O 2014 que nos espera

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Revista Política Democrática Nº 37.

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Editor

Marco Antonio T. Coelho

Editor Executivo

Francisco Inácio de Almeida

Ailton Benedito

Alberto Passos G. Filho Amilcar Baiardi Ana Amélia de Melo Antonio Carlos Máximo Antonio José Barbosa Arlindo Fernandes de Oliveira Armênio Guedes Arthur José Poerner Aspásia Camargo Augusto de Franco Bernardo Ricupero Celso Frederico César Benjamin Charles Pessanha Cícero Péricles de Carvalho Cleia Schiavo Délio Mendes Dimas Macedo Diogo Tourino de Sousa Edgar Leite Ferreira Neto Fabrício Maciel Fernando de la Cuadra

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Conselho Editorial Fernando Perlatto

Flávio Kothe Francisco Fausto Mato Grosso Gilson Leão Gilvan Cavalcanti de Melo Hamilton Garcia José Antonio Segatto José Carlos Capinam José Cláudio Barriguelli José Monserrat Filho Lucília Garcez Luiz Carlos Azedo Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Eduardo Soares Luiz Gonzaga Beluzzo Luiz Werneck Vianna Marco Aurélio Nogueira Marco Mondaini Maria Alice Rezende Martin Cézar Feijó Mércio Pereira Gomes Michel Zaidan Milton Lahuerta

Ficha catalográica

George Gurgel de Oliveira

Giovanni Menegoz

Ivan Alves Filho

Luiz Sérgio Henriques

Raimundo Santos

Oscar D’Alva e Souza Filho

Othon Jambeiro Paulo Afonso Francisco de Carvalho Paulo Alves de Lima Paulo Bonavides Paulo César Nascimento Paulo Fábio Dantas Neto Pedro Vicente Costa Sobrinho Pierre Lucena Ricardo Cravo Albin Ricardo Maranhão Rubem Barboza Filho Rudá Ricci Sérgio Augusto de Moraes Sérgio Besserman Sinclair Mallet-Guy Guerra Socorro Ferraz Telma Lobo Ulrich Hoffmann Washington Bonim Willame Jansen William (Billy) Mello Zander Navarro

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Copyright © 2013 by Fundação Astrojildo Pereira

ISSN 1518-7446

Obra da capa: Cena con gli Amici a Saint Tropez – 2008, olio su tela, 2,00cm x 1,50cm

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF:

Fundação Astrojildo Pereira, 2013.

No 37, nov./2013.

200p.

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identiicada a fonte.

Presidente de Honra: Armênio Guedes Presidente: Caetano Pereira de Araújo

Política Democrática Revista de Política e Cultura www.politicademocratica.com.br

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Política Democrática Revista de Política e Cultura

Fundação Astrojildo Pereira

O 2014 que nos espera

Novembro /2013

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Sobre a capa

Antigo e moderno, tradicional e extravagante, relexivo e extrover -

tido, simples e extraordinariamente contraditório. Assim se apresenta

ao mundo o homem e o artista Bruno Pedrosa (nascido Raimundo Pi-

nheiro Pedrosa), natural da Fazenda Catingueira, no sertão cearense,

cujos primeiros desenhos foram concebidos entre cinco e seis anos.

Depois do primário em um colégio do Crato e do liceu clássico em

Fortaleza, Bruno decidiu, aos 18 anos, ir para o Rio de Janeiro estu-

dar na mais antiga e melhor Academia de Belas Artes do país, pois

desejava tornar-se um artista. Também com apoio do pai, formou-se

em História da Arte, Filosoia e Arqueologia na UFRJ. Nos seus anos

de estudo (1969 a 1975), aproveitou suas férias de verão para viajar

e explorar o Brasil, Argentina, Chile, Bol ívia, Equador e Peru, conhe -

cendo lugares, pessoas, culturas e histórias diferentes, que o enri-

queceram na mente e no espírito.

Pietro Maria Bardi, diretor do Museu de Arte de S ão Paulo, foi seu

mentor e organizou uma série de exposições dos seus trabalhos nos

Estados Unidos e México. Terminados seus estudos universitários,

decidiu, em 1976, entrar para o Mosteiro de São Bento, do Rio, onde

o Raimundo se transformou em Bruno, dali saindo alguns anos de-

pois. Recomeçando sua vida, abriu atelier ao público e conheceu Eli-

nor, com quem se casou em 1982. Indo morar em Nova Friburgo,

esta reviravolta pessoal aproxima o artista da pintura, o seu estilo

muda, o desenho continua a ser o alicerce das obras, mas o fulcro da

sua atenção se põe nas cores.

Em 1990, uma nova e importante decisão: a Europa. Transferiu-

-se com a família para Busca, província de Cuneo, cidade natal do

tenor Giovanni Garnero, seu sogro. No Piemonte, sentia-se em casa

e daí em diante sua arte se modiicou muitas vezes, mas sem voltar

ao igurativo, que abandona completamente. No ano seguinte, trans-

feriu-se para Bassano del Grappa, no coração do Veneto.

Sua arte cresce com ele, é inluenciada pelos seus estudos, via-

gens, descobertas. Assim, reinventa-se continuamente navegando

por todos os continentes das artes e do mundo, da pintura à escul-

tura, da América Latina à Europa, atravessando o vidro, a cerâmica,

o bronze, a joalheria, os totens em papel, expondo suas obras no

Brasil, Estados Unidos, Itália, Holanda, França, Espanha, Portugal,

Bélgica e Alemanha. Constata-se que seu estilo é único e bem deline-

ado, suas inúmeras expressões artísticas representam igualmente

sua complexa pessoa. É, portanto, inútil e supérluo procurar nas

suas formas um signiicado concreto, já que estas são sua arte, sua

visão do mundo, sua vida. Seu percurso artístico evoluiu ao longo de

todo o arco da sua vida e ainda não se concluiu.

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Sumário

APRESENTAÇÃO Os Editores .................................................. 07

I. TEMA DE CAPA: O 2014 QUE NOS ESPERA

As eleições das ruas Rudá Ricci ...................................................... 13

O governo Dilma e a herança de Lula Marco Antônio Tavares Coelho ....................................... 20

2015 vai determinar 2014 Armando Castelar ................................................ 27

Amplia-se o campo da oposição Sérgio Fausto .................................................... 29

Levar os cidadãos das ruas às urnas Arnaldo Jardim .................................................. 32

Conveniências ociosas Wilson Figueiredo ................................................ 35

Um novo bloco de centro-esquerda Júlio Martins .................................................... 38

Black Blocs, já vimos isso antes Anivaldo Miranda ................................................ 45

II. NOS 25 ANOS DA NOVA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

Marco da reconquista da democracia Roberto Freire ................................................... 51

A Carta de 1988 e a nossa tradição republicana Luiz Werneck Vianna .............................................. 60

O acesso à Justiça Social Dimas Macedo ................................................... 72

III. OBSERVATÓRIO

Uma antiga e polêmica proposta Tarcísio Holanda ................................................. 77

O enigma do Porto do Açú Fabrício Maciel ................................................... 80

Terceira gaveta, no canto esquerdo Maurício Rudner Huertas ........................................... 86

IV. ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO

A economia brasileira hoje César Benjamin .................................................. 95

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Impostômetro, sonegômetro e previdência social Paulo Kliass ..................................................... 102

Pá de cal na reforma agrária Zander Navarro .................................................. 109

V. BATALHA DAS IDEIAS

Teologia e política: registros rápidos Flávio R. Kothe ................................................... 115

A história (in)inita da democracia direta Gian Luca Fruci .................................................. 125

A propósito de uma resenha Michel Zaidan Filho ............................................... 130

VI. QUESTÕES DO ESTADO E DA CIDADANIA

A Reforma do Código Florestal Habib Jorge Fraxe Neto ............................................ 137

Municipalização da Educação no Estado do Rio de Janeiro Comte Bittencourt ................................................ 149

“Acabou chorare” Zulu Araújo ..................................................... 152

Fundamentos ilosóicos dos Juizados Especiais Oriana Piske .................................................... 155

VII. ENSAIO

Gramsci disputado: As interpretações

do seu pensamento político no Brasil João Cláudio Bonim .............................................. 167

VIII. HOMENAGEM

Centenário de Giocondo Dias Ivan Alves Filho .................................................. 181

Rui Facó, um intérprete do Brasil Arildo Dórea ..................................................... 184

Prêmio Vladimir Herzog celebra 35 anos Ana Luisa Zaniboni Gomes ......................................... 187

IX. RESENHA

Gramsci nos anos de cárcere José Antonio Segatto .............................................. 191

Um pioneiro do jornalismo cientíico no Brasil Karina Toledo ................................................... 196

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Apresentação

presidencial. Não podemos desconhecer isso. Pela primeira

vez, temos lideranças e grupos políticos que se desgarraram

da base governista e já começam a aparecer no cenário como forças

que se juntam à oposição para a disputa do próximo ano. A aliança

entre o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, candidato do

PSB, e a ex-senadora Marina Silva, representando a Rede Sustenta-

bilidade, boicotada pelo esquema lulopetista sobretudo em cartórios

do ABCD paulista, identiica uma séria fratura no esquema que go-

verna o país nos últimos onze anos. E outras mais poderão advir.

Tema tão importante para a vida brasileira não poderia deixar de

ser considerado por quantos se dedicam a produzir esta revista (com

este número, adentra ao seu 13º ano de existência), os quais, am-

pliando seus laços com parte signiicativa dos bons analistas brasi-

leiros, organizaram o tema de capa desta edição em torno de 2014,

para revelar ao leitor os mais diversos ângulos dos preparativos de

uma das que se prenuncia das mais acirradas disputas presidenciais

de nossa história.

As colaborações teóricas são as mais variadas, desde a do soció-

logo Rudá Ricci que, em seu artigo ―As eleições das ruas‖, nos coloca

diante da possibilidade das inluências que as mobilizações via redes

sociais e ruas do país, em junho e julho últimos, e que talvez se re-

produzam em 2014, terão no pleito de outubro do próximo ano; a do

advogado e escritor Marco Antônio Tavares Coelho que, em ―O gover-

no Dilma e a herança de Lula‖, nos sugere um indispensável exame

7

Aquestão central hoje da vida política no Brasil é a sucessão

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do desempenho do lulopetismo, nesses onze anos de sua vigência,

com sérias distorções do ponto de vista democrático e republicano,

assim como da condução da economia e da máquina estatal; a do

pesquisador do IPEA e professor da UFRJ, Armando Castelar, que

alerta para o fato de que a situação econômico-inanceira internacio-

nal, particularmente a dos Estados Unidos, e as medidas que as au-

toridades monetárias tendem a adotar, terão graves consequências

no Brasil, e destaca que 2015 provocará problemas entre nós, no ano

eleitoral; a do cientista político Sergio Fausto e membro do Gacint da

USP, que nos relembra como historicamente dissidências (o racha

inicial de Marina e do PSB) constituem um problema para quem está

no poder e relata o que ocorreu com os domínios do PRI (no México),

da Concertación, no Chile, e do PSDB, no Brasil, que come çou a per-

der a sucessão quando se rompeu a aliança com PMDB e PFL, em

2001; a do engenheiro e deputado federal Arnaldo Jardim que, ao

analisar os eventos dos que foram às ruas protestar e exigir mudan-

ças, acredita que se ―a poeira baixou‖, as causas permanecem e o

anseio persiste e pode estourar em 2014, daí defender que os candi-

datos levem aos palanques os seus projetos, suas prioridades, a im

de remobilizar o País e levar os brasileiros das ruas às urnas; a do

conhecido jornalista Wilson Figueiredo que, em ―Conveniências Ocio-

sas‖, ressalta que não pode ser descartada, pelo menos em tese, a

questão entre o terceiro mandato de Lula e o segundo de Dilma, da-

das as expectativas sombrias que sobrecarregam as incertezas des-

ses ―dois pretendentes siameses‖; já para o ensaísta Júlio Martins,

as tentativas golpistas contra Marina/Rede e Eduardo/PSB, feitas

pelos petistas, empurraram-nos para um descolamento cada vez

maior do campo governista, com naturais desdobramentos, como a

possibilidade de que a aliança PSB-Rede e outros partidos se torne

um novo polo na política brasileira e, ao chegar ao segundo turno,

galvanize a oposição e lidere um novo bloco de centro-esquerda com

reais chances de vitória; e, por im, a do jornalista Anivaldo Miranda,

que examina o surgimento em cena dos Black Blocs, grupelhos que

não servem aos propósitos de quantos foram às ruas para protestar

contra a péssima qualidade dos serviços no Brasil e, por tabela, con-

tra as grandes mazelas do país, a começar pela corrupção, passando

pela violência e pelos gastos públicos de necessidade discutível, den-

tre outros. Na verdade, a violência desses grupos, de origens as mais

variadas, vai no sentido de desestabilizar a democracia e, por isso,

merecem ser desmascarados, porque a democracia atual, mesmo

com todas as suas imperfeições e lacunas, é a maior conquista que

os brasileiros conseguiram em séculos de enormes sacrifícios e lutas

por uma sociedade mais livre, mais justa e mais igual.

8

Page 10: O 2014 que nos espera

Outro tema desta edição é o 25º aniversário da Constituição de

1988, documento histórico que – segundo manifestações do advogado

e deputado federal Roberto Freire, do cientista político Luiz Werneck

Vianna e do jurista Dimas Macedo – implantou as ideias e deinições

básicas para uma vida democrática e republicana no País. No discur-

so, aqui reproduzido, o parlamentar ressalta que a nova Carta cria

instrumentos para o exercício da soberania e da cidadania, no contex-

to de um Estado permeável às intervenções das massas e à participa-

ção popular, ao tempo em que amplia e aprofunda suas possibilidades

de tornar-se uma Nação que trilhará o caminho democrático, de uma

vida melhor e de uma sociedade mais justa. Para o professor Werneck,

encontra-se agora disponível à sociedade, quer pela iniciativa de qual -

quer cidadão, quer pela iniciativa da comunidade de intérpretes da

Constituição, o recurso ao Judiciário, a im de encontrar remédio para

uma eventual omissão do poder público quanto aos direitos que lhe

foram outorgados constitucionalmente. Acentua que a Constituição

de 1988 é resultado de processos de mobiliza ção de massas sem para-

lelo na história do país e da obra de juristas especializados em Direito

Constitucional, alguns deles exercendo papel de assessores de in-

luentes parlamentares, embrião de uma verdadeira mutação institu-

cional na relação entre os três Poderes e na da sociedade com o Poder

Judiciário. Nessa linha, o jurista Dimas frisa que a nova Carta nos

mostra o quanto avançamos na criação de um discurso jurídico e no

tocante ao acesso à Justiça Social.

Na seção Observatório, há artigos do jornalista Tarcísio Ho-

landa sobre os percalços em torno da reforma política; do professor

Fabrício Maciel a respeito do enigma em torno do Porto de Açu, em

São João da Barra/RJ; e do também jornalista Maurício Rudner

Huertas que aborda uma série de questões da atual conjuntura na-

cional. Na Economia e Desenvolvimento, o editor Cesar Benjamin e o

doutor em Economia Paulo Kliass fazem instigantes análises de as-

pectos essenciais da economia brasileira, enquanto o sociólogo Zan-

der Navarro põe o dedo na ferida no tocante à abandonada questão

da reforma agrária no País. Já na seção Batalha das Ideias, temos as

colaborações do professor de Estética, Flávio Kothe, que nos provoca

face ao tema teologia e política; do pesquisador italiano Gian Luca

Fruci, a respeito da complexa e sempre presente questão da demo-

cracia direta; e do historiador Michel Zaidan Filho, que abre fraterna

polêmica com o pensador Leandro Konder e com o jovem historiador

Antônio Ianni Segatto.

Na seção Questões do Estado e da Cidadania, o biólogo Habib

Jorge Fraxe Neto aborda a complexa questão da reforma do Código

Apresentação 9

Page 11: O 2014 que nos espera

Florestal; o educador e deputado estadual Comte Bittencourt levanta

seu protesto contra o descumprimento das políticas educacionais,

constantes do Programa de Municipalização do Estado do Rio de Ja-

neiro; o arquiteto e ativista do movimento negro Zulu Araújo que

pede para que se identiique as razões da atual desmobilização, das

diiculdades na relação com o governo e de como enfrentar os novos

desaios; e a juíza Oriana Piske, que faz uma relexão sobre a impor-

tância dos Juizados Especiais.

O Ensaio, do jovem estudante de Filosoia, João Cláudio Bonim,

aborda aspectos da obra do pensador italiano Antonio Gramsci; en-

quanto temos a Homenagem, dedicada a Giocondo Dias, pelo seu

centenário de nascimento (por Ivan Alves Dias), a Rui Facó, também

pelo seu centenário (por Arildo Dórea), e a Marco Antonio Coelho,

que recebeu a Medalha Vladimir Herzog (por Ana Luisa Zaniboni Go -

mes). Por im, na Resenha, temos a do historiador José Antonio Se-

gatto sobre Vida e Pensamento de Antonio Gramsci , de Giuseppe Vac-

ca, e da jornalista Karina Toledo sobre Médico e Repórter. Meio século

de jornalismo cient íico , do jornalista e médico Júlio Abramczyk.

Boa leitura!

Os Editores

110

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I. Tema de capa:

O 2014 que nos espera

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Autores

Anivaldo Miranda

Jornalista e Mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustent ável pela Universidade

Federal de Alagoas.

Armando Castelar

Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor da Universi -

dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Arnaldo Jardim

Engenheiro e deputado federal (PPS/SP). Contato: [email protected].

Júlio Martins

Ensaísta.

Marco Antônio Tavares Coelho

Advogado, jornalista, ex-deputado federal, autor de vários livros, entre os quais se desta -

ca Herança de um sonho .

Rudá Ricci

Sociólogo, doutor em Ciências Sociais, é diretor geral do Instituto Cultiva (www.tvcultiva.

com.br).

Sérgio Fausto

Cientista político, membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional, da Uni-

versidade de São Paulo (Gacint-USP) e diretor executivo do Instituto Fernando Henrique

Cardoso.

Wilson Figueiredo

Analista político e jornalista.

Page 14: O 2014 que nos espera

As eleições das ruas

Rudá Ricci

Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no

mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se co-

nhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitan-

tes parecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços

dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos

foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deu-

ses estranhos. É inútil querer saber se estes são melhores do que

os antigos, dado que não existe nenhuma relação entre eles, da

mesma forma que os velhos cartões portais não representam a

Maurília do passado, mas uma outra cidade que, por acaso, tam-

bém se chamava Maurília.

Ítalo Calvino. As cidades invisíveis

1 As ruas são sempre uma novidade

As ruas sempre foram objeto de estranhamento para um pacato

observador. A começar por seu nascedouro. Baudelaire, Edgar Alan

Poe, Engels foram muitos que observaram os desenhos labirínticos

das ruas europeias, tomadas por rostos tensos e desesperados.

A aventura de compreender o espaço urbano permaneceu desde en-

tão, tanto no campo literário (destacaria o belo Cidades Invisíveis, de

Ítalo Calvino), quanto nas análises sociológicas (como os desconcer-

tantes ensaios de Walter Benjamin).

Não é uma novidade teórica, portanto, que a saída dos jovens

brasileiros às ruas tenha causado tanta perplexidade. Principalmen-

13

Page 15: O 2014 que nos espera

te nas instituições políticas. A multidão nas ruas desigura o traçado

urbano. Muda a paisagem e embaralha os pontos de referência. Este

quase sentimento de vertigem e redescoberta do espaço público

transborda para a percepção daqueles que formalmente deveriam re-

presentar esta multidão.

As ruas são sempre uma novidade, principalmente se tomadas

pela multidão.

Mas esta novidade é ainda mais aguda se a multidão se conec-

ta pelas redes sociais, criando um mosaico de relacionamentos

invisíveis que solapa todas as formas de reconhecimento de gru-

pos de interesses.

Este é o foco deste artigo: compreender em que medida as elei-

ções de 2014 podem se inluenciar por esta vertigem de momento.

A partir de agora, duas questões devem organizar nosso olhar sobre

a dinâmica eleitoral. A primeira, a vitalidade da energia moral que se

expressou nas ruas nesses dias de junho de 2013. A segunda, as

iniciativas dos partidos e lideranças partidárias para acolher ou des-

mobilizar as demandas difusas que apareceram em milhões de car-

tazes escritos à mão que emolduraram as passeatas país afora.

O cruzamento destas duas variáveis pode indicar uma importan-

te mudança na lógica política e até mesmo no sistema de representa-

ção formal do Brasil. Pode, ainda, renovar a ira de grande parte de

eleitores que poderão inundar as urnas com votos brancos e nulos.

Finalmente, não seria anormal se o país mergulhasse, novamente,

no que os jovens, nestes dias de maio de 68 tupiniquim, denomina-

vam de ―gigante adormecido‖.

2 O discurso do campo institucional

A representação formal no Brasil é manca há algum tempo.

Pesquisa realizada pelo Datafolha no inal de maio de 2010 reve-

lou que 44% dos entrevistados entre 18 e 70 anos não votariam se o

voto não fosse obrigatório. O eleitor lulista era o que mais continua-

ria comparecendo às urnas (64% airmaram que votariam mesmo o

voto sendo facultativo). Mais: os petistas eram os que mais deseja-

vam a manutenção do voto obrigatório (55% deles cravaram esta opi-

nião). Mas foram os mais ricos os que iriam às urnas em qualquer

hipótese: 62% dos que ganhavam mais de dez salários mínimos e

65% dos mais escolarizados.

114 Rudá Ricci

Page 16: O 2014 que nos espera

Por seu turno, o Índice de Coniança na Justiça (ICJBrasil) de

2012, elaborado pela Direito GV, indicava que os partidos políticos

iguravam em último lugar no índice de coniança nas instituições,

com 5% de sat isfação. Eram superados pelo Congresso Nacional, que

apresentou um índice de 22%.

As campanhas eleitorais se realizam a partir deste substrato de

baixa coniança e daí sempre aparecerem como um interregno na

vida cotidiana dos brasileiros, o que faz dos eleitos distantes do cida-

dão e não seus representantes. Partidos e políticos se estruturam a

partir desta lógica, como máquinas eleitorais, adotando mecanismos

e dinâmicas internas que os aproxima da lógica de empresas. São os

segmentos administrativos da estrutura partidária que contratam

empresas de marketing e pesquisa de opinião, que orientam gastos,

padronizam protocolos de apresentação pública e acertam acordos

com setores privados e aliados. São, para a grande maioria dos elei-

tores, desconhecidos.

Os candidatos, por sua vez, movem-se num campo muito mais

identiicado com o que se poderia denominar de ―construção do dis-

curso hegemônico‖. Como nos ensinou Antonio Gramsci, a hegemonia

é um cimento de interesses difusos que se articula a partir do conven-

cimento, mas também da habilidade em unir, como um quebra-cabe-

ça semântico, as aspirações de agrupamentos sociais, frações de clas-

se, orientações políticas, valores religiosos e assim por diante.

O marketing é apenas um dos instrumentos desta dinâmica de

construção do discurso hegemônico. Mas, no mundo da fragmenta-

ção social do século XXI, não basta. É fundamental a construção de

uma rede de apoiadores que se enraíza nos municípios e desce aos

bairros, aos bares e campos de futebol. Uma das máximas da prática

política é que o que conta nunca é o fato, mas a versão. Daí a impor-

tância desta poderosa rede de apoiadores que se insinua pelos esca-

ninhos das ruas, desde que elas não estejam tomadas pela emoção

(como nos dias de junho deste ano). Desde que as ruas sejam espa-

ços abertos para a conquista deste operador político de fala mansa.

O discurso político-eleitoral do campo institucionalizado, dos

partidos e governos, é, assim, marcado em ano eleitoral pela tentati-

va de sair dos gabinetes e de dialogar com a vontade dos cidadãos.

Trata-se de interpretar e de convencer. Marketing e rede de contatos

(o tão propalado network) forjam este contato.

Ora, temos, por aí, um apelo emocional que vem do peril contra-

ditório e puro de Marina Silva. Contraditório porque fala aos jovens

a partir de bandeiras ambientalistas, mas também fala aos funda-

As eleições das ruas 115

Page 17: O 2014 que nos espera

mentalistas religiosos que abominam qualquer inovação no compor-

tamento social. Marina Silva teria apelo para uma parcela signiica-

tiva dos brasileiros e já revelou seu potencial no inal do primeiro

turno das eleições de 2010. Não teria, contudo, a rede de operadores

políticos. A aliança com Eduardo Campos a fortalece. Primeiro, por-

que a chapa ganha grande mobilidade, tendo em Marina a possibili-

dade de ser mais ousada e dialogar com os jovens das prováveis ma-

nifestações durante a Copa do Mundo de Futebol e Campos,

dialogando com os setores mais tradicionais da política e da econo-

mia. Os excessos de um podem ser balanceados pela intervenção

imediata do outro. Eduardo Campos se posiciona numa situação me-

diana em termos de apelo e estrutura política.

Nas pesquisas nacionais, a aliança Marina/Campos oscila do ter-

ceiro para o segundo lugar na intenção de voto mas mesmo no Nor-

deste, em estados limítrofes do seu Pernambuco, não igura em boa

posição na disputa eleitoral de 2014. O tempo parece curto para con-

quistar musculatura, corações e mentes e chegar, de fato, a ameaçar

o lulismo em 2014. Mas é a principal novidade eleitoral do próximo

pleito e por sair das entranhas do lulismo confere, ao mesmo tempo,

segurança aos eleitores governistas e ousadia para parcela do eleito-

rado descontente com os rumos da política federal. A possibilidade

de se transformarem em força hegemônica das oposições ao cabo das

eleições presidenciais do próximo ano é signiicativa, podendo des-

tronar o PSDB deste lugar que ocupa desde 2002.

Com efeito, Aécio Neves é portador, até o momento, de discurso

defensivo, sem grandes apelos, ainda mirando na indisposição da

classe média tradicional que não consegue, há anos, forjar a opinião

pública e carrear votos ao candidato mais próximo de seus interesses

e valores. O senador mineiro, contudo, tem uma poderosa máquina

partidária e eleitoral. Seu problema de momento é atrair seus corre-

ligionários paulistas, donos da maior parcela da máquina partidária.

Finalmente, ainda apresenta diiculdades para penetrar no segundo

maior colégio eleitoral regional: o Nordeste. Até entre os manifestan-

tes mineiros, Aécio Neves amargou um quarto lugar na intenção de

votos capturada pelo Instituto Innovare, durante a manifestação de

23 de junho realizada na capital mineira. Aécio Neves foi citado por

apenas 6,6% dos manifestantes, atrás de Dilma Rousseff, com 14,2%

das citações.

Finalmente, Dilma Rousseff tem em suas mãos a herança política

de Lula e a estrutura governamental, poderosa para construir a rede

de apoiadores e operadores políticos. Mas sofre de dois males. O pri-

meiro, o seu estilo gerencial de governar que a distanciou das ruas e

116 Rudá Ricci

Page 18: O 2014 que nos espera

aliados de longa data. As reclamações vazam por todos os poros. Tam-

bém sofre com o im do clima de euforia da melhoria da qualidade de

vida dos brasileiros mais pobres. Foram tr ês anos de administração do

impacto negativo da crise econômica internacional e uma tentativa de

pouco sucesso para substituir o crescimento pelo consumo doméstico

dos anos Lula para o crescimento pelo investime nto produtivo.

A rápida recuperação nas pesquisas de intenção de votos ao lon-

go de 2013 sugere falta de consistência de todo sistema partidário

brasileiro. Parte do eleitorado demonstrou, durante o mês de junho e

parte do mês seguinte, que não se identiicava totalmente com a pre-

sidente lulista. Contudo, não migrou sua intenção de voto com con-

vicção para qualquer candidatura oposicionista. Dilma Rousseff não

recuperou os votos perdidos em junho, mas oscilou positivamente

aos levantamentos de todos institutos de pesquisa, com mais vigor

que qualquer outro candidato. O eleitor parece sentir-se inseguro

com os candidatos de oposição, embora não tenham grande convic-

ção em relação à atual gestão federal.

O fato é que todos receberam seu quinhão de ataques nas ruas

mobilizadas dos últimos dias. Nenhum saiu ileso.

3 O discurso das ruas

As ruas são muitas. As pesquisas que procuraram capturar o

peril das mobilizações de junho revelaram uma maioria de jovens de

classe média. Pesquisa nacional realizada pelo Ibope na última se-

mana de junho indicava que os manifestantes eram, em sua maioria,

jovens entre 14 e 24 anos de idade, 52% estudantes e 76% trabalha-

dores, com a seguinte distribuição de renda familiar: 23% acima de

dez salários mínimos, 26% entre cinco e dez SM; e 30% entre dois e

cinco SM.

