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LITERATURA E CINEMA:
RELEITURAS DE CRIME E CASTIGO
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Adriana Dusilek1
RESUMO A proposta deste trabalho é refletir sobre as releituras feitas do livro Crime e Castigo (1866), do russo Fiódor M. Dostoiévsky (1821-1881), por dois cineastas: o norte-americano Woody Allen e o brasileiro Heitor Dhalia. Do primeiro serão analisados Crimes e Pecados (Crimes andMisdemeanors,1989), Ponto Final - Match Point (Match Point, 2005) e O sonho de Cassandra (Cassandra’sdream, 2007); do segundo, Nina (2004). Serão observados os recursos que os diretores usaram para construírem a consciência agônica dos personagens assassinos. Sem procurar ser “fiel” { literatura, o cineasta busca ligar seus filmes ao livro, seja pela temática da consciência atormentada após o homicídio, seja por referências diretas à obra. No filme do pernambucano Heitor Dhaliahá algumas semelhanças com relação à trama do livro russo, embora o contexto também seja bem outro.
Palavras-chave: Crime e Castigo. Literatura. Cinema.
ABSTRACT The purpose of thispaper is to discuss the readingsmade by two filmmakers - Woody Allen and HeitorDhalia- of the bookCrimeand Punishment(1866), by the russian writer F yodorM.Dostoevsky (1821-1881). This article will examine the following Allen films: Crimes and Misdemeanors 1989), Match Point, (2005) and Cassandra's Dream (2007). By Dhalia, it will be analyzed Nina (2004). Features will be observed that the directors used to build the agonic awareness of the characters killers. Without seeking to be "faithful" to literature, the filmmaker seeks to link your movies to the book, is the theme of tormented conscience after the murder, either by direct references to the work. In the movie HeitorDhalia there are some similarities to the plot of the Russian book, although the context is also another.
Keywords: Crime and Punishment. Literature. Cinema.
Qualquer releitura de um clássico literário para as telas do cinema desperta, no
mínimo, uma grande curiosidade. Ainda que essa releitura seja bastante livre, que se queira
apenas tocar num único aspecto da obra lida, desde que se saiba que em algum momento
houve um diálogo com um escritor do porte de Dostoievsky, os olhares ficam mais atentos.
E se, além disso, o realizador dessa façanha tiver um nome como Woody Allen, certamente a
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obra fílmica virará um clássico. Da mesma forma, se um diretor novato quer fazer seu
primeiro longa-metragem também inspirado numa grande obra, como Crime e Castigo, o
interesse do espectador também será despertado.
Embora Crime e Castigo já ofereça, por si só, uma riqueza imensa de leituras, Woody
Allen quis pensar também naquilo que a obra não mostrou, mas que a personagem
Raskolnikov apontou: “E se o crime não tivesse sido descoberto?” Assim, além de procurar
mostrar as possíveis reações dos criminosos após o crime, o que está mais diretamente
relacionado a este trabalho, que quer mostrar como esas reações são exibidas no cinema,
Woody Allen imaginou ainda outros desfechos para os criminosos, além de outras
possibilidades de castigo. É interessante observar que enquanto em Crimes e Pecados,
filmado em Nova Iorque, o tom é mais leve, e está voltado mais para o lado do humor,
apesar de seu fundo pessimista, Match Point e O sonho de Cassandra, filmados em Londres,
possuem um tom de maior seriedade. O próprio diretor, em uma entrevista, fala um pouco
sobre isso: “Meus filmes sempre se preocuparam com os mesmos temas. Às vezes, eu os
abordo com humor. Outras vezes, eles pedem um enfoque dramático. Londres, por suas
características, é um convite a um olhar mais sério”. (www.zerohora.clicrbs.com.br , em 12
de março de 2008).
De fato, quando se assiste a um filme de Woody Allen, parece que ele já fez algo
parecido, e isso se dá não só pelos mesmos temas, como a importância da sorte na vida das
pessoas, a diferença entre comédia e tragédia, a abordagem dos conflitos interiores, mas
também por seu riso irônico e pessimista e sua liberdade interpretativa, por exemplo.
Já o diretor brasileiro Heitor Dhalia, que estreou o longa-metragem com Nina e
depois dirigiu O cheiro do ralo (2007) e Á Deriva (2009), está sendo muito bem recebido
pela crítica, por sua capacidade de ousar. Nina ganhou uma menção especial da crítica russa
no Festival de Moscou e o prêmio de fotografia no Festival de Cinema Latino-Americano de
Lima. Antecipe-se, pois, que, a despeito da engenhosidade do mestreWoody Allen, Heitor
Dhalia não se sai mal.
