, ___).

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    Por outro lado, porm, era o rstico incapaz de se exprimir correctamente e de compreender as subtilezas da vida, essencialmente da vida jurdica. Por fim, ele era o pobre cujas causas nunca atingiam uma importncia que justificasse as for-malidades solenes de um julgamento37. Destas caractersticas negativas decorrem uma srie de defeitos dos rsticos, enumerados por juristas e moralistas38.

    O que pouco transparece neste discurso erudito sobre o mundo dos rsticos uma abertura ao reconhecimento do carcter alternativo e diferen-te do direito tradicional. Ou mesmo existncia de um direito rstico, isto , uma ordem jurdica com caractersticas prprias, orgnica, equivalente, no fundo, ordem jurdica erudita. Quando se referem a especificidade do estatuto jurdico dos rsticos, os juristas no a fundamentam no princpio de pluralidade que dominava a teoria medieval do direito ou seja, no prin-cpio da autonomia dos corpos sociais e do reconhecimento das respectivas atribuies estatutrias ou jurisdicionais , mas numa atitude paternalista e condescendente, prpria de quem est perante uma realidade jurdica infe-rior, precria, que prevalece apenas devido pacincia do direito oficial. A realidade jurdica do mundo rstico , assim, banalizada e expropriada da sua dignidade de prtica jurdica autnoma.

    por isso que o discurso erudito raramente assume um tom violento ou polmico em relao ao mundo do direito tradicional. Expresses que encon-tramos nas fontes a propsito dos contactos entre as magistraturas eruditas e o mundo dos iletrados no parecem, no contexto do estilo enftico e um tanto exagerado da poca, suficientes para que se possa falar de uma polmica declarada e encarniada entre os dois mundos jurdicos. Pelo contrrio, se violncia havia, esta se manifestava principalmente sob a forma clemente de paternalismo, condescendncia e compaixo, ou at em banalidades apolo-gticas sobre a simplicidade e a pureza da vida dos campos. Paternalismo, condescendncia e banalidades que, no entanto, eram inexoravelmente efi-cazes como meios de depreciao da prtica jurdica dos rsticos.

    37 Os iudicia rusticorum eram aproximados pela doutrina dos iudicia in rebus exiguis, ou seja, das questes sobre matrias insignificantes, em que muitas das formalidades eram dispensadas. V., sobre estes iudicia, Tiraquellus (1578, p. 449 ss.), onde se referem as suas especialidades; v. tambm MARANTA, 1650, p. 4, d. 9.

    38 Para os primeiros: CASTILLO, cit., II, p. 33. Para os segundos, sobre os pecados dos rsticos, SUSA, 1537, p. 276.

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    Apesar de todo seu contedo discriminatrio, o estatuto dos rsticos aparentemente um instrumento de proteo, cuja nota saliente o reco-nhecimento do carcter justificativo da ignorncia e da rusticidade. Isto se traduzia num regime mais flexvel, validando actos que de outro modo seriam nulos, admitindo a restituio em casos em que geralmente no o seria, despenalizando factos que seriam punveis noutras circunstncias. Qual o tipo de violncia contida neste estatuto protector violncia a que se contrapunha por parte dos rsticos, como veremos, uma resistncia mais ou menos passiva ser um tema tratado adiante.

    7 In rustico est praesumptio ignorantia: a questo dos privilgios dos rsticos

    A generalidade dos privilgios dos rsticos funda-se, como j vimos, na presuno de sua ignorncia e de seu desconhecimento das subtilezas do direito oficial (in rustico est praesumptio iuris ignorantia, Alexandre de Imola). Como vimos a propsito do tratamento da ignorncia por So Toms de Aquino, o que no se presumia era a ignorncia do direito natural ou das gentes, pelo menos quanto aos seus dogmas primrios nos secundrios, pelo contrrio, a ignorncia era presumida e juridicamente escusatria, pois frequentemente, mesmo os mais sabedores se alucinam (GOEBEL, 1723, p. 193/4). Na verdade, seria cruel castigar pela transgresso das leis aqueles que as no entendem, demais no lhes tendo elas sido comunicadas ou feitas conhecer, antes tendo sido frequentemente sido obscurecidas pelas interpre-taes enganadoras dos eruditos (GOEBEL, 1723, p. 195) . Ignorncia do direito material e, por maioria de razo, do direito processual.

