Nabuco - O Grande Salto Adiante e a Questao Da Transicao Chinesa

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7/23/2019 Nabuco - O Grande Salto Adiante e a Questao Da Transicao Chinesa http://slidepdf.com/reader/full/nabuco-o-grande-salto-adiante-e-a-questao-da-transicao-chinesa 1/10 O GRANDE SALTO ADIANTE E A QUESTÃO DA TRANSIÇÃO CHINESA Paula Nabuco 1  GT8: Socialismo no Século XXI Entre o final de 1957 e 58 o Partido Comunista da China viveu uma fase de grandes expurgos. Milhares de membros do partido nas cidades tinham sido enviados ao campo para serem reeducados e a luta interna na cúpula do partido se ampliara, com o setor ligado a Mao Zedong tentando derrubar a direção colegiada, que havia sido institu- ída no congresso anterior, uma derrota política que era fruto dos problemas no processo de coletivização no campo iniciado logo após a constituição da República Popular da China em 1949. Há entre os estudiosos da história chinesa muita controvérsia sobre as intenções de Mao ao estimular e liderar o movimento de retificação. Para alguns foi um mecanis- mo para fazer com que os direitistas chineses se “acusassem”, facilitando o controle  político do país. Outros entendem a atitude do líder chinês como uma tentativa de - a  partir do apoio político obtido junto à população e aos intelectuais em “troca” de seu apoio ao movimento - reverter a derrota sofrida no VIII Congresso do PCCh com a ins- tituição do colegiado. Também não se pode negligenciar os efeitos do Relatório Krus- chev tanto sobre os membros do partido quanto entre os intelectuais e estudantes chine- ses. A União Soviética estava em xeque, enquanto exemplo a ser seguido pelo povo chinês, e o PCCh, na figura de seus dirigentes, precisava lidar com isso. O Grande Salto Adiante é fruto deste cenário conturbado de disputas e tensões  políticas internas e internacionais, além da necessidade de dar resposta aos problemas da economia chinesa, especialmente no campo. Mais que isso, foi uma tentativa de re- verter os resultados agrícolas ruins do Primeiro Plano Qüinqüenal, cujo objetivo era fazer a produtividade no campo aumentar através de incentivos morais e da mobilização dos chineses com a participação direta dos dirigentes locais do PCCh. O plano de Mao, que tinha como inspiração a mobilização através da reforma agrária promovida em Yan’an ainda na época da luta contra os japoneses e o Guomintang, o elemento central nos planos do Grande Salto era a mobilização política da nação. De acordo com Marco- ni: “(...) decretou-se que era possível transformar as relações de produção antes que as forças produtivas tivessem atingido um desenvolvimento elevado. Como se conseguiria essa transformação? Através da mobilização política, que torna- ria possível ultrapassar a Inglaterra em três anos e os Estados Unidos em quin- ze. ‘Mais rápido, melhor e mais economicamente’, esta seria a consigna do Grande Salto Adiante.” 2  O Grande Salto Adiante foi um grandioso plano de mobilização de massas; em menos de um ano mais de 500 milhões de camponeses chineses integraram-se a 26.000 comunas nas quais não havia qualquer tipo de propriedade privada. Todas as tarefas 1  Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense 2  MARCONI, V. China la longa marcha, de la revolución a la restauración, Buenos Aires, Editorial Antídoto, 1999, pp.115-6.

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O GRANDE SALTO ADIANTE 

QUESTÃO 

DA TRANSIÇÃO 

CHINESA 

Paula Nabuco1 

GT8: Socialismo no Século XXI

Entre o final de 1957 e 58 o Partido Comunista da China viveu uma fase degrandes expurgos. Milhares de membros do partido nas cidades tinham sido enviados aocampo para serem reeducados e a luta interna na cúpula do partido se ampliara, com osetor ligado a Mao Zedong tentando derrubar a direção colegiada, que havia sido institu-ída no congresso anterior, uma derrota política que era fruto dos problemas no processode coletivização no campo iniciado logo após a constituição da República Popular daChina em 1949.

Há entre os estudiosos da história chinesa muita controvérsia sobre as intençõesde Mao ao estimular e liderar o movimento de retificação. Para alguns foi um mecanis-mo para fazer com que os direitistas chineses se “acusassem”, facilitando o controle

 político do país. Outros entendem a atitude do líder chinês como uma tentativa de - a partir do apoio político obtido junto à população e aos intelectuais em “troca” de seuapoio ao movimento - reverter a derrota sofrida no VIII Congresso do PCCh com a ins-tituição do colegiado. Também não se pode negligenciar os efeitos do Relatório Krus-chev tanto sobre os membros do partido quanto entre os intelectuais e estudantes chine-ses. A União Soviética estava em xeque, enquanto exemplo a ser seguido pelo povochinês, e o PCCh, na figura de seus dirigentes, precisava lidar com isso.