1 Doutora em Literatura e Vida Social pela Unesp de Assis. E-mail: [email protected]
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Começando com os filmes de Woody Allen, sobre Crimes e Pecados, uma das
primeiras coisas a chamar a atenção do espectador é o próprio título, que faz uma troca do
termo “castigo”, que aparece na obra de Dostoiévsky, uma das grandes referências do filme,
por “pecados”. Tal troca é significativa na medida em que se mostra que nem todo crime
pressupõe um castigo. Com o passar do tempo, alguns crimes viram apenas simples
pecados, já não incomodando tanto a consciência. E essa aparentemente simples mudança
revela o tom geral da obra, que não chega a ser um drama, mas uma comédia, se se pensar
na definição de comédia dada no próprio filme, pela personagem Lester (Alan Alda): “A
comédia é a tragédia mais tempo”.
O filme possui duas histórias paralelas: a que parece ser drama revela-se uma
comédia; e a que parece ser comédia tem um final melancólico. As duas histórias se
conectam no final, num diálogo com seus protagonistas. É a primeira história, sobretudo,
que aliás toma a maior parte do tempo, que interessa aqui. Um oftalmologista renomado,
Judah Rosenthal (Martin Landau), vê em sua amante uma ameaça para a manutenção de
seus privilégios, pois que esta resolve contar o caso à sua mulher. Entre pedir o perdão à
sua esposa, como o aconselha o amigo rabino, e pagar para matar a amante, como lhe
sugere seu irmão mafioso, cede àquilo que lhe parece mais eficiente: o assassinato. Tudo
isso não sem culpa e remorso.
A agonia do assassino se manifesta em noites de insônia, medo de ser preso e, acima
de tudo, medo do castigo divino, coisa, até então, que não lhe dizia respeito, por não ser
religioso. A partir de seu crime as crenças e medos da infância lhe surgem ao espírito.
Criado na religião judaica, lembra de seu pai que lhe atemorizava com essas palavras: “Nada
escapa aos olhos de Deus”.
Um dos momentos mais brilhantes do filme é quando Judah entra em sua antiga casa
de inf}ncia, “vê” sua família ao redor da mesa, conversando, e ele próprio, menino,
observando os adultos discutirem sobre religião. Num determinado momento entra na
conversa com a família do passado, e pergunta:
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Judah:_ E se... Se alguém comete um crime... Se ele...Se ele matar... Sol Rosenthal, seu pai (David S. Howard) _ Acabará sendo punido. Convidado: _ Se for pego, Sol. Sol: _ Se n~o for pego “aquele que plantou a semente do mal...sempre colher| sofrimento. Convidado: _ Está confiando demais na Bíblia. Sol: _ Não, não, não. Seja a Bíblia ou Shakespeare, o assassino pagará. Judah: _ Quem falou em homicídio? Sol: _ Você. Judah: _ Falei? Tia May (Anna Berger): _ Digo que, se ele pode fazer e escapar impune... e escolher não se incomodar com a ética, é um homem livre.
A fala da Tia May acaba direcionando o fim da trama. O assassino escapa impune, e
depois de um tempo remoendo o ocorrido, não se incomoda mais com a ética, tornando-se
um homem livre. Quatro meses é o tempo entre o início e o fim da história.
A agonia de Judah não dura muito. Em sua duração, esta é demonstrada, pois, em
noites de insônia, na irritação com seus familiares, nas lembranças de sua infância e de seu
convívio com a amante, sua vítima, nas conversas com seu irmão e comparsa Jack, e no
diálogo fantástico entre Judah adulto e sua família do tempo de infância. Há ainda outro
diálogo imaginário,desta vez com o rabino, antes do crime. É o diálogo com sua consciência
que está dividida entre uma atitude ética e uma atitude extremamente egoísta. Tais diálogos
são uma técnica encontrada para mostrar a mente perturbada do assassino, perturbação
essa que desaparece com o tempo. E assim, aquilo que parecia uma tragédia, torna-se uma
comédia: tragédia mais tempo. Porém, não é uma comédia em que se visualiza o riso
escancarado, mas o riso irônico e cético de quem sabe que nem sempre a verdade e a ética
prevalecem; que nem sempre a justiça é feita; que nem sempre o arrependimento é
duradouro. O próprio fundo musical termina do mesmo modo que começa o filme: num
alegre jazz, embora esse jazz esconda um gosto amargo de injustiça. É claro que há também
momentos de tensão, como os que antecedem o assassinato, com um fundo musical de
suspense. Mas nem esse momento se torna muito dramático, já que o crime em si não é
apresentado. Ocorre também a amargura do protagonista da história que corria paralela, e
que era para ser uma comédia. No entanto, a desilusão amorosa não chega a despertar tanta
piedade, e a ironia maior é de fato a falta de ética das ações humanas.