O mais interessante, contudo, é o peril político dos manifestan-

tes: 46% das pessoas que estiveram nas passeatas de sábado

(21/06) nunca participaram de uma manifestação de rua. 78% dis-

seram que se organizaram pelas redes sociais. 75% dos entrevista-

dos disseram que também usaram as redes sociais para convidar

amigos para as manifestações. 83% dos entrevistados disseram não

se sentir representados por políticos e 89%, por partidos; 96% não

são iliados a partidos políticos e 61% se declararam muito interes-

sados por política.

As motivações são múltiplas, embora o transporte público tenha

sido a mais citada.

As eleições das ruas 117

Page 19: O 2014 que nos espera

Augusto de Franco, citando David Ugarte sugere o conceito de

swarming , ou enxameamentos c ívicos que formam ―grandes manifes -

tações de massa, caso haja possibilidade de conexão em tempo real

(por telefone móvel ou email, por exemplo), em horas ou até minutos‖ .1

Trata-se de uma manifestação dinâmica, móvel, em que cada par-

ticipante ou agrupamento é uma manifestação em si. As demandas e

palavras de ordem seguem a lógica do sistema de convocação: as

redes. Cada um vai porque um conhecido faz um convite, muitas

vezes, nem isto, apenas socializando uma informação. Trata-se de

uma adesão afetiva, não uma convocação. Nada mais distante que as

organizações sociais e políticas do século XX.

O enxame, contudo, é previsível como intuição natural. Mas as

mobilizações de junho revelaram que sua força é a ausência de lide-

rança ixa. O que indica uma lacuna entre o mosaico que se forma e

qualquer tentativa de organização e formação de representações.

O enxame passa a ser imprevisível.

Quando as demandas das mobilizações começaram a ser dispu-

tadas, a partir do dia 19 de junho, as organizações apareceram. Nes-

te momento, o método já era outro, longe do enxame. O discurso vi-

nha de agrupamentos já formados anteriormente. A situação se

agravou com o convite que alguns governantes (a presidente Dilma

Rousseff e os governadores Tarso Genro e Antonio Anastasia foram

os primeiros) izeram aos organizadores das manifestações.

Como, a partir daí, eleger representantes de um mosaico?

O discurso da rua é polifônico. É natural, portanto, que suas de-

mandas sejam multifacetadas. Mas, então, como saltar do enxame

para o campo institucional? O que apresentar como alternativa para

o modelo de representação vigente?

Esta lacuna organizacional pode se expressar nas eleições de

2014. Como frustração. Como avalanche de votos nulos e brancos.

A pesquisa do Instituto Innovare, de 23/06, realizada entre manifes-

tantes de Belo Horizonte, indicava que 31% airmavam que votariam

em branco ou anulariam o voto nas próximas eleições. Outros 27%

airmaram que votariam em Joaquim Barbosa, ministro do STF que

não é candidato.

Mas também podemos vivenciar o retorno do cinismo popular,

travestido de pragmatismo. Em junho as ruas dialogaram, parado-

1 Cf. FRANCO, Augusto. A Rede. Visualizado em: 28/06/2012. Dispon ível em: http://

nethcw.ning.com/page/a-rede. Cf. ―Swarming civil espanhol‖ in UGARTE, David

(2004). 11M: Redes para ganar una guerra. Barcelona: Icaria, 2006.

118 Rudá Ricci

Page 20: O 2014 que nos espera

xalmente, com a política institucional. Ao criticarem, interpelavam o

campo da representação institucional. Interpelando, sussurravam

sua esperança de mudança. Mas os representantes formais não tive-

ram sensibilidade para entender esta aproximação raivosa. Teme-

ram. A partir daí, as ruas retornaram à desconiança de sempre.

Podem votar sem paixão. Naquilo que lhes parecer mais seguro.

E segurança, neste caso, é consumo familiar.

4 O possível cruzamento de discursos

Onde se encontram o discurso dos candidatos oiciais para as

eleições de 2014 com o discurso das ruas deste mês de junho? Num

cruzamento tortuoso, um labirinto discursivo que constrói e corrói o

vencedor de momento.

As ruas desvelaram o rei e sua corte. Em seguida, a tentativa de

canalização desta energia de massas para o campo institucional, via

plebiscito ou reforma política, redeiniu o campo de disputa. Contudo,

não produziu ofensiva do campo institucional, que continuou perple-

xo. O Congresso Nacional passou a votar pautas que estavam engave -

tadas há anos. Tentava responder de maneira atabalhoada, como se

pressentisse a guilhotina sendo engraxada. Governo federal, autor da

proposta de plebiscito, passou a se explicar quase diariamente.

Mas as ruas também não conseguiram impor alternativas. As as-

sembleias de preparação das mobilizações seguintes reproduziam a

polifonia das passeatas. Houve situação em os jovens votaram se

deveria existir votação como método de deinição de agenda.

Entramos no século XXI mantendo como sistema de representa-

ção política a lógica societal do século XX. Um dique envelhecido que

já expõe rachaduras e que contém, com diiculdades, a massa de

água que pressiona suas paredes.

Se a novidade das ruas não desaguar numa alternativa, a frustra-

ção desmobilizará paulatinamente os manifestantes. Mas o recado

permanecerá. Assim como a lacuna entre as ruas e as instituições de

representação política.

As eleições das ruas 119

Page 21: O 2014 que nos espera

O governo Dilma e a herança de Lula

Marco Antônio Tavares Coelho

Segundo a imprensa, pesquisas sobre as possibilidades de

eventuais candidatos na próxima eleição informam ser pro-

vável a reeleição da presidente Dilma. Diante desse prognóstico é in-

dispensável um exame do desempenho do atual governo. Tal análise

é essencial e oportuna porque o Palácio do Planalto abusa ilegalmen-

te de uma incomensurável massa de recursos para apresentar uma

versão fantasiosa da política oicial.

Concordando que a atuação do PT trouxe benefícios para a popu-

lação, essa apreciação não é acompanhada de dados essenciais. Em

primeiro lugar, está claro que os maiores grupos econômicos do país

são largamente favorecidos pela pol ítica implantada por Lula e segui -

da sem qualquer discrepância por Dilma. Aí estão os balanços fan-

tásticos do Bradesco e do Itaú. Nunca se viu discordância fundamen-

tal dos governantes com os empresários que estão à testa desses

bancos. E recentemente várias medidas foram tomadas, pela Receita

Federal, beneiciando diretamente as grandes empresas.

Como se entender essa incongruência. Ou seja, a declaração de

que o governo Dilma realiza uma pol ítica que privilegia massas popu-

lares e, na verdade, defende a elite privilegiada? Lembro que não é

um fato inédito esse comportamento audacioso e contraditório de

governantes com uma visão esperta da administração pública, de

que são exemplos históricos, dentre outros, os comportamentos do

líder do fascismo na Itália, Mussolini, e do líder do nazismo na Ale-

manha, Adolf Hitler, que se empenharam em atender a certas reivin-

dicações populares, enquanto zelavam pelos interesses dos plutocra-

tas de seus países.

A essência do lulopetismo

O ponto central de nossa critica ao lulopetismo reside em que ele

não está engajado na defesa da democracia. Que fatos comprovam

essa conduta?

20

Está na ordem do dia o debate sobre a sucessão presidencial.

Page 22: O 2014 que nos espera

Quando da Assembleia Nacional Constituinte, em 1988, o PT votou

contra o projeto da Constituição, elaborado após um processo muito

amplo e democrático. É que PT e Lula haviam apresentado e defende -

ram intransigentemente um projeto de texto constitucional que, em

vários aspectos, não foram contemplados na Carta aprovada. Recente -

mente, o próprio Lula reconheceu que a proposta petista era um ab-

surdo e que ―se fosse aprovada, o país seria ingovernável‖.

Diversos outros fatos reletem as convicções políticas vigentes den-

tro do PT. Algumas vezes elas não predominam no partido, mas em

outras oportunidades emergem com força dentro dessa agremiação.

O maior escândalo da História

Cito, como exemplo, o ―mensalão‖. Resumidamente, ele foi a utili -

zação por líderes do PT de estipêndios inanceiros para controlar ban-

cadas partidárias, a im de aprovar, na Câmara dos Deputados, proje-

tos de lei encaminhados pelo Poder Executivo. Ap ós a condenação pelo

STF, uma corrente petista considera essa decisão como uma farsa e

que não foi alicerçada pelas provas contidas nos autos do processo.

Entretanto, no Supremo Tribunal Federal icou comprovado que

o mensalão ―foi um artifício para violar princípios republicanos que

essencialmente regem o Estado de Direito‖ . Segundo o voto proferido

pelo ministro Celso de Mello, decano dessa corte, essa atividade ―foi

um verdadeiro assalto à administração pública, com graves danos e

com sério comprometimento da dignidade da função pública, além

da lesão ao sistema inanceiro‖. Por isso, o magistrado declarou que

condenava esses políticos por agirem como ―protagonistas de sórdi-

das práticas criminosas‖, que ultrajaram a República no maior es-

cândalo da história. No entanto, dentro do PT existem pessoas que

tentam inocentar condenados, como José Dirceu e Genoíno.

Outro fato. Alguns setores do PT estão empenhados em modiicar

a legislação constitucional que assegura a liberdade de imprensa.

Esse propósito decorre das criticas que jornais e programas de tele-

visão fazem à política governamental e aos planos do PT. Porque,

graças à vigilância de jornalistas, diariamente há denúncias de erros

praticados por petistas na condução de inúmeros órgãos da adminis-

tração pública.

Seguindo essa opinião, certos dirigentes do PT, inclusive Lula,

julgam que a imprensa é um obstáculo a sua política e que, em sendo

assim, é indispensável a adoção de leis que estabeleçam a censura

dos meios de comunicação. A opinião desses dirigentes para acabar

O governo Dilma e a herança de Lula 221

Page 23: O 2014 que nos espera

ou restringir a liberdade de expressão no Brasil é principalmente

defendida por Rui Falcão (presidente nacional do PT) e por Franklin

Martins (antigo encarregado da comunicação petista).

Sua ―justiicativa‖ resume-se na seguinte ―tese‖: os órgãos de im-

prensa são controlados por grupos privados e por isso cabe ao gover-

no realizar esse ―controle‖. Esta tese é a base para a introdução de

normas de de viés fascista a im de atribuir poderes absolutos a go-

vernantes eventuais. Por ela, então, todas as atividades seriam trans-

feridas e controladas pelos governantes.

A tese democrática airma o contrário – não se admite o controle

de nenhuma pessoa ou grupo de atividade. Em sendo assim, o fun-

damental é garantir a liberdade a cada um, a cada grupo, sempre na

base de leis elaboradas pela sociedade. De conformidade com o texto

da Constituição da República.

A propósito, esses petistas apresentam, para reforçar seu plano

antidemocrático, o exemplo de uma medida adotada pelo falecido

Hugo Chávez, na Venezuela, esmagando quase completamente a

oposição em seu país.

Um acerto de contas com o PT

Nos dez anos de governo do PT, é chegado o momento de um ba-

lanço de sua política. Vários fatos comprovam que, ao lado de alguns

êxitos, sua administração foi e é calamitosa. Amargurados com a

difícil situação de nossa economia, porque sabem como repercutirá

essa realidade na eleição presidencial, os arautos do governo repe-

tem que a administração petista tem respeitado o chamado tripé que

preside nossa economia. Isto é – metas para a inlação, o equilíbrio

das contas públicas e o regime do câmbio lutuante, princípios esta-

belecidos no governo de Fernando Henrique Cardoso que nortearam

vitoriosamente sua política econômica.

Como esse tripé hoje é seguido? Somente o item relacionado com

o câmbio tem sido respeitado. No entanto, esse dado decorre princi-

palmente do tumulto no mercado mundial, em razão da crise que

abalou os Estados Unidos. Assim, o governo Dilma abandonou esse

famoso tripé e daí os sérios problemas que afetam a economia brasi-

leira. Isto porque ―maiores valores‖ presidem a sua administração.

Eles são: 1 – a incapacidade de promover reformas substanciais no

Brasil, particularmente na infraestrutura logística; 2 – a liquidação

da estabilidade monetária em consequência da inlação; 3 – a resis-

tência em estimular a colaboração da iniciativa privada nacional;

222 Marco Antônio Tavares Coelho

Page 24: O 2014 que nos espera

4 – substituir a ampliação dos investimentos por medidas parciais

para estimular o consumo; 5 – a majoração das dívidas interna e ex-

terna, o que contribui para acelerar o processo inlacionário; 6 –

atuação equivocada no comércio externo do país; 7 – distorções na

orientação do BNDES ; 8 – desprezo quase absoluto pela defesa do

meio ambiente.

Estes erros, entre outros, causaram as seguintes questões:

1 – Crescimento quase nulo do Produto Nacional Bruto

Pela segunda vez, neste ano, o Fundo Monetário Internacional

reduziu a previsão de crescimento do PIB brasileiro e estima que a

economia nacional irá aumentar menos da metade que os outros pa-

íses emergentes. Na avaliação do FMI, a expansão será de 2,5% no

ano em curso e no próximo ano.

2 – Semiparalisação ou estagnação total de obras básicas

Há muitos anos, a população brasileira ressente-se das falhas do

poder público na realização de obras básicas. Nossa gente reclama

dos impostos elevados cobrados sem que exista a contrapartida da

prestação de serviços satisfatórios (relembre-se o problema dos

transportes urbanos). Devido a isso, há vários anos os governantes

lançaram o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

O investimento em infraestrutura nos anos 2000 é baixo e foi in-

ferior ao aplicado na década de 1990, período em que o Brasil convi-

veu com a hiperinlação, crises externas e a fuga de capitais. Há duas

décadas, o Brasil investe cerca de 2% do PIB em infraestrutura, o

que é insuiciente para manter as instalações existentes. Um exem-

plo notório das deiciências do PAC é o projeto de transposição de

águas do São Francisco (já foram gastos nele mais de 4 bilhões de

reais – quantia maior do que a programada, de 3,8 bilhões – e as

obras, há alguns anos paradas, deverão estar concluídas, não se

sabe a que custo, no inal de 2015).

Em algumas capitais, há projetos que estão sendo executados,

mas em geral estão relacionados quase exclusivamente com a Copa

do Mundo e eles dão prioridade ao transporte individual, subesti-

mando o transporte coletivo em sete das 12 cidades-sede da compe-

tição futebolística.

3 – Insegurança sobre a estabilidade monetária, tendo em vista o

retorno do processo inlacionário, que fora debelado quando da ado-

ção do Plano Real.

O governo Dilma e a herança de Lula 223

Page 25: O 2014 que nos espera

A taxa da inlação no ano em curso foi de 5,86 % até setembro,

infringindo a meta ixada pelo próprio governo (de 5,5% com a possi-

bilidade de dois pontos para mais ou para menos.) E nada indica o

amortecimento da pressão inlacionária. Em consequência das preo-

cupações sobre a estabilidade monetária, ao lado do elevado nível da

inlação, existem outros fatores negativos, como a situação deicitá-

ria do Brasil no comércio internacional e o crescimento avultado da

nossa dívida interna. Outro fator que inluencia negativamente os

investidores é o comportamento das autoridades monetárias ao ado-

tar medidas para atender aleatoriamente setores selecionados, sem

considerar o quadro geral da economia.

4 – Resistências no PT à colaboração da iniciativa privada. No

Brasil, os capitais privados desempenham uma função signiicativa.

Sem eles, é muito difícil desenvolver atividades produtivas em razão

da deiciência de recursos do Poder Público.

Os dirigentes petistas têm grandes diiculdades no acerto com

empresas privadas porque, no passado, izeram acerbas críticas à

política do PSDB de buscar a participação de capitais nacionais em

empreendimentos na economia.

5 – O governo estimula o consumo de determinados produtos,

diminuindo a ampliação de investimentos em atividades produtivas.

Depois de conceder seguidos benefícios iscais aos compradores de

carros promove a venda de alguns artigos selecionados graças à di-

minuição de impostos, fazendo crescer nossa dívida interna. Vai em-

purrando a venda de carros, TVs, fogões, panelas etc., porque duran-

te alguns meses tais produtos são vendidos em razão da diminuição

temporária de impostos.

Este procedimento é incorreto do ponto de vista social, pois bene-

icia igualmente pobres e ricos e não objetiva melhorar a situação da

gente mais pobre.

Essa preocupação com o consumo parte do argumento de que

essa política contribuiria para evitar crises econômicas. Mas há um

limite no incremento do consumo, ou seja, a capacidade aquisitiva

da população. De acordo com uma pesquisa do jornal O Estado de S.

Paulo (13/10/2013) o ―endividamento das famílias brasileiras supe-

rou 45% de sua renda acumulada em um ano, o maior porcentual

veriicado pelo Banco Central desde 2005 e cresce constantemente

desde então‖.

O mais grave, porém, reside no fato de que essa prioridade de

fomentar abusivamente o consumo indiretamente afeta a ampliação

224 Marco Antônio Tavares Coelho

Page 26: O 2014 que nos espera

de investimentos nos setores básicos da economia. No caso do Brasil,

segundo dados de Armando Castelar e Júlia Fontes, da FGV, há duas

décadas o país apenas investe cerca de 2% do PIB em infraestrutura,

o que é insuiciente para manter as instalações existentes, quando

estimativas indicam que só para repô-las seriam necessários aportes

de 3% do PIB.

6 – Com razão, o FMI critica à majoração da dívida externa, pois

de conformidade com essa política, ela chega a 68% do PIB. O cres-

cimento a médio prazo da economia encolheu principalmente em ra-

zão do baixo nível de investimentos.

O governo brasileiro julga que o montante dessa dívida seria de

apenas 59%, pois não leva em conta créditos do Tesouro em bancos

estatais. Este argumento é inconsistente e não convence a ninguém,

especialmente os investidores internacionais.

7 – Atuação equivocada no comércio externo do país. O governo

estabeleceu como meta ampliar o intercâmbio com os países do Sul,

desprezando o relacionamento com as nações com economia mais

poderosa. Apenas com a China há um incremento comercial, mas

realizado de uma forma que nos prejudica, porque exportamos com-

modities (de baixo valor agregado) e importamos produtos industria-

lizados (de alto valor agregado).

Em consequência, o Brasil está fora das negociações de livre co-

mércio, icando isolado no comércio internacional. Dever íamos expor-

tar anualmente produtos em torno de 550 bilhões de dólares. Mas, no

ano passado, foram embarcados menos da metade desse volume. Se-

gundo José Serra ―há uma radical ausência de uma política de comér-

cio exterior, essencial para promover nossas exporta ções‖.

Lula e Dilma resolveram dar total apoio a Ch ávez, inclusive crian-

do um sério problema no Mercosul com o Paraguai. Decidiram fazer

um acordo com o governo de Caracas para participar da construção

de uma reinaria da Petrobras. O resultado é zero porque Chávez le-

vou seu país a uma crise generalizada, seguindo a mesma linha po-

pulista aqui posta em prática por Lula.

8 – Desde 2009, o governo lulopetista transferiu 300 bilhões de

reais para o BNDES, com o objetivo de contrabalançar os efeitos da

crise mundial. Contudo, as críticas do mercado externo e do Fundo

Monetário Internacional, bem como a ameaça do rebaixamento do

Brasil pelas agências de risco, assustaram o governo. Devido a essa

pressão, o ministro Guido Mantega anunciou que, no futuro, a meta

do governo é zerar os aportes do Tesouro ao BNDES.

O governo Dilma e a herança de Lula 225

Page 27: O 2014 que nos espera

Os especialistas da FGV consideram que a política dos bancos

públicos brasileiros é responsável ―por fazer nossa dívida pública ser

o dobro da média dos países latinos americanos‖ (ESP 5/11/13).

Ademais são generalizadas as críticas ao BNDES em virtude de

seus custos e sua insuiciente transparência. Por isso, seu imenso

volume de recursos começa a ser reexaminado porque há denúncias

de operações não justiicadas, como o inanciamento de algumas em-

presas (apresentadas como ―futuras multinacionais‖) e os créditos

concedidos, por exemplo, ao grupo de Eike Batista, que está dando

enormes prejuízos no mercado inanceiro.

9 – O governo Dilma enfraquece a Petrobras recorrendo a seus

dividendos, com o objetivo de diminuir os déicits das contas públi-

cas. Simultaneamente, não transfere recursos para as empresas es-

tatais que necessitam enfrentar problemas graves, como a Eletrobras

e a Infraero.

De conformidade com Ildo Sauer, o leilão realizado de uma área

do pré-sal fere o interesse nacional porque seu edital contém ilegali-

dades. Sauer calcula que o Brasil deixará de ganhar bilhões de reais

já que a Petrobras deteve apenas 40% da operação no campo de Li-

bra. (FSP/ 19/10/13). Acrescentou que a ―Petrobras deveria explorar

100% do campo de Libra e assim converter o petróleo em melhores

condições de vida para a população: saúde, educação, moradia. Con-

verter esse petróleo em dinheiro agora é correr o risco de ter a redu-

ção de preço lá na frente, além do risco de converter o petróleo em

moeda estrangeira‖.

10 – Apesar de várias airmações da presidente Dilma, as autori-

dades federais não têm se empenhado na defesa do meio ambiente

no país e no cumprimento dos compromissos internacionais subes-

critos pelo Brasil. Um exemplo foi o que sucedeu com a aprovação

no Congresso Nacional do projeto relacionado com o desmatamen-

to lorestal.

Este é o quadro sem retoques do Brasil, panorama que nos forne-

ce os resultados de dez anos da política de Lula e do Partido dos

Trabalhadores. Todavia, ao formularmos essas observações apenas

alertamos contra teses autoritárias que existem dentro do PT e que

não devem predominar. Nele, também existem forças e correntes de-

mocráticas que devem ser valorizadas, porque poderão ter um papel

indispensável nas transformações progressistas da vida brasileira.

226 Marco Antônio Tavares Coelho

Page 28: O 2014 que nos espera

2015 vai determinar 2014

Armando Castelar

ter icado para o im do ano ou o primeiro semestre de 2014.

Não importa, o início do im está à vista. Em algum momen-

to dos próximos trimestres, o FED, o banco central americano, vai

começar a gradualmente desmontar o programa de afrouxamento

quantitativo – o QE, na sigla em inglês –, por meio do qual o FED

―imprime‖ dinheiro para comprar títulos de renda ixa, injetando li-

quidez e reduzindo a taxa de juros. Possivelmente ainda, em 2015 vai

começar a subir a taxa de juros.

Ainda que os mercados temam o im do QE, essa é essencialmente

uma boa notícia. O FED já deixou claro que a normalização da política

monetária nos EUA está condicionada à recuperação da economia

americana, em especial do mercado de trabalho. Com Janet Yellen na

Presidência do FED, no lugar de Ben Bernanke, esse compromisso

será reforçado. O im do QE signiica, portanto, que a maior economia

do mundo estará inalmente saindo da crise em que entrou há cinco

anos. A aceleração do crescimento americano, por sua vez, será essen-

cial para compensar a perda de dinamismo das economias emergentes

da Ásia e ajudar a Europa a superar os próprios problemas.

O desaio está na transição de um mundo de dinheiro fácil e juros

baixos para outro com níveis mais normais de liquidez. O anúncio de

Ben Bernanke, no im de maio, de que o FED considerava iniciar a re -

dução gradual do QE no último trimestre deste ano, foi suiciente para

causar grande estrago nos mercados inanceiros. Os pa íses emergentes

foram particularmente afetados, com seus ativos domésticos perdendo

muito do fascínio que até então exerciam sobre os investidores.

Entre as economias emergentes, um grupo de países, apelidado

de ―os cinco frágeis‖ pelo banco Morgan Stanley, mostrou -se particu-

larmente vulnerável. Essas nações – África do Sul, Brasil, Índia, In-

donésia e Turquia – se destacam pelos fundamentos econômicos

mais fracos, que aumentam a sua exposição e restringem sua capa-

cidade de reagir à deterioração do ambiente externo que advirá do

im do QE. Em particular, eles têm enfrentado uma queda do cresci-

227

No inal das contas, não aconteceu em setembro. Agora pode

Page 29: O 2014 que nos espera

mento do PIB, uma inlação elevada e grandes déicits em conta cor-

rente. Não surpreendentemente, as moedas desses países foram as

mais atingidas pela reviravolta que se seguiu às declarações de Ber-

nanke, em maio.

O momento e o ritmo em que o FED vai começar a desmontar o

QE, assim como a resposta que vamos dar a isso, serão os principais

determinantes do que vai acontecer com a economia brasileira nos

próximos anos. A tendência é que, mesmo que esse processo comece

em 2014, uma reação mais completa de política econômica ique

para depois das eleições de outubro.

Essa reação, quando vier, não poderá ser leve, até porque deve

ser adiada até o último minuto. O im do QE vai acentuar a queda no

valor dos ativos brasileiros. O real deve passar por nova desvaloriza-

ção, o custo de inanciamento vai subir, para o governo e as empre-

sas, e o preço dos imóveis cair, ainda que isso deva demorar um

pouco mais. Tudo isso terá impactos negativos não triviais sobre a

inlação, o investimento, a situação iscal e a saúde dos bancos, em

especial das instituições públicas.

Assim como aconteceu entre maio e setembro, o im da festa da

alta liquidez mundial vai interagir com as fragilidades da economia

brasileira para acentuar os impactos negativos do im do QE. A situa-

ção iscal já está deteriorada, tanto em termos de sua institucionali-

dade como de indicadores como a dívida pública e o superávit primá-

rio. A inlação está alta há anos e as expectativas estão desancoradas.

O crescimento potencial já caiu e não há sinal de que vá se recuperar

tão cedo, na falta de ambiente de negócios que estimule o investi-

mento e a alta da produtividade.

Investidores e empresas j á estão trabalhando com esse cenário e se

perguntando qual será a resposta da política econômica a partir de

2015. Se acreditarem que estará à altura dos desaios que o país vai

ter pela frente, voltarão os investimentos. Se perceberem que o gover -

no ainda não entendeu o desaio que tem pela frente, ou não está dis-

posto a implementar as reformas que se fazem necessárias para en-

frentá-lo, a economia vai desacelerar ainda mais em 2014, com piora

das contas externas e mais pressão inlacionária. Nessa conjuntura,

não será fácil o trabalho de quem assumir o governo em 2015.

228 Armando Castelar

Page 30: O 2014 que nos espera

Amplia-se o campo da oposição

Sérgio Fausto

plos, disso não faltam. O im do reinado de 70 anos do Par-

tido Revolucionário Institucional (PRI), no México, iniciou-se

quando uma dissidência à esquerda lançou candidato próprio nas

eleições presidenciais de 1988. Os sucessivos governos da Concerta-

ción, no Chile, entre 1990 e 2009, interromperam-se por igual razão.

Aqui, no Brasil, o governo de Fernando Henrique Cardoso começou

a perder a sucessão quando se rompeu a aliança entre PMDB, PFL e

PSDB, em 2001.

Ainda é cedo para prever os relexos eleitorais da aliança entre

Eduardo Campos e Marina Silva. Mas já é possível dizer que se abriu

uma dissidência que ameaça a reeleição de Dilma Rousseff. Não se

trata de um evento menor. Campos e Marina são as duas novas lide-

ranças políticas mais expressivas do bloco de forças que se reuniu

em torno da candidatura do ex-presidente Lula em 2002 e 2006.

Não será simples combinar a ―sustentabilidade‖ de Marina com o

―desenvolvimentismo‖ de Campos, tampouco o ―utopismo‖ dela com o

―pragmatismo‖ dele. Não estamos diante, porém, de uma dupla de

amadores. Quem supunha que Marina se enquadrava nessa categoria

mudou de ideia depois da ousadia da aliança com o governador de

Pernambuco. Foi um lance de mestre não apenas porque surpreendeu

a todos, mas principalmente porque deiniu um claro objetivo estraté-

gico: pôr um ponto inal na já longa permanência do PT no poder.

Depois de sentir na carne a mão pesada do governo, pelas diicul-

dades criadas para o registro de seu partido, ela concluiu, como há

muito já o fez a oposição, que a penetração do PT no Estado brasilei-

ro alcançou um estágio perigoso para a vida democrática do país.

―Mais quatro anos, não‖ – essa já era a mensagem implícita da can-

didatura de Campos. Coube a Marina, entretanto, pronunciá-la em

alto e bom som político.