O Grande Salto Adiante é fruto deste cenário conturbado de disputas e tensões políticas internas e internacionais, além da necessidade de dar resposta aos problemasda economia chinesa, especialmente no campo. Mais que isso, foi uma tentativa de re-

verter os resultados agrícolas ruins do Primeiro Plano Qüinqüenal, cujo objetivo erafazer a produtividade no campo aumentar através de incentivos morais e da mobilizaçãodos chineses com a participação direta dos dirigentes locais do PCCh. O plano de Mao,que tinha como inspiração a mobilização através da reforma agrária promovida emYan’an ainda na época da luta contra os japoneses e o Guomintang, o elemento centralnos planos do Grande Salto era a mobilização política da nação. De acordo com Marco-ni:

“(...) decretou-se que era possível transformar as relações de produção antesque as forças produtivas tivessem atingido um desenvolvimento elevado. Comose conseguiria essa transformação? Através da mobilização política, que torna-ria possível ultrapassar a Inglaterra em três anos e os Estados Unidos em quin-

ze. ‘Mais rápido, melhor e mais economicamente’, esta seria a consigna doGrande Salto Adiante.”2 

O Grande Salto Adiante foi um grandioso plano de mobilização de massas; emmenos de um ano mais de 500 milhões de camponeses chineses integraram-se a 26.000comunas nas quais não havia qualquer tipo de propriedade privada. Todas as tarefas

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense2 MARCONI, V. China la longa marcha, de la revolución a la restauración, Buenos Aires, EditorialAntídoto, 1999, pp.115-6.

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relacionadas com o dia-a-dia destes trabalhadores, desde cuidar das crianças, das roupasaté o preparo dos alimentos era feito pela comuna. Em um esforço nacional para au-mentar a produção industrial, algumas fábricas foram removidas para o campo. O intui-to era fazer com que os camponeses aprendessem as técnicas usadas na indústria e tam-

 bém aproveitá-los neste tipo de trabalho durante as entressafras. Isso diminuiria a pres-

são migratória sobre os centros urbanos chineses incapazes de absorver, naquela ocasi-ão, os trabalhadores necessários para o salto industrial que constava na meta do TerceiroPlano Qüinqüenal. Esperava-se que o aumento da produção agrícola, que era o setorcentral do plano, impulsionasse o crescimento da produção industrial.

Depois de uma boa colheita no verão de 1958, que serviu de estímulo aos planoschineses, o Comitê Central do PCCh passou a considerar as comunas como o caminhoadequado para fazer avançar a construção socialista e o desenvolvimento da China. Es-timava-se que a produção agrícola da China fosse dobrar em 1958. Posteriormente,quando foi feito o balanço, o total anunciado da produção de grãos para o ano de 1958de 375 milhões de toneladas teve que ser revisto para 250 milhões e depois para modes-tos 200 milhões. Nenhum dos responsáveis pela contagem queria se arriscar a indicar

que a meta não tinha sido atingida, e sofrerem com a alcunha de direitistas ou derrotis-tas, o resultado foi que, naquele ano, as cotas em praticamente todas as localidades fo-ram formalmente atingidas. Algum tempo depois ficou patente que elas não refletiam arealidade. Logo após a campanha anti-direitista do final de 1957 havia um temor gene-ralizado de que qualquer indicação de insucesso do Grande Salto pudesse ser interpreta-da como desvio pequeno-burguês ou tentativa de boicote ou derrotismo.

Em dezembro de 1958 as cerca de 740.000 cooperativas que existiam no campoaté as mobilizações do Grande Salto tinham se transformado em 26.000 comunas queabrangiam 99% da população camponesa do país. A China contava também com cercade 1 milhão de fornos siderúrgicos de “quintal”, que tinham baixa produtividade, conta-

 bilizavam um sem número de acidentes na produção e cujos produtos eram, em geral, de baixa qualidade.

Discutiam-se também novos mecanismos e regras para distribuição e consumoentre os camponeses, visando aumentar a produção e assegurar a alimentação dos traba-lhadores das comunas. Em um de seus principais textos sobre o Grande Salto, Mao de-fendia a adoção das sugestões feitas pelos camaradas de Hupei nos seguintes termos:

“Sob a base da produção e distribuição de 1957, futuros aumentos devem serdivididos na proporção 40/60 (i.e. 40% para os membros da comuna e 60% pa-ra acumulação da comuna), 50/50 ou 60/40 (i.e. 60% para os membros da co-muna e 40% para acumulação. Em lugares onde a produção e a renda tiverematingido o nível de camponeses médios saudáveis, depois de grandes divergên-cias e discussões e depois do consenso ter sido obtido entre as massas, o au-mento na produção deve ser dividido na proporção 30/70 (i.e. 30% para osmembros da comuna e 70% para acumulação da comuna) ou não ser dividido por um ou dois anos para aumentar a acumulação na preparação para o GrandeSalto Adiante. Todas as regiões são chamadas à discutir a adequação desta su-gestão.”3 