    Em face desta escusa dos rsticos quanto ao conhecimento do direito oficial, os poderes no deixaram de reagir. Se, na conquista espanhola da Amrica, o primeiro acto dos magistrados rgios era o de declarar solene-mente aos indgenas a sua qualidade de vassalos do rei de Espanha, e as obrigaes que disso decorriam39, na prpria Europa era recomendvel que

    39 Tratava-se do clebre requirimiento, excogitado pelo jurista Palcios Rubios por volta de 1510 e utilizado na conquista do Mxico e de outras zonas do continente americano. Cf texto (verso inglesa) em BRADEN, 1930, p. 127. V. BIERMANN, 1950, p. 94-114; e, por ultimo, SEED, 1999. Na verdade, o

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    os rsticos fossem constante objecto de declaraes do direito real. Juan de Palafox nos seus Bocados espirituales, polticos, msticos y morales, 1687, um catecismo y axiomas doctrinales para labradores y gente sencilla inclui versos destinados a promover a aprendizagem do direito do rei40.

    No domnio do direito material, estas particularidades diziam respeito sobretudo ao direito penal. No por acaso. De facto, o direito ou a adminis-trao judiciria do reino no se intrometiam no direito civil, deixando-o entregue auto-regulamentao destas comunidades camponesas, como aconteceria com os indgenas das colnias mais tarde. Neste domnio das relaes privadas, os juristas limitavam-se a dizer que o direito erudito no lhes podia ser aplicado, em tudo quanto se afastesse de uma comum razo natural (Cf. MENOCHIO, 1571, c. 194, n. 45 ss.). O que no raro acontecia. Assim, para alm dos casos j antes referidos da no presuno de usura nos contratos censticos e da extenso do regime da leso no caso de ven-da por baixo preo, os contratos dos rsticos proibidos pelo direito civil gozavam de um especial regime de validao (ibid., n. 53). A renncia que os rsticos fizessem de seus direitos no tinha validade (ibid., n. 76). No se presumia qualquer obrigao de direito subjacente s entregas ou pagamentos peridicos por eles feitos (n. 68)41.

    Em virtude das obrigaes e trabalhos inerentes s suas ocupaes agr-colas, os rsticos estavam ainda isentos da obrigao de serem tutores (nome-adamente de rfos), assim como no incorriam em mora durante a poca das colheitas, nem lhes podiam ser penhorados os seus instrumentos e alfaias42.

    requirimiento, lido num latim ou castelhano incompreensvel aos amerndios, destinava-se mais a fornecer uma base construo jurdica da ocupao, vlida perante o direito comum europeu (consen-timento indgena na ocupao e domnio), do que a difundir este direito entre as populaes nativas.

    40 Respeta mucho a los reyes / y obedece bien sus leyes.La Repblica es perdida / si anda sin esta medida.En faltndole esta concordia / todo se abrasa en discordia.Si el rey fuese despreciado / el reyno ya est acabado.Si el Rey no es obedecido / el Reyno ya est perdido.Sin respeto al magistrado / el pueblo es desbaratado. (BOUZA, 1999, p. 35).41 Embora a doutrina se dividisse quanto a isto; o ponto podia ser decisivo em muitos contratos agrrios,

    prejudicando de forma irreparvel os direitos dos senhores.42 CASTILLO, p. 35, n. 61, onde se indicam ainda outros privilgios menos interessantes, tanto de direito

    comum como de direito do reino. Em Portugal, para os privilgios dos camponeses, v. Ord. fil., II, 33, 15 e 22/33; tit. 58; tit. 59, 4 e os comentrios de Pegas (1737), a estes lugares.