A ex-senadora empresta à aliança a legitimidade das ―jornadas de

junho‖. Campos oferece a perspectiva de transformar a aliança na

229

Dissidências são um problema para quem est á no poder. Exem-

Page 31: O 2014 que nos espera

base de um governo viável, com apoio e interlocução mais amplos do

que Marina poderia obter. Seria relativamente fácil para o governo

neutralizar ambos isoladamente. Contra a ex-senadora pesaria o ar-

gumento de que o Brasil é um país complexo demais para ser governa -

do por uma força incipiente, sem base parlamentar e quadros experi-

mentados, à margem das correntes principais da política brasileira.

Já a candidatura do governador se encontrava no divã político do

ser ou não ser de oposição e ante a diiculdade de converter a alta

popularidade em Pernambuco em maior intenção de votos no âmbito

nacional. Juntos, Marina e Campos representam um desaio muito

mais complicado para o governo.

Pela primeira vez desde que o PT ascendeu ao poder existe a pos-

sibilidade real de uma frente de oposições capaz de mobilizar as di-

versas insatisfações contra o governo e organizá-las em tomo do ob-

jetivo de encerrar o ciclo político aberto em 2002. Partido mais bem

estruturado da oposição, o PSDB vem com candidato novo para as

eleições de 2014. O estilo agregador de Aécio Neves facilita em muito

a formação dessa frente de oposições, seja quem vier a encabeçá-la

num provável segundo turno.

É sintomática a forma leve e amistosa como o senador reagiu à

notícia da surpreendente aliança entre Campos e Marina, mesmo

sabendo dos desaios que o fato novo coloca para a sua candidatura.

Prova de inteligência política de quem conia em suas boas creden-

ciais como ex-governador de Minas eterno respaldo de seu partido.

A possibilidade de derrota do governo alargou-se no horizonte.

Dilma tem a maioria dos partidos, o que lhe dará mais tempo na te-

levisão, mas é uma maioria com cara velha. E que envelhece a olhos

vistos à medida que se intensiica a disputa por cargos e verbas den-

tro do condomínio governista. Grande parte da energia do governo é

consumida em reuniões políticas para fazer e refazer o quebra-cabe-

ças das alianças eleitorais e do loteamento do Estado. Outra parte é

destinada a medidas e anúncios que visam a dividendos eleitorais,

atividade que se tomou frenética, com ajuda do twitter presidencial.

O que sobra é dedicado à tentativa de reconquistar a coniança

perdida com os insucessos do ―novo paradigma de política econômi-

ca‖ e do ―novo modelo de desenvolvimento‖ . Como a tentativa é atra-

palhada e os ventos externos não a favorecem, o governo terá um

balanço modesto a apresentar em 2014. E diiculdade para conven-

cer que, sob a mesma administração, dias melhores virão nos quatro

anos seguintes.

330 Sérgio Fausto

Page 32: O 2014 que nos espera

O eventual encerramento do atual ciclo de poder desobstruirá

canais para a renovação da vida democrática brasileira. O PT tornou-

-se uma força conservadora. A lógica férrea da manutenção do poder

freia o debate interno ao partido e limita as possibilidades de conso-

lidação de novas forças no campo da centro-esquerda. A dissidência

de Marina e Campos é uma resposta a esse cerceamento ativo.

De igual forma, a denegação da gravidade especíica do ―mensa-

lão‖ é sintoma de esclerose dentro do partido, embora a disciplinada

ausência de crítica pareça sinal de força. A mesma lógica férrea da

manutenção do poder estimula deliberadamente o auxílio à criação e

proliferação de legendas de aluguel, a deterioração da política e das

instituições do Estado e o amesquinhamento do debate público.

O possível retorno do PT à planície reletirá a formação de uma

maioria em favor de fronteiras de separação mais nítidas entre Esta-

do e governo, entre governo e partido, entre governo, partido e socie-

dade civil. No Brasil, consolidamos algumas conquistas: democracia

eleitoral, estabilidade, prioridade à inclusão social.

Falta-nos uma República em que o Estado esteja a serviço da

coisa pública e o fortalecimento da cidadania, deinida como exercí-

cio efetivo de direitos e obrigações iguais para todos, seja a razão de

ser da vida política. É um longo processo, sem um ponto ixo de che-

gada. Nesta etapa, avançar nessa construção requer a quebra da

hegemonia do PT na pol ítica nacional.

Amplia-se o campo da oposição 331

Page 33: O 2014 que nos espera

Levar os cidadãos das ruas às urnas

Arnaldo Jardim

Milhões de pessoas foram às ruas reclamar da vida, exigir

Amargamos há anos um crescimento medíocre, medidas localiza-

das demonstravam seus limites, há uma constatação generalizada

de que este modelo econômico necessita ajustes. A criminalidade

desila impune e cria referências de comportamento à juventude des-

provida de condições materiais, de horizontes, de heróis!

Há muito não se fazem reformas estruturais, que nem mesmo

frequentam as agendas do governo, do Parlamento ou da sociedade!

Já estamos em plena campanha para as eleições de 2014. Se ainda

não há candidatos sacramentados pelos partidos e coligações, como

determina a legislação eleitoral, de fato já se apresentam aos eleito-

res concorrentes de peso. Infelizmente nenhum dos postulantes des-

taca, além de seus projetos pessoais de poder ou da voracidade de

partidos em ocupar espaços no Estado, um projeto nacional, um pro-

jeto para o país!

Um fato novo e estimulante, que surpreendeu políticos e analis-

tas é o que emergiu da mistura, que airma oposição, oriunda das

forças que engrossaram a candidatura do ex-presidente Lula, em

2002 e 2006, Eduardo Campos e Marina Silva.

Não fosse um quê de prestidigitação em seus primeiros discursos

políticos para a imprensa, se poderia dizer que os dois convergem

para formatar projeto brasileiro original. Mas há dúvidas. Campos

avança para dizer que ―fará mais e melhor‖, repete o discurso do em-

presariado quanto à falta de segurança para os investimentos priva-

dos, de clareza sobre marcos regulatórios e ineiciência de gestão,

mas necessita irmar opinião sobre eixos dinâmicos e prioritários e

assim por diante. Marina faz proissão de crença inabalável no tripé

macroeconômico dos tucanos regido por superávit primário, meta de

332

mudanças dos serviços públicos, modiicações das práticas

públicas e escancarar a fragilidade das instituições. Fora

respostas pontuais pouco se fez. Se ―a poeira baixou‖, as causas per-

manecem e o anseio persiste.

Page 34: O 2014 que nos espera

inlação e câmbio lutuante, sob o império da sustentabilidade. Mas

se isso é um projeto harmônico para o país só se saberá na carta que

Campos e Marina prometem divulgar ao povo brasileiro.

Que a presidente está em campanha para a reeleição ninguém

pode negar. Intensiicou suas viagens pelos estados para erguer os

palanques futuros enquanto seus assessores escolhem a dedo as

proclamas que ela faz nas visitas. Nos estados do Sul e Sudeste, por

exemplo, anúncios de requentados inanciamentos para metrôs e

trens visam contemplar um certo alívio às reivindicações por maior

mobilidade urbana e transportes coletivos, recentes perturbadoras

da ordem pública. O texto, que combina com o dos reclames oiciais,

é o mesmo dos horários políticos na TV.

A nova reforma ministerial, prevista para dezembro, não será ou-

tra faxina nem acumulação de créditos para barganhar a aprovação

de projetos de interesse do governo no Congresso. Dilma mudará

ministros de forma a aumentar o tempo de propaganda gratuita da

sua candidatura na televisão. O governo, há tempo, pouco se interes-

sa pela agenda do Congresso. E esse, desde a ligeireza legislativa,

que pretendia responder à voz das ruas com modestos sussurros

reformistas, dedica-se a atender reclamos corporativistas, a alardear

fortes compromissos com causas fragmentadas da cidadania e forta-

lecer rapidamente seus perímetros eleitorais para os pleitos de depu-

tados, senadores e governadores que se entrelaçam com o presiden-

cial, no ano que vem.

O sucesso em si da Copa do Mundo de 2014 – de resto já previa-

mente encolhido por conta dos exorbitantes valores das obras e da

pouca serventia que, parece, trará de imediato para a mobilidade

urbana, como se alardeava – e nos últimos tempos a ação onipresen-

te das desordens promovidas pelos black blocks nas manifestações e

protestos, são os fatos que mais preocupam o governo. E não há cer-

teza que o PT tenha fôlego agora de propor nem mesmo a reformula-

ção de seu antigo projeto para o país, antes de resolver o esgarça-

mento partidário oriundo das divergências internas promovidas pela

obstinada lógica da manutenção do poder.

Quase o mesmo se dá com o PSDB, desgastado pela permanente

batalha frontal com o PT, por atritos e desentendimentos internos e

explícitos, que ainda mantém em cena Aécio e Serra, e está debilita-

do para reerguer as antigas bandeiras de social-democracia que ins-

piraram as primeiras e mais consistentes intervenções de resgate

social iniciadas com o Plano Real e postas em marcha no governo de

Fernando Henrique Cardoso. Os tucanos se batem por ampla aber-

Levar os cidadãos das ruas às urnas 333

Page 35: O 2014 que nos espera

tura comercial, pelo corte das desonerações tributárias especíicas e

por uma condução mais liberal da economia. Mas não conseguem

ajustar isso em um projeto que conduza o Brasil para enfrentar o

futuro globalizado deste século.

O que talvez tenhamos herdado desses emblemáticos embates

bipartidários pelo poder – e não por um projeto –, enquanto nos

preocupávamos em construir pelo menos uma democracia eleitoral,

foi uma amálgama de descrença geral nas instituições políticas e da

República e uma admiração pela espontaneidade das ações sociais e

pelo voluntarismo de um arremedo de democracia direta. É a heran-

ça do estímulo ao usufruto das maravilhas do consumo como alter-

nativa à participação política dos herdeiros dos ainda restritos su-

cessos econômicos.

Da maneira como caminhamos o resultado continuará sofrível.

O Brasil precisa de um projeto porque as pessoas estão desmotiva-

das. Em particular os jovens, os que não são reconhecidos como ci-

dadãos e os excluídos de fato do sucesso da modernização do país

exaltada diariamente nos discursos oiciais.

E esta é uma boa hora para que os candidatos – todos os candi-

datos – tragam aos palanques os seus projetos para o país. Suas vi-

sões de prioridades. Que ajustes propõem na economia? Como con-

ciliar desenvolvimento e conservação? Em que bloco econômico

internacional devemos nos ixar? Como redeinir a Federação e como

ir além de políticas sociais assistencialistas? Como fazer a ―revolução

da educação‖ e assim por diante?

Uma oportunidade para incrementar a democracia eleitoral com

conteúdo para remobilizar o país, construir consenso e um projeto

nacional capaz de levar os brasileiros das ruas às urnas!

334 Arnaldo Jardim

Page 36: O 2014 que nos espera

Conveniências ociosas

Wilson Figueiredo

os ss e ff, o destaque já era a dúvida sobre a margem imprevi-

sível, se assim se pode dizer, das candidaturas siameses, dela

e do seu patrono Luiz Inácio Lula da Silva, na sucessão presidencial

do próximo ano. Não era bom sinal a reserva de mercado para garan-

tir em 2014 o revezamento da dupla por mais um período: reeleição

dela ou, inalmente, o terceiro mandato dele. Não estava escrito, nem

precisava. Mas já se pressentiam temores de que, se não ocorrer o

imprevisto, o previsível se cumprirá por conta própria.

Não há precedente histórico de duas candidaturas oiciais ocupa-

rem, por falta de alternativa (ou, melhor, de oposição organizada),

todo o espaço político disponível na futura sucessão presidencial.

Democracia bloqueada é sintoma, não solução. Lula elegeu a candi-

data à mão para se reservar, por fora, a manipulação do poder sem

os ônus. Não podia ser Lula? Alguém por ele contornaria o obstáculo

ao terceiro mandato. No que lhe dissesse respeito, não lhe faltariam

recursos cênicos para ganhar tempo e usufruir benefícios políticos à

sombra de mandato alheio.

Não há registro de antecedente histórico, nem pré-histórico, de

candidaturas gêmeas, e muito menos siamesas. Provavelmente nem

mesmo no Sião. A oposição ganhou invisibilidade e sua função rege-

neradora, ao que consta, foi negligenciada por um certo tédio de cho-

ver no molhado. A preliminar da sucessão presidencial volta, pelo

menos em tese, à questão entre o terceiro mandato de Lula e o se-

gundo de Dilma, dadas as expectativas sombrias que sobrecarregam

as incertezas dos pretendentes siameses. A impressão de que essa

história se aproxima do desfecho não descarta o im imprevisível.

Ele, Luiz Inácio, não dá o primeiro passo enquanto não reunir

certezas suicientes num buquê compensatório a ser oferecido a ela

(que, por sua vez, não passa recibo e conta com incertezas que sedu-

zem quem está no poder). No caso de Dilma, a identiicação com a

classe média, que ela conhece por dentro e por fora, não é garantia

suiciente. Falta-lhe, no mínimo, a ortodoxia severa com que é trata-

335

No meio do mandato da presidente Dilma Rousseff, com todos

Page 37: O 2014 que nos espera

da essa gente que chega pela esquerda mas é conhecida por outros

lados. É a classe média que paga, ou deixa de pagar, a conta intermi-

nável. O pequeno burguês contava com o reconhecimento que lhe

reservaram as democracias remodeladas pelo século 20, mas não

sabia que seriam entregues no futuro indeinível. Ele, Lula, veio a ser

o portador de características anacrônicas do peleguismo de salão.

É por aí que a questão vai esquentar. Em franca expansão social

e política, a classe média teve, em Dilma Rousseff, além das pesqui-

sas de opinião pública, a oportunidade de fazer uma limpeza que só

dependia dela. Não durou. A presidente se contentou com o nível

onde a roubalheira corria solta, mas os personagens eram social-

mente modestos e politicamente órfãos. Ou seja, na faixa em que é

referida como ―a presidenta‖. O pequeno burguês (no bom sentido,

claro) corteja a presidente e lhe desculpa as concessões feitas, aqui e

ali, para esperar algum tempo, mas não todo o tempo. Dilma somou

pontos valiosos na escala da coniança preliminar da classe média,

mas faltaram-lhe convicção suiciente e disposição para a limpeza.

Perdeu a oportunidade de ser mais franca e mais contundente.

Já o ex-presidente Lula conia na repetição de truques. A pertur-

badora ausência de oposição já está pesando nos fatos, desde que a

própria presidente se valeu de um io de moralidade pública com que

costurou timidamente sua imagem inicial, enquanto ele, Lula, se

destacava pelo oposto. Não está nem aí. Moralidade não é com ele.

O ex-presidente já não é o mesmo, mas também não é outro. Em-

batucou: ora não sabe de nada, nem quer saber. Ora entra em cena

e sai logo pela tangente, que é a primeira porta à direita. Já não se

explica e, se falar claro, não se beneiciará do que é o seu forte: o

avesso da verdade.

As pesquisas continuam a desempenhar função burocrática.

Chovem no molhado, enquanto existirem potencialmente duas can-

didaturas de procedência oicial, pelo menos até que as consequên-

cias se precipitem e o espírito oposicionista histórico, radical e exal-

tado, se faça presente.

A esta altura, não há mais como repetir a farsa que é a existência

artiicial de duas candidaturas oiciais, redondinhas, à próxima su-

cessão presidencial. Era apenas para empacar o processo. Nascidas

do mesmo ventre e separadas por uma conveniência ociosa, as can-

didaturas de Dilma e Lula continuam atadas a compromissos recí-

procos. Apenas para passar o tempo. A sucessão tende a se deslocar

na direção daquele, dentre os dois siameses, que sobreviver às cir-

336 Wilson Figueiredo

Page 38: O 2014 que nos espera

cunstâncias. Os vagidos das outras candidaturas ainda não soam

claros. Mal são ouvidos.

Vive-se momento não deinido, dada a falta de ar renovado, pelo

qual as questões relativas à sucessão deveriam já estar postas com

clareza. Candidatura, para vencer, tem hora própria. Nada a ver com

a legislação eleitoral. A presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente

Lula são candidaturas potencialmente siamesas desde a eleição pas-

sada e, por motivos que não vêm ao caso, dão-se conta de não pas-

sarem de iniciativas ociosas e, ainda pior, ligadas pelo umbigo. Uma

espécie de pacto de morte. Um dos dois pretendentes terá de ser sa-

criicado para que o outro sobreviva. Trata-se de caso raro e, politi-

camente, inédito. A democracia não reserva saída pela tangente e a

exclusão de um deles pode ter custo extra sobre o precário equilíbrio

do capital político de ambos.

Lula e Dilma trataram ambos de ganhar tempo. Ele, à maneira

perdulária de nada fazer enquanto pudesse evitar. Ela, com catego-

ria, que também soube usar quando precisou, mas já parece esque-

cida. E nem se deu conta do prejuízo. A segunda metade do mandato

em curso começou com resultados e perspectiva negativa (da retra-

ção econômica internacional ao apagão que não ocorreu apenas para

infernizar os governos Fernando Henrique), mas nada se resolve com

a falta de explicação e apenas a ilusão de que tudo vai melhorar.

A hora da verdade faz parte de campanhas presidenciais. E não é

por outra razão que governos perdem eleição e oposições costumam

se eleger mesmo sem merecimento. No caso, não se trata senão de

ajuste doméstico na exótica situação criada pelas duas candidaturas

num quadro que não comporta mais de uma, sem consequências

previsíveis ou não.

Conveniências ociosas 337

Page 39: O 2014 que nos espera

Um novo bloco de centro-esquerda

Júlio Martins

para a oposição é dos fatos políticos mais importantes de

2013. Esse descolamento do PSB da órbita do PT, com o ges-

to simbólico da entrega à presidente Dilma Rousseff do ministério e

cargos ocupados pelo partido é o fato novo, com implicações estraté-

gicas que vão para além do pleito presidencial de 2014.

Essa passagem do PSB para a oposição foi reforçada pela iliação

de Marina Silva ao partido, depois dos marineiros sofrerem com as

manobras que impediram a legalização da Rede a tempo de participar

da disputa de 2014. Aumentou assim o contraste entre os interesses

da nova agremiação e aqueles defendidos pela coalizão governista.

O PSB também sentiu a mão forte do governismo para inviabilizar

a pré-candidatura à Presidência da República do seu presidente, o

governador Eduardo Campos, de Pernambuco. As tentativas golpis-

tas contra Marina e a Rede, bem como contra Campos e o PSB, em-

purraram as duas agremiações para um descolamento cada vez

maior do campo governista, com desdobramentos para o pleito de

2014. Qual seja, a possibilidade de que a aliança PSB-Rede e outros

partidos se torne um novo polo na política brasileira e, ao chegar ao

segundo turno, galvanize a oposição e lidere um novo bloco de cen-

tro-esquerda com reais chances de vitória.

E no caso desse polo icar de fora do segundo turno, o mais pro-

vável é que não se alinhe ao governismo, ou icando neutro ou se

aliando ao PSDB. O que poderá resultar igualmente num novo reali-

nhamento de forças no país, pondo im a uma polarização e a um

quadro de alianças partidárias que se iniciaram em 1994 e se crista-

lizaram com as eleições de 2002.

Os atritos entre PSB e PT são anteriores à candidatura de Campos

à Presidência, atritos bastante visíveis nas eleições municipais de

2012. Em várias capitais do Brasil, o segundo turno das eleições para

prefeito colocou candidatos do PT e do PSB como principais advers á-

rios. Tais atritos resultam do crescimento do PSB e do hegemonismo

338

O deslocamento do Partido Socialista Brasileiro do governo

Page 40: O 2014 que nos espera

do PT na sua pretensão de ser o único partido da esquerda brasileira

e de sua visão instrumental dos aliados. Lembremo-nos de que, ainda

em 2007, o PSB ar ticulou com o PDT, PCdoB, PRB, PHS e PMN um

bloco parlamentar batizado de Bloco de Esquerda, mais conhecido

como Bloquinho, objetivando uma atua ção própria e não subordinada

à hegemonia do bloco governista no Congresso liderado pela aliança

PT-PMDB. O chamado Bloquinho tentou tamb ém atuar de forma con-

junta nas eleições de 2008 e de 2010, mas, neste último pleito, não

lançou candidato próprio à Presidência da República por forte pressão

do PT, que desejava ganhar a eleição já no primeiro turno.

Sabemos que tal desejo foi frustrado pela candidatura de Marina

Silva pelo pequeno PV, que alcançou surpreendentes 19,6% dos vo-

tos e levou a decisão para o segundo turno. Em que pesem uma con-

juntura extremamente favorável ao governismo, com o país crescen-

do a 7,5% do PIB e a popularidade do presidente Lula no auge, a

expressiva votação da candidata verde sinalizou um aspecto pouco

considerado à época: a insatisfação crescente, em especial das cama-

das médias, com o sistema político dominante, principalmente com o

chamado presidencialismo de coalizão, cujos pilares não estavam as-

sentados numa negociação aberta e democrática em termos progra-

máticos entre partidos ains, mas no velho isiologismo, com o uso

dos mais diferentes instrumentos de cooptação do Estado.

A aliança do PSB com a Rede pode atrair outros setores de cen-

tro-esquerda, sejam eles de oposição ou independentes, como o PPS

e o PV, sejam aqueles governistas como o PDT, bem como também

outros partidos e personalidades próximas ao governo, erodindo o

apoio à candidatura oicial em 2014. Se tal bloco da chamada es-

querda democrática se constituir no primeiro turno, poderá se tornar

uma forte alternativa à tradicional polarização PSDB X PT, com

chances reais de chegada ao segundo turno. Uma vez lá, poderá lide-

rar um novo bloco de centro-esquerda como opção viável e estabele-

cer um novo pacto político e social para governar o país.

O bloco de centro-esquerda

O Brasil viveu duas experiências recentes de centro-esquerda,

que deram contribuições positivas ao país e melhoraram a vida dos

brasileiros. Uma delas, o bloco progressista de centro-esquerda esta-

belecido na Constituinte de 1987 sob a liderança de Ulysses Guima-

rães e que se contrapôs ao ―Centrão‖, o bloco conservador de

centro-direita.

Um novo bloco de centro-esquerda 339

Page 41: O 2014 que nos espera

O bloco progressista de centro -esquerda da Constituinte, do qual o

antigo PCB, hoje PPS, fez parte ao lado do PSB, do PDT, do PV e dos

progressistas do PMDB, muitos dos quais fundaram o PSDB, em 1988,

deixou como legado a mais democrática Constituição de nossa histó-

ria republicana, na qual muitos direitos sociais foram inscritos e im-

portantes instrumentos de democracia participativa foram criados.

O bloco progressista da Constituinte foi resultado tanto das gran-

des mobilizações das Diretas Já como também das manifestações de

rua em prol da candidatura a presidente de Tancredo Neves, cuja

vitória no Colégio Eleitoral pôs im a 21 anos de ditadura.

Outra experiência de centro-esquerda foi a do governo de Itamar

Franco, surgido após as grandes manifestações populares que leva-

ram ao impeachment do então presidente Fernando Collor de Melo

e que expressaram o desejo da sociedade brasileira de se livrar de

um governo autoritário e sem compromisso com a ética e a morali-

dade administrativa.

Itamar Franco foi um governo amplo, com um ministério que ex-

pressava uma frente de centro-esquerda, com representantes do PPS,

PSB, PV, PDT, PSDB, a ala progressista do PMDB e at é setores conser-

vadores dispostos a colaborar com um novo momento para o país.

Ficaram de fora somente aqueles setores mais atrasados, comprome-

tidos com o governo Collor. E também o PT, que se negou a participar

daquela curta, mas inovadora gestão pública e expulsou Luíza Erun-

dina, a respeitável ex-prefeita de São Paulo que havia passado a che-

iar o Ministério da Administração, em caráter pessoal.

Com responsabilidade iscal e social, o governo Itamar conseguiu

combinar as necessárias medidas de ajuste para debelar a hiperin-

lação, de 2.477,15%, em 1993, para 916,46%, em 1994, com aque-

las de estímulo à retomada da economia, obtendo resultados positi-

vos na melhoria de renda dos brasileiros e na taxa de crescimento, de

4,92% do PIB, em 1993, e de 5,85%, em 1994.

A divisão do bloco de centro-esquerda

Aquela rica e exemplar experiência de governo buscou a unidade de

um grande bloco de centro-esquerda para governar o país, porém a

eleição de 1994 ocasionou a divisão desse bloco. De um lado, o PSDB

se compôs com o PFL. De outro, partidos que compunham o governo

Itamar, como o PPS, o PSB e o PDT foram atra ídos para a candidatura

do PT. Assim, constituiu-se um quadro de alianças, liderado, de um

lado, pelo PSDB, e, do outro, pelo PT, com o PMDB oscilando entre

440 Júlio Martins

Page 42: O 2014 que nos espera

esses dois blocos. Tal polarização favoreceu a ambos os partidos, PSDB

e PT, porém mais especialmente a este último, por motivos vários.

Entre eles, reforçou a propaganda petista de apontar a divisão da

política brasileira em dois campos: um supostamente conservador,

de direita, liderado pelo PSDB, e outro, supostamente progressista,

de esquerda, liderado pelo PT. Desse modo, jogou o PSDB para o es-

paço do centro e da direita, favorecendo ao PT que saiu do isolamen-

to da esquerda e passou a ocupar o espaço da centro-esquerda e a

atrair setores centristas e de centro-direita para suas alianças.

Tal polarização emparedou a centro-esquerda como o PPS, o PSB

e o PDT, que, ou icavam subordinados por gravidade ao projeto pe-

tista ou ganhariam a pecha de direitista. Com a vitória de 2002, tal

projeto ganhou a avassaladora pressão do poder econômico e de co-

optação do Estado brasileiro.

Um novo quadro de alianças

Ao que tudo indica, o país vive hoje uma conjuntura de realinhamen-

to de forças, impulsionada pelas gigantescas manifestações de junho,

estas resultantes da incapacidade do atual bloco de poder de promover

reformas democráticas do sistema político, de tirar o país do baixo cres-

cimento econômico e de melhorar a qualidade dos serviços públicos.

O bloco PSDB-PFL no governo (1995-2002) foi capaz de controlar a

inlação, promover um maior grau de estabilidade da moeda e da eco-

nomia, além de promover políticas sociais compensatórias, como o

benefício de prestação continuada previsto na regulamentação da Lei

Orgânica da Assistência Social, bem como os primeiros programas de

renda básica, como o bolsa-escola. Mas o bloco PSDB-PFL não conse-

guiu avançar na democratização e oxigenação do sistema pol ítico.

As crises internacionais da segunda metade dos anos 1990 reve-

laram a fragilidade da nossa economia, em especial o baixo investi-

mento público em infraestrutura decorrente da crise iscal e cujo

maior exemplo foi o racionamento de energia elétrica de 2001.

A crise econômica e a insatisfação social dela resultante abriram

espaço para a vitória da coligação liderada pelo PT, que a partir de

2005 conseguiu a adesão em bloco do maior partido político no Con-

gresso, o PMDB. O bloco PT -PMDB, ajudado por uma conjuntura in -

ternacional favorável pelo crescimento das economias centrais e em

especial da China, manteve em boa medida a estabilidade econômica

e conseguiu aumentar a taxa de crescimento do país, com repercus-

Um novo bloco de centro-esquerda 441

Page 43: O 2014 que nos espera

sões positivas no emprego e na renda dos trabalhadores, gerando folga

iscal para a ampliação dos programas de transferência de renda.

Todavia, igualmente, a coligação de poder liderada pelo PT não

promoveu avanços na democratização do sistema político. Antes re-

grediu, aprofundando as relações isiológicas com o Congresso e os

partidos, subordinando-os a um Executivo hipertroiado, com o agra-

vante de atrelar os movimentos sociais e a sociedade civil ao Estado.

Com uma base política e social heterogênea, ocupado com a ma-

nutenção do poder e embalado pelo relativo sucesso econômico, o

governo não promoveu reformas estruturais suicientes e necessá-

rias para preparar o país para um desenvolvimento econômico sus-

tentado. Tal fato icou evidente com a crise econômica internacional

de 2008, em que os ventos mundiais sopraram contra e o Brasil

precisou contar somente com suas próprias forças. A partir de 2011,

experimentamos uma taxa de crescimento do PIB inferior ao dos

anos 1990, quando o país vivia uma situação crítica herdada da re-

cessão dos anos 1980, ainda promovia o ajuste iscal, lutava contra

a inlação, sofria com a falta de reservas cambiais e concluía a rene-

gociação da dívida externa com os credores internacionais.