Os camponeses também eram enviados para regiões remotas do país em buscade jazidas de urânio e petróleo, e em todos estes casos estavam submetidos à mesmaconcepção, de que a mobilização e a força moral das massas seriam capazes de tudo,segundo a insígnia propagandeada pelo partido sob direção de Mao de “alcançar a In-

 3 MAO Z. Selected Work of Mao Tse-Tung, Vol VIII, Kranti Publications, Secunderabad, and Srami-kavarga Prachuranalu, Hyderabad. www.marxists.org/reference/archive/mao/index.htm.

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glaterra em 15 anos.”4. O próprio Mao apontava, em um discurso da mesma época, quehavia muita divergência sobre o ritmo a ser adotado no processo de coletivização, comalguns defendendo um processo gradual e outros, transformações mais aceleradas. Maso dirigente chinês argumentava que era melhor aproveitar para “fazer a forja enquanto oaço ainda estava quente”.

Segundo Mao a construção socialista era necessariamente um processo de revo-lução permanente5, que uma revolução deveria suceder a outra, avançando continua-mente. Por isso, logo após a libertação em 1949 - dizia ele - veio a reforma agrária, se-guida pelas pequenas cooperativas e, posteriormente, pelas maiores. Depois de sete anosfoi concluída a coletivização e seguiu-se a revolução técnica. Durante o Grande Saltotambém foram criadas comunas populares, cerca de 30 milhões de camponeses recebe-ram armas de fogo criando uma espécie de “força armada” paralela ao Exército Popularde Libertação (EPL). Os chineses também se mobilizaram para derrubada de constru-ções antigas e posterior construção de um verdadeiro complexo de abrigos antiaéreos

 por causa do temor de um ataque nuclear por parte dos Estados Unidos.Apenas um dos dirigentes chineses chegou a fazer uma crítica formal ao Grande

Salto Adiante ainda durante sua execução, foi o marechal do EPL e ministro da defesa,Peng Dehuai, em julho de 1959. Apontando as fraudes nos dados compilados sobre odesempenho da economia do país ao longo do ano de 1958 (especialmente sobre a co-lheita de grãos) e também as péssimas condições de vida dos camponeses por toda aChina. Depois da crítica, Peng foi acusado de direitista e de tentar sabotar a construçãosocialista e removido do ministério da defesa. Mas a verdade sobre a escassez de ali-mentos era visível por todo o país, a fome se alastrava pela China, e a insistência emrecolher grande parte da produção para assegurar a acumulação agravava a já difícilsituação. Em 1957 a média de grãos disponíveis por habitante da China (por ano) nocampo era de 207 quilos, em 1958 caiu para 201, reduzindo-se para 183 quilos em 1959e atingiu desesperadores 156 quilos em 1960. A escalada da fome era assustadora, em1961 a proporção de grãos chegou a 154 quilos.

Estimativas indicam que durante o Grande Salto cerca de 20 milhões de chinesesmorreram de fome (há estimativas que apontam 30 milhões) e os dados sobre a compo-sição etária da população levam a crer que a maior parte dos mortos tanto durante, quan-to depois, do período do Grande Salto era de crianças de até 10 anos, que sofriam maisintensamente com a subnutrição. Não há dados precisos sobre o número de mortos no

 período posterior ao Salto, que sucumbiram em função da falta de alimentos. Mas a ta- bela abaixo mostra que, apesar do forte impulso cultural para procriar, a população chi-nesa estava encolhendo. No caso de algumas províncias, cujos dados reproduzimos a-

 baixo, a situação era ainda mais grave, as províncias a oeste do país, historicamente

mais pobres sofreram mais, como é o caso de Sichuan e Gansu, mas também havia pro-víncias como Anhui e Shandong, que ficam no extremo oriente chinês, a região maisrica do país, que também viviam uma situação bastante penosa.

 No outono de 1959 a colheita de grãos foi inferior à de 1958, a diferença era de30 milhões de toneladas. Temerosos com possíveis retaliações, os funcionários informa-ram que as metas tinham sido atingidas e como a cota fixada pelo Estado era de 40% da

4 Em praticamente todos os textos de Mao do período do Grande Salto Adiante (especialmente no trans-curso do ano de 1958) aparece referência ao slogan, que foi o lema do Grande Salto Adiante, de “superaro atraso econômico da China e alcançar a Inglaterra em 15 anos” a partir da mobilização do povo chinês.5 No discurso que trata deste tema na Suprema Conferência de Estado, em janeiro de 1958, Mao faz ques-

tão de salientar que não entendia a revolução permanente nos mesmos termos defendidos por Trotsky; adivergência refere-se, segundo ele, basicamente ao momento adequado para a Revolução Democrática aolongo do processo.