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    O direito penal, porm, era um atributo da majestade (uma regalia maiora) do qual o rei no podia prescindir. Tampouco podia aplic-lo cega-mente a comunidades que se sabia bastante insensveis em relao a muitos dos tipos penais do direito oficial: entre eles, segundo as fontes da poca, a blasfmia, a heresia, o perjrio, a lesa-majestade, a destruio dos ditos ou banhos dos senhores etc. (GOEBEL, 1723, p. 192 s.). A lista significativa. As comunidades camponesas mostravam-se pouco domsticas religio e imposio dos poderes do centro, adoptando em relao a estes uma co-nhecida estratgia de defesa a mentira, mesmo sob juramento.

    No entanto, era no domnio do direito formulrio e processual que a ignorncia dos rsticos adquiria maior relevncia. Com efeito, o estatuto dos rsticos traduzia sua incapacidade para compreender as formalidades do direito escrito, capacidade que devia sobrevivncia do direito tradicio-nal, bem como persistncia de um formalismo atvico, mas diferente das comunidades camponesas. Em geral, pode dizer-se que todas as formalidades escritas eram estranhas cultura jurdica tradicional. por isso que o esta-tuto dos rsticos contm uma iseno quase geral da forma escrita, mesmo quando esta se apresentava, ao direito oficial, como decisiva v.g., nos casos do libellus, instrumento que dava origem a aco judiciria, e da sentena. O libelo (petio inicial) concebido de forma inepta por homens rsticos no deve ser recusado, mas recebido omitidas as subtilezas jurdicas (CHOPINUS, p. 140; Ord. fil., III, 66, 7. ). A doutrina comum era ainda menos exigente, pois dispensava a prpria petio inicial escrita (IMOLA, 1563?, liv. 2, cons. 61, n. 11.). Uma sentena sobre causas de rsticos tambm podia ser vlida mesmo sem citao formal ou preterida a forma escrita (BOBADILLA, p. 246.). Na Espanha, em causas de valor inferior a 100 maravedis (= reais portugueses), o processo era sumrio, sem alegaes escritas dos advogados e apenas com o simples registro final da deciso (Siete partidas, III, 41,22.). O processo rstico como tambm o processo sobre causas exguas, que muito se aproximava dele caracterizava-se, assim, por sua forma sumria e ex-pedita43. Castillo de Bobadilla descreve-o da seguinte forma: En las causas entre rsticos, que suceden en sua aldes, no se debe atender mucho a la

    43 Ius reddendi est summarium et celerrime (CHOPINUS, liv. 3, p. 2, c. 1). Sobre o processo sumrio, para alm da literatura citada por PEGAS, 1737, tom. 5, p. 14, n. 4; MARANTA, 1650, p. 4, d. 9.

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    observacin y orden de los juycios, sino determinalas comummente, con la comparncia de las partes ante el juez, por lo que sus libellos y peticiones, si les dieren, se puede colegir (BOBADILLA, liv. 5, c. 9, n.2.).

    A formao do objecto do processo tambm se fazia ao longo da aco, sem nunca se fixar definitivamente como no direito erudito, com a litis contestatio e mantendo continuamente uma relao de abertura em relao ao objecto vivido do litgio. Por isto, o rstico estava autorizado a modificar o pedido mesmo de-pois da contestao da lide pela parte contrria. Por fim, no domnio da prova, o carcter hermtico da forma probandi do direito letrado levado em conta para desculpar o rstico da responsabilidade penal que decorreria das suas eventuais contradies (ou mentiras) durante a prestao do testemunho44.

    O desconhecimento do direito oficial justificava ainda a revogao de algumas das regras do direito formulrio, principalmente das que diziam respeito confeco do testamento e dos contratos. No entanto, a maior parte dos autores reduz a amplitude deste direito especial, no o admitindo contra disposies imperativas do direito letrado relativas forma dos actos (MENOCHIO,1571, c. 194, n. 56.).

    Mais interessantes ainda so as regras formuladas pela doutrina como modelo de deciso nos iudicia rusticorum, sobretudo na medida em que se aproximam dos modelos de composio dos litgios descritos pela literatura antropolgica anteriormente citada.