A atual crise revela, assim, o esgotamento, o conservadorismo e a

incapacidade do atual bloco de poder e do velho quadro de alianças

de promover as reformas necessárias ao país. É preciso, pois, destra-

var o atual sistema de alianças estabelecido a partir das eleições de

1994, com a vitória do bloco PSDB-PFL, e que se cristalizou com a

substituição no poder por um polo oposto a partir de 2005, a aliança

do PT-PMDB e outras forças políticas conservadoras, como o PP, PR,

PRB, entre outras.

A crise econômica, a obstrução de reformas pelo bloco de poder,

as manifestações de junho, bem como o realinhamento de forças pro-

movido pelo PSB-Rede e personalidades dissidentes como o senador

Cristovam Buarque (PDT-DF), põem em xeque não só a continuidade

do atual governo, como também a capacidade do PT de liderar demo-

craticamente o campo da esquerda e promover reformas democráti-

cas e progressistas para o país.

As chances da esquerda democrática

Quais são as chances de um novo bloco da esquerda democrática

se constituir no primeiro turno, chegar ao segundo, agregar as opo-

sições e dissidências e conquistar a coniança dos eleitores no próxi-

mo pleito presidencial? Que nomes cumpririam essa tarefa?

442 Júlio Martins

Page 44: O 2014 que nos espera

Antes mesmo da aliança com a Rede, a pré-candidatura de Eduar-

do Campos à Presidência da República vinha preocupando os estra-

tegistas do governo, pela possibilidade dela dividir as bases políticas

e sociais do governismo. Ela teria potencial de dividir votos no Nor-

deste, em que Lula e Dilma tiveram fortes votações nas eleições pas-

sadas, uma vez que o PSB é bem estruturado na região e Campos é

governador bem avaliado em Pernambuco. Além do mais, Campos já

vinha dialogando com setores empresariais próximos ao governo

Lula, mas descontentes com a política econômica e com a pouca ca-

pacidade de negociação da presidente Dilma Rousseff.

Com o apoio de Marina, Campos pode crescer nos centros urbanos e

nos setores de classe média, local e segmento das manifestações de ju-

nho. São Paulo e Rio de Janeiro são estados onde o PSB é pouco repre-

sentativo, mas o apoio do PSDB e das defec ções do governismo no Rio

tem condições de fortalecer Campos no segundo turno. Em São Paulo, o

apoio de algumas personalidades, como Luiza Erundina, podem ter

grande força simbólica e eleitoral, disputando eleitores à esquerda.

No sul do Brasil, há chances de um crescimento de Campos no

segundo turno, uma vez que ele é capaz de atrair apoio além do elei-

torado oposicionista, também setores que podem se descolar do PT,

como parte do PDT do Rio Grande do Sul e de outros lugares do pa ís.

A aliança PSB-Rede anula em alguma medida o discurso mistii-

cador ―direita x esquerda‖ do qual o governismo tem tirado proveito

desde 2006 e 2010. Porém, um novo bloco da esquerda democrática

precisaria se diferenciar seja do atual bloco de poder e de sua política

econômica, como também de fugir de uma pol ítica econômica liberal,

parecida com aquela pela qual o bloco PSDB -PFL icou estigmatizado

pelos seus opositores de insensibilidade social.

Hora do programa da esquerda democrática

O discurso de Campos pode ser bastante efetivo. Em artigo publica -

do na imprensa ao comentar os 25 anos da Carta de 1988, ele valorizou

aquilo que considerou a herança democrática do governo Sarney, a he -

rança da estabilidade econômica de FHC e a herança da inclusão social

de Lula. Tal discurso traz tanto o apoio do eleitorado da oposi ção como

do eleitorado governista, especialmente daqueles que s ão sensíveis ao

discurso terrorista de que a vitória da oposição seria uma ameaça às

conquistas sociais alcançadas nas últimas décadas.

Essa desconiança deve ser vencida com um claro programa de-

mocrático e reformista de centro-esquerda, com o que poderia con-

Um novo bloco de centro-esquerda 443

Page 45: O 2014 que nos espera

quistar o apoio de todos os setores sociais. Dos assalariados e das

classes médias, com um irme compromisso de preservar não só os

programas assistenciais como especialmente de incrementar políti-

cas sociais que elevem os ganhos de renda da população e melhorem

efetivamente a qualidade dos serviços públicos. Dos setores empre-

sariais, ao se comprometer com uma política de desenvolvimento na-

cional que combine de forma equilibrada e negociada os setores pú-

blicos e privados da economia, ao mesmo tempo de uma garantia de

que nenhum setor econômico e social será atropelado, como por

exemplo, o ambientalismo ou o agronegócio. A busca de consensos

democráticos amplos deve ser uma tônica do seu programa. Aliás, a

questão democrática deve estar claramente colocada. Uma postura

de diálogo permanente com a sociedade, sem hegemonismo do parti-

do governante, sem instrumentalização das instituições e entidades,

sem atrelamento dos movimentos sociais e da sociedade civil.

O programa deve ter tais objetivos fundamentais, além de, no

processo eleitoral, contribuir para: a) no primeiro turno, airmar a

identidade da esquerda democrática, composta por diferentes parti-

dos e personalidades; b) no segundo turno, contribuir na construção

de um novo bloco de centro-esquerda para governar o país. Tal pro-

grama não deve expressar unicamente as diretrizes de um único par-

tido, mas uma plataforma que expresse o consenso não só dos parti-

dos e personalidades da esquerda democrática, como também aposte

num plano de governo capaz de trazer amplo apoio político e social

no primeiro turno. Para se constituir em uma alternativa real de po-

der, deve ser inclusivo, não excluir os setores centristas, mas antes

envolvê-los numa ampla e multifacetada articulação. Seu programa,

assim, deve expressar a possibilidade de consenso para a construção

de um amplo bloco da centro-esquerda, no segundo turno.

Também o projeto de desenvolvimento econômico sustentável

deve estar claramente vinculado a uma nova economia, que busque

de todas as formas conciliar consequentemente a necessidade de

crescimento com a de preservação da natureza.

A vitória de um novo bloco de centro -esquerda em 2014 é vital para

o desenvolvimento econômico, político e social do país, bem como para

a sobrevivência e crescimento de partidos como PSB, Rede, PDT, PPS,

PV e PSDB. Pelo que já se viu até aqui de jogo pesado, os dirigentes

dessas agremiações não devem ter dúvidas de que, outra vez no co-

mando do país, a atual coligação de poder usará toda a força econômi-

ca e inanceira do Estado brasileiro para destruir alternativas de po-

der, com sérios prejuízos à qualidade da democracia brasileira.

444 Júlio Martins

Page 46: O 2014 que nos espera

Black Blocs, já vimos isso antes

Anivaldo Miranda

rio, um dos métodos mais tradicionais para desvendá-lo é

sempre perguntar-se a quem ou a qual propósito serve ou

não serve, seja consciente ou inconscientemente. Para entender o

súbito emergir dos black blocs na cena político-social e na grande

mídia, para além dos estragos materiais que causam, utilizar o velho

método de investigação é sempre aconselhável, pelo menos para dar

celeridade a esse entendimento.

Não há qualquer margem de erro se airmamos que, deinitiva-

mente, os black blocs não servem aos propósitos das centenas de

milhares de pessoas que foram às ruas, nas jornadas de junho últi-

mo, para protestar contra a péssima qualidade dos serviços no Brasil

e, por tabela, contra as grandes mazelas do país, a começar pela

corrupção, passando pela violência e pelos gastos públicos de neces-

sidade discutível, dentre outros.

Do ponto de vista prático, é visível a percepção de que o irromper

de sua aparição nas manifestações massivas – nas quais o volume

impressionante de pessoas indignadas com os governos por si só es-

tava gerando efeitos pol íticos positivos e imediatos – funcionou como

uma ducha de água fria e, de fato, serviu apenas para acelerar pre-

maturamente o reluxo do movimento, mesmo considerando todo o

seu caráter difuso, heterogêneo e passageiro.

Os black blocs, portanto, funcionaram como elementos de neu-

tralização e até de distorção da imagem dos movimentos de junho,

fornecendo valioso discurso para muitos setores dos governos, parti-

dos, poderes e instituições que, incomodados com a cobrança das

ruas, ansiavam por argumentos que lhes permitissem desqualiicar

ou ignorar o conteúdo das bandeiras que reclamavam mudanças

mais profundas no cotidiano da atividade política, administrativa e

econômica do país.

Não foi, portanto, a polícia, como quiseram apresentar os black

blocs e seus teóricos, anônimos ou não, o elemento de que se benei-

445

Quando um fato político é envolto em certa cortina de misté-

Page 47: O 2014 que nos espera

ciou o sistema instituído, para esvaziar os movimentos, mas, sim, o

efeito desmobilizador e desorientador da viol ência gratuita que explo -

diu exatamente no momento em que o caráter pacíico e massivo das

manifestações atraíam multidões cada vez maiores, numa demons-

tração de maturidade democrática que colocou o chamado ―esta-

blishment‖ totalmente na defensiva.

A polícia e as autoridades a que estão submetidas deram, eviden-

temente, várias demonstrações de despreparo no desempenho de

suas funções diante de manifestações públicas onde seu papel é ga-

rantir o direito de reunião e, ao mesmo tempo, ordenar o trânsito e

prevenir ou coibir, evidentemente, atos de vandalismo. Mas, não fo-

ram a inatividade algumas vezes deliberada da força pública ou os

excessos oiciais de violência, sempre condenáveis, embora total-

mente passíveis de correção, o que prevaleceu como a tônica daque-

les eventos. Essa, é óbvio, foi dada pela inconsequência dos black

blocs e por todos os pescadores de águas turvas a eles associados

direta ou indiretamente ou deles beneiciários.

Política e ideologicamente os black blocs são primários e seus ar -

gumentos toscos, além de se constituírem em minorias vis íveis. Ocor-

re, porém, que, devidamente manipulados ou ignorados, podem se

constituir, dentre tantas outras minorias de caráter extremista, seja

de esquerda, religiosas fundamentalistas ou até fascistas, em fatores

negativos para o processo de amadurecimento democrático do Brasil.

Por isso suas ações merecem atenção e suas postulações mere-

cem resposta, sobretudo no contexto das redes sociais, onde uma

parcela importante da juventude que se inclina à politização pode ser

atraída por um discurso anacrônico historicamente, mas passível de

se apresentar como algo novo mediante uma ―mãozinha‖ de certos

acadêmicos que, nostálgicos, querem repetir caricatamente experiên-

cias que o passado das lutas sociais já esgotou.

Carentes de legitimidade política, identidade ideológica e referência

histórica, grupos do tipo Black Bloc precisam desesperadamente de al -

gumas conceituações teóricas, mesmo simplórias e no caso suposta-

mente de esquerda, para a composição de um discurso minimamente

palatável como justiicativa de suas a ções e de seu proseliti smo.

Foram, portanto, buscar no movimento autonomista europeu e

nas postulações aventureiras da chamada ―ação direta,‖ a inspiração

para replicar no Brasil, 30 anos depois, táticas de ação violenta que

agora se destinam atingir os símbolos mais visíveis do capitalismo

globalizado como forma de superação dos métodos ditos ineicientes

dos movimentos sociais e políticos que se utilizam dos instrumentos

446 Anivaldo Miranda

Page 48: O 2014 que nos espera

democráticos para fazer avançar na sociedade o processo contínuo

de conquistas de direitos e transformação da sociedade.

Como se constitui contradição intransponível reclamar-se de es-

querda e, ao mesmo tempo, abominar os espaços democráticos que a

sociedade e a própria esquerda conquistaram para viabilizar o avan-

ço de suas lutas, os black blocs apresentam-se, para justiicar sua

presença nos movimentos, como os ―defensores‖ dos manifestantes

contra a truculência da polícia cuja intervenção eles próprios provo-

cam ao transpor as fronteiras daquilo que poderia ser caracterizado

como indignação cívica, evoluindo, assim, para a prática de atos de

vandalismo totalmente gratuitos.

Os melhores defensores das manifestações são a Constituição da

República, o caráter massivo dessas manifestações, a justeza de

suas bandeiras e, sobretudo, a maturidade política e capacidade de

organização dos manifestantes. Numa democracia, nada melhor que

o exercício das liberdades públicas e dos direitos constitucionais

para dar segurança e fazer avançar as lutas da comunidade. Descon-

iai, portanto, de quaisquer ―defensores‖ da sociedade que se arvo-

ram como tais sem antes ter o cuidado de perguntar ao povo se por

eles deseja ser ―defendido‖.

Como as redes sociais no contexto da Internet representam uma

evolução da modernidade comunicativa, onde a interatividade do lu-

xo astronômico de mensagens dispensa a ideia de centros de coman-

do, os black blocs e assemelhados, disso procuram se servir para

construir, no terreno da ação política, uma falsa similitude com o

ambiente libertário, digamos assim, da Internet.

Adicionam a isso uma outra similitude, dessa vez histórica, com

as raízes do anarquismo, muito embora, em termos conceituais e

práticos, estejam anos luz de distância seja das condições histórico-

-sociais que produziram o anarquismo, seja dos fundamentos de sua

teoria político-ideológica.

Críticos do capitalismo monopolista globalizado s ão, em verdade,

um produto bizarro da própria globalização capitalista que estimula,

não raro, a cópia caricatural de fenômenos europeus em contextos

brasileiros, sem qualquer adaptação ou tratamento crítico, atenden-

do a um modismo e a uma espécie de macaquice midiática que relete

a própria miséria ideológica da esquerda a que esses black blocs di-

zem pertencer.

Porém, como se constituem em grupos formados majoritaria-

mente por jovens e se utilizam de um discurso apelativo à coragem,

Black Blocs, já vimos isso antes 447

Page 49: O 2014 que nos espera

ao desprendimento, à negação do ―estabelecido‖ e ao imaginário su-

postamente emancipador, os black blocs atingem ideologicamente

um contingente de pessoas que é bem maior do que aquilo que isi-

camente eles podem mobilizar, ou seja, muitas pessoas não se dis-

põem a fazer o que eles fazem, mas no fundo por tal coisa sentem

simpatia. E isso não é bom para a democracia.

Não é bom porque vários grupos, segmentos partidários, movi-

mentos de diversa extração ideológica, seja de esquerda ou direita,

partindo de outras premissas ou plataformas reivindicatórias, tam-

bém demonstram desprezo pelos instrumentos e pela convivência

democrática, seja porque consideram-nos ineicientes para o alcance

dos seus objetivos, seja porque são intrinsecamente favoráveis a al-

gum tipo de ordenamento autoritário ou ditatorial da sociedade.

E essa é a razão pela qual, todos aqueles que, de alguma forma,

agem para desestabilizar a democracia merecem ser desmascarados,

porque a democracia atual, mesmo com todas as suas imperfeições e

lacunas, é a maior conquista que os brasileiros conseguiram em sé-

culos de enormes sacrifícios e lutas por uma sociedade mais livre,

mais justa e mais igual.

Traçar paralelos entre a ação dos atuais black blocs e a juventu-

de que se enfrentava com a polícia nos tempos da ditadura não tem

o menor cabimento. Primeiro porque naquele tempo as balas não

eram de borracha. Segundo porque os jovens que se enfrentavam

nas ruas lutavam pelo direito de se manifestar paciicamente, tercei-

ro, seu alvo nunca foi gratuitamente o patrimônio público ou de ter-

ceiros e, por último, a polícia daqueles tempos estava a serviço de

uma ditadura militar e não de governos eleitos pelo voto e, conse-

quentemente, passíveis de cobrança caso ajam indevidamente no

uso da força policial.

A Constituição Brasileira e as liberdades públicas consagradas,

onde desaguam os direitos e deveres de todos os cidadãos e cidadãs,

não podem ser objeto de tergiversação. Defendê-las, estendê-las e

fazer avançar a convivência democrática é sempre a tarefa mais revo-

lucionária de todas, porque a democracia, como exercício do contra-

ditório, é a própria e insubstituível condição para que as demandas

populares, a luta contra as injustiças e as transformações sociais

não somente avancem, como se consolidem. Fora desse entendimen-

to, todo e qualquer comportamento que solapa as bases dessa convi-

vência, não passa de provocação e ato de intolerância. E isso nós já

vimos antes.

448 Anivaldo Miranda

Page 50: O 2014 que nos espera

II. Nos 25 anos da nova

Constituição brasileira

Page 51: O 2014 que nos espera

Autores

Dimas Macedo

Jurista, mestre em Direito, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade

Federal do Ceará, e autor de várias obras, entre as quais se destaca Estado de Direito e

Constituição – O pensamento político de Paulo Bonavides.

Luiz Werneck Vianna

Cientista político, professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio

de Janeiro, e autor de várias e importantes obras, dentre as quais a mais recente é A mo-

dernização sem o moderno – Análises de conjuntura na Era Lula , da série Brasil e Itália,

da Fundação Astrojildo Pereira, em parceria com a Contraponto.

Roberto Freire

Advogado, deputado federal por São Paulo e presidente nacional do PPS. Foi deputado

federal constituinte pelo PCB/PE.

Page 52: O 2014 que nos espera

Marco da reconquista

da democracia 1

Roberto Freire

o ato maior da promulgação da nova Carta, teríamos que

obrigatoriamente vir a esta tribuna para explicitar uma ale-

gria que é nossa e de todas as forças democráticas e progressistas

deste país: a luta para derrotar a ditadura e conquistar a demo-

cracia foi vencida, e aqui tem seu marco. Esta luta da resistência

democrática foi vencida com imensos sacrifícios, até mesmo com a

vida de vários dos melhores ilhos do nosso povo e a eles o nosso

preito de reconhecimento.

Porém, a satisfação maior com esta importante conquista talvez

seja de quantos fazem a gloriosa legenda do Partido Comunista Bra-

sileiro. Não pelo simples fato de termos sido a principal vítima do

regime autoritário, mas, como é de público conhecimento, fomos a

primeira organização no país, ainda nos idos de 1967, durante o nos-

so VI Congresso, realizado na mais rigorosa clandestinidade, a er-

guer a bandeira da Assembleia Nacional Constituinte, como o estuá-

rio natural onde se poria im ao arbítrio e se resgatariam para a

sociedade as regras da sadia convivência democrática. Essa tese ga-

nhou consistência na frente democrática de então, o MDB, quando

juntamente com iguras de combativos democratas que aqui home-

nageamos como o prefeito Jarbas Vasconcelos, o deputado Fernando

Lyra e o saudoso ex-senador Marcos Freire, lançamos, em 1970, a

Carta do Recife, cuja bandeira central era a Constituinte.

1 Discurso proferido na 338

a sessão (01/09/1988) da Assembleia Nacional Consti-

tuinte.

51

Nesta última etapa dos trabalhos constituintes, antecedendo

Page 53: O 2014 que nos espera

É notório também que foi o PCB, ainda em março de 1986, o primei-

ro Partido a formalizar um conjunto de propostas para a Constituição

cujo texto inal estamos hoje aprovando, oferecendo-as à apreciação e

ao debate de todas as forças e movimentos da sociedade brasileira.

Ao relembrar esses fatos de domínio público não desejamos de-

monstrar nenhuma superioridade sobre nenhuma corrente política

ou partido existente no país, com assento ou não nesta Casa. Quere-

mos enfatizar pura e simplesmente que tudo isso está integrado à

nossa concepção estratégica de centralidade da questão no caminho

da revolução brasileira em direção ao socialismo. Temos coniança de

que o Brasil, com a nova Constituição, amplia e aprofunda suas pos-

sibilidades de tornar-se uma nação democrática e socialmente justa.

Não cometeríamos a infantilidade de reivindicar a nova Carta como

patrimônio dos comunistas, mas temos a noção histórica exata de

que em seus artigos, capítulos e títulos estão parte de nosso ideário

no caminho das liberdades democráticas, de uma vida melhor e de

uma sociedade mais justa.

O Estado de Direito democrático, que substitui o Estado autoritá-

rio, centralizador e fechado à participação popular, é um campo pri-

vilegiado para que a classe operária e os trabalhadores em geral pos-

sam, no seu processo de lutas na defesa de seus interesses e dos do

conjunto da sociedade, tornar-se agentes de sua própria história e ir

forjando a sua hegemonia.

Apoiados em nossa já provada convicção democrática, nossa ban-

cada encaminha voto favorável ao texto que ora se submete à apro-

vação para posterior assinatura. Trata-se de um texto constitucional

democrático, moderno e avançado, que renova o otimismo de quan-

tos, como nós, concebe a revolução e o socialismo como um processo

de alargamento e ampliação da democracia.

Expressando a vontade majoritária da nação, que aspira por

maiores liberdades e por reformas econômico-sociais, a nova Carta

cria instrumentos para o exercício da soberania e da cidadania, no

contexto de um Estado permeável às intervenções das massas e à

participação popular. Ressalte-se, neste sentido, a inexistência dos

conceitos espúrios da Doutrina de Segurança Nacional, com sua

concepção absurda de que todo cidadão que contesta é um

virtual inimigo.

Mesmo contando com imperfei ções até mesmo conceituais, ambi -

guidades, excessos corporativistas e regionalistas e certos artigos

ainda característicos de uma visão social retrógrada e estagnada no

tempo da nossa história, a nova Constituição tem fôlego suiciente

552 Roberto Freire

Page 54: O 2014 que nos espera

para abrir espaços à participação no jogo político de todas as corren-

tes e segmentos sociais, incluindo os próprios comunistas e o con-

junto da classe trabalhadora, sem os quais não conseguiremos cons-

truir um país moderno.

Não temos, os comunistas, ilusões jurisdicistas; sabemos que

não basta um texto constitucional que consagre os direitos e liberda-

des para que as garantias cívicas se realizem; que ele resgate uma

dívida social de dezenas de anos e logo melhorem as condições de

vida das massas. Constituição não tem o dom miraculoso de trans-

formar a realidade de uma sociedade e de um Estado em que vigem,

há séculos, dispositivos excludentes, ideologias elitistas e práticas

antidemocráticas, ao lado de um sistema de exploração selvagem.

Mas nós a entendemos como um suporte necessário e indispensável

para que as forças e movimentos político-sociais, empenhados na

democracia e no progresso social, possam travar o seu combate em

condições favoráveis.

Sendo uma das expressões da luta de classes, a nova Carta nas-

ceu de um claro pacto entre projetos políticos e sociais diferenciados

cujo desdobramento natural é o respeito pelo que for aprovado e o

engajamento ativo nas batalhas futuras em torno da elaboração das

leis complementares e ordinárias.

Impõe-se assim que todos setores organizados redobrem seus es-

forços para tornar conhecida a Lei Maior nos seus aspectos funda-

mentais, conscientizar os brasileiros de que ela tem muito a ver com

a vida, com a liberdade, com os direitos de cada um de nós, para que

as massas possam defender sua aplicação, velar pelo respeito aos

postulados e por novas conquistas.

Sr. Presidente e Srs. Constituintes, sobre as conquistas obtidas

teríamos muito que destacar. Porém, como o tempo é curto, teríamos

que registrar as mais relevantes do nosso ponto de vista. Pela primei-

ra vez, na história constitucional brasileira, estabelecem-se princí-

pios de soberania popular, instituem-se mecanismos de democracia

direta ou participativa como a iniciativa de leis por parte de cidadãos

ou entidades cívicas, ações populares, plebiscitos e referendos.

Com um texto avançado nas liberdades públicas, a nova Carta

contém dispositivos inéditos nessa área procurando defender os di-

reitos políticos e sociais de cada cidadão e de suas entidades repre-

sentativas contra o abuso do poder. Trata-se do mandado de injun-

ção, do habeas data e o Mandado de Segurança Coletivo. Inovações

a considerar são a proibição de tratamento desumano ou degradan-

Marco da reconquista da democracia 553

Page 55: O 2014 que nos espera

te, da tortura e constituindo-se crimes inaiançáveis e imprescritíveis

à sua prática, bem como do racismo.

Está deinido o im da censura medieval de natureza política, ideo-

lógica e artística no nosso país, sendo livre a expressão da atividade

intelectual, artística, cientíica e de comunicação. Ponto de suma im-

portância na existência e consolidação da democracia encontra -se nos

partidos políticos, aos quais são oferecidas todas as facilidades, além

de assegurada autonomia para deinir sua estrutura interna, libertan-

do-os da discriminação ideológica institucionalizada e garantindo-os

contra eventuais arbitrariedades. Além da livre organização partidá-

ria, dois outros direitos políticos possibilitarão uma maior ampliação

da democracia no país: ampla liberdade de manifestação pública e o

direito de voto para jovens entre 16 e 18 anos e para os analfabetos.

Apesar da derrota do sistema parlamentarista de governo, a nos-

so ver a grande derrota política desde que com o presidencialismo

ganhou o Brasil atrasado, houve signiicativas conquistas na relação

entre os poderes, a começar pela recuperação e mesmo ampliação

das prerrogativas e direitos do Legislativo, simultaneamente à ex-

pressiva redução dos poderes imperiais do Executivo, além de impor-

tantes mudanças no Judiciário.

Ao examinar os direitos sociais, ressalta -se que no projeto de Cons-

tituição que o PCB apresentou à sociedade, fomos também os primei-

ros a levantar a questão dos direitos do cidadão trabalhador e a colo-

cação desses direitos como tema constitucional. Isso ocorreu de forma

democrática e progressista. Pode-se dizer que o país vai começar uma

nova era, com a conquista da liberdade e autonomia sindical, sem que

o Estado possa mais intervir nas entidades e cassar mandatos sindi-

cais. Além do mais, com a unicidade sindical evitou -se o fracionamen-

to orgânico do movimento. Outra conquista decisiva na democratiza-

ção da vida brasileira está na criação de um representante dos

trabalhadores nas empresas de mais de 200 funcionários.

Os trabalhadores brasileiros jamais conquistaram tanto em ga-

rantias e segurança social, quanto com a nova Carta o que lhes pos-

sibilitará uma melhoria de vida. Foi encolhida de 48 para 44 horas

semanais a jornada de trabalho, o adicional sobre trabalho extra

cresceu 50%, o salário do mês de férias ganhou um reforço de 30%,

turnos ininterruptos revezamento foram estabelecidos em apenas 6

horas, a licença gestante foi ampliada de três para quatro meses, o

direito amplo de greve, o direito de sindicalização e de greve para os

servidores públicos, a igualdade de direitos trabalhistas e previden-

554 Roberto Freire

Page 56: O 2014 que nos espera

ciários entre trabalhadores urbanos e rurais, inclusive com claras

repercussões na questão agrária.

Houve um salto qualitativo na Constituição no que diz respeito ao

ordenamento econômico do país, sob vários e essenciais aspectos.

Ela busca resguardar nosso potencial e recursos naturais e huma-

nos, ao tempo em que prioriza a capacidade nacional de desenvolvi-

mento, disciplina as inversões de capital estrangeiro, incentiva seus

reinvestimentos e regula a remessa de lucros. As jazidas, minas e

demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica per-

tencem a União e constituem propriedade distinta da do solo, para

efeito de exploração e aproveitamento. Petróleo, gás natural e outros

hidrocarbonetos luidos constituem monopólio estatal.

No que se refere à reforma agrária icou evidenciado, mais uma

vez, o peso que o latifúndio atrasado e agressivo detém no país, e

como esta questão se mantém como um tabu em expressiva faixa da

sociedade. Um tratamento democrático para a questão fundiária foi

derrotado na Constituinte, sendo postergado para a legislação ordi-

nária. Quer dizer, o encaminhamento da reforma agrária se compli-

cou, sem, no entanto inviabilizá-la, dependendo de como se trate a

questão na lei complementar, que poderá deinir adequadamente o

que é uma propriedade produtiva, e regulamentar o rito sumário

para o processo judicial de desapropriação. Contudo, por ser uma

questão política; o decisivo, em última instância, permanece sendo a

ação unitária dos trabalhadores na agricultura, apoiando-se em am-

plos setores sociais, e na articulação política ao nível institucional.

Com a nova Constituição foi criado um novo sistema tributário,

que abre as possibilidades para se realizar uma ampla reforma tribu-

tária, permitindo a desconcentração da competência tributária, hoje

hipertroiada na União; descentralização da receita, para que haja

melhor distribuição e repartindo-a com estados e municípios; atenua-

ção dos desníveis regionais de renda e maior transparência no proce-

dimento por parte da autoridade iscal.

As conquistas constitucionais colocaram a nova Carta entre as

mais avançadas nas lutas por um mundo sem guerras, a airmação

de princípios basilares como a prevalência dos direitos humanos, a

igualdade entre os estados, a solução pacíica dos conlitos e a defesa

da paz, propugnando pela cooperação entre os povos para o progres-

so da humanidade.

Os municípios brasileiros voltaram a ser reconhecidos como enti-

dades políticas, ganhando maior poder e se tomando mais fortes.