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 produção, quando foi feito o recolhimento, faltou alimento para entregar aos trabalhado-res das comunas. Nas localidades em que a colheita foi pior o recolhimento do Estadochegou ao total produzido. A reprodução deste procedimento a cada nova colheita gerouuma situação de verdadeira calamidade.

“No campo, os projetos de irrigação e as práticas rurais equivocadas, fruto daignorância e da inexperiência, haviam arruinado o solo. As tentativas de obri-gar os camponeses a trabalhar dia e noite, acabaram por deixá-los exaustos Aisto deve-se acrescentar uma seqüência de catástrofes naturais ao longo de trêsanos, que liquidaram as colheitas. A partir de meados de 1960, se tornou evi-dente que o resultado do tremendo esforço imposto às massas foi um grandefracasso. Não apenas havia sido freado o formidável impulso econômico gera-do durante os primeiros 8 anos depois da tomada do poder, como entre 1959 e1961, o povo chinês havia retrocedido a um nível de pobreza que tinha come-çado a esquecer.”6 

O período do Grande Salto foi marcado por diversos acontecimentos também em

âmbito internacional. Em 1959 começou a Guerra do Vietnã e no mesmo ano os chine-ses derrotaram o movimento “separatista” tibetano, o Dalai Lama e cerca de 100.000 pessoas se refugiaram na Índia7. Em 1960 depois de muitas controvérsias, idas e vindas,a China rompeu relações com a União Soviética. Este rompimento tornou as circunstân-cias ainda mais difíceis no país. Imediatamente, a União Soviética retirou todos os seustécnicos e equipamentos da China e exigiu o pagamento imediato dos débitos dos chine-ses com o país.

O rompimento sino-soviético e as avaliações sobre o Salto deram a tônica dosdebates na China do início da década de 60 do século passado. O contraste entre as op-ções da União Soviética e da China sobre o andamento de seus processos de moderniza-ção era patente. Na China, a aposta na vontade política e no fervor revolucionário para

superar os limites econômicos ao desenvolvimento do país não se coadunavam com a posição mais gradualista e mesmo cautelosa dos planejadores soviéticos, que viam comdesconfiança as decisões dos dirigentes chineses que levaram à adoção do Grande Salto.

O fracasso e posterior balanço do Grande Salto impôs severas mudanças nosrumos adotados pelo PCCh. Segundo as avaliações iria demorar algum tempo até que aagricultura retomasse os patamares de produção anteriores ao Grande Salto e havia 30milhões de jovens camponeses que tinham sido deslocados para as cidades chinesas eque, segundo as novas diretrizes do partido, deveriam retornar ao interior. As recomen-dações incluíam também o fechamento de pequenas indústrias ineficientes estabelecidasdurante estes anos. Uma pequena parcela das terras agrícolas (cerca de 6%) seria devol-vida aos camponeses na forma de pequenas propriedades privadas, e também foi autori-

zada a reabertura de pequenos mercados rurais particulares e as cotas de produção volta-ram a ser de responsabilidade de unidades familiares.

O setor que se opunha a Mao, liderado por Liu Shaoqi, Zhou Enlai e Deng Xiao- ping obteve uma significativa vitória na cúpula do partido. Com isso começou um pro-cesso de desmonte das comunas, combinado com a autorização para que os camponeses,além da pequena produção privada, tivessem acesso a incentivos à produção em dinhei-ro e firmassem contratos para uso de equipamentos na produção rural. Com o fim doGrande Salto Adiante, Mao renunciou a todos os seus cargos, mantendo apenas a presi-dência do Comitê Central, sua principal base de apoio (e talvez a única naquele momen-

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 Idem, ibdem, p.123.7 A questão sobre o pertencimento ou não do Tibet à China é motivo de muita controvérsia e escapa aoescopo deste trabalho.

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to) era o exército, que se mantinha fiel às diretrizes do líder chinês. Sobre Mao pesavamas acusações, feitas por outros dirigentes, de ignorar a realidade econômica do país,

 buscando governá-lo baseado apenas em convicções políticas e no voluntarismo disse-minado entre as massas.