    Na verdade, os letrados diziam que, nas causas do rsticos, se deveria preferir uma deciso baseada no sentido imanente da justia (ex aequo et bono) a uma outra fundada na aplicao estrita do direito (ex apicibus iuris). Mas acrescentavam: em vez de decidir as questes com o sacrifcio irreparvel e definitivo de uma das partes, era prefervel dividi-las ao meio, salomoni-camente, sacrificando ao mesmo tempo ambas, mas atingindo uma soluo consensual em que todos obtivessem algo, de modo a construir um equilbrio estvel ao futuro. Neste sentido, Baldo diz-nos que os rsticos se pem de acordo dividindo as questes ao meio (rustici dividunt per medium quaestiones)45. Choppinus afirma que, nestas causas, a equidade do juiz deve constituir

    44 MENOCHIO,1571, c. 194, n.15. Lembremos que a mentira uma das formas clssicas de resistncia das comunidades subalternas.

    45 BALDUS, In: (D. De negotiis gestis, l. Nessonis, n. 6), vol. I, p. 120.

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    uma compensao da rusticidade das partes (CHOPPINUS, liv. 1, p. 2, c. 1, 32.). E Tiraquellus defende que, nas questes mdicas, o juiz pode impor simultaneamente sacrifcios s duas partes em nome da paz e da concrdia, em vista das quais foram introduzidas as formas de arbitragem (ut possit in modico laedere in odium et execrationem litium, quia magis est commodum pacis et concordiae, quam laesio eiusmodi; itaque pacis et concordiae gratia introducta sunt arbitramenta) (TIRAQUELLUS, 1578, p. 456, n. 58.).

    Para a salvaguarda de outras particularidades de estudo jurdico tradi-cional, bastava o princpio, geralmente aceite pela doutrina do direito comum erudito, segundo o qual os costumes particulares do rsticos revogavam o direito comum46-47.

    No entanto, nem tudo era favorvel aos rsticos, mesmo no plano deste direito especial. Se havia circunstncias nas quais os privilegia rusticorum no tinham eficcia (Cf. MENOCHIO, 1571, c. 194, n. 2/32.), por outro lado, seu estatuto compreendia tambm aspectos negativos, como, por exemplo, o de nunca poderem pertencer nobreza, ainda que fossem ricos e de bem; a ofen-sa que lhes fosse feita nunca era considerada como injria; seus privilgios no podiam ser opostos aos dos senhorios directos, nos casos de enfiteuse, o mais importante dos contratos agrrios48.

    8 O costume. Entre iura propria e ius commune

    No caso concreto de Portugal, encontram-se sintomas da alteridade do direito das comunidades tradicionais mesmo na poca moderna, ainda que o estado actual da investigao continue a no permitir um quadro exacto dos padres de julgamento ento vigentes.

    A partir do sculo XV, o sistema das fontes do direito estava fixado imperativamente por lei (Ord. At., II, 9; Ord. Man., II, 5; Ord. Fil., III, 64). A primazia cabia ao direito nacional, quer legislativo, quer consuetudinrio. Na

    46 Neste sentido, Baldo (Commentaria in Codicem, De pactis, 1, Si certis annis (C., 2,3,28), n. 18: Praeterea est rusticorum consuetudinem servanda; CHOPPINUS (liv. 3, p. 3, c. 1, p. 158) defendia que a opinio dos rsticos se impunha ao direito do reino apenas quando este expressamente o permitisse.

    47 Sobre os iudicia rusticorum, embora de outro ponto de vista, MEIJERS, 1916, p. 187-226 (=1966,p. 3-26).48 V. o j citado Menochio e, ainda, CHOPPINUS, l. 1, p. 2, c. 5.

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    falta dele, devia recorrer-se ao direito comum, primeiramente aos textos dos direitos romano e cannico, e depois s opinies de Acrsio e de Brtolo, ou opinio communis doctorum49. Esta hierarquizao das fontes estava, na prtica, evidentemente sujeita a distores. A mais conhecida a tendncia dos juristas eruditos em aplicar o direito comum como direito principal mesmo quando havia normas aplicveis do direito nacional. A esta inclinao dos juristas eru-ditos dos tribunais cen trais pelo direito comum, correspondia uma preferncia dos juzes dos tribunais locais pela aplicao mais intensa do direito local.