Importantes nesse sentido a exigência de Plano Diretor nos municí-

Marco da reconquista da democracia 555

Page 57: O 2014 que nos espera

pios com mais de 20 mil habitantes, a iniciativa de leis pela popula-

ção e a participação da sociedade organizada na formulação dos pla-

nos municipais. Inovadores foram os instrumentos criados para

combater a especulação imobiliária e a inviolabilidade dos vereado-

res no exercício do mandato.

A mulher conseguiu muitos avanços com os mesmos direitos que

o homem (salário igual para trabalho igual, pátrio poder sobre os i-

lhos), ao tempo em que conquistou a proteção do seu mercado de

trabalho mediante incentivos especíicos, assistência gratuita aos i-

lhos e dependentes até seis anos, em creches e pré-escolas. Mais que

isso: o Estado protege e reconhece agora como entidade familiar a

união estável entre o homem e a mulher, mesmo sem casamento, e

não indeferirá mais no planejamento familiar.

A Previdência Social abre um leque de novos benef ícios e melhora

a remuneração de outros já existentes. Os aposentados ganharam a

reposição das perdas ocorridas no valor dos proventos. nos últimos

anos; terão suas pensões equiparadas aos vencimentos do primeiro

mês de inatividade e reajuste de acordo com os índices de inlação.

Quem se aposentar de agora em diante, o cálculo de seus vencimen-

tos será feito em base na média dos 36 últimos salários de contribui-

ção, corrigidos monetariamente. Benefícios como o auxílio-natalida-

de e o auxílio-funeral quase sempre motivo de pilhéria entre os

trabalhadores, terão agora como piso o salário mínimo.

No tocante à saúde, asseguram-se os princípios de gratuidade,

universalidade, descentralização e integralidade do cuidado e das

ações de saúde, e a implementação do sistema único, o SUDS. Os

grupos multinacionais foram excluídos da área de comercialização

do setor. Além do mais, está proibido todo tipo de comercialização

de sangue.

A Constituição garante o princípio da gratuidade do ensino públi-

co em todos os níveis, ensino este que deverá se reger por outros três

principais que são decisivos para sua efetiva democratização: a igual-

dade de condições de acesso a escola, a gestão democrática do ensi-

no e a liberdade de aprender a ensinar. As verbas públicas foram

substancialmente elevadas – a União vai aplicar no mínimo 18% do

seu orçamento em educação, porcentagem que sobe para 25% no

caso dos estados e municípios.

É muito avançada a nova Constituição em termos de proteção ao

meio ambiente. Toda obra ou indústria potencialmente perigosa para

o ecossistema só será instalada depois de um estudo sobre o seu

impacto ambiental. A cr iação do Conselho Nacional de Comunica ção

556 Roberto Freire

Page 58: O 2014 que nos espera

é um fato político novo e está vinculado estreitamente com a neces-

sidade de democratizarmos os meios de comunicação de massa.

Sobre os índios, a Constituição, além de eliminar a distinção

entre aculturados e não aculturados, deine que as terras tradicio-

nalmente ocupados por eles serão de sua posse permanente, deven-

do a União demarcá-las o mais rápido possível, podendo os índios

agir judicialmente.

No importante plano da cultura, assegura-se que o Estado garan-

tirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes

da cultura nacional, apoiará e incentivará a valorização e a difusão

das manifestações culturais, protegendo, sobretudo as das culturas

populares, indígenas e afro-brasileiras, e preservando e ampliando a

função predominantemente cultural dos meios de comunicação so-

cial, assim como a democratização do seu uso.

Muita coisa mais poderia ser dita, nesse balanço sumário dos

trabalhos constituintes. Porém, gostaria de deter-me por alguns ins-

tantes sobre a oportunidade que foi a Constituinte para o aprendiza-

do democrático de todos nós, parlamentares e nossos partidos, e

para o conjunto da sociedade. Nessa disputa aberta e transparente,

no entrecho é que de opiniões e propostas, muitas vezes antagônicas,

conquistamos um texto produto natural da luta e da negociação, das

mobilizações de massas e de capacidade dos políticos de encontrar

soluções negociadas. As tentativas de imposição de confronto, de ex-

cludências e preconceitos de marcar posição ou jogar para as gale-

rias, em sua excessiva maioria foram denotadas e desmoralizadas,

amadurecendo nossa conduta e de quantos fazem política neste país.

As pressões, as intimidações e as ameaças feitas pelo Executivo,

pelos grupos monopolistas transnacionais e brasileiros e pelo lati-

fúndio e seus representantes foram fortes e sistemáticas. Porém,

apesar de tudo, o povo venceu no essencial. Por isso é que, em nome

da Bancada do PCB, composta por mim e pelos incansáveis compa-

nheiros Fernando Sant‘Anna e Augusto Carvalho, quero dar o meu

testemunho do empenho da maioria desta Casa pela aprovação do

texto que nos guiará de agora em diante.

Sem dúvida que fatores puramente conjunturais também exerce-

ram inluência nos trabalhos da Constituinte, e muitas das deforma-

ções da cultura política oligárquica empanaram, de certas forma-

ções, as atividades parlamentares, facilitando o trabalho sistemático

dos grandes meios de comunicação de massa em desmoralizar e ten-

tar desestabilizar esta Casa. Defesa de posições e privilégios imedia-

tos, ambições no tocante à sucessão presidencial, pretensões perso-

Marco da reconquista da democracia 557

Page 59: O 2014 que nos espera

nalistas, arranjos regionais e particularidades de forças e grupos

partidários, não contribuíram para os trabalhos. Da mesma forma,

ministros militares e civis, ministros dos tribunais superiores e go-

vernadores jogaram o peso de sua autoridade em alguns casos na

defesa de causas conservadoras e reacionárias.

Apesar de aquém do desejado e necessário, e até com certas de-

formações corporativas, a participação dos movimentos populares e

sindicais talvez tenha sido o elemento mais rico do aprendizado de-

mocrático, durante o processo constituinte. Antes de tudo porque,

apesar das experiências e conquistas acumuladas no período da re-

sistência democrática, havia em certos setores populares um visível

preconceito contra míticos e instituições que, em parte, se foi dissi-

pando. Assim é que, ao lado das conquistas nas leis, houve avanços

simultaneamente na consciência e na prática de cidadãos que apren-

deram a não mais subestimar a luta política e os instrumentos le-

gais, a se unir e se organizar para inluir no processo de estruturação

do poder na sociedade.

O PCB tem perfeita compreensão da importância da mobilização

popular não só para manter as conquistas da Constituição de 1988,

mas também para ampliá-las. E o palco destes embates já está sendo

montado: ele passa pela votação das leis complementares e especiicas

aqui nesta Casa, na elaboração das constituições estaduais e nas leis

orgânicas dos municípios; pelas eleições dos vereadores e prefeitos

agora em novembro, de deputados e senadores em 1990 e em 1993,

quando teremos a oportunidade de fazermos a constitucional revisão.

Dentro destas lutas destacamos ainda o plebiscito que no mesmo

ano da revisão dará ao povo brasileiro a opção pelo parlamentarismo,

um regime hoje assumido pelas correntes progressistas de todo

o mundo.

O Partido Comunista Brasileiro, com 66 anos de vida orgânica

ininterrupta, nunca escondeu da sociedade os seus propósitos polí-

ticos e ideológicos. O socialismo, com a abolição da luta de classe, é

o sistema político mais viável para superar as graves desigualdades

sociais criadas historicamente em nosso país pelo capitalismo; desde

a sua fase mercantil. O socialismo também é o sistema político que

vê no desmantelamento dos aparatos repressivos e de guerra o cami-

nho mais seguro para garantir o desenvolvimento soberano dos po-

vos e para se conquistar a paz. O socialismo, em síntese, é o sistema

que pode, em direção ao comunismo, servir de amálgama, de harmo-

nia para toda a Humanidade.

558 Roberto Freire

Page 60: O 2014 que nos espera

Quando o PCB aposta efetivamente na democracia, como necess á-

ria e fundamental para se chegar ao socialismo, é porque acredita na

possibilidade de se desenvolver um processo revolucionário privile-

giando a via pacíica. Ao mesmo tempo, o PCB aposta em um regime

socialista, onde o pluripartidarismo e o primado da liberdade transfor -

mem-se em instituições reais e não em um meio jogo de palavras.

Neste sentido, o novo texto constitucional está muito aquém da

Carta que almejamos para o nosso país. Uma Carta que deina o pri-

mado do trabalho sobre o capital, onde os monopólios deixam de ser

contemplados e onde o latifúndio transforme-se em apenas uma lem-

brança triste e equivocada do passado. Porém, para nós, comunis-

tas, o texto a ser hoje aprovado, democrático, moderno e avançado,

abre espaços reais para no jogo democrático, sem golpes e sem es-

pertezas, lutarmos por uma sociedade onde a exploração do homem

pelo homem desapareça deinitivamente.

Viva a nova Constituição!

Viva a Democracia!

Viva o Socialismo!

Marco da reconquista da democracia 559

Page 61: O 2014 que nos espera

A Carta de 1988 e a

nossa tradição republicana 1

Luiz Werneck Vianna

fato de ela ter sua origem no processo de transição do regime

militar para o da democracia política, não podendo, portanto,

ser compreendida na chave clássica das Constituições que sucedem

movimentos revolucionários vitoriosos. Bem conhecido também o

fato de que ela, tal como a de 1946, desconheceu um anteprojeto que

servisse de ponto de partida para o trabalho dos legisladores consti-

tuintes, pois o presidente José Sarney recusou o que foi apresentado

pela Comissão Afonso Arinos.

Apesar de a Assembleia Nacional Constituinte se ter instalado

sob a perspectiva do compromisso com os termos da transição, ela

consistiu no resultado de processos de mobilização de massas sem

paralelo na história do país, que, iniciados nas greves operárias de

ins dos anos 1970, encontraram seu auge nas lutas pelo movimen-

to das ―Diretas Já‖. Não à toa, ao se iniciarem os trabalhos consti-

tuintes, essa mobilização ainda ecoou em milhares de iniciativas de

leis provindas de organizações da sociedade civil que lhe foram en-

viadas no propósito de inluir na legislação, nisso já enunciando as

expectativas por democracia participativa que seriam consagradas

no texto constitucional.

As últimas ondas dessa mobilização também se izeram presentes

nas eleições congressuais de 1986, quando os partidos políticos que

representaram a resistência democrática elegeram expressivas ban-

cadas, boa parte delas comprometidas com uma agenda efetiva de

mudança social. Instalada a Constituinte, o cenário da transição se

transferiu para o seu interior, sempre sob o registro da negociação,

importando limites, como exemplarmente na questão agrária, para

1 Republico, aqui, com ligeiros cortes e alterações, atendendo a pedido expresso da

editoria desta revista, por meio do meu bom amigo Francisco Almeida, artigo origi -

nalmente publicado em A Constituição de 1988 na Vida Brasileira , Rubem George

Oliven, Marcelo Ridenti, Gildo Marçal Brandão (Orgs.), São Paulo: Hucitec/Anpocs,

2008. Em sua versão original, o artigo recebeu o t ítulo de ―O Terceiro Poder na Carta

de 1988 e a Tradição Republicana: mudança e conservação‖ .

660

Uma característica forte da Constituição de 1988 advém do

Page 62: O 2014 que nos espera

inovações de alcance social. Nesse contexto, parece plausível que os

constituintes identiicados com as aspirações por mudanças subs-

tantivas, ao se defrontarem com a opinião conservadora presente na

composição da Assembleia, tenham buscado uma estratégia nova,

ancorada com irmeza em uma ampla e compreensiva declaração dos

direitos fundamentais (WERNECK VIANNA et al., 1999, p. 40).

A descoberta desse caminho, em meio aos trabalhos constituin-

tes, decerto que obra de juristas especializados em Direito Constitu-

cional, alguns deles exercendo papel de assessores de inluentes par-

lamentares, foi o embrião de uma verdadeira mutação institucional

na relação entre os três Poderes e na da sociedade com o Poder Ju-

diciário. A tal caminho não se chegou como um raio em dia de céu

azul – a lei que dispôs sobre a ação civil pública, de 1985, na aurora

da democratização do país, já descortinara amplas possibilidades

para que o Direito, suas instituições e procedimentos viessem a se

tornar instrumentos de animação da vida republicana (WATANABE,

2001, p. 14).

Edis Milaré, em coletânea já clássica sobre a ação civil pública,

pontua com força o seu papel transformador, principalmente por ter

alargado ―as fronteiras dos direitos da sociedade civil mediante ini-

ciativas e procedimentos que, mais do que jurídicos e processuais,

foram socialmente pedagógicos, porquanto despertaram mais e mais

a consciência da cidadania e desencadearam processos participati-

vos orientados à defesa do patrimônio coletivo e da sadia qualidade

de vida dos cidadãos‖ (MILARÉ, 2001, p. 9). É o mesmo autor que, ao

se referir ao contexto de nascimento da ação civil pública, anota a

emergência de novos papéis a serem desempenhados pelo Direito,

seus procedimentos e instituições em uma sociedade ―que não havia

ainda se libertado do chamado ‗entulho autoritário‘ [...] em que não

apenas os interesses difusos, coletivos ou transindividuais eram des-

considerados ou minimizados, mas, dolorosamente, nem os interes-

ses individuais eram levados na devida conta‖ (Ibidem).

Contudo, para além de uma circunstância datada, o novo ordena-

mento jurídico visava mobilizar a cidadania para a participação em

defesa dos seus direitos e implicava uma velada descrença quanto às

instituições da democracia representativa no sentido de virem a ani-

mar a vida republicana.

A chamada revolução processual do Direito, que começa, de fato,

no contexto dos movimentos por direitos civis e dos conlitos sociais

nos EUA dos anos 1960, institucionalizando as class actions como

instrumento de tutela dos direitos coletivos (HENSLER et al., 2000),

A Carta de 1988 e a nossa tradição republicana 661

Page 63: O 2014 que nos espera

sendo recepcionada por um grupo de teóricos italianos, entre os

quais Mauro Cappelletti, destinado a se tornar uma grande referên-

cia na relexão brasileira. As class actions logo se espraiam pelo Oci-

dente e se implantam pioneiramente no Brasil, sob a designação de

ação civil pública. Esta, na medida em que abre espaço para que di-

reitos coletivos ganhem legitimidade no Judiciário a im de que cida-

dãos possam se defender de ações do Estado ou de empresas, impli-

ca a criação de uma nova arena de participação, cujo território,

conquanto seja externo à arena clássica da democracia representati-

va, nasce com a vocação de intervir em matéria de políticas públicas.

Nesse sentido, reclamam, de um lado, a admissão de papéis políticos

a serem desempenhados pelo sistema da Justiça, e, de outro, a faci-

litação do acesso a ele pelos cidadãos que podem reconhecê-lo como

novo lugar para a participação na vida pública.

Assim, quando se iniciam os trabalhos da Constituinte, esse novo

corpo de ideias já parte da experiência vitoriosa da institucionaliza-

ção da ação civil pública, e do que ela traz consigo de novas concep-

ções a respeito das relações entre a política e o Direito. Dessa forma,

Paulo Bonavides avalia que ―a velha democracia representativa já se

nos aigura em grande parte como perempta‖, destituída da capaci-

dade de fazer da Constituição o instrumento da vontade nacional e

popular (BONAVIDES, 1993 – grifado no original). Nesse sentido, o

movimento de ideias que encontrara a sua oportunidade na elabora-

ção da ação civil pública, ampliica, no terreno decisivo da Consti-

tuinte, a sua inluência.

Animando e ancorando esse movimento, os fatos recentes da

democratização da Ibéria europeia, com a promulgação da Consti-

tuição portuguesa, em 1976, e da espanhola, em 1978, sobretudo a

primeira, que vai encontrar larga audiência nos círculos da intelli-

gentsia especializada na doutrina constitucional. Nascidas de so-

ciedades que retomavam, depois de décadas de regimes autoritá-

rios, o caminho democrático, essas duas Constituições conirmam

e desenvolvem o constitucionalismo democrático que se airmou

nos países europeus após a vitória sobre o nazifascismo, especial-

mente na Alemanha, França e Itália, sob inluência da Declaração

dos Direitos do Homem, de 1948. Nessa construção, limita-se a

vontade do poder soberano e das maiorias que os instituem pela

vontade geral que se faria expressar nos princípios e direitos funda-

mentais admitidos pelas Cartas constitucionais. Os atos legislati-

vos do poder político tornam-se, então, passíveis de escrutínio, em

nome da defesa dos direitos fundamentais, por uma corte constitu-

cional dotada da capacidade de declará-los, quando provocada por

662 Luiz Werneck Vianna

Page 64: O 2014 que nos espera

uma ação de um agente social, como contrários a esses direitos,

assim impedindo a sua concretização.

Essa mutação no sistema da ordem republicana, ao sujeitar a

regra da maioria ao crivo de uma razão de estatuto superior à sua,

tem seu trânsito em momento coincidente com a airmação do Esta-

do de Bem-Estar, que se propunha a instituir um capitalismo orga-

nizado. Para esse im, sua modelagem implicava, além de atuar sobre

o comportamento das variáveis-chaves da economia, regular o social,

como nas matérias previdenciárias, de saúde, de assistência fami-

liar, projetos habitacionais etc. Tal regulação signiicou não só a ul-

trapassagem do Poder Legislativo pelo Executivo, que detinha a perí-

cia e a informação para intervir a tempo em matérias dessa

complexidade, como também trouxe o mundo do Direito, suas insti-

tuições e procedimentos para o interior da administração pública.

As décadas imediatamente subsequentes ao segundo pós-guerra

assistem ao fastígio das concepções do constitucionalismo democrá-

tico e do Welfare State. De poder isolado em sua autonomia institu-

cional, o Judiciário passa a ser incorporado como novo ator na ex-

pressão da vontade soberana.

A recepção brasileira da Constituição como obra aberta, tal como

sugerido por Paulo Bonavides (1996), não ignora os constrangimen-

tos que lhe são impostos pela natureza da sociedade: ―para a eicaz

aplicação [da Constituição aberta], a presença de sólido consenso

democrático, base social estável, pressupostos institucionais irmes,

cultura política bastante ampliada e desenvolvida, fatores, sem dúvi-

da, difíceis de achar nos sistemas políticos e sociais de nações sub-

desenvolvidas ou em desenvolvimento‖.

Como escrevi, em outra oportunidade, a recepção da teoria de P.

Haberle pelo constitucionalismo brasileiro, supondo uma pr évia demo-

cracia de cidadãos, não poderia partir dos valores e princ ípios de orga-

nização da sua sociedade, ―historicamente carente de mentalidade c ívi-

ca e de cultura política democrática‖ (WERNECK VIANNA et al., 1999,

p. 40). Essa falta deveria ser suprida pelos valores e princ ípios da igual-

dade e da dignidade humanas, 2 que conformariam o patrimônio cultu-

ral do Ocidente, a serem positivados no seu Direito Constitucional na

declaração dos seus direitos fundamentais. Adota -se a fórmula comuni-

tarista, na designação de Gisele Cittadino, entendendo -se que os direi -

tos fundamentais, dizendo respeito aos indiv íduos, os transcenderiam,

2 Sobre o constitucionalismo comunit ário, ver o excelente Pluralismo, Direito e Justiça

Substantiva , de Gisele Cittadino, 1999, p. 11 e ss.

A Carta de 1988 e a nossa tradição republicana 663

Page 65: O 2014 que nos espera

traduzindo a vontade geral da sociedade quanto aos ins que deveriam

ser buscados e concretizados (ANDRADE, 1983, p. 144).

A concretização dos direitos fundamentais – expressão da vonta-

de geral – se apresentaria como obra aberta às futuras gerações.

Desconiado, porém, do legislador ordinário e do sistema da repre-

sentação política, o constituinte terá dotado a sociedade de instru-

mentos procedimentais que lhe permitissem agir para garantir a ei-

cácia daqueles direitos. Cittadino (1999, p. 9) vai ao ponto: ―é,

portanto, pela via da participação político-jurídica [...] que se proces-

sa a interligação entre os direitos fundamentais e a democracia par-

ticipativa‖. Na mesma linha de argumentação, Bonavides (1993, p.

9-10) vai além, ao preconizar a ―politização da juridicidade constitu-

cional dos três Poderes‖, transferindo-se ―ao arbítrio do povo‖ o fun-

cionamento dos mecanismos de governo. Assim, se o legislador está

vinculado constitucionalmente aos direitos fundamentais, que são

direitos de eicácia imediata, cabe à sociedade, por meio dos meca-

nismos institucionais estabelecidos, ao lado dos atores da represen-

tação política ou sem eles, lutar por sua aplicabilidade.

Ao aderir a esse movimento, a Carta de 1988 realizou uma sur-

preendente conirmação da tradição republicana brasileira, que, ain-

da nos anos 1930, recobrira duas dimensões cruciais à modernidade

– o mercado político e o mercado de trabalho – com o Direito, suas

instituições e procedimentos, por meio da criação da Justiça Eleito-

ral e da Justiça do Trabalho. Decerto que a leitura crítica dessa tra-

dição, situada em um tempo democrático, terá como alvo a erradica-

ção daquela cultura política autoritária, como exemplar na legislação

sobre o mundo do trabalho que vinculava os sindicatos ao Estado.

Nisso, ela será claramente descontínua à tradição republicana, mas,

em suas inovações institucionais, optará por uma inequívoca linha

de continuidade com ela.

Contínua também em seu diagnóstico cético quanto às possibili-

dades de as instituições da representação política, em país social-

mente desigual, sem história de auto-organização e carente de sedi-

mentação das virtudes cívicas, serem capazes, por si sós, de

conduzirem a sociedade em direção aos ideais da justiça social. No-

tem-se, aqui, as áreas de vizinhança das interpretações do consti-

tuinte com as que nos vêm da hora remota de consolidação do nosso

Estado-nação, como as de Visconde do Uruguai, que opunha o prima -

do do público e do Direito Administrativo aos ideais do self government

para os ins da formação de uma cultura cívica no Brasil. Em uma

sociedade naturalmente desarticulada, o Estado deveria investir-se

do papel de agente pedagógico na socialização das virtudes da cida-

664 Luiz Werneck Vianna

Page 66: O 2014 que nos espera

dania, razões a ser reiteradas, na terceira década do século XX, por

Oliveira Viana, ao justiicar a legislação sindical e trabalhista que

então tomava forma.

Em 1988, o constituinte recusa o caminho de uma Carta limitada

a instituir procedimentos para a formação da vontade coletiva e as

garantias de autonomia aos indivíduos. Ele parte de uma interpreta-

ção do Brasil, em função da qual determina um programa substanti-

vo a ser perseguido pela coletividade, tal como nos incisos do art. 3º

do título que trata dos princípios fundamentais que devem nortear os

objetivos da República: construir uma sociedade justa e solidária;

garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a margi-

nalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o

bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação.

A Constituição visa, pois, o futuro e se empenha programatica-

mente, ao deinir os direitos sociais, no terreno das políticas públicas.

A jurisdicização desses direitos vincula o legislador ordinário aos seus

comandos, cabendo à sociedade provocar o Judiciário, mediante no-

vos institutos criados pela Constituição, para garantir sua aplicabili-

dade. Nesse preciso sentido, a judicialização da política se apresenta,

entre nós, como uma derivação da vontade do constituinte, ao mobili -

zar o medium do Direito como recurso da sua engenharia, a im de

tornar viável a sua concepção de Constituição como obra aberta.

Em tese, o Mandado de Injunção e a Ação Direta de Inconstitucio -

nalidade por Omissão consistiram nos instrumentos mais fortes pre-

vistos para conferir aplicabilidade à norma constitucional portadora

de direitos e liberdades e das prerrogativas inerentes à cidadania,

deixados inertes em virtude de ausência de regulamentação. Por

meio deles, estaria disponível à sociedade, quer pela iniciativa de

qualquer cidadão – no caso do Mandado de Injunção –, quer pela

iniciativa da comunidade de intérpretes da Constituição – no caso da

Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – o recurso ao Ju-

diciário, a im de encontrar remédio para uma eventual omissão do

poder público quanto aos direitos que lhe foram outorgados consti-

tucionalmente. Com essa construção, o constituinte, pela mediação

da sociedade, procurava impedir que as normas e garantias dispos-

tas na Carta se revestissem de caráter simbólico, uma vez que as

declarara, no parágrafo 1º do art. 5º, no título que trata dos direitos

fundamentais, como de aplicação imediata (SILVA, 1997).

A Carta de 1988 e a nossa tradição republicana 665

Page 67: O 2014 que nos espera

Promulgada a Constituição, as expectativas contidas nesses dois

cruciais artigos esbarraram nos vértices institucionais do Poder Judi-

ciário, cuja manifestação foi de molde a desencorajar o caminho aber -

to por eles, sobretudo por avaliar que não lhe cabia exercer papéis que

o aproximariam da igura, que temia, do juiz legislador. 3 Sem a adesão

do Judiciário, se frustra uma das principais vias para a concretização

da Constituição como obra aberta. Mas outras inovações teriam me-

lhor sorte, especialmente as que redeiniram o papel do Ministério Pú-

blico na vida republicana e as que se dedicaram à democratização do

acesso à Justiça com a criação da Defensoria Pública e dos Juizados

de Pequenas Causas, denominados, posteriormente, de Juizados Es-

peciais. Destino imprevisto, explicável talvez pela conjuntura política

da época, tiveram as Ações Diretas de Inconstitucionalidade – instru-

mento de uso corrente, hoje, de partidos políticos e organizações so-

ciais, tanto as de trabalhadores como as empresariais.

A nova fórmula constitucional do Ministério Público será, talvez,

o caso mais eloquente da operação intelectual do constituinte, que

democratiza a sociedade a partir de uma reinterpretação da nossa

história republicana, pois a ele – um ente público – conia a repre-

sentação da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais in-

disponíveis, ao convertê-lo em instituição acessível às demandas da

sociedade. Com efeito, o papel estratégico reservado ao Ministério

Público na ordem democrática signiica uma clara opção pela pers-

pectiva que balizou a intenção do legislador, a de continuar-descon-

tinuando, à medida que, com isso, pretendeu valorizar a representa-

ção funcional.

Com esse novo Ministério Público, ao qual a Carta ―deferiu uma

atenção [...] inédita na história do Brasil e de difícil paralelo no direi-

to comparado‖ (MENDES, COELHO, BRANCO, 2008, p. 992), a socie -

dade conquista um intérprete privilegiado, com o im de buscar a

concretização dos princípios e direitos fundamentais previstos na

Constituição, evidente no exercício das Ações Civis Públicas. Tal pro-

cesso não só é revelador das tensões entre as duas formas de repre-

sentação, a política e a funcional, mas também de uma fecunda coe-

xistência entre elas (CASAGRANDE, 2008).

No controle da constitucionalidade das leis, outro momento cru-

cial na tomada de decisão do legislador de 1988, a representação

funcional é admitida como parte legítima, elevadas à comunidade de

intérpretes, entre outros agentes políticos e sociais, as confederações

sindicais. Aos sindicatos atribui-se ainda legitimidade para serem

3 Entre outros estudos da época, ver Vieira, 1994, especialmente o Capítulo 5.

666 Luiz Werneck Vianna

Page 68: O 2014 que nos espera

autores das Ações Civis Públicas e dos Mandados de Segurança Cole-

tivos, a im de interpelarem preceitos constitucionais, ―o que implicou

destinar parte da sua atividade institucional ao Poder Judiciário, con-

trariando a experiência que nos vinha dos anos 30, em que a partici-

pação sindical se articulava exclusivamente com o Executivo ou com

um ramo daquele Poder especializado na sua jurisdição, o Judiciário

Trabalhista‖ (WERNECK VIANNA, BURGOS, 2002, p. 385).

De uma perspectiva mais ampla, o continuar-descontinuando da

Carta de 1988 se expressa na operação que faz do Direito a sua prin-

cipal referência ético-pedagógica, e estabelece que a sociedade não

está vinculada ao Estado e à sua interpretação dos ideais civilizató-

rios, mas aos princípios e direitos fundamentais declarados pelo

constituinte como a expressão da vontade geral, passíveis de concre-

tização por parte da cidadania, pela via do Direito, suas instituições

e procedimentos.4 A representação funcional muda seu centro de

gravidade, do Estado para a sociedade, que, pela sua atividade e a

partir de suas organizações, passa a ter o poder de mobilizar, para se

defender ou adquirir novos direitos, o inventário de valores positiva-

do na Constituição.

Sob essa formatação democrática, a representação funcional nela

compreendido o Poder Judiciário, problematiza a questão clássica da

soberania. Esse tertius, embora limitado a uma função técnica e ape-

sar de não ancorado no voto nem submetido ao controle dos eleitores,

é chamado a exercer, pelo sistema da Constituição brasileira, a repre-

sentação dos princípios e dos direitos fundamentais do corpo pol ítico.