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Woody Allen pretendeu fazer um filme bastante aberto, questionando verdades pré-
estabelecidas. Será que todo crime tem o seu castigo? Será que a comédia e a tragédia não
se misturam? Embora haja no filme uma mistura de gêneros, o que prevalece é o tom de
comédia, já que não há mais culpa, e o que se tem a fazer é aproveitar a vida. Ressalte-se
ainda que há uma mistura muito bem feita entre as cenas da primeira história e as da
segunda história, que muitas vezes são introduzidas após imagens de cinema vistos pelos
personagens da segunda história. Woody Allen brinca com a idéiada arte imitando a vida,
pois as cenas vistas pelos personagens da segunda história normalmente estão ligadas ao
que ocorreu na primeira história.
Match Point é um dos filmes mais bem elaborados por Woody Allen,na medida em
que trabalha muito bem o suspense, a importância da sorte no destino das pessoas e o
diálogo com Crime e Castigo. O título remete precisamente à questão da sorte, e em voz over
assim inicia-se o filme:
O homem que disse “Prefiro ser sortudo a ser bom” entendeu bem a vida. As pessoas temem ver como grande parte da vida depende da sorte. (…) Há momentos em que a bola bate no topo da rede e por um segundo ela pode ir para o outro lado ou voltar. Com sorte, ela cai do outro lado e você ganha. Ou talvez não caia e você perca.
Essa fala, que expõe uma moralidade distorcida, é o pensamento de Chris Wilton
(Jonathan Rhys-Meyers), um tenista irlandês que resolveu tentar a sorte em Londres,
começando como professor de tênis. Ainda no início ele diz à personagem Chloe (Emily
Mortimer), quando perguntado se gosta de dar aula e respondendo negativamente:
“Gostaria de fazer algo da minha vida. Algo especial. Queria fazer uma contribuiç~o”. Essa
fala aparece pouco depois de a personagem, em seu apartamento, ler Crime e Castigo. É pois
uma segunda referência direta à obra, já que Raskolnikov também tinha pretensões de fazer
algo grandioso, pois que se considerava entre os homens extraordinários, e não entre os
ordinários.
Chris Wilton, que não quer ter uma vida medíocre, aproveita todas as oportunidades
que se lhe apresentam. Como gosta de ópera, adentra no convívio familiar de um rico aluno,
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cujo pai é um empresário milionário. E este diz gostar de Chris exatamente porque ele não é
um rapaz inculto, tendo inclusive conversado com ele sobre Dostoiévski. Casa-se com Chloe,
mas mantém um caso com Nola Rice (Scarlett Johansson), ex-noiva de seu cunhado. Assim
como em Crimes e Pecados, chega um momento em que Chris se sente ameaçado pela
amante, que quer contar sobre o caso para sua mulher, e o pressiona a deixá-la. E há o
agravante da gravidez de Nola. Não querendo perder os privilégios alcançados, e mediante a
recusa da amante para se calar, Chris resolve matá-la, e o faz ele mesmo, com uma
espingarda. Antes, para dar a impressão de se tratar de um latrocínio, mata a vizinha do
apartamento ao lado. Após o crime pega um táxi para se encontrar com a esposa, para
assistir à ópera . Mais adiante joga as jóias que roubara da vizinha no rio. Entretanto, uma
aliança bate na mureta e cai. Este momento é bastante especial, pois lembra a cena do início,
e o lance do match point. Tudo indica que o protagonista será descoberto, já que, como no
tênis, quando a bola volta perde-se a partida. Cria-se então um suspense quanto à
possibilidade de castigo, a prisão, para o assassino Chris. Diferentemente do que aparenta,
esse lance ajuda o criminoso, pois que a aliança é encontrada junto a um homem morto, que
era viciado em drogas. Conclui-se que esse homem é que matara as duas vítimas.