    Porm, preciso esclarecer que essa preferncia pelo direito local tinha uma aceitvel base doutrinal e legal.

    No plano doutrinal, apoiava-se no particularismo da teoria medieval das fontes do direito, segundo a qual o direito particular (ius proprium) se impunha ao direito comum (ius commune)50. E, de facto, nos domnios do di-reito privado e processual, como a maior parte das normas do direito erudito eram do ius commune, impunham-se os costumes nacionais (e at locais).

    No plano legal, o texto das Ordenaes atribua ntida supremacia ao direito local sobre o direito comum. Com efeito, o direito local escrito ou cos-tumeiro prevalecia, enquanto direito nacional, sobre o direito comum.

    Menos claras eram as relaes entre o direito local e o direito da coroa. Primeiramente, observemos o direito local escrito (estatutos e posturas). De acordo com as Ordenaes, o nico sinal de supremacia do direito rgio sobre o direito local era a disposio segundo a qual a elaborao das posturas devia respeitar a forma da lei., Quanto ao contedo, no entanto, exigia-se apenas que elas fossem compatveis com o interesse dos povos e o bem comum. Condies essas que eram verificadas no momento da confirmao rgia dos estatutos, obrigatria (pelo menos tacitamente) por lei (Ord. Fil., I, 66, 28). Por outro lado, os povos tinham obtido, ainda nas cortes do sculo XV, a garantia de que as posturas seriam respeitadas pelos corregedores e demais poderosos.

    Maiores discrepncias surgiam, porm, quanto posio da doutrina sobre as relaes e a hierarquia entre o costume (nomeadamente o costume local) e a lei. Se, por um lado, era aceite que o costume local se impunha ao

    49 Sobre o sistema das fontes de direito em Portugal nesta poca, cf. SILVA (1981, p. 337 ss.) e CRUZ (1975).50 Cf. sobre este ponto, HESPANHA, 1986, 92 ss..

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    direito comum51, em contrapartida, a opinio dominante considerava que o costume no podia prevalecer contra a lei nacional (consuetudo habet vim legis, ubi lex non disponat)52.

    Ou seja, no que tange s normas do direito escrito do reino, a doutrina oscilava. Na prtica, no raro v-la recusar as normas legais como obso-letas, considerando-as revogadas pelos costumes53. Embora, na teoria, isto no estivesse de acordo com as normas deontolgicas dos oficiais tais como formuladas pela doutrina. Manuel lvares Pegas critica esta tolerncia dos tribunais derrogao da lei, observando que os oficiais rgios tinham jurado obedec-la, e que esta liberdade conduzia a uma grande incerteza do direito (PEGAS, 1737, t. I, c. 1, n. 18 ss.).

    De qualquer modo, ainda que no se aceitasse o princpio da revogao da lei pelo costume, era certo que o mesmo resultado prtico podia ser obtido dem sua interpretao, que devia estar de acordo com o uso consuetudo est optima legis et statuta interpretes o costume o melhor intrprete da lei e dos estatutos (M. Phaebus, Decisiones ..., d. 10, n. 4).

    O mesmo pode ser dito quanto aos requisitos de validade do costume. No possvel afirmar que a doutrina letrada desse fora ao costume aber-

    51 Consuetudo in loco dicitur ius commune (o costume do lugar considerado como direito comum) (CABEDO, 1734, pars I, d. 211, n. 5); SILVA, 1732, (ad Ord., III, 64 pr.), n. 35 e literatura a citada; no entanto, como j vimos, o costume no se impe ao direito natural, pois, neste caso, o seu contedo no seria racional (v. supra, o que se disse sobre a desculpabilidade e relevo da ignorncia) (cf. AMARAL, 1740, v. Consuetudo, n. 3).