Para o constituinte, o Judiciário deveria tornar-se uma arena de fato

da democracia participativa, capilarmente aberta à sociedade, garan-

tidora e via de concretização dos amplos direitos nela previstos.

A modelagem constitucional como obra aberta, requeria, entre ou -

tros fatores relevantes, um Poder Judici ário de cultura jur ídica moder-

na, ágil e preparado para a massiicação da litigação, que ela pressupu-

nha, ao lado de uma sociedade minimamente estruturada em torno dos

seus interesses e consciente dos seus direitos. Os efeitos inesperados

da sua ação, que lertavam com formas criativas de democracia direta,

tiveram, no entanto, o condão de estimular o processo de judicialização

da sociedade e da pol ítica, hoje, um dos mais evidentes entre as demo -

cracias ocidentais, não se podendo responsabilizar para a emergência

de tal fenômeno um suposto ativismo do Poder Judiciário. Longe de ter

4 Desenvolvi este tema mais amplamente em "A Revolução Processual do Direito e a

Democracia Progressiva". In: WERNECK VIANNA, BURGOS, A Democracia e os Três

Poderes no Brasil , UFMG, 2002.

A Carta de 1988 e a nossa tradição republicana 667

Page 69: O 2014 que nos espera

suas raízes na ação do juiz, ele deriva da obra do legislador, primeiro,

do constituinte, depois, do legislador ordinário.

Promulgada a Carta, democratizado o país, a representação políti-

ca defronta-se com uma sociedade, inalmente livre em seus movi-

mentos, que passara pela experiência de duas décadas de intensa mo-

dernização econômica e social em situação de imobilidade política e de

depauperamento da sua vida associativa. Para tanto, concorreram,

signiicativamente, o Ministério Público, expedito no exercício dos seus

novos papéis constitucionais, dando vida às Ações Civis Públicas, e a

forte aluência da população aos Juizados Especiais em defesa dos

seus interesses contra empresas e o Estado, levando a que se conce-

desse ao tema do acesso à Justiça um lugar relevante na formulação

de políticas públicas (WERNECK VIANNA; BURGOS, 2002, 2005).

Sob essas circunstâncias, o sistema da Justiça, seus juízes e de-

mais agentes, entre os quais os defensores públicos, passam a cum-

prir funções de engenheiro social ou de terapeuta, quando não o de

prestadores de serviços de cidadania, como nos casos dos juízes das

Varas de Infância e Juventude e das caravanas volantes dos Juiza-

dos Especiais no interior do país.

Assim, a partir de 1989, criou-se um sem-número de leis (de pro-

teção aos portadores de deiciência física; a tutela jurisdicional os

interesses dos investidores do mercado de valores mobiliários; o Có-

digo de Defesa do Consumidor; o Estatuto da Criança e do Adoles-

cente; a Lei Orgânica da Saúde; a Lei de Proteção ao Idoso e a Prote-

ção das Minorias Étnicas; a Lei das Águas; a que regulou os Planos

Privados de Saúde; o Estatuto da Cidade; o Estatuto do Idoso etc.).

A projeção do papel do Judiciário na vida social ainda se torna

mais compreensiva com as leis que vão tratar dos temas da improbi-

dade administrativa e da responsabilidade iscal, incorporando o

controle da Administração Pública ao sistema de proteção dos inte-

resses difusos e coletivos. Com isso, faculta-se à sociedade o exercí-

cio do controle sobre atos da Administração, quer pelas vias da Ação

Civil Pública, quer pelas das Ações Populares.

Essa poderosa malha que recobre a sociedade quase inteira, esti-

mulando a ampliação dos mecanismos da representação funcional e

facilitando à cidadania o acesso a ela – exemplares disso a airmação

institucional da Defensoria Pública e a proliferação dos Juizados Es-

peciais –, além de resultar na legitimação da judicialização da políti-

ca, tem ensejado a aparição de um personagem novo na cena repu-

blicana: as associações de magistrados. Essas associações, em

particular a Associação dos Magistrados Brasileiros (AME), antes

668 Luiz Werneck Vianna

Page 70: O 2014 que nos espera

meras instâncias de demandas corporativas, crescentemente se com-

portam como mais um ator da esfera política, visando atuar direta-

mente no debate sobre a formação da opinião pública, no que já riva-

lizam com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por décadas o

canal mais expressivo da opinião das proissões jurídicas.

Essa inédita emergência do Poder Judiciário não se tem feito sem

problemas. Em primeiro lugar, na forma do que se tem sustentado,

porque essa emergência não resulta da sua obra, mas do legislador.

Foi ele quem, ao sentir a erosão do espaço republicano, coniou a de-

fesa dos interesses e direitos aos diretamente envolvidos, pondo-lhes

à disposição instrumentos jurídicos, a im de que pudessem exercitá-

-la. Em segundo lugar, porque foi exposto à pratica do novo texto

constitucional em questões altamente sensíveis, como as que envolve -

ram o chamado processo de privatização de empresas estatais. Nem o

magistrado, nem a sociedade estavam preparados para mudança de

tal envergadura. Contudo, após vinte e cinco anos de experiência,

quer com origem no vértice do sistema, quer no magistrado singular,

se foram sedimentando decisões e interpretações que vieram a confor -

mar o Judiciário como um novo ator da pol ítica brasileira.

A reação a essa presença do Judiciário, incômoda, sobretudo em

matérias econômico-inanceiras, achou seu mote na denúncia de

sua pesada e antiquada estrutura burocrática e da inaceitável moro-

sidade do seu processo decisório, agravada pela revelação de casos

de corrupção entre magistrados, culminando, após intensa campa-

nha, na aprovação da Emenda Constitucional nº 45, que disciplinou

o controle externo da magistratura. Entre os efeitos já conhecidos da

nova lei, desde os positivos, como maior racionalização da adminis-

tração do sistema judiciário, o mais inquietante tem sido o da impo-

sição do primado do seu vértice, em particular o Supremo Tribunal

Federal, cujo presidente também preside o Conselho Nacional de

Justiça, e o Superior Tribunal de Justiça, sobre a base da magistra-

tura singular, com óbvias repercussões sobre a criatividade interpre-

tativa do sistema como um todo.5

Se uma das expectativas da emenda constitucional era a de que

os tribunais superiores manifestassem maior moderação em face do

poder político, ao menos até aqui ela se frustrou. O STF chegou a

conhecer ações, cujo objeto dizia respeito a questões regimentais do

Poder Legislativo, e recentes decisões do Tribunal Superior Eleitoral

mal disfarçam a presença de um juiz legislador. Além da sua desen-

5 As razões da reação da magistratura ao tema do controle externo está discutida no

excelente Justiça em Mutação, de Luíz Fernando Carvalho, 2008.

A Carta de 1988 e a nossa tradição republicana 669

Page 71: O 2014 que nos espera

voltura na assunção de papéis políticos, ocupando lugares vazios

deixados pelo Legislativo, o STF se tem comportado como uma ag ên-

cia de legitimação da judicialização da política, tal como se atesta

nos seus julgamentos de Ações Diretas de Inconstitucionalidade.6

A densa presença do Judiciário, entretanto, não tem motivado

reações da representação política, boa parte dela, à direita e à es-

querda, com tradição de recorrer a ele nas suas controvérsias – as

Adins, o caso ilustre –, e mesmo em muitas das suas iniciativas po-

líticas, como frequente no tema ambiental, quando atua em sintonia

com o Ministério Público em Ações Civis Públicas. Até aqui não se

conhece a denúncia de ―governo de juízes‖, comum em outros con-

textos nacionais, e a representação política tem dado claros sinais de

que, pragmaticamente, admite a emergência da representação fun-

cional. Mas a questão da relação entre essas duas representações é

complexa e sensível demais, e, embora as ciências sociais brasileiras

já tenham acordado para a necessidade de uma forte relexão sobre

ela, estamos ainda muito longe de descortinar um caminho coniável

para o seu enfrentamento.

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1995.

6 Para um estudo monográico sobre as Adins, ver "Dezessete anos de judicialização

da política", de Werneck Vianna, Burgos & Salles, Funda ção Astrojildo Pereira/Ce-

des, 2007.

770 Luiz Werneck Vianna

Page 72: O 2014 que nos espera

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A Carta de 1988 e a nossa tradição republicana

771

Page 73: O 2014 que nos espera

O acesso à Justiça Social

Dimas Macedo

dos fundamentos do Estado democrático de Direito. A sua

dimensão substancial tem se imposto qual a exigência das

políticas públicas que mais alto se elevam, na seara do planejamento

e da democracia participativa.

A garantia constitucional do acesso ao Poder Judiciário não ex-

pressa, necessariamente, uma igualdade material de condições da-

queles que aspiram à proteção do Direito em um mundo povoado de

desestruturas e desigualdades.

A Constituição de 1988, por apontar para as novas exigências do

Direito, mostra-nos o quanto avançamos na criação de um discurso

jurídico que aponta para uma pragmática emancipatória, mas tam-

bém deixa claro que os Direitos Fundamentais não estão no seu texto

apenas para serem compulsados.

Urge a sua concretização, especialmente enquanto Direitos Hu-

manos que não admitem o seu coninamento, nem a sua posterga-

ção, nem a sua violação, sob qualquer pretexto, porque inadiáveis as

suas necessidades e a positivação da sua concretude.

Muitas são as garantias processuais, institucionais e materiais

de Direitos albergadas pela nossa Carta Magna, mas nenhuma delas

se equipara em importância ao instituto da Defensoria Pública, a

primeira entre todas as garantias, e o único, entre todos os órgãos do

Estado, a quem foi coniada a missão de proteger a vida e as neces-

sidades mais elementares do sujeito.

Antes de qualquer discussão acerca da Defensoria Pública, im-

porta que possamos dirigir para ela um olhar diferenciado. Não se

trata de instituição imparcial, assim como o Poder Judiciário, ou de

órgão de defesa da sociedade ou Estado, tais como o Ministério Pú-

blico ou as Procuradorias dos entes federados.

Ela, ao contrário, se expressa qual a reivindicação mais alta da

cidadania, e qual a instituição social de maior alcance, a quem a Cons -

tituição entregou a missão de lutar pela dignidade dos espoliados pelo

capital e pela violência decorrente das artimanhas do poder.

772

O acesso à Justiça Social, na pós-modernidade, constitui um

Page 74: O 2014 que nos espera

Tem, assim, uma missão genuinamente política, e acentuada-

mente voltada para a sociedade, apesar de ser vista como um órgão

do Estado, e para alguns qual um órgão do Executivo, às vezes muito

dócil à vontade do governo que está de plantão.

Não é raro associar-se a Defensoria Pública com a problemática

dos Direitos Humanos, porque se impõe que estes últimos sejam

concretizados, e reairmados pelo segmento social mais próximo do

atraso e das necessidades de maior relevância.

Os pobres, os excluídos da comunhão social, os perseguidos pelo

aparelho policial, os desalojados das suas moradias pelo aparato da

força e pela insensibilidade do Poder Judiciário constituem o exército

do humanismo que clama pelos Defensores Públicos que, às vezes,

se organizam sob o comando de juízes ou de servidores judiciais

inescrupulosos, e se esquecem de servir à causa da Justiça.

A missão da Defensoria Pública é a maior de todas as existentes

no universo do Direito, porque é a forma mais abnegada de exercício

do Ministério Público, fazendo com que este seja a instituição que

mais se distingue no plano social.

Seu princípio básico e suas linhas de atuação estão amplamente

consagrados no Brasil, quer pela Constituição Federal de 1988, quer

pelas leis orgânicas estaduais, quer pelas Constitui ções dos entes fede-

rados, não dependendo, portanto, da vontade dos detentores do poder.

A sua estrutura orgânica não é ou nunca poderá ser superior à

sua missão de servir aos desamparados ou de concretizar o seu de-

siderato normativo e os seus objetivos sociais.

O papel da atuação judicial e extrajudicial da Defensoria Pública,

a sua mediação comunitária, a sua legitimação coletiva, como forma

de realização do Acesso à Justiça, e a necessidade de humanização

da sua prática corporativa são situações que devem ser repensadas

pelos operadores do Direito, e especialmente pelas Políticas Públicas

em defesa da sua identidade.

Não é a aplicação das leis pelo Poder Judiciário aquilo que, na

pós-modernidade, melhor aquilata a concretização do Direito. A sua

pragmática é, nos dias de hoje, um valor ainda mais alto. E é a partir

desta que devemos avaliar o desempenho da Defensoria Pública e a

sua correlação com os Direitos Humanos.

Vale a pena, pois, apostar nessa correlação, porque os Direitos

do Homem e a Democracia já não funcionam como retórica de sa-

lão. Pelo contrário, a dignidade e a luta pelo acesso à Justiça assu-

miram o lugar do desejo e da reparação, na ilosoia e na prática

jurídica da modernidade.

O acesso à Justiça Social 773

Page 75: O 2014 que nos espera
Page 76: O 2014 que nos espera

III. Observatório

Page 77: O 2014 que nos espera

Autores

Fabrício Maciel

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora, com estadia de um

ano de sanduíche na Pädagogische Hochschule Freiburg, Alemanha. Professor adjunto do

Mestrado Proissional em Planejamento Regional e Gest ão de Cidades da Universidade

Cândido Mendes, Unidade Campos dos Goytacazes/RJ.

Maurício Rudner Huertas

Jornalista, é fundador do Movimento Vergonha Nunca Mais, Pela Ética na Política.

Tarcísio Holanda

Jornalista, comentarista pol ítico, entrevistador de programas da TV Câmara, em Brasí-

lia, e vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa.

Page 78: O 2014 que nos espera

Uma antiga e polêmica proposta

Tarcísio Holanda

ves (PMDB-RN) declarou, não faz muito: ‗Plebiscito só cami-

nha se houver consenso. Por isso, temos que fazer carta de

seguro‖. Esta sua manifestação se deu logo depois de a presidente

Dilma Rousseff ter enviado ao Congresso uma mensagem sugerindo

a convocação de um plebiscito sobre reforma política.

Trata-se de algo que divide os partidos. Até os integrantes das

legendas governistas têm-se mostrado hostis à proposta. A perspec-

tiva de uma grave divisão entre os governistas foi que levou o depu-

tado potiguar a imaginar uma alternativa ou ―carta de seguro‖, como

ele mesmo denominou.

No mesmo dia em que chegou a mensagem da presidente ao Con-

gresso, o parlamentar anunciou a criação de um grupo de trabalho

para receber sugestões e elaborar, ―no prazo improrrogável de 90 dias‖

(prazo já estourado), uma proposta de reforma pol ítica, algo bem dife -

rente do plebiscito sugerido pela Presidência da República. O próprio

Henrique deu sua explicação: ―A proposta da presidente Dilma é res-

peitosa, oferece sugestões ao Parlamento. Mas o plebiscito só caminha

se houver consenso. Basta que três ou quatro partidos iquem contra,

para não andar. E nós não podemos icar de mãos atadas‖.

Embora ele preira calar a esse respeito, é notório que pratica-

mente não havia chance de o Congresso aprovar o plebiscito propos-

to por Dilma. É que não existe unidade no bloco governista. Claro

que a queda de popularidade de Dilma, de 57% para 30%, logo após

as mobilizações populares de junho, aumentou a inquietação entre

77

O presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Al -

Page 79: O 2014 que nos espera

os governistas. Além da oposição – PSDB, DEM e PPS – existiam sé-

rias divergências no PMDB, PP, PR, PTB, PSC e PSB. Bastavam essas

resistências para inviabilizar a obtenção dos 257 votos, que são o

quórum de maioria absoluta no plenário da Câmara.

Uma parcela dos deputados governistas tinha mais simpatia pelo

referendo do que pelo plebiscito. Uma outra parte aceitava o plebis-

cito, mas se opunha a que novas regras vigorem nas elei ções de 2014,

como desejava Dilma. Uma terceira corrente achava que cabe ao Le-

gislativo aprovar ou não a reforma política, sem a necessidade de

referendo ou plebiscito. Enquanto isso, novos problemas surgiram,

ampliando as diiculdades. A presidente do Tribunal Superior Eleito-

ral, ministra Carmen Lúcia, promoveu reunião com os presidentes

dos Tribunais Regionais Eleitorais, para ouvir sugestões e responder

às questões de Dilma – de quanto tempo precisaria a Justiça Eleito-

ral para realizar o plebiscito e quanto seria o seu custo.

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello,

também membro do TSE, disse, em entrevista à imprensa, que o ple-

biscito além de ser muito caro era e é também desnecessário, na

atual conjuntura brasileira.

Como se há de convir, a reforma política é um tema demasiada-

mente técnico para ser colocado em um plebiscito. O senador Fran-

cisco Dornelles (PP-RJ), mesmo sendo da base governista, chegou a

ocupar a tribuna da Câmara Alta para se manifestar contra a pro-

posta da presidente da República. Ele, além de classiicar de ―golpe‖

o plebiscito com apenas três ou quatro perguntas, como queria o

governo, sustentou que as questões que teriam de constar do plebis-

cito chegariam a pelo menos 29 perguntas. ―Isso inviabiliza a realiza-

ção do plebiscito‖, sentenciou o senador. Até no PMDB surgiram re-

sistências à tese. O partido dividiu-se e esses problemas icaram

claros na reunião que a Executiva Nacional realizou, antes do reces-

so parlamentar.

Alguns partidos da base governista julgaram conveniente saber o

que pensa a população sobre esses temas. E deram exemplos: a ree-

leição deve ser mantida ou não? E a duração dos mandatos presiden-

ciais deve ser de quatro ou cinco anos? O líder do PMDB na Câmara,

deputado Eduardo Cunha (RJ), julga importante indagar sobre a

preferência por sistema de governo – presidencialismo ou parlamen-

tarismo. Apesar da obviedade da questão e apesar de todas essas

manifestações em sentido contrário, a presidente Dilma decidiu en-

viar a sua mensagem ao Legislativo.

778 Tarcísio Holanda

Page 80: O 2014 que nos espera

Dizem que ela foi redigida pelo vice-presidente Michel Temer e o

ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. O presidente da Câma-

ra, deputado Henrique Eduardo Alves, depois de um encontro priva-

do com Dilma, achou o texto da proposta vi ável, ao mencionar os tr ês

itens principais: inanciamento de campanha, sistema de votação e

suplente de senador, apesar de que, como é de todos sabido, a pro-

posta divide os aliados do Palácio do Planalto.

O deputado Henrique Eduardo Alves tentando equilibrar a situa-

ção chegou a declarar: ―Precisamos fazer um mea culpa. Tentei votar

a reforma política em abril e não consegui aprovar nenhum item. Não

dá para evitar esse debate agora. Nesse tema, nós falamos muito e

fazemos pouco. Precisamos reconhecer isso ‖.

O senador Aécio Neves, presidente do PSDB e candidato a presi-

dente da República, em 2014, também fez suas críticas a essa pro-

posta, que nasceu como uma forma de dar uma das respostas à re-

belião das redes sociais e das ruas, desencadeada em junho último.

Recordou que Dilma só falou em reforma política no seu discurso de

posse, em janeiro de 2011. ―Nesses dois anos e meio de governo, o

país não teve o prazer de saber o que pensa a presidente sobre esse

tema‖. Cumpre lembrar que o Congresso Nacional vem tentando vo-

tar uma reforma política prá valer desde 1946 até o Golpe de 1964, e

de 1989, em diante (quase meio século), e todas as tentativas

fracassaram.

Lamentavelmente, mesmo sabendo do desgaste à imagem do Le-

gislativo que um arremedo de reforma – como o que deverá ser discu-

tido e aprovado até o inal do ano – poderá provocar na opinião pú-

blica, sobretudo nos setores melhor informados, as duas Casas do

Congresso continuam insistindo em elaborar o que designam como

―reforma eleitoral‖ e tentarão transformá-la em lei, para dar uma

ideia de ―missão cumprida‖.

Uma antiga e polêmica proposta 779

Page 81: O 2014 que nos espera

O enigma do Porto do Açú

Fabrício Maciel

nanceiro contemporâneo, a mídia vem difundindo e confun-

dindo o público nacional sobre o grande fenômeno vivido na

região norte luminense, a construção do complexo logístico e in-

dustrial do Porto do Açú. O mega empreendimento, maior na propa-

ganda do que na realidade, ocorre na pequena cidade de São João

da Barra, em sua praia do Açú, de onde advém o nome do porto.

O grupo empresarial liderado por Eike Batista, cuja marca conhecida

é a letra X, bem como seus parceiros internacionais, vêm ganhando

visibilidade na mídia nacional por uma série de frustrações de expec-

tativas prometidas ao público.

A atual fase do capitalismo globalizado é marcada pelo que vários

autores já deiniram como ―dominação do capital inanceiro‖ (BECK,

1997; 2007) e como ―sociedade do conhecimento‖ (GORZ, 2004;

2005). A dominação do capital inanceiro depende de investimentos

que procuram seus lucros sempre em regiões que apresentam lores-

cimento em potencial. As regiões desindustrializadas ou semi-indus-

trializadas, na linguagem dominante sobre o desenvolvimento, são o

principal alvo do capital inanceiro internacional e as principais cé-

lulas do desenvolvimento global do capitalismo. Sem o investimento

em regiões virgens ou semivirgens, nas quais predominam a econo-

mia popular e informal, ou seja, a dimensão comercial do capitalis-

mo, o grande capital inanceiro internacional não pode retroalimen-

tar o desenvolvimento economicamente totalitário.

A ideia de ―sociedade do conhecimento‖ constata o fato de que o

conhecimento cientíico, especializado e tecnológico se torna a força

produtiva dominante nas sociedades contemporâneas (GORZ, 2005).

Ele é o mediador da produção, o produtor da produção e do desen-

volvimento geral do capitalismo, através do desenvolvimento regio-

nal. O conhecimento cient íico, especializado e tecnológico é o grande

aliado do capital inanceiro internacional no desenvolvimento global

contemporâneo. Podemos dizer que esta relação é o novo motor da

história do capitalismo.

880

Como braço fundamental do totalitarismo opaco do capital i-

Page 82: O 2014 que nos espera

A ideia fundamental de desenvolvimento é uma das mais criticá-

veis nas ciências sociais contemporâneas, bem como nas ciências

sociais aplicadas. Entretanto, não podemos fugir dela quando pensa-

mos na questão regional. Sua relação com a perspectiva do desenvol-

vimento social e do desenvolvimento sustent ável é o principal avanço

acadêmico contemporâneo acerca do tema. Uma perspectiva alterna-

tiva de desenvolvimento pode ser pensada nesta direção.

A chegada do capital inanceiro internacional (ou seja, a elite glo-

bal), associada ao conhecimento cient íico, especializado e tecnológico

de ponta (ou seja, o estamento cient íico-tecnológico), como é o caso do

advento do Porto do Açú, não deve ser encarada com um otimismo

acrítico, típico dos defensores ortodoxos do desenvolvimento. Tamb ém

não deveria sucumbir à resistência ideológica, típica de um pensa-

mento mais ortodoxo e de pseudoesquerda. Para tanto, uma nova

compreensão do desenvolvimento, movida por articula ções de ideias e

por pesquisa empírica sistematizada, se faz necessária.

Para David Harvey (2005) e Robert Castel (2003), por exemplo,

uma nova compreensão do desenvolvimento pode advir da constata-

ção de que formas de produção distintas convivem no capitalismo,

articuladas e hierarquizadas. A predominância de cada uma delas

pode ser vista nitidamente nas diferenças regionais, no que o Brasil

é um exemplo emblemático, onde é facilmente vista a convivência e a

interseção hierarquizada entre formas de capitalismo comercial, in-

dustrial e inanceiro.

Diferente da perspectiva evolucionista, que percebe estas formas

distintas de economia nas hierarquias entre Sudeste e Nordeste, ou

entre Brasil e Europa, por exemplo, a percepção fundamental aqui é

que elas convivem articuladas hierarquicamente em todo o espaço

social do capitalismo. A alteração na predominância de cada uma

delas, nos casos regionais, é um das principais características da

mudança social do capitalismo contemporâneo.

No caso do Açú, presenciamos neste exato momento a chegada da

dimensão industrial-tecnológica do capitalismo, guiada por uma for-

ça motora derivada da articulação do conhecimento tecnológico,

cientíico e especializado com o capital inanceiro internacional.

O que chamamos aqui de formas de capitalismo comercial é, em

grande parte, se pensarmos em termos empíricos, sinônimo de ―eco-

nomia informal‖. Com o advento do novo complexo industrial na re-

gião, a primeira perspectiva, tanto aos olhos dos pesquisadores

quanto aos olhos da população, que já está totalmente mobilizada

com o tema, é a de que a economia informal seja paulatinamente

O enigma do Porto do Açú 881

Page 83: O 2014 que nos espera

sucumbida e integrada ao domínio tecnológico-inanceiro, com a ge-

ração de vínculos de emprego formais.

Esta forma de pensamento ainda faz parte de uma perspectiva

clássica sobre a ideia de desenvolvimento. Ela não pode ser descar-

tada, mas pode ser revista e ampliada com investigação teórica e

pesquisa empírica. A ideia de desenvolvimento pode ser (re)discuti-

da, sem reduções ideológicas, se pensada em dois níveis. Primeiro,

trata-se do nível objetivo, ou seja, o advento paulatino e inevitável de

unidades empresariais e tecnológicas, ou seja, as dimensões domi-

nantes da produção, em todas as regiões que apresentem recursos

naturais e localizações geográicas favoráveis aos interesses de tais

unidades empresariais e tecnológicas. Segundo, trata-se do nível

subjetivo, geralmente conhecido como capital humano. Não existe

desenvolvimento e estabelecimento de dimens ões objetivas do desen-

volvimento regional sem o suporte humano qualiicado necessário

para sua execução, suporte este que se divide entre empresários e

trabalhadores portadores de níveis distintos de qualiicação.

Neste segundo nível, pode ser produtiva a análise das mudanças

nos padrões de trabalho e qualiicação predominantes no capitalismo

globalizado contemporâneo. Tais padrões são hoje universais no capi -

talismo, mas precisam encontrar suportes concretos, ou seja, capital

humano, em sua realização regional. Dois princípios se apresentam,

praticamente em toda a literatura dominante sobre o trabalho, como

fundamentais para o estudo teórico e empírico das mudanças estrutu-

rais do trabalho e do fomento de capacidades para o trabalho.

São eles os princípios da lexibilidade e da informalidade das rela-

ções e dos contratos de trabalho. O primeiro foi analisado, a partir do

caso americano, por Richard Sennett (2008). O segundo tem sido tema

de interesse de pesquisadores europeus como Claus Offe (1994), An-

dré Gorz (2004; 2005) e Ulrich Beck (1997; 2007). O ponto central, que

merece discussão teórica e pesquisa empírica sistemática, é que o pro-

cesso de lexibilização e terceirização do trabalho é ambíguo. Ele pode

ser sinônimo tanto de fomento e capacitação para o trabalho quanto

de precarização de condições pessoais para a inserção no mercado.

Um planejamento regional que compreenda desenvolvimento eco -

nômico, social e ambiental como um só processo, ainda que analiti-

camente a ciência possa compartilhar e articular pesquisas nas três

dimensões, pode encontrar no tema das mudanças contemporâneas

nas relações de trabalho um aspecto fundamental para uma agenda

de desenvolvimento. A chegada do complexo industrial no Açú, atra-

vés da instalação do Porto, pelo grupo empresarial de Eike Batista,

882 Fabrício Maciel

Page 84: O 2014 que nos espera

se depara com uma questão fundamental para a realização da ideia:

as condições de vida e de qualiicação da população, dimensões estas

que geralmente se apresentam, na prática, intimamente articuladas.

Um dos principais argumentos para o advento de forças econômicas

objetivas externas a uma região é que a qualidade de vida local seja

um de seus principais efeitos. Isso nos remete à questão das possibi-

lidades de inclusão e exclusão operadas pelo processo.

A análise dos conceitos de lexibilidade e informalidade, bem

como das realidades empíricas às quais se remetem, pode ser um

elemento fundamental para a construção de um planejamento regio-

nal que alcance seus objetivos econômicos, sociais e ambientais. Na

realidade, os conceitos apresentam uma lógica universal da mudan-

ça na estrutura do trabalho contemporâneo, mas também se apre-

sentam como dois lados possivelmente contraditórios da mudança

social pela qual passa o capitalismo global contemporâneo.