É o que vem a seguir ao assassinato o que interessa aqui. Woody Allen usa
novamente a técnica do diálogo imaginário, como em Crimes e Pecados,para mostrar a
mente em desvario de Chris Wilton. Só que desta vez o criminoso, insone, dialoga com suas
vítimas:
Chris: _ Não foi fácil. Mas quando chegou a hora, puxei o gatilho. Nunca se conhece os vizinhos até haver uma crise. Aprende-se a esconder a culpa sob o tapete e a seguir em frente. É preciso. Senão, ela soterra você. Nola: _ E quanto a mim? E quanto à vizinha do lado? Vizinha: _ Eu não tinha nenhuma relação com esse caso terrível. Não sente culpa por me matar como uma espectadora inocente? Chris: _ Às vezes, os inocentes morrem para atingir um objetivo maior. Você foi um dano colateral. Vizinha: _ Assim como seu filho. Chris: _ Sófocles disse: “Jamais ter nascido pode ser a maior d|diva de todos”. Nola: _ Prepare-se para pagar o preço, Chris. Você foi desajeitado. Deixou muitas pistas. Quase implorando para que alguém descobrisse.
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Chris: _ Seria bem apropriado se eu fosse preso e punido. Pelo menos seria um pequeno sinal de justiça. Uma pequena medida de esperança da possibilidade de sentido.
Nesse diálogo se percebe a leitura de Crime e Castigo, ao se referir aos inocentes que
morrem para atingir um objetivo maior. É importante lembrar que, ao contrário do livro,
Crimes e Pecados e Match Point possuem um protagonista que obtém sucesso após o crime.
No livro, Raskolnikov refletia, em sua conversa com a irmã:
Com essa estupidez queria eu fixar-me numa posição independente, dar o primeiro passo, arranjar recursos, e então tudo teria ficado compensado com uma utilidade relativamente incomparável... Mas eu, eu não posso agüentar o primeiro passo porque sou... reles! Aí tens tudo! E, no entanto, não posso ver as coisas com os mesmos olhos que tu; se houvesse triunfado, ter-me-iam cingido a coroa, ao passo que, assim, caí por terra! (DOSTOIÉVSKI, 1998, P.559)
Judah Rosenthal, de Crimes e Pecados, e Chris Wilton, de Match Point, conseguem
triunfar, e são a resposta ao questionamento de Raskolnikov e de Tia May, de Crimes e
Pecados, que argumentava, no diálogo imaginado por Judah, em sua casa de infância:
“Lembrem-se: a história é escrita pelos vencedores. Se os nazistas tivessem vencido...as
futuras gerações veriam a segunda Guerra bem diferente”.
No entanto, há uma grande diferença entre Judah Rosenthal e Chris Wilton: o tempo.
Seguindo a definição de comédia dada pela personagem Lester, de Crimes e Pecados,
segundo a qual a comédia é tragédia somada ao tempo, Judah Rosenthal, ao final do filme,
quatro meses após o crime, parece estar com a alma leve, feliz com sua situação
privilegiada, comentando com sua esposa sobre o futuro casamento de sua filha. A
amargura que vem do final está na contraposição com o outro protagonista do mesmo filme,
Cliff Stern, que tem um final melancólico, e o espectador observa como pessoas boas são
injustiçadas, enquanto outras, de uma moral duvidosa, são beneficiadas. Já Chris Wilton, em
Match Point, ao final do filme é visto olhando tristemente para o nada, num momento em
que todos comemoram a vinda do bebê do casal Chris e Chloe. Nesse momento, nove meses
depois do crime, suas consciência ainda pesa muito, e fica-se sem saber se ele um dia terá a
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alma leve como Judah. Chris Wilton, mesmo não sendo descoberto, parece ser castigado
pela culpa. Por isso o filme parece não ter ponto final. Além disso todo o tom do filme tem
um ar de tragédia. O jazz é substituído pela ópera. Quase não há uma situação de humor no
filme. Conforme a teoria da bola no match point, que quando cai pro próprio lado, perde-se
a partida, a impressão, ao fim, é que Chris perdeu o jogo da vida.