 ______________

Em 1921, depois da guerra civil, a antiga União Soviética adotou a Nova PolíticaEconômica (NEP, por causa do nome em russo) como forma de tirar o país da gravesituação em que se encontrava. A NEP substituíra o comunismo de guerra, que orientoua política econômica na União Soviética desde a Revolução Russa em 1917. Lênin re-conhecia os problemas decorrentes da situação econômica na URSS durante a guerracivil e as dificuldades de manter a ligação entre os trabalhadores do campo e da cidadesob esta diretriz econômica. O líder russo, na ocasião, sublinhara as conseqüências polí-tico-econômicas deste fato, salientando que a NEP asseguraria a articulação da nascenteeconomia socialista com a economia camponesa, da qual viviam milhões de campone-

ses.8 A Nova Política Econômica restabelecia algumas relações de mercado que havi-

am sido proibidas na URSS. De acordo com a NEP os camponeses poderiam vender parte de sua produção para o Estado a preço fixo e o restante poderia ser posto no mer-cado. Também foi autorizada a abertura de pequenos comércios. Esta política perdurouaté 1928-29 quando foi substituída pelo processo de coletivização forçada, baseada no

 planejamento centralizado, já com o Partido Comunista sob a direção de Stalin. Em1929 a NEP foi substituída pelos Planos Qüinqüenais sob controle do Estado na UniãoSoviética. Na ocasião, diversos negócios privados foram estatizados e a planificação foiinstituída. Ambas as políticas – a NEP e a coletivização - foram, ao longo de muitosanos, fonte de estímulo e experiência para diversos países na transição socialista.

A partir da instituição da coletivização e da planificação na União Soviética a- profundou-se o debate sobre o papel da posse estatal dos meios de produção e da plani-ficação como instrumentos básicos da transição para o socialismo. A questão da coleti-vização foi tema de intenso debate na Terceira Internacional Comunista. A discussãosobre a implementação da coletivização versus a composição da frente única (hegemo-nizada pelos proletários em aliança com os camponeses e da coletivização através doconvencimento) foi intenso e tinha como pano de fundo a questão do papel dirigente do

 proletariado e da possibilidade ou não de realização de uma aliança operário-camponesaque fosse duradoura. Este debate seria fundamental para os chineses, cujo processo re-volucionário baseara-se no apoio e mobilização dos camponeses. Mao inclusive decla-

rou que Stalin cometera um grande erro ao não confiar nos camponeses. Em um textosobre o livro de Stalin Problemas Econômicos da União Soviética Mao faz críticas à postura de Stalin em relação aos camponeses, problematiza o processo de planificaçãochinês e discorre sobre o papel da lei do valor na produção e distribuição de mercadori-as sob o socialismo.

8 LENIN, V. Obras escolhidas, Volume 3, São Paulo, Editora Alfa-ômega, 1980.

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“A produção de mercadorias não é algo isolado. Olhem o contexto: capitalismoou socialismo. Num contexto capitalista, é uma produção capitalista de merca-dorias. Num contexto socialista, é uma produção socialista de mercadorias. (...)O que determina a produção de mercadorias são as condições econômicas cir-cundantes. A questão é: pode a produção de mercadorias ser considerada ins-trumento útil para promover a produção socialista? Penso que a produção de

mercadorias servirá ao socialismo bem docilmente. Isso pode ser discutido en-tre os quadros.”9 

Segundo Mao a mercadoria é algo deixado pelo capitalismo e que os socialistasdeveriam conservar por um período. Além disso, dizia ele, as leis que definiam a trocade mercadorias e seu valor não tinham papel regulador na produção chinesa, pois esteera desempenhado pela planificação, na verdade pelo projeto do Grande Salto Adiantesob a planificação. Stalin cometera um equívoco ao desconsiderar a superestrutura aten-do-se apenas às relações de produção. Com isso relegava a relação entre estrutura e su-

 perestrutura, que era fundamental dizia Mao.O dirigente chinês também criticava a análise da planificação feita por Stalin sa-

lientando que na URSS não foi dada a devida atenção à indústria leve e à agricultura, provocando perdas para o país. Ademais, as necessidades de curto e longo prazo do po-vo não tinham sido devidamente consideradas e que com isso eles (os soviéticos) anda-ram em uma perna só (a indústria pesada). Em seu livro, enumerava Mao, Stalin dividiua produção em dois setores principais e afirmava que os meios de produção não erammercadorias, mas os meios de produção usados na agricultura chinesa, afirmava Mao“deveriam ser mercadorias.”10 

Mao reconhecia os problemas e dificuldades do processo de planificação chinês,mas afirmava que isto era conseqüência de leis objetivas. Afirmava ainda que a planifi-cação era responsabilidade de todo o partido e não apenas dos comitês diretamente en-volvidos. Para o dirigente chinês um dos principais equívocos do planejamento no paísfoi não considerar o aço o elemento fundamental, prejudicando a execução dos planosestabelecidos. Estas avaliações constam também em um artigo de 1958, intitulado “Arespeito do livro de Stalin Problemas econômicos do socialismo na União Soviética” eas declarações de Mao sobre o “descaso” ou a opção por apenas uma das pernas (a in-dústria, para Mao a outra seria a agricultura) além do reconhecimento dos problemasrelativos aos gargalos no planejamento chinês, tiveram como resposta a execução dos

 planos do Grande Salto Adiante.Outro elemento fundamental tratado por Mao no artigo citado acima era a ques-