    52 Consuetudo est servanda quando non datur lex in eo casu aliquid disponens (o costume de obser-var quando no exista lei que disponha sobre aquele caso) (PEREIRA, 1664, n. 322); o costume no valeria contra as disposies legais sobre as formalidades do testamento (CABEDO, 1734, p. I, n. 3 (cf. Ord. fil., 4, 76)); o costume vale contra o direito comum, mas somente no caso em que no haja direito real (SILVA, 1973, ad Ord. fil., III, 64, pr., n. 35); PEGAS, 1737, tom. 5 (ad Ord. fil., I, 65, 13), gl. 15, n. 2. H, no entanto, afirmaes em sentido contrrio: VALLASCO, 1731, all. 56, n. 3 (consuetudo param vim habet vim lege .. . & facit licitum quod alias est illicitum); CABEDO, 1734, p. 1, d. 110, n. 2 (consuetudo vim legis obtinet); SILVA, 1973, n. 36 (lex et consuetudo aequalis efficiunt); PHAEBUS, d. 110, n. 14; e, sobretudo, Lus Correia, citado por SILVA, 1973, 33 ss., que toma sobre este ponto uma posio muito ntida: videtur tamen quod prius erat recurrendum ad consuetudinem quam ad ius scriptum, cum consuetudo iuri derrogat ... succedente consuetudine, quae legi derrogat (n. 9 e 10, trabscrito por N. E. Gomes da Silva).

    53 V. g., a lei (Ord. fil., I 97) que probe a acumulao dos ofcios; ou a que fixa os emolumentos e outras rendas dos oficiais de justia (cf. PHAEBUS, d. 110, n. 3). A doutrina considera ainda o costume local como decisivo no regime das formalidades dos contratos, dos testamentos, dos inventrios, da ordem e sucesso dos morgados, das causas de revogao da enfiteuse, etc.

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    tamente, pois impunha-lhe apertados requisitos de validade. Na verdade, ela era muito exigente, quer em relao a questes de fundo (durao do costume, opinio iuris, scientia et patientia regis, conformidade com o bem co-mum), quer em relao prova (testemunho de visu, duas testemunhas para cada acto, testemunho de um certo nmero de actos) (Cf. VALASCO, 1730, c. 162, n. 9 ss.). Contudo, provvel que, nos tribunais locais, a maior parte desses requisitos fosse dispensada perante um conhecimento de ofcio do costume local pelo tribunal (ius novit curia)54.

    Isto se explica tanto pela fora das prprias situaes sociolgicas estabelecidas (conquanto ilegais), como pela presena, no corpus doutrinal do direito comum (sobretudo no direito cannico), de opinies favorveis supremacia do costume sobre o direito escrito. Opinies essas utilizadas como tpicos para justificar solues em que a fora dos factos impunha a derrogao da lei pelo costume.

    Na prtica, o balano era claramente favorvel ao costume.

    9 Os juzes locais: s margens da erudio

    De que modo estes princpios se relacionavam com as atribuies e obrigaes dos oficiais de justia? De que maneira esta prevalncia dos usos conflitava com a deontologia dos oficiais, a qual os obrigava a aplicar o direito do rei, a tal questo levantada por Manuel lvares Pegas ?

    No desempenho de suas funes, os corregedores, como inspectores das justias locais o que inclua o dever de instruir os juzes na arte de julgar , deviam promover a aplicao do direito erudito e da coroa nos tribunais locais. No entanto, essa lenta progresso do direito letrado enfrentava um obstculo difcil de ultrapassar: a insuficiente cultura jurdica ou literria (por vezes, o analfabetismo) dos juzes.

    Na teoria, as Ordenaes obrigavam todos os juzes (incluindo os juzes ordinrios, eleitos e no letrados) a observar as ordenaes e leis do reino e as posturas e ordenaes do concelho (Ord. A!., I, 26, 20; Ord. Fil., I, 5, 6). No final do sculo XV, decide-se, em cortes (cortes de 1498, cap. 33), que os

    54 Sobre o tema, com mais detalhe, HESPANHA, 1994, p. 355 ss..

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    juzes que julgassem contra as Ordenaes, as leis de cortes ou os privilgios pagassem uma multa de trs vezes as custas do processo (tresdobro).