Entre os três filmes de Woody Allen aqui comparados, o que seria de fato a
realização de Raskolnikov, caso este não tivesse sido descoberto, seria a personagem Ian
(Ewan McGregor), irmão de Terry (Colin Farrell), ambos de O sonho de Cassandra. Seria,
pois no final morrem os irmãos assassinos. Dos quatro criminosos, Ian é o que mais se
aproxima do projeto de Raskolnikov: baseado num objetivo maior, e com a frieza
necessária,ele, um homem extraordinário, seguiria sua vida de vencedor, sem peso na
consciência. Observe-se que, diferentemente de Match Point e de Crimes e Pecados, nos
quais os crimes acontecem devido à ameaça das amantes dos protagonistas, e
diferentemente também de Terry e do tio Howard (Tom Wilkinson), de O sonho de
Cassandra, que querem apenas ver solucionados um problema urgente, qual seja, o
pagamento da dívida de jogo, para Terry, e a ameaça de denúncia à justiça por parte de seu
funcionário, para Howard, Ian pensa num longo prazo, tem projetos de mudança de vida,
não tem nenhuma relação com a vítima, sabe ser frio e calculista. Outra personagem que é a
realização bem-sucedida do projeto de Raskolnikov é o tio Howard, pois não se vê nele
nenhuma crise de consciência, eé mais frio que Ian. O crime, para ele, é apenas um mal
menor.
Em O Sonho de Cassandra, tio Howard, que sempre foi o herói da família de Ian e
Terry, homem bem-sucedido, propõe, em troca de ajudar Terry, envolvido em dívida de
jogo, e Ian, que quer abrir seu próprio negócio, que os irmãos assassinem um homem que
ameaça denunciá-lo à justiça. No início, os irmãos se mostram horrorizados com a imoral
proposta do tio, e se recusam a matar Martin Burns (Philip Davis). Terry é o que se mostra
mais estarrecido com o pedido. Zangado, tio Howard diz: “N~o se constrói o que construí
seguindo as regras”. É a primeira referência a Crime e Castigo neste filme.
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Entretanto, no meio da noite Ian liga para Terry, dizendo que pensou melhor e que
devem aceitar o negócio. Terry, quando aceita, está visivelmente abalado. Mais adiante
acontece um diálogo para discutir a forma como Martin Burns deve ser morto:
Ian: _ Pensei num acidente do tipo atropelamento seguido de fuga. É complicado. Alguém pode ver a placa e ele pode não morrer. Terry: _ Não vou enfiar uma faca nele. Ian: _ Por que não? Terry: _ Porque não consigo. Você consegue? Ian: _ Não sei do que sou capaz até chegar o momento. Terry: _ Poderia matá-lo com uma faca? Ian: _ Ou um martelo. Tipo um assalto com um martelo. […]
Novamentehá uma outra referência a Crime e Castigo através da express~o “assalto
com martelo”. E na primeira tentativa de homicídio os irmãos resolvem que não vão matar
ainda a vítima pois teriam que matar também a acompanhante desta. Diz Terry: “N~o posso
matá-la só porque est| aqui”. É uma outra alus~o ao livro, no qual Raskolnikov mata a irm~
da vítima só porque ela aparece na hora errada. Chris Wilton, de Match Point, por outro
lado, não tem escrúpulos em calcular uma outra morte, a da vizinha de sua amante, para dar
maior veracidade à versão de latrocínio.
Se em Crimes e Pecados e em Match Point não se vê o assassino, antes do crime, ter
grandes crises de consciência, em O sonho de Cassandra, assim como em Crime e Castigo, um
dos homicidas, Terry, sofre muito já antes de cometer o crime. O ator Colin Farrel interpreta
muito bem esse sentimento de angústia humana, através de suas expressões faciais.
Enquanto em Crimes e Pecados e em Match Point Woody Allen trabalha a técnica do
diálogo, no estilo do realismo mágico, para mostrar a perturbação psicológica dos
criminosos, em O sonho de Cassandra o desequilíbrio mental surge apenas em um dos
assassinos, Terry, que tem noites de insônia, desassossego, irritação, medo do castigo
divino. Essa última característica só é possível saber também através do diálogo, que não é
irreal, mas com seu comparsa, seu irmão Ian. Woody Allen, assim, duplica o assassino, mas
não se utiliza do elemento fantástico. Em Crimes e Pecados também há um diálogo entre
irmãos, Jack e Judah, e enquanto Judah está abalado, Jack tenta mostrar que não havia
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alternativa. Contudo, eles apenas planejaram e pagaram para matar, enquanto Ian e Terry
participaram ativamente do homicídio.