tão da propriedade. De acordo com Mao os chineses estavam passando da pequena pro- priedade coletiva à propriedade pública e a seguir o país teria condições de passar à

 propriedade pública completa. “Quais as implicações da propriedade pública completa?Existem duas: 1) os meios de produção são propriedade de todo o povo; 2) o resultadoda produção é propriedade de todo o povo”11. Mao acrescenta ainda que havia dois sis-temas de propriedade distintos na China de então, um era a propriedade pública como aFábrica de Ferro e Aço de Anshan e o outro a propriedade coletiva, caso das comunas.Em sua crítica à seção do livro de Stalin sobre a produção de mercadorias e o socialis-mo, o dirigente chinês sintetiza a relação entre a propriedade e a produção de mercado-rias.

9 ZIZEK, S. (org.)  Mao sobre a prática e a contradição, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2008, p.157.10 Idem, p.140.11 Idem, p.145.

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“A existência de dois tipos de propriedade é a premissa principal para a produ-ção de mercadorias. Mas em definitivo, a produção de mercadorias também es-tá relacionada com as forças produtivas. Por essa razão, mesmo sob a proprie-dade pública completamente socializada, a troca de mercadorias ainda terá queser operativa em algumas áreas.”12 

Uma das grandes dificuldades enfrentadas pelo marxismo ao longo da história,segundo Postone13 é o entendimento do capitalismo fundamentalmente, como um siste-ma baseado na propriedade privada dos meios de produção combinada com sistema detrocas regulado pelo mercado.

“Geralmente interpretou-se que esta contradição [entre relações sociais e forçasde produção] em termos de uma oposição entre, de um lado a propriedade pri-vada e o mercado e, por outro, o modo industrial de produção; oposição na quala propriedade privada e o mercado são tratados como o selo do capitalismo e a produção industrial como o selo de uma sociedade socialista futura. O socia-lismo é entendido principalmente em termos de propriedade coletiva dos meiosde produção e planificação econômica em contexto industrializado.”14 

A partir deste entendimento do capitalismo, o modo de produção industrial perdeseu caráter histórico, assumindo uma condição histórica “independente”. O sistema ca-

 pitalista passa a ser, portanto, composto pela propriedade privada e pelo processo devalorização do capital no mercado. A partir dessa premissa o passo seguinte é o enten-dimento do socialismo como uma continuação deste modo industrial de produção, e daesfera econômica como uma questão relativa à distribuição. Uma vez implementado o

 planejamento central, o problema passaria a ser a promoção de um desenvolvimentoimanente da produção.

Marx em diversos momentos de O Capital deixou claro que as leis que regem a

 produção da riqueza são as mesmas que regem sua distribuição e que ambas estão sujei-tas ao mesmo devir histórico, enquanto parte de um mesmo processo. Neste sentido nãoé possível distinguir transformações no modo de distribuição que mantenham este modode produção que é, inclusive, a base do sistema capitalista. Marx também deixa claroque a superação do modo de produção capitalista pressupõe o fim do modo de produção

 baseado no valor como forma social de riqueza, o que significa uma mudança no pro-cesso de produção.

 No prefácio da Contribuição à crítica da economia política em uma seção, quenão por acaso, se chama “Eternização das relações históricas de produção - produção edistribuição em geral. Propriedade”, Marx argumenta que não se pode falar em produ-ção desconsiderando o momento histórico tratado. A produção é sempre “a produção de

um estágio determinado do desenvolvimento social que nos referimos – à produção deindivíduos vivendo em sociedade” e a “produção em geral é uma abstração” (MARX,1985, pp. 202-3) que pode ser uma abstração razoável apenas na medida em que servirde mecanismo para fixação dos elementos comuns daquilo que constitui a produção.Continua Marx:

12 Idem, p.152.13 POSTONE, M. Tiempo, trabajo y dominación social. Una reinterpretación de la teoria crítica de Marx.Barcelona: Marcial Pons, 2006.14 Idem, p.48.

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“Não há produção possível sem trabalho passado acumulado; esse trabalho seráa habilidade que o exercício repetido desenvolveu e fixou na mão do selvagem.Entre outras coisas, o capital é, também, um instrumento de produção, é tam- bém trabalho passado objetificado. Logo o capital é, uma relação natural uni-versal e eterna; sim, mas com a condição de negligenciar precisamente o ele-mento específico, o único que transforma em capital o ‘instrumento de produ-

ção, o trabalho acumulado.”15

 

O capital é, fundamentalmente, uma relação social, um resultado histórico, quenão é nada sem trabalho assalariado, valor, subsunção dentre outros elementos típicosda sociedade capitalista, sentencia Marx. O concreto assim o é porque se constitui demuitas determinações, como “unidade na diversidade”. Assim como há no homem achave para a anatomia do macaco - trecho reiteradamente citado de Marx - há na eco-nomia burguesa a chave para o entendimento da economia antiga. Mas isso não poderiaser reconhecido pelos economistas clássicos que abstraíam as diferenças históricas eviam as relações burguesas manifestas em todas as formas sociais que precederam ocapitalismo.