    O direito comum e a teologia moral exigiam dos juzes o conhecimento da lei, da opinio comum, do costume e do estilo dos tribunais reais (LAN-DIM, 1677, tr. I, c. 13, ns. 46-48.). Caso o juiz no respeitasse estas normas, poderia ser pronunciado por imperitia e at por ato criminoso, pois, de acordo com o direito comum, o julgamento contra a lei era crime (litem suam face-re), importando a pena de infmia e a obrigao de indemnizar as partes.

    Mas certo que nem a doutrina, nem a lei (nomeadamente, as Ordenaes) exigiam que os juzes tivessem conhecimento do direito, ou mesmo a capacida-de de ler e escrever55. Os vizinhos dos concelhos, eleitores das justias, deviam escolher pessoas dignas e aptas. Mas o analfabetismo no era considerado um impedimento. As prprias Ordenaes previam, de resto, esta hiptese (Ord. fil., I, 79, 29), autorizando os juzes a nomearem assessores letrados56-57. Durante os sculos XVI e XVII, grande parte dos juzes devia ser iletrada. Comentando as Ordenaes, um jurista da poca fala da rusticitas e da ignorantia dos juzes ordinrios e do seu analfabetismo (PEGAS, 1670-1729, 5 (ad I 65) gI. l, n.28; gI. 4 n. 5; gl.5, n.4. V. tambm t. XII, 230 ss.). Em 13 de Dezembro de 1642, uma lei probe o acesso de analfabetos s magistraturas ordinrias, mas ulteriores testemunhos (cf. alv. 28.1.1785) fazem duvidar da eficcia de tal medida, que, alis, continuava a no exigir conhecimento especializado de direito58.

    Porm, mesmo que soubessem escrever, os juzes ordinrios eram, em sua esmagadora maioria, pessoas no iniciadas no direito erudito, j que sua baixa renda no lhes permitia nomear assessores59. Esta ignorncia fornece, de resto, ocasio para elogios de circunstncia da literatura erudita, que recor-

    55 Apesar das constantes queixas feitas em cortes a partir do sculo XV, contra o analfabetismo juzes (Cortes de 1434, c. 56; 1481, c. 172; exigindo estudos universitrios de direito aos corregedores, Cor-tes de 1427, c. 1; Cortes de 1490, c. 27). Para Espanha, v. CASTILLO, p. 73) onde o autor se refere legislao sobre os estudos dos corregedores.

    56 Sobre os assessores, v., adiante.57 J os notrios deviam ser aprovados num exame de aptido que documentasse que sabiam ler e

    escrever bem.58 V., para algum exemplo concreto do domnio das magistraturas das pequenas terras por juzes ile-

    trados, Hespanha, 1994, 452.59 Os juzes ordinrios no tinham salrio. A honra dos seus cargos era avaliada, apenas para fins fis-

    cais, em quantias nfimas (cf. HESPANHA, p. 170 ss.) com indicaes de valores, para o sec. XVII).

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    rendo a antigos tpicos da cultura crist, combinados com a hostilidade da literatura do Renascimento sobre os juristas desenha uma imagem idlica destes juzes iletrados60.

    E, de facto, h disposies legais e doutrinais isentando os juzes ordi-nrios de responsabilidade por julgamentos errados, salvo em caso de dolo (Ord. man, I, 44, 71; Ord. fil., I, 65, 9) (Cf. PEGAS, 1737, t. 5, ad I, 65, 9, gl. 11; CABEDO, 1723, p. I, d. 39, n. 145; LANDIM, 1677, tr. I, c. 12 ss.).

    Da que, seja em razo da incapacidade dos juzes para compreender e aplicar o direito erudito, seja em virtude da teoria dominante das fontes do direito, os padres de julgamento dos tribunais locais diferiam muito dos que vigoravam nos tribunais da corte ou das grandes cidades, onde tinham assento os juzes letrados e onde o direito comum e o direito da coroa tinham, desde o sculo XIV, acentuada supremacia.

    Na prtica, o mais corrente deve ter sido o recurso ao direito local ou ao sentido inato de justia isto , aos julgamentos ex aequo et bono, o apelo directo aos sentimentos sociais de equidade , at em funo de a referida norma responsabilizando os juzes por julgamento contra direito no se aplicar aos julgadores no letrados (idiotae) das aldeias ou das vilas que no fossem lugares principais (LANDIM, 1677, tr. I, c. 46-47.).