Ian, depois do crime, procura esquecer o acontecido e viver sua vida. Terry, cada vez
mais perturbado, não consegue mais dormir, não consegue mais levar sua vida adiante, até
fazer como Raskolnikov, tomando a decisão de se entregar à polícia. Ao saber disso, tio
Howard diz a Ian que é preciso impedi-lo, matando-o.
Tio Howard: _ Eu não vejo outra saída. Ian: _ Do que estamos falando? Tio Howard: _ Bem, eu não sei do que estamos falando. Estamos falando que queremos sobreviver. Ian: _ Mas ele é da família. Terry é meu irmão. Tio Howard: _ Bem, eu sei disso, mas... ele tem que ser detido antes que esse caso se esclareça. Ian: _ Sim, não posso deixar isso acontecer. Tio Howard: _ Não. Assassinato de novo. Ian: _ Como vou fazer isso? É um déjà vu,mas mil vezes pior. Tio Howard: _ Rapidez é essencial. Terry pode estar fazendo algo terrível... enquanto amaldiçoamos nosso destino. Ian: _ Ele estava certo quanto a uma coisa. Estávamos ultrapassando o limite. Não havia volta. Tio Howard: _ Isso tem que parecer um acidente. Ian: _ Sim, um acidente ou suicidio.
Apesar da aparente frieza, de preparar a morte do irmão, convidando-o a velejar no
barco que eles haviam comprado, intitulado O sonho de Cassandra, de levar drogas para
colocar na bebida do irmão, Ian, já no barco, ainda tenta dissuadir Terry deir à polícia.
Vendo que Terry está cada vez mais decidido a se entregar, começa a preparar a bebida,
mas nesse momento a “voz do sangue” fala mais alto. N~o consegue levar o projeto adiante;
porém, num ímpeto de raiva, grita e agride o irmão, que, num acidente, derruba Ian, o qual
morre ao bater a cabeça. Depois disso, aparece a cena dos policiais comentando a morte dos
dois irmãos, e o espectador sabe então que Terry se afoga depois. E assim o filme termina
de forma trágica, com as namoradas de ambos fazendo compras, sem saber ainda do
ocorrido. O título do filme não remete apenas ao barco, mas à personagem mitológica
Cassandra, que fazia profecias nas quais ninguém acreditava, e parece estar relacionado
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também a Terry, que havia dito que o ato criminoso acabaria mal. Seu irmão não lhe dá
ouvidos, e o final é trágico. Cassandra é Terry.
Assim, Woody Allen trabalha as várias formas possíveis de reação dos personagens
homicidas, após o crime: dos cinco personagens diretamente envolvidos no homicídio, há
dois mandantes e três executores dos assassinatos.
Há o mandante Judah, de Crimes e Pecados, que sofre após a execução do crime, tem
diálogos imaginários com o rabino e com a família de sua infância, além dos diálogos reais
com seu irmão; tem ainda pesadelos e uma grande irritação, mas depois de quatro meses
está muito bem.
O mandante Tio Howard,de O sonho de Cassandra, é o mais frio dos envolvidos, um
homem bem-sucedido, como Judah, porém sem nenhum drama de consciência. Mas este é
uma personagem secundária. Não se sabe o que acontece em seu íntimo. Pelo que é exibido,
porém, não parece ter grandes conflitos, e até quando o sobrinho quer se denunciar à
justiça, não hesita em querer também matá-lo, para se preservar.
Dos executores do crime, Chris Wilton, de Match Point, que estava diretamente
ligado à vítima, consegue manter sua posição privilegiada na sociedade, mas nove meses
depois do crime ainda conserva o semblante melancólico, olhando para o nada. Se em nove
meses Chris guarda ainda as marcas do crime, Judah, em quatro meses, já brinca com o
acontecido, até propondo à personagem Cliff Stern, ao final do filme, um roteiro de um
crime perfeito. Chris Wilton, na noite do crime, aparece dialogando com as vítimas. Como
em Crimes e Pecados, aqui há novamente o diálogo imaginário, metaforizando seu peso na
consciência, se bem que ele tenta acalmá-la defendendo-se com argumentos.
Outros dois executores de homicídio são os dois irmãos Ian e Terry, bastante
diferentes em suas reações ao crime. Nenhum deles tem relação direta com a vítima, e não
obstante estarem sendo pagos para cometerem o ato indigno, não é o suficiente para
tranquilizar Terry, que sofre horrores. Na angústia sofrida, é o mais parecido com o herói de
Crime e Castigo. Tem pesadelos, irritação, e pensa em se entregar à polícia. Ian, como Chris
Wilton, é mais frio, embora não consiga executar o segundo assassinato.