Sob o capitalismo, o objetivo da produção é uma necessidade externa para os produtores. Não é algo determinado por nenhum tipo de tradição, forma de consciênciaou qualquer mecanismo de coerção social, seu objetivo não está submetido ao controledos indivíduos produtores. Sua finalidade não é a produção de quantidades crescentesde bens, ainda que isto seja o que aparentemente ocorre e possa mesmo ser empirica-mente atestado, mas a criação de mais e mais valor. Neste sentido, pouco importam ascaracterísticas e finalidades destes bens, pois o objetivo é a criação de valor. No capita-lismo temos a produção pela produção, como destacou Marx. No capitalismo as rela-ções sociais são caracterizadas pelo trabalho enquanto atividade mediadora historica-mente específica que assume um caráter quase-independente de seus executores. Istocria uma forma de dominação social, “impessoal, crescentemente racionalizada, de im-

 perativos estruturais quase-objetivos e constrangimentos” com dinâmica interna “subja-cente à sociedade moderna.”16 

“O resultado é a ‘produção’ de uma dinâmica histórica muito complexa. Porum lado, esta dinâmica é caracterizada por transformações correntes, sociais,tecnológicas e culturais – da natureza e organização da produção, a social e de-talhada divisão do trabalho, a estrutura e inter-relações das classes sociais e ou-tros grupamentos, a natureza do transporte, circulação, padrões de vida, formadas famílias, e assim por diante. Por outro lado, esta dinâmica histórica não élinear, e restringe a contínua reconstituição do valor – da forma de mediaçãoquase-objetiva baseada no valor – como condição necessária para a vida socialcapitalista.”17 

O capitalismo deve ser compreendido como uma formação social em constantemovimento, cuja identidade está fundada no trabalho (e seu duplo caráter, concreto eabstrato) como uma atividade mediadora historicamente específica e não na propriedade

 privada ou no mercado, ainda que ambos sejam constitutivos desta sociabilidade. Nestesentido o socialismo, por seu turno, enquanto superação histórica do capitalismo, não

15 MARX, K. Contribuição à crítica da Economia Política, São Paulo, Martins Fontes Editora LTDA,1985, p.203.16 POSTONE, M. Contemporary historical transformations: beyond postindustrial theory and neomarx-

ism. In Current Perspectives in Social Theory, Vol. 19, 1999, p. 33.17 Idem,pp. 33-4.

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 pode ser definido apenas como uma formação social na qual os meios de produção estãosob controle estatal, em contraposição à posse privada; e a planificação como superaçãodo mercado. Assim sendo, o fim do capitalismo pressupõe a abolição do valor comoforma de riqueza social, o que implica a superação do modo de produção histórico-específico capitalista. Isto requer que a forma de reprodução material da vida seja trans-

formada.Lukács esboça em um texto sobre a democracia, a diferença entre o socialismo-comunismo e o capitalismo. O teórico húngaro indica que o objetivo de superar o “reinoda necessidade” da economia e alcançar o “reino da liberdade” se dá com base no pri-meiro. O autor não se refere àquilo que em uma sociedade de classe está circunscrito àrelação de dependência entre base e superestrutura enquanto traço que distinguiria osdois reinos. O socialismo, aponta Lukács, pressupõe um salto ontológico, no qual as

 posições teleológicas que servem de fundamento à práxis da reprodução material adqui-rem paulatinamente um caráter social unitário e direto, prescindindo da forma de medi-ação social típica do capitalismo.

“Portanto, o socialismo e mais ainda, o comunismo são formações nas quais oconjunto da sociedade e seu desenvolvimento são cada vez mais resolutamentesubordinados a uma direção teleológica unitária; desaparece assim progressi-vamente aquela estrutura própria do capitalismo, na qual, a partir de posiçõesteleológicas individuais espontâneas, resulta no final o caráter causal do fun-cionamento do todo.”18 

Ainda de acordo com Lukács a socialização dos meios de produção poderia eli-minar a apropriação de trabalho excedente que era feita através da propriedade privada,mas não suprimiria a estrutura de base da reprodução econômica. Na prática criaria, setanto, novas formas de mediação cuja finalidade seria inviabilizar a crescente utilizaçãodo trabalho excedente. Mas mesmo esta redução do uso do trabalho excedente era pro-

 blemática nas circunstâncias históricas de países como a Rússia ou a China. O tratamen-to dispensado à questão do trabalho excedente, no processo de transição chinês, nota-damente nas experiências relacionadas com a coletivização e o Grande Salto Adiantetinham como suposto a chamada “acumulação primitiva socialista”. Esta era uma for-mulação do dirigente russo Preobrazhenski, que em 1926 publicou um livro chamado  A