    Logo, nos foros medievais se encontra esta referncia equidade (Hos alcaides iugen o que iaz na carta e aquello que non az na carta iugen dereyto a seu saber). Mais tarde, o teatro de Gil Vicente revelaria esse saber prtico dos juzes populares, contrastando-o com o saber erudito, mas mal-so, dos juzes letrados (como na Cena do corregedor, do Auto da Barca do Inferno).

    Mesmo que por vezes pitorescos de acordo com os critrios de hoje, os ditos e feitos dos juzes das pequenas terras so ainda recordados em

    60 Considerandum est Moysis Socerum inter alias virtutes quibus judicis instructos esse vult, non nume-rasse nimium interpretationes iuris acumen neque enim dicit, sint judices subtibles, sicuti, veteratores, et callidi; neque enim tunc tantas honor malitiae habeatur, ut iis jurisconsultissimi existimaretur, qui nimio acumine subnixi varie leges interpretarentur, & simpliciter iuris eluderent; nihil magis sapientia repugnat, quam nimia subtilitas. [Deve ter-se em conta que entre outras virtudes nas quais Moysis Socerum quis que os juzes fossem instrudos, no enumerou a excelncia da interpretao do direito, nem disse que os juzes deveriam ser subtis ou matreiros ou astuciosos, de modo a que fossem considerados como ptimos jurisconsultos aqueles que com apoiados numa altssima sofisti-cao interpretam as leis de forma varivel ou simplesmente iludem o direito; nada aborrece mais a sabedoria do que a excessiva subtileza] (OSRIO, lib. 7, p. 1, e. 5).

  • 82 Revista Seqncia, n 51, p. 47-105, dez. 2005

    nosso tempo. Um exemplo o do juiz de Barrelas, o das botas amarelas, celebrizado por Aquilino Ribeiro (em sua Geografia sentimental) com base em tradio anterior. Tratava-se de um juiz pedneo de uma aldeia do Alto Paiva, que se tornou famoso por suas sentenas de equidade e, ao mesmo tempo, pela conscincia da sua dignidade de juiz local61.

    10 O perfil do juiz: entre a prudentia e a peritia

    isto que explica a hierarquizao das qualidades dos juzes, tal como resulta da literatura sobre sua deontologia.

    Entre as principais qualidades exigidas ao juiz, contavam-se a bondade, a justa conscincia, a prudncia e a diligncia, ao passo que a eloquncia e a percia tcnica surgiam apenas como secundrias e moderadamente reque-ridas (scientia conveniens et non eminens). Fundadas, decerto, neste dito do Glosa ordinria, as Siete Partidas admitem tambm que um juiz no saiba ler, nem escrever, desde que recorra a um assessor62.

    Indispensvel ao juiz era a capacidade de encontrar a soluo adequada na falta de norma expressa, bem como um conhecimento, normal aos habi-tantes, do costume local. Quanto aos direitos comum e rgio, seu conheci-mento no seria fundamental de acordo com o que j se conhece, no plano da teoria dominante das fontes, sobre as relaes entre o direito erudito ou rgio e os direitos locais.

    61 A sentena que ficou na tradio ilustra bem algumas das caractersticas do direito tradicional e das relaes por este mantidas com o direito oficial. Tinha sido cometido um homicdio. O juiz, ocasional-mente, tinha presenciado o crime, no tendo podido intervir. Com base em provas falsas esmagadoras, fora acusada certa pessoa que, todavia, no era o verdadeiro criminoso, O juiz, impedido pelas regras do direito oficial - nomeadamente, pelo formalismo do processo escrito - de usar o seu conhecimento privado e, portanto, obrigado a proferir uma condenao, dita a seguinte sentena: Vi e no vi; sei e no sei; corra a gua ao cimo; deite-se fogo queimada; d-se lao em n que no corra ... Por tudo isto em face da plena prova do processo constante, condeno o ru na pena de morte, mas dou-lhe