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Como se vê, os que pagam pelo crime não padecem tanto como seus executores. A
dilaceração da vida, vista de perto, e pela sua própria responsabilidade, mexe mais com o
equilíbrio emocional.
De forma magistral, Woody Allen trabalha os três filmes tendo a imprevisibilidade
como grande elemento, além de sua conhecida ironia. Em Crimes e Pecados o que parecia
tragédia virou comédia, e o que parecia comédia virou tragédia; em Match Point, o
espectador esperava a prisão do protagonista, que não se confirmou, apesar da teoria que
utilizava o tênis como metáfora da vida; e em O sonho de Cassandra aquele que seria o irmão
assassino tornou-se o irmão assassinado.
Em Nina, filme do cineasta pernambucano Heitor Dhalia, observa-se como vários
fatores contribuíram para criar uma atmosfera de angústia e desespero. Tal era mesmo o
objetivo do diretor, que não pretendeu fazer adaptação do livro de Dostoievsky, mas captar
o terror psicológico da personagem. É certo que no filme há muitos elementos de diálogo
com Crime e Castigo, desde a teoria sobre os homens ordinários e os extraordinários,
passando pela carta que os protagonistas do filme e do livro recebem da família, que envia
dinheiro a estes; pelo fato de os protagonistas, muito pobres, estarem com o aluguel em
atraso; pela suspensão do fornecimento de comida a estes, por parte dos hospedeiros; pelo
pesadelo que os personagens têm com um cavalo sendo espancado; pela presença dos
pintores no prédio onde se comete o crime; pelo homem misterioso que observa os
criminosos; até a indagação dos protagonistas aos detetives sobre o que aconteceria se
fugissem. Em Nina, essas duas últimas cenas são na verdade fantasiosas, pois o delírio da
personagem passou a ser uma constante.
No entanto, a despeito da existência de tais elementos de espelho, que refletem
passagens do livro, há muita novidade no filme brasileiro, a começar pelo fato de a
personagem principal ser uma mulher (Guta Strasser). Mas o que chama realmente a
atenção, no filme, é o expressionismo visual causado pelos desenhos animados de Lourenço
Mutarelli (1964-), excelente desenhista e também escritor. Aliás, O cheiro do ralo é baseado
no romance de Mutarelli. Assim, há uma sintonia muito grande entre os desenhos de
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Mutarelli e o clima geral do filme, de terror psicológico, pois os desenhos que aparecem
exprimem uma estética do grotesco, e no filme, são atribuídos à protagonista Nina, que
mantém um caderno cheio de anotações e desenhos. A parede de seu quarto é também
forrada desses desenhos que tematizam a angústia, a morte, o sombrio, o grotesco. Joaquim
Cardia Guirotti define muito bem as características desses desenhos de Mutarelli:
Suas formas são disformes, seus personagens, perturbados, doentes, sofridos. Predominam as sombras, o escatológico, a morte, os inimagináveis processos pelo qual o corpo passa após o fim de suas funções vitais. A perda, a deformação, o desespero, o limite, o fim, a angústia, o pesadelo infernal de se viver em dor. Estes s~o temas abordados constantemente através da obra de Mutarelli.(“A estética de Lourenço Mutarelli”. http://www.mnemocine.com.br/oficina/jguirottimutarelli.htm)
Nina exprime suas angústias através do desenho, e tais desenhos aparecem
animados na tela para revelarem o terror, o delírio e o desespero por que passa a
protagonista, numa crescente miséria e humilhação sofrida, e que chega à atitude extrema
de matar a velha que lhe alugava o quarto onde morava, dona Eulália (Myriam Muniz).
Observe-se que a personagem Nina, apesar de sua origem humilde, demonstra algum
conhecimento sobre Crime e Castigo, e o filme começa justamente com a personagem
comentando a uma colega sobre a teoria dos homens ordinários e dos extraordinários.
Entretanto ela se apropria do discurso, dizendo que a teoria é dela: “Eu tenho uma teoria”.