A realidade analisada por Richard Sennett (2008), nos Estados

Unidos, e por Ulrich Beck (1989; 1997) na Alemanha, com o conceito

de lexibilidade, se remete à fragmentação das relações do ―trabalho

em equipe‖ entre funcionários qualiicados de grandes empresas. Por

outro lado, a ideia de informalidade, analisada também por Ulrich

Beck e por André Gorz (2004) se remete a dimensões desqualiicadas

desta realidade, ou seja, a condição de precariedade de trabalhado-

res desqualiicados, que podem passar para a condição de ―sobran-

tes‖ (CASTEL, 2004) e desempregados diante do processo de terceiri -

zação operado pelas grandes empresas. A informalidade também se

remete ao processo de formação de pequenas iniciativas comerciais e

de prestação de serviços de baixa qualiicação formal nos entornos

econômicos dos grandes complexos tecnológico-industriais, como o

que se instala agora com o Porto do Açú.

Se a região não possuir proissionais qualiicados para todas as

áreas necessárias e em todos os níveis, o que em primeira vista é

nossa impressão, ela precisará gerar possibilidades de qualiicação,

para não ter que importá-los de outras regiões, o que já está ocorren-

do. Apenas este dado já é suiciente para uma alteração signiicativa

do metabolismo social da região. A pergunta fundamental nesta dire-

ção é se o capital humano local se encontra minimamente preparado

para ocupar os postos de emprego ou enfrentar os processos prévios

de qualiicação. A resposta provisória é não.

Por outro lado, um planejamento regional comprometido social-

mente precisa também procurar prever possíveis efeitos negativos do

advento do complexo industrial. Se parcelas signiicativas da popu-

O enigma do Porto do Açú 883

Page 85: O 2014 que nos espera

lação do norte luminense não apresentarem condições mínimas

para se qualiicarem, ou se precisarem modiicar profundamente seu

―habitus local‖ (BOURDIEU, 1979) em nome de uma readaptação,

pode ser que o metabolismo social em questão modiique as condi-

ções e possibilidades de trabalho de parte da população. Este efeito

não é necessariamente ruim.

A sociologia do trabalho brasileira apresenta vários exemplos do

desenvolvimento de entornos econômicos informais diante do advento

de complexos industriais. Os trabalhadores de baixa ou nenhuma

qualiicação formal que não conseguem se qualiicar e se inserir em

postos de trabalho formais e regulares dentro do complexo podem se

adaptar em seu entorno e desenvolver uma economia informal inter-

dependente, cujos resultados podem ser uma melhora relativa de vida.

Esta é uma hipótese central da pesquisa a ser investigada com o de-

senrolar do processo de implantação do complexo, já em andamento.

Com a implantação paulatina das empresas ―mães‖ (GORZ, 2004),

ou seja, o grupo pertencente a Eike Batista, e das prestadoras de ser-

viço, deve ser observada a alteração no quadro de ocupações ofereci-

das na cidade e na região. Este quadro de necessidades precisa ser

confrontado com um banco de dados da qualiicação da região, de

modo a se analisar o atendimento direto a necessidade empresarial e

a se analisar o que fazer com a possível carência ao preenchimento

das vagas. Este tipo de levantamento exige a observação sistemática

de demanda e de oferta de qualiica ção na cidade e na região, de modo

a oferecer um quadro atual e um confrontamento futuro.

Dai é possível levantar expectativas, sonhos quanto o futuro, prá-

ticas de consumo e a perspectiva pessoal diante das condições pro-

issionais da região. Este panorama de opinião pode ser valioso para

empresas que desejem com o tempo ampliarem seus quadros, para

poderes políticos que desejem fomentar o capital humano da região,

em vista de seu desenvolvimento pleno, bem como para instituições

de ensino tanto privadas quanto públicas que desejem oferecer cur-

sos de qualiicação e capacitação proissional.

No geral, a implantação de um empreendimento de tamanha na-

tureza exige um conhecimento ampliado sobre o peril dos trabalha-

dores que pode ser decisivo na formação de quadros proissionais

produtivos e de quadros empresariais integrados. Sem esta visão re-

gional embasada cientiicamente, se torna difícil um desenvolvimen-

to empresarial lucrativo articulado a um desenvolvimento social,

econômico e sustentável.

884 Fabrício Maciel

Page 86: O 2014 que nos espera

Todos os autores citados, que se debruçaram sobre o tema da le-

xibilidade e da informalidade, ou seja, as duas principais marcas da

mudança social na lógica do trabalho contemporâneo perceberam um

mesmo aspecto fundamental sobre o tema. Sem proissionais qualii-

cados e satisfeitos com suas perspectivas de futuro, be m como empre-

sários integrados ao novo processo de expansão, não existe progresso

econômico e social no novo capitalismo inanceiro no qual vivemos.

Se isso será possível, apenas a pesquisa empírica em médio prazo

poderá mostrar, acompanhando em tempo real as mudanças em cer-

ta medida imprevisíveis do empreendimento na região. Nesta dire-

ção, a pesquisa social e empírica, em parceria com outras áreas do

saber cientíico, pode oferecer uma contribuição decisiva, uma vez

que conhecer os empresários e os trabalhadores contemporâneos se-

ria o primeiro passo para uma compreensão maior. Esta seria o en-

tendimento cientíico e político acerca da reestruturação tecnológica

e do advento da dominação inanceira, materializada na implantação

do porto, o que signiica conhecer e antecipar o futuro da região.

Referências

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Verlag, 2007.

______. Was ist Globalisierung? Frankfurt am Main: Suhrkamp

Verlag, 1997.

BOURDIEU, P. A distinção. Crítica social do julgamento . São Paulo:

Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007.

______. O camponês e seu corpo. Revista de Sociologia e Política, n

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CASTEL, R. From Manual Workers to Wage Laborers: transformation

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GORZ, A. Misérias do presente, riqueza do futuro. São Paulo:

Annablume, 2004.

______. O imaterial. Conhecimento, valor e capital. São Paulo:

Annablume, 2005.

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OFFE, C. Capitalismo desorganizado . São Paulo: Brasiliense, 1994.

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Fluminense? Petróleo, Royalties e Região, Ano XII, n. 26, 2009.

SENNETT, R. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 2008.

O enigma do Porto do Açú 885

Page 87: O 2014 que nos espera

Terceira gaveta, no canto esquerdo

Maurício Rudner Huertas

Documentos divulgados pelo ex-funcionário da inteligência ame-

Da presidente Dilma Roussef à chanceler Angela Merkel, da Pe-

trobras ao Papa Francisco, ninguém escapou dos tentáculos da es-

pionagem deste Big Brother da vida real, com métodos que nivelam

Obama a Osama, rebaixando o até então festejado líder global ao

patamar do terrorista número 1 do mundo, inimigo da liberdade e

da democracia.

O Brasil ainda engatinha nesses avanços tecnológicos, que ser-

vem tanto para o bem quanto para o mal. A reboque dos aconteci-

mentos, o governo brasileiro inge indignação para implementar o

marco regulatório da internet. Pura canastrice. Ainal, está no DNA

petista o desejo de regular tudo – Estado, mercado, mídia, sociedade

– e submeter-nos todos aos interesses do partido dominante. Como

nunca antes na história deste país...

Que exista uma lei para regulamentar os princípios, as garantias,

os direitos e deveres de quem usa a rede, é justo e necessário. Mas

qual o limite do papel do Estado neste marco civil? A simples regula-

mentação dos serviços prestados ou o controle absoluto (econômico,

social, jurídico e político) de temas como a neutralidade da rede, a

privacidade, a retenção de dados, a função social da internet e a res-

ponsabilidade civil e criminal de usuários e provedores?

Quem decide, ainal, o que é certo e o que é errado na internet?

Esse Congresso isiológico que vota em função do espaço loteado no

governo, que não cassa deputado preso, que tenta calar os partidos

de oposição, que desrespeita princípios constitucionais básicos e

despreza direitos garantidos, além de parecer autista às principais

reivindicações das redes, das ruas e das urnas?

O histórico da mão pesada do Estado no controle das liberdades

individuais e coletivas, além de representar uma constante ameaça

886

ricana Edward Snowden indicam que o governo dos Estados

Unidos realizou operações de vigilância em massa no mundo

todo – incluindo países aliados e potenciais inimigos, sem exce ção.

Page 88: O 2014 que nos espera

às conquistas democráticas e republicanas no Brasil, traz inúmeros

exemplos negativos da sobreposição de interesses particulares aos

interesses da maioria.

Mas o risco latente é sempre o mesmo: o lobby de setores econô-

micos e políticos, que também se sobrepõe à vontade da sociedade, e

o exagero no rigor do centralismo governamental. E aí proliferam

indistintamente esses marcos regulatórios, seja o já citado da inter-

net ou o das comunicações, da energia, da saúde, da educação etc.,

nem sempre garantindo a melhor qualidade na prestação dos servi-

ços de utilidade pública, mas certamente atendendo aos desejos do

partido dominante e à sua base de sustentação.

―É a política, idiota!‖, deveria ser a primeira lição de qualquer

cartilha básica de marketing. Tudo gira em torno da conquista ou da

manutenção do poder. Aquele objetivo que justiica ―fazer o diabo‖

para ganhar uma eleição, como ensina a presidente Dilma Roussef,

para delírio da milícia petista e desgosto de quem se opõe a esses

métodos deploráveis da velha pol ítica.

Mas, enim, os recentes acontecimentos expõem detalhes inacre-

ditáveis da espionagem patrocinada pelos governos no mundo intei-

ro: do presidente norte-americano, o democrata Barack Obama, ao

prefeito de São Paulo, o poste Fernando Haddad, surgem notícias de

grampos, escutas, investigações.

Se bem que o nosso exemplo doméstico não tem o requinte tecno -

lógico nem o charme dos grandes espiões. Aqui no Brasil, os caçado-

res de corruptos se confundem com a caça desde os tempos de Fer-

nando Collor – e, não por acaso, ele próprio, além de igurinhas

emblemáticas como Maluf, Sarney, Renan, Feliciano, Delin, mensa-

leiros, igrejeiros, ruralistas e uma inindável lista de políticos ―tradi-

cionais‖ (no pior sentido do termo) compõem a coalizão governista do

chamado ―lulopetismo‖ .

Vale esta citação para um rápido exercício mental: imagine

agora se tivéssemos acesso a uma escuta das conversas entre a

presidente Dilma e esses aliados do governo... (pausa)... Não, me-

lhor nem imaginar. Ninguém merece. Faria corar porteiro de casa

de tolerância.

O último caso de espionagem à brasileira que veio a público e

desperta atenção tem como protagonista Fernando Haddad. Se ele

não tiver sucesso à frente da Prefeitura de São Paulo, como tudo in-

dica diante da lambança que vem promovendo na cidade, já pode

investir no pastelão ou em séries de realismo fantástico. Quem sabe,

Terceira gaveta, no canto esquerdo 887

Page 89: O 2014 que nos espera

até suceder Maxwell Smart, o famoso ―Agente 86‖, ou o impagável

Inspetor Clouseau.

Porém, antes, Haddad precisa deinir melhor o seu personagem:

é o ―xerife‖ no combate pessoal e incansável à corrupção na Prefeitu-

ra de São Paulo, colocando até dinheiro do próprio bolso para inves-

tigar e caçar os malfeitores, ou é aquele que icou sabendo de tudo

―pelos jornais‖, para não se comprometer?

Há, aqui, uma contradição gritante. Aliás, isso já virou rotina

para Haddad. Mas, nesse caso da espionagem brancaleone que levou

à prisão funcionários de coniança do município, o prefeito exagerou:

chegou a acusar que houve ―encenação‖ dos suspeitos nas escutas,

para justiicar tudo aquilo que não lhe convém; como, por exemplo,

a menção de nomes de operadores políticos do PT e seus auxiliares

diretos nas irregularidades.

Ato contínuo, a mídia chapa-branca e a milícia virtual nas redes

sociais se apressaram em divulgar, naquele tom heroico que só o

lulismo é capaz, que Haddad bancou do próprio bolso um QG de in-

vestigação (alugando pessoalmente um escritório vizinho ao local

onde era repartido o dinheiro público desviado) para promover uma

―escuta ambiental‖ e prender os funcionários corruptos, reforçando o

tradicional marketing petista e um aparentemente involuntário rea-

lismo fantástico de fazer inveja a Saramandaia [novela do dramatur-

go Dias Gomes].

Tudo soa muito estranho, ainda mais quando parte da imprensa

se esforça para associar a corrupção apenas ao antecessor de Haddad,

o ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD), sendo que surgem v ínculos cada

vez mais concretos de lideranças do PT com os funcionários de con-

iança corruPTos, que foram mantidos em seus cargos e até promo-

vidos na atual gestão.

Para piorar, segundo o próprio prefeito e a Promotoria, os pol íticos

citados devem icar de fora das investigações. Como se fosse possível

supor que apenas funcionários do segundo escalão mantivessem um

esquema tão complexo de corrupção na Prefeitura, atravessando di-

versas gestões e desviando pelo menos R$ 500 milh ões dos cofres pú-

blicos. Aham! Acredite se quiser!

Tudo isso posto, eis que surge outra ironia do destino: após 40

anos de vida pública, enquanto este novo esquema de corrupção vem

à tona na Prefeitura de São Paulo, Paulo Maluf é enim condenado

pela Justiça. Sinal dos tempos?

888 Maurício Rudner Huertas

Page 90: O 2014 que nos espera

No país da piada pronta, o deputado Maluf, presidente do Partido

Progressista paulista e aliado do PT nos governos federal e munici-

pal, vai virar ―icha-suja‖ só agora, mesmo depois de inúmeros es-

cândalos e denúncias: que vão da entrega de Fuscas aos campeões

da Copa de 70, passando pelo ―frangogate‖ e pelo propinoduto de

obras superfaturadas, entre outras suspeitas que já lhe custaram

desde uma estadia nada agradável na prisão a uma página de ―pro-

curado‖ no site da Interpol.

Incrível a semelhança entre os postes de Maluf e de Lula: há exa-

tos 15 anos estourava outro escândalo famoso na Prefeitura de São

Paulo, a ―Máia dos Fiscais‖, que culminou com o afastamento tem-

porário do então prefeito Celso Pitta (que também seria preso dez

anos depois), a cassação e prisão de vereadores da base maluista.

Bom, deixa pra lá... Não vamos voltar ao passado, nem entrar nos

detalhes desses casos de corrupção na política. Tratemos do assunto

da espionagem e das tecnologias que estão acabando com a privaci-

dade de qualquer cidadão no mundo inteiro.

A verdade é que todo mundo tem um pouquinho de inveja de

Edward Snowden, Glenn Greenwald, Julian Assange & cia. Nós, jor-

nalistas, queríamos ser um deles. E, os políticos, ter um a serviço.

Do Deep Throat, do Watergate, aos escândalos tupiniquins (men-

salão do Lula, pasta rosa, aloprados, anões do Orçamento, impeach-

ment do Collor, compra de votos para a reeleição de FHC, Rosegate,

assassinato dos prefeitos do PT etc.), passando por todas as opera-

ções com nomes insólitos da Polícia Federal, CPIs encerradas e en-

terradas, fraudes em licitações e todo tipo de denúncias e suspeitas,

há sempre um grampo ou um dossiê na história.

Mal comparando, é quase como a polêmica das biograias não

autorizadas. Todo mundo gosta, desde que não fale de si próprio,

mas do outro.

A Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) é o SNI

que deu certo. No lugar dos nossos arapongas atrapalhados com bloco

de anotações, gravador e máquina Polaroid, um bando de nerds bisbi-

lhota a sua vida e a minha sem sair da frente do tablet. São os biógra-

fos não autorizados, verdadeiros black blocs da intimidade alheia.

―O que você faz quando ninguém te vê fazendo, ou o que você

queria fazer se ninguém pudesse te ver?‖, brinca o rock do Capital

Inicial. É o hino do mundo moderno. O GPS do carro ou a antena do

celular localizam cada um de nós no mapa mundi a cada segundo.

Sem carro ou celular, não use o bilhete único, porque a central de

Terceira gaveta, no canto esquerdo 889

Page 91: O 2014 que nos espera

transporte saberá em que ônibus você está. A empresa do vale refei-

ção tem a sua rotina diária de almoço, café e jantar. O cartão do

banco conhece suas preferências, gosto pessoal e extravagâncias.

Saia à rua bem alinhado, porque as câmeras de segurança das

casas, do comércio e do controle de tráfego vão te lagrar em todos os

ângulos. Sorria 24 horas por dia, porque você estará sendo ilmado.

E, se cometer alguma ilegalidade, vá em 10 minutos ao Youtube ou

no telejornal, em horário nobre, para conferir as imagens. Corta pra

18: você estará lá!

Facebook, Google, Microsoft, Yahoo, e -mail, Whatsapp, telefone,

Twitter: não há senha, criptograia ou mal de Alzheimer capaz de

fazer esquecer algum detalhe da sua rotina. Tudo estará devidamen-

te arquivado na memória coletiva. Na nuvem, a virtual, que aproxima

o céu do inferno de maneira impressionante. E me retorna à lem-

brança, ideia ixa, a presidente Dilma dizendo que ―vale fazer o diabo

para ganhar a eleição‖. Só por Deus!

Na cartilha do marketing de guerrilha petista, vale tudo: uma li-

ção virtual recente, daquelas que causam a chamada ―vergonha

alheia‖, foi colocar a presidente Dilma Roussef por mais de uma hora

interagindo com a sua paródia no twitter, a Dilma Bolada. Tudo de-

vidamente registrado e oicialmente divulgado para marcar o retorno

de Dilma – a original – às redes sociais.

A receita: pegue uma presidente com fama de gerentona, sem ne-

nhuma pitada de carisma e empatia, em baixa nas pesquisas, mistu-

re na panela um simpatizante engraçadinho, Jeferson Monteiro, que

imita no twitter e no facebook os trejeitos estereotipados da ―presi-

denta‖, adicione 1 kg de recursos públicos, mais uma dúzia de mili-

cianos virtuais patrocinados com dinheiro do Estado, coloque em

fogo brando e pronto! Sai um factoide prontinho para ser consumido

pela imprensa chapa-branca.

A conta pessoal de Dilma Roussef no twitter estava inativa desde

2010, com quase 2 milhões de seguidores. ―Eu voltei, voltei para icar.

Porque aqui, aqui é meu lugar‖, anunciou a presidente em sua rees-

treia virtual, em setembro de 2013, citando trecho da música ―O Por-

tão‖, de Roberto Carlos, de quem Dilma se diz fã. Por sorte, os inter-

nautas foram poupados do verso ―Meu cachorro me sorriu latindo!‖ .

Mas o rebanho de jornalistas domesticados, militantes e seguido-

res cooPTados estava a postos, destilando o ódio de praxe em 140

toques contra os críticos da ação ostensiva e agressiva do marketing

governamental, como o twitter @23pps.

990 Maurício Rudner Huertas

Page 92: O 2014 que nos espera

Entre outras amenidades, mimimis e tentativas de fazer graça,

Dilma Roussef comentou reportagem da revista The Economist, que

atacou a política econômica do governo, retuitou seu alter ego digital,

que chamou a publicação britânica de ―The Recalconomist‖, e fez

comentários autoelogiosos sobre o Programa Mais M édicos e o episó-

dio de espionagem americana.

O tweet inal foi sobre o suposto passeio de moto que Dilma teria

feito em Brasília, na mais inverossímil vibe de ―rebelde sem causa‖,

que teria ―vazado‖ na imprensa (e tem gente que acredita...). Dilma

Roussef respondeu à Dilma Bolada: ―Sim & me diverti pra valer. Será

que vc tem carteira pra dirigir moto? Se tiver, da próxima vez, pode-

mos atuar no 8º Velozes e Furiosas‖.

Uau, que presidente mais humana, gente! Outra vontade incon-

fessável que ―vazou‖ para a imprensa (essa que trata o publicitário

João Santana como guru iluminado): Dilma também gostaria de dar

umas escapadinhas para namorar... Ahhhh! Cuti-cuti! Que fofa essa

Dilminha (só que não)! Mais fake , impossível!

Já estou até prevendo que no dia 5 de outubro de 2014, quando

eu for procurar o título de eleitor na bagunça do meu quarto, vou

receber um torpedo ou uma chamada no Skype da Dilma Bolada, a

paródia estatizada, com aqueles trejeitos estereotipados: ―Já olhou

na terceira gaveta, no canto esquerdo, meu querido?‖.

Terceira gaveta, no canto esquerdo 991

Page 93: O 2014 que nos espera
Page 94: O 2014 que nos espera

IV. Economia e

Desenvolvimento

Page 95: O 2014 que nos espera

Autores

César Benjamin

Cientista político, jornalista e editor.

Paulo Kliass

Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e

doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

Zander Navarro

Sociólogo e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato:

[email protected].

Page 96: O 2014 que nos espera

A economia brasileira hoje 1

César Benjamin

culo XX foi a de industrializar o país. Ela afrontou a economia

política então predominante, de matriz inglesa, que airmava

que cada país devia se especializar nos setores em que era mais pro-

dutivo. Isso produziria uma otimização do sistema econômico interna-

cional e um aumento geral na renda de seus integrantes. Na prática,

para nós, signiicava perpetuar a condição primário-exportadora.

Houve muitos motivos para rompermos com isso. Destaco apenas

um: a percepção de que, na medida em que a renda das sociedades

aumenta, parcela crescente dessa renda se dirige a bens com maior

conteúdo tecnológico, tipicamente produzidos pela indústria, em de-

trimento dos produtos primários. Logo, com o tempo, as economias

que continuassem centradas nesses últimos disputariam entre si

uma parcela decrescente da renda global. Nessa nova leitura, o sis-

tema internacional não tendia a produzir aumentos gerais de renda,

mas a aprofundar as assimetrias entre as nações.

Para escapar dessa armadilha era preciso fazer um esforço para

alterar a divisão internacional do trabalho, induzindo a industriali-

zação de países periféricos. Tratava-se de produzir uma mutação nas

suas estruturas produtivas, mutação que em larga medida seria feita

contra os sinais do mercado, pois as indústrias nascentes, por dei-

nição, são menos eicientes que as atividades maduras. Isso exigia

1 Roteiro de palestra proferida numa Conferência Nacional Política, promovida em

Brasília, em abril de 2013, pela Fundação Astrojildo Pereira e o Partido Popular

Socialista.

95

Adecisão mais marcante da trajetória econômica brasileira no sé-

Page 97: O 2014 que nos espera

intervenção estatal. A estratégia latino-americana de industrializa-

ção, tal como delagrada depois da crise de 1929, foi conduzida pelos

Estados e denominada substituição de importações.

Desde o início se percebeu que a industrialização retardatária

seria um processo diferente e problemático, com duas áreas críticas:

seria feita com tensões inlacionárias permanentes e sob pressão

cambial, com crises recorrentes no balanço de pagamentos.

A elas, somava-se, no Brasil, uma terceira área crítica: a oferta

de energia.

Como qualquer estratégia de desenvolvimento, a substituição de

importações sempre andou na corda bamba de iniciativas virtuosas

e iniciativas equivocadas. Os principais equívocos, quando ocorre-

ram, foram uma proteção excessiva, indutora de ineiciência, e/ou

uma tolerância exagerada à inlação. Isso frustrou a experiência ar-

gentina, por exemplo, mas no Brasil a resultante do processo foi cla-

ramente exitosa, garantindo um ciclo longo de crescimento.

Chegamos ao im da década de 1970 com uma matriz produtiva

bastante diversiicada e complexa, tendo conduzido a substituição

de importações até os setores básicos, incluindo o petróleo e a petro-

química, e a indústria de bens de capital, ou seja, as fábricas que

fabricam fábricas. Os produtos industriais passaram a predominar

na nossa pauta de exportações, deixando para trás a longa herança

primário-exportadora.

Tivemos também grandes êxitos no tratamento da questão

energética.

Entre as décadas de 1950 (criação de Furnas), 1960 (criação da

Eletrobras), 1970 (criação do sistema interligado) e 1980 (capacidade

de transporte de grandes blocos de eletricidade em longas distâncias)

criamos um sistema elétrico de âmbito nacional, de base renovável,

seguro e barato. O Brasil assumiu a vanguarda mundial não só no

―hardware‖ (engenharia pesada), mas também no ―software‖ (gestão

e otimização) do setor.

Nos combustíveis líquidos, a Petrobras superou a nossa maldição

de terra sem petróleo ao passar do continente ao mar, na década de

1970, descobrindo a bacia de Campos e assumindo a vanguarda

mundial na tecnologia de prospecção e exploração em águas profun-

das. O Pró-Álcool, por sua vez, começou a substituir a gasolina por

combustíveis renováveis, num processo que deveria chegar ao diesel,

também um projeto pioneiro.

996 César Benjamin

Page 98: O 2014 que nos espera

Criamos as condições para deixar para trás as crises de energia.

No inal dessa longa trajetória havíamos constituído um núcleo

endógeno – nacional – indutor de crescimento e gerador de progresso

técnico. Ele abrangia mineração, logística, petróleo, eletricidade,

bens de capital, insumos básicos, agricultura (incluindo pesquisa

agrícola), siderurgia e aviação.

No im da década de 1970 começa a icar claro que, justamente

por ter sido levada até o limite, a estratégia de substituir importações

tendia a perder fôlego. Começa então o debate sobre a necessidade

de se buscar outra estratégia, que garantisse a abertura de um novo

ciclo longo de desenvolvimento para o Brasil. Duas áreas apareciam

como candidatas naturais à posição de locomotiva: (a) as exporta-

ções, pois o Brasil não desenvolvera uma indústria dotada de ―espí-

rito animal‖ para disputar o mercado mundial; (b) o mercado interno,

que a má distribuição de renda mantivera atroiado.

Esse debate coincidiu com a forma ção do PT, e o atual ministro da

Educação, Aloisio Mercadante, defendia a primeira opção, e eu, a segun-

da. Não era um antagonismo, pois não são posições excludentes; em

larga medida são complementares. Mas havia uma clara diferença de

ênfase em nossas posições. Por muitas razões, eu defendia um novo e

destacado papel para o mercado interno no desenvolvimento brasileiro.

Essa busca de uma nova estratégia econômica foi truncada por

dois motivos principais, um virtuoso, outro problemático.

O motivo virtuoso foi a preponderância, na década de 1980, do

debate político sobre o im do regime militar e a reconstrução de ins-

tituições democráticas.

O motivo problemático foi a gravíssima crise externa que sobre-

veio depois de dois choques do petróleo, na década de 1970, e do

choque dos juros, no início da década de 1980. Eles abrem uma crise

cambial aguda, que logo se transforma em uma crise inlacionária

prolongada e grave, com óbvio efeito paralisante sobre a economia.

Mesmo assim, olhando para trás, podemos ver nessa época ini-

ciativas que gestaram transformações socioeconômicas importantes.

Cito algumas.

Na década de 1970, a extensão da legislação trabalhista e do di-

reito de aposentadoria às zonas rurais (a população brasileira era

relativamente equilibrada entre campo e cidade).

Na década de 1980, a criação de um sistema de seguridade social

muito abrangente, com indexação dos benefícios ao salário mínimo;

A economia brasileira hoje 997

Page 99: O 2014 que nos espera

a importância disso não foi logo percebida por causa do baixo valor

do salário mínimo de então.

Na década de 1990, o início da recuperação do valor do salário

mínimo e dos programas de transferência de renda.

Esses avanços icaram pendentes até que o controle da inlação,

na primeira metade da década de 1990, reabriu o campo de possibi-

lidades da economia brasileira.

O governo de Fernando Henrique começou a recompor o valor do

salário mínimo, com um aumento real médio, acima da inlação, de

4,1% ao ano, durante oito anos. Iniciou, também, os programas so-

ciais. Mas sua marca não foi essa. Foi a íntima associação com o

capital inanceiro internacional, com a apologia da chamada globali-

zação, e o ataque àquele núcleo endógeno (e nacional) que deveria

ser o motor do nosso desenvolvimento. São as marcas que o PT tem

sabido explorar em cada eleição.

Lula assume o governo com a crise inlacionária superada e en-

contra uma conjuntura internacional excepcionalmente favorável.

O Brasil, que havia experimentado choques externos devastadores

nas décadas de 1970 e 1980, experimenta agora um choque externo

benigno, com o boom das commodities. Depois de um começo hesi-

tante, o novo governo organiza sua estratégia econômica em torno do

fortalecimento do mercado interno, por quatro vias principais:

(a) mantém e aprofunda a política de aumentos do salário mínimo,

que cresce em média, em termos reais, 6,2% ao ano, garantin-

do 16 anos de crescimento real e cumulativo, o que conduz o

salário mínimo a um novo patamar;

(b) mantém e expande os programas de transferência de renda;

(c) induz maior formalização do trabalho e garante um discreto

aumento na renda média dos assalariados (cerca de R$ 1.600,00

em 2002, cerca de R$ 1.800,00 em 2010);

(d) estimula o crédito.