 Nova Economia no qual analisava as relações entre o processo de planificação e o mer-cado; e sustentava que a lei do valor, no regime soviético estava sob controle da socie-dade por causa da planificação. Preobrazhenski entendia que o desenvolvimento dasforças produtivas era condição necessária para a construção do socialismo e em funçãodisso, era necessário um processo de acumulação que, segundo ele, em uma sociedade

socialista seria a “acumulação primitiva socialista”, já que os meios de produção estari-am sob controle do Estado.Mao defendia a acumulação primitiva socialista como meio para a construção do

socialismo e via o processo de coletivização e o recolhimento de parcelas da produçãode grãos pelo Estado como o mecanismo adequado para o processo de acumulação naChina da década de 1950. Dadas as condições do país e as dificuldades enfrentadas peloPCCh para assegurar os investimentos para a instalação de sua base industrial, esperava-se que a mobilização das comunas e o avanço dos pequenos fornos instalados por toda aChina para a produção de aço pudessem promover a “acumulação primitiva socialista”.

18  LUKÁCS, G. Socialismo e democratização. Escritos políticos 1956-1971, Rio de Janeiro, EditoraUFRJ, 2008, p.113.

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Há problemas nesta interpretação do processo de acumulação primitiva. Marxexplica em O capital o processo de acumulação primitiva passo a passo. Começa indi-cando que dinheiro, mercadoria ou meios de produção só podem se tornar capital sobcertas condições sociais. Para tanto, é necessário que dois tipos de detentores de merca-dorias com características muito específicas se encontrem. Um deles deve ter dinheiro,

meios de produção e contratar força de trabalho para realizar a produção. O outro deveser duplamente livre, salienta Marx, livre para vender sua força de trabalho e livre dosmeios de produção, ou seja, não ser escravo, ou submetido à condições sociais queconstranjam de qualquer forma a venda de sua força de trabalho, por isso:

“O sistema capitalista pressupõe a dissociação entre os trabalhadores e a pro- priedade dos meios pelos quais realizam o trabalho. Quando a produção capita-lista se torna independente, não se limita a manter esta dissociação, mas a re- produz em escala cada vez maior. O processo que cria o sistema capitalistaconsiste apenas no processo que retira ao trabalhador a propriedade de seusmeios de trabalho, um processo que transforma em capital os meios de produ-ção e converte em assalariados os produtores diretos. A chamada acumulação

 primitiva é apenas o processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de produção. É considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital edo modo de produção capitalista.”19 

Acumulação de capital requer mais-valia, continua Marx, e esta só pode ser ge-rada na produção capitalista, que por sua vez requer a existência de grandes contingen-tes de trabalhadores livres (da forma descrita acima) e capital disponível, ambos reuni-dos pelos produtores de mercadorias. Este circuito tem como condição prévia a acumu-lação primitiva que é anterior à acumulação capitalista, não sendo, portanto, “resultadodo modo de produção capitalista, mas sim seu ponto de partida” (MARX, 1984, p. 829)

O processo de coletivização realizado na China durante o Salto Adiante buscava

na mobilização dos trabalhadores chineses em comunas um esforço de produção que,nas palavras dos próprios dirigentes chineses, suprimiria a propriedade privada e torna-ria estes trabalhadores os controladores dos meios de produção disponíveis (ainda queescassos). Tratando a questão em termos históricos, como proposto por Marx, estes tra-

 balhadores já eram vendedores livres de sua força de trabalho e também já tinham sedeparado com compradores desta mesma força de trabalho. A acumulação primitiva játinha se dado e era o ponto de partida para o processo de acumulação capitalista. Nestesentido, é um grande equívoco tratar o processo de acumulação primitiva descolado do

 processo histórico que o gerou e mais ainda entender que este processo pode constituir o ponto de partida para erguer o socialismo e não o capitalismo, desconsiderando seu ca-ráter objetivo.

Este é um problema intermitente em diversas leituras do marxismo que ao des-considerar o caráter histórico do capitalismo e, portanto, de seus elementos constituti-vos, não tinham condições de compreender a necessidade de sua superação e dispensar-lhes o tratamento adequado. Mesmo quando reconhecessem que o processo de transiçãonão prescindiria de alguns elementos típicos da forma de sociabilidade capitalista. Aconseqüência disso foi a tentativa, necessariamente frustrada, de instrumentalizar oumesmo controlar, sob a construção do socialismo, o modo de produção típico do capita-lismo e a lei do valor, por exemplo. Bem como a criação de conceitos tão contraditórioscomo “acumulação primitiva socialista”.

19 MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. 4ªed. Rio de Janeiro: Difel Livro 3, volume VII,1984, p.830.