No final do filme, quando passam os créditos, há essa mesma fala de Nina, com um fundo
musical. Outra referência que demonstra o conhecimento de Nina do livro está nos
desenhos que faz em seu caderno, matando a velha a machadadas. Ela também desenha
uma morte com facada, e esses vários desenhos, com as distintas formas de homicídio,
causam a Nina uma confusão muito grande quando confessa à polícia seu crime. Como ela
está muito confusa e a cada hora diz que matou de uma forma diferente, a polícia não crê
em sua culpa e ela fica livre. Acreditam que a morte foi natural. Na verdade ela matou
através do sufocamento, com um plástico na cabeça de dona Eulália, mas Nina começa a
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misturar a realidade com seus desenhos, delírios e pesadelos, além das drogas usadas. Não
sabe mais o que é real.
Essa técnica de mostrar o terror psicológico da personagem pelos desenhos
sombrios, além dos pesadelos e delírios, e das cores escuras do filme, foi excelente para dar
esse tom geral de angústia humana.
Os excelentes desenhos, o tom desesperançoso e angustiante e a excelente atuação
dos personagens do filme, que tem no elenco ainda nomes como Wagner Moura, Matheus
Nachtergaele, Lázaro Ramos, Selton Mello, Renata Sorrah e outros, tornam esse filme muito
atraente. O roteiro do filme, porém, apesar da excelente parceria entre Heitor Dhalia e
Marçal Aquino, peca um pouco num ponto. O ponto inicial, que é repetido no final: a teoria
dos homens ordinários e extraordinários, na boca da personagem Nina. Ela não se
assemelha, em nenhum momento, a uma personagem extraordinária. Não demonstra
nenhuma grande ambição, e o homicídio que pratica é causado pela raiva que, pouco a
pouco aumenta até explodir, e não para garantir ou adquirir algum privilégio, e nem mesmo
para “ajudar” alguém. Em Crime e Castigo essa reflexão, que está na mente do protagonista,
é também muito bem explicada por uma outra personagem que diz que a velha usurária não
faria falta caso ela morresse, se se com isso outras vidas fossem beneficiadas. Nesse trecho,
em que Raskolnikov apenas ouve, na taverna, tal discurso, mas com o qual se admira pela
semelhança com seu pensamento, lê-se:
Matá-la, tirar-lhe esse dinheiro, para com ele se consagrar depois ao serviço de toda a humanidade e ao bem geral. Que te parece? Não ficaria apagada a mancha dum só crime, insignificante, com milhares de boas ações? Por uma vida... mil vidas salvas da miséria e da ruína. Uma morte, mas, em troca, mil vidas... É uma questão de aritmética. E que pesa nas balanças vulgares da vida essa velhota tísica, estúpida e má? Não mais que a vida dum piolho, duma barata, e pode ser que ainda menos, visto que se trata de uma velha malfazeja. (DOSTOIÉVSKI, 1998, p.69)
Ainda que nos filmes de Woody Allen não se tenha uma teoria nobre que esteja por
trás dos crimes cometidos, os criminosos têm em vista manter ou adquirir algum privilégio,
e como eles se consideram homens extraordinários, ambiciosos e com uma contribuição a
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dar à sociedade (com exceção de Terry, deO sonho de Cassandra), o ato criminoso acaba
sendo um mal necessário. Nem isso há em Nina. O que se há é a voz do puro instinto.
Portanto, a teoria da qual ela fala no início, e da qual se apropria, nada tem a ver com ela.
Torna-se inverossímil. Apesar desse crime básico, é um filme que não merece castigo, pelos
motivos já discutidos.
Quatro filmes, quatro modos distintos de se evidenciar o conflito psicológico de
mentes homicidas. E tudo baseado no mestre da abordagem do drama psicológico, que com
certeza já rendeu e ainda renderá releituras inesquecíveis.
Referências
ALLEN, Woody. Entrevista a Woody Allen. Zero, Hora, 12 mar. 2008. Disponível em: www.zerohora.clicrbs.com.br. Acesso em: 12 jul. 2012. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Trad. Luiz Cláudio de Castro. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1998. GUIROTTI, Joaquim Cardia. A estética de Lourenço Mutarelli. Disponível em: http://www.mnemocine.com.br/oficina/jguirottimutarelli.htm Acesso em: 12 jul. 2012. FILMES: Crimes e Pecados. 1989. Direção: Woody Allen. Match Point. 2005. Direção: Woody Allen. O sonho de Cassandra. 2007. Direção: Woody Allen. Nina. 2004. Direção: Heitor Dhalia.
Artigo aceito em julho/2013