Essa combinação obtém enorme êxito político.

Hoje, o ministro Mercadante rebate todas as diiculdades atuais

da economia brasileira, repetindo um mantra: ―Abrimos um ciclo

longo de desenvolvimento centrado no mercado de consumo de mas-

sas‖. Era exatamente o que eu defendia, debatendo com ele no PT, há

cerca de trinta anos.

998 César Benjamin

Page 100: O 2014 que nos espera

A questão, porém, é que não estou seguro de que essa meta tenha

sido alcançada ou de que estejamos nesse caminho. Assim como ti-

vemos experiências vitoriosas e experiências frustradas de substitui-

ção de importações – que, em tese, era uma estratégia correta –, po-

demos ter a mesma coisa no caso do consumo de massas. Em vez de

estar abrindo um ciclo longo de desenvolvimento, podemos estar

construindo um ciclo frustrado. Essa é a questão-chave, a que me

referi no início, que devemos tentar responder.

Os instrumentos usados pelos governos do PT para expandir o

consumo foram positivos, mas são apenas como ―motor de arranque‖

de um novo ciclo. São a parte fácil do projeto. Se outros problemas

não forem enfrentados, o ciclo se frustrará. É o que estou vendo: um

acúmulo de elementos regressivos. Destacarei quatro deles, que são

coerentes entre si, antes de caminhar para a conclusão:

(a) Um mercado interno pujante e dinâmico não pode se basear em

bolsas, aposentadorias e crédito. Ele depende de um mercado de tra-

balho dinâmico, em quantidade e qualidade, que garanta ganhos sus-

tentados na remuneração do trabalhador, os quais, por sua vez, têm

de estar associados à elevação da produtividade. Estamos indo na di-

reção contrária. Os empregos gerados pela economia brasileira con-

temporânea são de baixa qualiicação e baixa remuneração: 85% deles

pagam até 1,5 salário mínimo, praticamente 100% pagam até 2 salá-

rios mínimos. A criação líquida de empregos acima de 3 salários míni-

mos tem sido negativa há muitos anos. A economia brasileira perdeu

a capacidade de incorporar trabalho qualiicado. Temos problemas

pelo lado da oferta (crise recorrente do sistema educacional) e da de-

manda (quem gera emprego é o setor de serviços não vinculado à pro-

dução – balconistas, vigilantes, moto -boys – ou a construção civil). Em

pleno século XXI, a população brasileira está se deslocando para seto -

res de baixa produtividade.

(b) O Brasil está se desindustrializando. O PIB brasileiro, mesmo

crescendo pouco, tem crescido duas vezes mais que o PIB industrial. A

participação da indústria em nossa economia voltou aos n íveis de me-

ados da década de 1940. É uma desindustrialização precoce, desasso-

ciada do crescimento da renda per capita. Como o consumo de bens

industriais continua a crescer, a brecha é coberta por importações.

Voltamos a ter um tremendo déicit comercial na indústria. Estamos

abrindo mão da nossa maior conquista econômica do século XX.

(c) A inserção internacional do Brasil está recuando, com a repri-

marização da pauta de exportações. Como o ciclo de alta das commo-

dities tende a um im – isso já foi muito estudado na literatura –, as

A economia brasileira hoje 999

Page 101: O 2014 que nos espera

contas externas brasileiras enfrentam diiculdades crescentes: o saldo

comercial é fortemente cadente, enquanto o déicit em serviços e ren-

das está em expansão (este é um dos subprodutos da desnacionaliza-

ção da economia). Nosso déicit em conta corrente se aproxima de

3,5% do PIB, o que é alarmante, e pode chegar a 4% nos dois próximos

anos. Pode ser uma posição insustentável.

O governo alega que temos reservas de mais de 300 bilhões de

dólares, mas essas reservas não foram formadas por saldos em conta

corrente, mas sim pela entrada de recursos pela conta de capital. Ou

seja, são a contraface de um passivo externo muito grande, que na

verdade é um múltiplo das próprias reservas. O espectro de uma cri-

se cambial não pode ser descartado.

(d) A infraestrutura brasileira está deixando de ser um problema

para tornar-se uma calamidade. Abandonamos as ferrovias e as hi-

drovias, e a malha rodoviária continua péssima e disfuncional. Esta-

mos experimentando um grande retrocesso na área energética, com

perda de coniabilidade do setor elétrico e destruição das empresas

públicas geradoras, o que nos deixa cada vez mais dependentes de

uma matriz térmica de péssima qualidade. A meu ver, é questão de

tempo voltarmos a enfrentar um racionamento. Nos combustíveis lí-

quidos, a Petrobras enfrenta sérios problemas de gestão, e o setor

alcooleiro vive grande crise.

Esses quatro problemas estruturais reatualizam desaios históri-

cos que o Brasil havia superado, ou estava em condições de fazê-lo,

e convergem para deinir uma trajetória de baixo crescimento. A úni-

ca resposta do governo atual é praticar um keynesianismo vulgar,

com ações pontuais de sustentação da demanda. Ações que já se

tornaram inócuas, pois o parque industrial brasileiro perdeu a capa-

cidade de capturar essa demanda que cresce. Ela, simplesmente,

vaza para o exterior, sob a forma de aumento das importações. É o

que explica termos uma economia quase estagnada e uma sensação

geral de bem-estar, que nos paralisa.

Falar hoje em abertura de um ciclo longo é muito otimismo. So-

mos uma economia de baixo crescimento, e pelo menos duas áreas

podem provocar uma crise aguda nos próximos anos: a oferta de

energia e as contas externas.

Esses quatro problemas têm muita coisa em comum: são difíceis,

exigem planejamento sério e continuidade político-administrativa em

prazos longos. Por isso, o Estado e a sociedade brasileiros não estão

à altura de enfrentá-los. Hoje, só duas coisas fazem funcionar as

instituições do Estado: ações de marketing e corrupção. E o horizon-

100 César Benjamin

Page 102: O 2014 que nos espera

te de expectativas da sociedade está rebaixado: o povo brasileiro quer

consumir, não muito mais do que isso. São componentes estruturais

do atual arranjo político brasileiro, o chamado lulismo: isiologia no

Estado e apatia na sociedade. Abandonamos a ideia de construir

uma nação e transformamos a política em caridade. Não somos ca-

pazes de conduzir nenhum projeto dotado de alguma complexidade e

sustentá-lo no tempo.

Isso contamina o próprio debate econômico, que permanece cen-

trado no tripé dos juros, do câmbio e da política iscal. Manejando

essas variáveis, podemos buscar combinações mais ou menos virtu-

osas, mas nenhuma delas resolverá as nossas grandes questões.

Lembro o grande economista Ignácio Rangel, citando-o de cabe-

ça: ―O desenvolvimento é mau para quem opta por ele. Só povos que

se dispõem a fazer grande esforço e pagar alto preço conquistam o

direito ao desenvolvimento‖.

Foi essa capacidade que perdemos. O Brasil se transformou em

uma nação de vontade fraca e, assim, perdeu o direito ao desenvolvi-

mento. Parece que continuará assim, até que uma crise desarrume

esse arranjo perverso.

A economia brasileira hoje 101

Page 103: O 2014 que nos espera

Impostômetro, sonegômetro

e previdência social

Paulo Kliass

capital paulista já se habituaram à cena. No início do Viadu-

to do Chá, no Vale do Anhangabaú, foi instalado um gran-

de painel, que pretende exibir a atualização instantânea dos valores

relativos ao pagamento de impostos em nosso país. Passou a ser

conhecido como o Impostômetro. Foi uma bela jogada de marketing

político, na tentativa de se apropriar do conhecido descontentamento

da população em pagar tributos, ainda mais tendo em vista a pés-

sima qualidade dos serviços públicos oferecidos como contrapartida

pela máquina do Estado.

A iniciativa do movimento coube à Associação Comercial de São

Paulo, uma entidade representativa dos setores mais conservadores

do empresariado paulista. Ali sempre estiveram as origens pol íticas do

movimento conhecido como ―maluismo‖, girando em torno da órbita

do ex-governador Paulo Salim Maluf. O dirigente pol ítico que terminou

icando mais identiicado com a entidade é Guilherme Aif Domingos.

Sua carreira teve início como Secretário de Agricultura do Estado de

São Paulo, em 1980, ainda quando Maluf ocupava o cargo de governa -

dor biônico, indicado pelos militares, na época da ditadura.

Sua igura começou a crescer de importância no jogo das elites e

foi saltitando, de galho em galho, pelas diferentes agremiações parti-

dárias: Arena, PDS, PL, PFL, DEM e, agora mais recentemente, o PSD

de Kassab.

Nas eleições de 2010, Aif fez parte da coligação com o partido dos

tucanos, ocupando o cargo de vice-governador de São Paulo, o pri-

meiro na linha de sucessão de Geraldo Alckmin. Em maio último, ao

inal, ele foi nomeado ministro da equipe da presidente Dilma Rous-

sef, ocupando a pasta da Secretaria Nacional da Micro e Pequena

Empresa. Era o ato deinitivo de celebração do ingresso oicial do

partido – recém-criado como um racha do Democratas – na base de

sustentação do governo do PT. Uma acomodação política que criou

um constrangimento considerável no arranjo da política paulista,

102

Os pedestres que costumam caminhar pela região central da

Page 104: O 2014 que nos espera

talvez comparável ao ―abraço amigo‖ de Maluf em Haddad, às véspe-

ras das eleições para a prefeitura da capital paulista em 2012.

Fiel às suas origens, Aif é líder daqueles que bradam raivosa-

mente contra a presença do Estado na economia, contra o suposto

excesso de tributos, contra qualquer medida governamental que vá

contra os alicerces de um liberalismo idealizado. Porém, bem de

acordo com as tradições do empresariado tupiniquim, eles gritam

contra o poder público na hora de pagar tributos, mas adoram ma-

mar nas tetas do Estado quando se trata elevar seus ganhos priva-

dos. Benesses públicas são sempre muito bem vindas, desde que a

coleta de recursos para o isco seja efetuada em cima de outrem.

Este é um pouco o retrato do ambiente em que foi criado o ―im-

postômetro‖. Gente que se recusa a contribuir com a sua cota para

manter a nossa república, em que sejam assegurados direitos bási-

cos à maioria da população, tais como saúde, educação, previdência

social e tantos outros. Não! A estratégia é promover um linchamento

em praça pública desse ―vilão‖, representado pelo Estado. Somam-se

os tributos pagos nas esferas municipal, estadual e federal. Pouco

importa se não existe serviço público sem arrecadação de impostos.

O essencial é que ―eu não pague‖!

Ao invés de promover uma discussão a respeito da qualidade do

gasto e das prioridades a serem estabelecidas, a saída demagógica e

oportunista ica sendo a denúncia vazia da ―alta carga tributária‖. Os

números realmente impactam: o total de impostos recolhidos atingiu

a cifra de R$ 1,6 trilhão no ano passado. Ocorre que não há meios

para se montar um Estado em condições de prestar bons serviços

públicos sem a correspondente arrecadação. Daí para articular pres-

sões que acabem com a CPMF, por exemplo, como izeram em 2007,

é apenas um pulo. A saúde perdeu R$ 40 bilhões de uma tacada só!

Ora, tal postura relete, na verdade, o efetivo comportamento de

parcela signiicativa das elites em um país ainda tão marcado pela

desigualdade social e econômica. Trata-se da falta de compromisso e

de engajamento em um projeto de nação que seja inclusivo, demo-

crático e sustentável. E isso se combina ao espírito da impunidade e

ao traço cultural do nosso conhecido ―jeitinho‖. O resultado é a ten-

dência explícita à prática da ilegalidade no ramo empresarial que

graceja por todos os cantos, estratos e setores da sociedade. Isso vai

desde a contratação de força de trabalho em condições análogas à

escravidão até a sonegação de tributos. Ou seja, é o império do vale-

-tudo para aumentar a rentabilidade e o lucro.

Impostômetro, sonegômetro e previdência social 103

Page 105: O 2014 que nos espera

Com isso, ganham expressão também os movimentos que cami-

nham no sentido oposto. Associações, entidades e proissionais que

se preocupam com a questão republicana e com a obrigação que to-

dos os setores e classes sociais têm para contribuir com a manuten-

ção de nossa possibilidade de bem desenvolver políticas públicas

para a maioria da população. Em termos bem objetivos, isso implica

em aceitar a vigência de um pacto social envolvendo política tributá-

ria e capacidade arrecadadora do Estado. Além disso, propõe-se que

tal modelo se articule ao tão necessário aperfeiçoamento da gestão

pública, ao seu dever de realizar a despesa de forma eiciente e com

qualidade. E então nasce um importante contraponto aos liberais de

fachada da Associação Comercial: o ―sonegômetro‖.

A iniciativa foi protagonizada pelo Sindicato Nacional dos Procu-

radores da Fazenda Nacional e vem sendo encampada por outros

setores da sociedade, que se identiicam com a proposta de denun-

ciar o elevado índice de sonegação iscal em nossas terras. A metodo-

logia adotada foi desenvolvida a partir de estudos e pesquisas envol-

vendo a questão tributária em nosso país e a experiência comparada

no plano internacional. A grande contribuição trazida pelo movimen-

to foi trazer à tona aquilo que todos estamos acostumados a viven-

ciar em nosso cotidiano de cidadãos brasileiros. As típicas situações

como ―com ou sem nota?‖, ―precisa de recibo?‖, ―quanto ica sem

declaração?‖, ―só contrato sem carteira assinada!‖, ―será que ele me

quebra esse galho?‖, ―você é que é trouxa de pagar imposto!‖, ―fula-

ninho tem um esquema que é dez!‖, entre tantas outras modalidades

da pequena sonegação. Isso para não falar das grandes jogadas das

grandes corporações e do inancismo, envolvendo a lavagem de ele-

vadas somas de recursos, as operações enormes de remessa ilegal de

recursos para contas nos chamados ―paraísos iscais‖, o contraban-

do explícito corrente em parte das operações de comércio exterior, a

indústria e comércio ilegal das armas e das drogas, entre outros.

Além disso, é importante registrar a característica marcante da

regressividade de nossa estrutura tributária. Isso signiica que a po-

pulação dos estratos de renda mais baixa – os que vivem de seu sa-

lário ou de aposentadoria – terminam por pagar proporcionalmente

mais impostos do que as camadas da parte de cima da pirâmide. Tal

fato deriva da maior concentração da tributação sobre o consumo de

bens e serviços e não sobre a renda, o patrimônio e o capital. Da car-

ga total arrecadada, 75% do valor dos impostos incidem sobre o ato

do consumo ou sofrem desconto na fonte de salários.

Dessa forma, as empresas e os mais ricos contam com o impor-

tante instrumento para reduzir sua contribuição ao isco. Lançam

104 Paulo Kliass

Page 106: O 2014 que nos espera

mão do chamado ―planejamento tributário‖ – eufemismo para buscar

de forma racional e legal mecanismos para pagarem menos impos-

tos. Para tanto ―basta‖ contratar proissionais bem remunerados,

que então se incumbem de tarefa tão especializada.

O ―sonegômetro‖ aponta para uma sonegação estimada em 24%

do total da arrecadação. Isso corresponde a um valor próximo de

10% do PIB. Se utilizarmos as informações relativas a 2012, a soma

do valor sonegado alcançaria R$ 415 bilhões. Trata-se de valor que

não pode ser desprezado e que relativiza um pouco o susto inicial

provocado pela divulgação de nossa carga tributária – 36% do PIB.

Um dos pontos a reter, assim, é que o problema não é tanto de su-

posto excesso de tributos, pois quase 1/4 do que seria devido pelos

contribuintes não é pago. A divulgação da carga sonegada coloca em

questão a dimensão da carga arrecadada e abre o caminho para discu-

tir o modelo atual de tributação. Por exemplo, ica evidente que o cará-

ter regressivo de nossos impostos acaba provocando uma profunda in -

justiça social quanto aos setores tributados. Finalmente, esse debate

também introduz uma relexão a respeito da necessidade de se aperfei-

çoar a qualidade do gasto e dos serviços prestados pelo Estado.

Desoneração e previdência

As informações oiciais sobre o Regime Geral de Previdência So-

cial (RGPS) relativas ao período janeiro-julho de 2013 não apresen-

tam grandes mudanças em relação à tendência do modelo no médio

e no longo prazos. No entanto, a maneira como o tema sempre foi

tratado pelos órgãos da grande imprensa relete uma perspectiva

bastante peculiar de análise da questão da seguridade social. As

manchetes estampam com grande estardalhaço os números catas-

tróicos do ―déicit fenomenal‖, um ―verdadeiro rombo‖ do modelo da

previdência e por aí vai. Assim, por exemplo, o próprio MPS refez

suas contas e reavaliou o tamanho do ―suposto buraco‖ para o total

do ano atual em um valor próximo a R$ 48 bilhões.

O detalhe é que as estatísticas são apresentadas de forma confu-

sa e misturada. O RGPS, na verdade, é composto por dois subsiste-

mas que devem ser compreendidos e analisados de forma diferencia-

da, principalmente se o interesse for o de veriicar a verdadeira

situação do equilíbrio previdenciário. Trata-se de veriicar a dinâmi-

ca particular de: i) o conjunto dos trabalhadores urbanos; e ii) o con-

junto dos trabalhadores rurais. Essa questão metodológica se justi-

ica pela própria história recente do modelo previdenciário no país.

Impostômetro, sonegômetro e previdência social 105

Page 107: O 2014 que nos espera

Os agricultores e assalariados do campo não tinham acesso aos be-

nefícios da seguridade social até 1988, quando a Assembleia Nacio-

nal Constituinte resolveu corrigir essa enorme e lagrante injustiça

social. A partir de então, essa parcela expressiva de nossa população

passou a ser incluída ao RGPS.

Ocorre que, para promover essa reparação de cidadania tão ne-

cessária, teria sido preciso deixar bastante explícita a maneira pela

qual o regime previdenciário recuperaria suas contas compensadas.

Ainal, tratava-se de uma decisão da sociedade brasileira e não faria

sentido promover diiculdades para o modelo de seguridade social

por conta dessa novidade. Isso porque haveria, no mínimo, uma ge-

ração de cidadãos e cidadãs que passariam a receber os benefícios

previdenciários sem que nunca tivessem contribuído para o INSS ao

longo de sua vida laboral. E não pelo fato de que não queriam parti-

cipar: o sistema é que não os aceitava.

Assim, não precisa ser especialista em cálculo atuarial para per-

ceber que o RGPS passaria a ser bem mais solicitado pelo lado das

despesas, pois deveria começar a honrar o pagamento dessas novas

aposentadorias e pensões dos trabalhadores do campo, aumentando

o nível geral de gastos do sistema. E tais despesas não teriam sua

contrapartida do ponto de vista das receitas.

Essa compensação deveria ser efetuada, mês a mês, por meio de

ressarcimento da contabilidade do Tesouro Nacional. Ainal, esse

―desequilíbrio‖ nada tem a ver com a estrutura das variáveis que

mais inluenciam qualquer modelo previdenciário, tais como tempo

de contribuição, idade mínima para requerer benefícios, alíquota de

contribuição e variáveis do gênero.

Tanto isso é verdade que o outro subsistema – o dos trabalhadores

urbanos – sempre esteve como está hoje em dia: muito bem equilibra -

do. Se considerarmos apenas os dados disponíveis para os sete pri-

meiros meses do presente ano, o subsistema dos urbanos apresenta

uma receita total de R$ 161 bilhões, frente a uma despesa total de R$

150 bi. Isso signiica um superávit nas contas equivalente a R$ 11 bi.

Além disso, se forem computadas as demais renúncias previdenciá-

rias, o superávit sobe para R$ 25 bi. Longe, portanto, muito longe das

previsões alarmistas sobre eventual ―rombo estrutural‖ no regime.

No entanto, o subsistema dos rurais oferece um quadro bem dis-

tinto, em razão do já mencionado histórico de não contribuições.

A consequência mais imediata é que seu lado de receitas é mais frá-

gil. Para o mesmo período do que foi retratado, o quadro é de uma

arrecadação total de apenas R$ 3,5 bi, face a uma despesa de R$ 44

106 Paulo Kliass

Page 108: O 2014 que nos espera

bi. Esse descompasso de quase R$ 41 bi é que se soma ao superávit

dos urbanos e resulta no tão alardeado ―rombo previdenciário‖ de R$

30 bi entre janeiro e julho. Nada mais falso, portanto.

A tentativa de responsabilizar essa diferença por conta de um

inexistente desequilíbrio previdenciário é de uma irresponsabilidade

atroz. Tanto que mais de 99% dos benefícios pagos mensalmente aos

aposentados e pensionistas rurais é de valor menor ou igual a um

salário mínimo. Não faz sentido que um modelo como esse seja o

bode expiatório dos que propõem insistentemente reformas previ-

denciárias, com o único intuito de promover a privatização desse

enorme volume de recursos que representa o RGPS.

Ainal, é fácil imaginar a voracidade com que o sistema inanceiro

encara um sistema que arrecada e gasta quase R$ 350 bilhões por

ano. Uma das metas mais estratégicas para esse mundo do parasi-

tismo inanceiro é arrancar esse regime previdenciário das mãos do

Estado e convertê-lo em coisa privada, um negócio para ganhar mui-

to dinheiro. Com isso, passariam a geri-lo como uma mercadoria a

mais a ser oferecida na extensa prateleira das agências bancárias, ao

lado de apólices de seguros, títulos de capitalização, talões de cheque

especial, cartões de crédito y otras cositas más.

Como se pode perceber, o nosso modelo previdenciário está em

equilíbrio. Na verdade, ele é até superavitário no momento presente.

O que falta é a institucionalização desse repasse de recursos por par-

te do Tesouro Nacional, para que se tenha um quadro mais efetivo do

balanço entre receitas e despesas do subsistema dos trabalhadores

rurais e não se abra mais brechas para esse tipo de discurso menti-

roso do inancismo.

Como se não bastasse esse tipo de problema a enfrentar, o gover-

no realizou uma outra aposta equivocada e se aventurou pelas tri-

lhas perigosas da desoneração da contribuição previdenciária sobre

a folha de pagamentos. Ao ceder a mais essa antiga reivindicação do

capital, a equipe econômica termina por expor de forma irresponsá-

vel o conjunto do RGPS ao risco de desequil íbrio no futuro. A al íquo-

ta de 20% sobre salários que as empresas devem recolher à Previdên-

cia Social foi substituída por uma receita derivada de outra alíquota

(entre 1% e 2%, variável de acordo com os setores) incidente sobre o

faturamento. Ocorre que o volume de recursos arrecadados por essa

nova fórmula de cálculo tributário é mais reduzido que a antiga con-

tribuição sobre a folha. Regulamento posterior prevê que o Tesouro

Nacional promova uma compensa ção ao RGPS por conta dessa perda

Impostômetro, sonegômetro e previdência social 107

Page 109: O 2014 que nos espera

de receita. Mas o ajuste é incerto e só se efetua a cada 4 meses. Com

isso, a previdência social é claramente prejudicada.

De início, as autoridades governamentais haviam anunciado essa

novidade como uma experiência piloto, bastante pontual e localiza-

da. A ideia era avaliar o impacto da mudança, seja em termos dos

custos das empresas como da arrecadação para os cofres da previ-

dência. No entanto, as pressões se ampliaram e a falta de irmeza do

governo permitiu que a mudança fosse rapidamente generalizada por

muitos setores da economia. Cada vez mais representantes de em-

presários de setores não contemplados com a novidade clamam para

verem suas atividades também incluídas na lista das benesses.

E esse movimento de incorporação crescente de novos ramos à siste-

mática de tributação sobre o faturamento pode provocar um desajus-

te no atual equil íbrio do RGPS.

Há uma série de estudos demonstrando que as iniciativas adota-

das pelo governo de desonerar o capital não tem provocado os efeitos

econômicos desejados. Além da desoneração da folha de pagamen-

tos, houve medidas na área de IR, IOF, IPI, PIS/Coins e outros tri-

butos. Os preços dos produtos e dos serviços não foram reduzidos no

montante que se esperava e o fenômeno mais relevante foi a elevação

da margem de ganho das empresas.

Além disso, outro fato a ser sublinhado é que a estrutura tributá-

ria em nosso país continua com sua característica acentuadamente

regressiva. Isso signiica que as camadas da população que auferem

os mais baixos níveis de renda são exatamente aquelas que mais pa-

gam impostos, em termos proporcionais.

Como a maior parte dos tributos incide diretamente sobre a com-

pra de bens e serviços, os mais pobres recolhem ao isco o mesmo

valor que os ricos quando compram um litro de leite ou um pãozinho

na padaria, quando pagam a fatura de eletricidade ou quando utili-

zam o transporte coletivo. Por outro lado, as alíquotas de imposto de

renda beneiciam os que ganham muito acima dos limites e que con-

tam todo tipo de abatimento no momento da declaração anual. Final-

mente, a resistência em regulamentar o Imposto sobre Grandes For-

tunas soma-se às sucessivas facilidades para renegociar as dívidas

das grandes empresas junto ao isco.

Em suma, a política generalizada e não planejada de desoneração

tributária beneicia muito mais aqueles que dela não precisam. E, no

caso da previdência social, corre o sério risco de promover um desequi -

líbrio em um regime que consegue se manter como pilar importante da

redução das desigualdades e da distribuição menos injusta da renda.

108 Paulo Kliass

Page 110: O 2014 que nos espera

Pá de cal na reforma agrária

Zander Navarro

com a afronta do governo Sarney ao nomear um latifundiá-

rio para o Incra. Naquela década me envolvera no ativismo

a favor da reforma agrária. Não obstante o anúncio pessimista, o

esforço do conjunto de militantes contribuiu para animar a única

política de redistribuição de terras já feita no Brasil, iniciada em

1996. Desde então, em torno de 1 milhão de famílias recebeu suas

parcelas e aproximados 80 milhões de hectares foram arrecadados

para constituir os assentamentos rurais – mais de três vezes a área

de São Paulo.

Mantenho o título acima porque é preciso reconhecer desapaixo-

nadamente o fato, agora deinitivo: morreu a reforma agrária brasi-

leira. Falta apenas alguma autoridade intimorata para presidir a so-

lenidade de despedida. Atualmente a ação governamental nesse

campo é um dispendioso e inacreditável faz de conta, sendo urgente

a sua interrupção.

Muitos motivos feriram mortalmente a reforma agrária, mas al-

guns são mais reveladores. O primeiro é de cristalina obviedade, mas

muitos ingem ignorá-lo: nenhuma política pública é eterna, pois se

conforma às contínuas mutações da sociedade. O tema foi popular

nas décadas de 1950 e 1960, e surpreendeu que na virada do século

o Brasil patrocinasse uma vigorosa redistribuição de terras, um caso

raro no mundo. Mas é particularidade que se esgotou.

Seria sensato manter essa política indeinidamente, quando o anti-

go país agrícola e agrário passou a ser conduzido pela lógica econômica

e cultural das cidades, atraindo os migrantes rurais? A mudan ça espa-

cial de moradia, de trabalho, de formas de vida e tamb ém de mentalida-

des da vasta maioria da população, no último meio século, liquidou a

necessidade de democratizar a distribuição fundiária e sua demanda

sumiu da agenda pol ítica, corroída pela acelerada urbanização.

Outro fator a ser considerado diz respeito às organizações que

demandam reforma agrária, responsáveis pelas pressões que ativa-

109

Usei o mesmo título em artigo publicado em 1986, indignado

Page 111: O 2014 que nos espera

ram esta recente ―bolha‖ redistributiva. O MST agoniza simultanea-

mente ao desaparecimento da reforma agrária, a razão de seu nasci-

mento. Não soube refundar-se nessa nova fase do desenvolvimento

agrário e vai se apagando melancolicamente. Seu consolo é que fará

boa igura nos livros de História. E a Contag, poderosa em razão de

sua capilaridade, insiste na bandeira empurrada somente pela tradi-

ção. Seus dirigentes sabem ser outro o maior desaio: tentar salvar

da desistência os milhares de pequenos produtores ameaçados pelo

acirramento concorrencial instalado no campo.

Uma outra razão a ser considerada decorre do desempenho da

agropecuária no mesmo período, o qual inundou os mercados com

volumes crescentes e, graças ao espetacular aumento da produtivi-

dade, barateou os alimentos. Tal transformação eliminou o velho ar-

gumento econômico da necessidade da reforma agrária e, se a popu-

lação rural mais pobre migrou para as cidades, igualmente a

justiicativa social deixou de existir.

Mas há ainda um aspecto decisivo: oferecer uma parcela de terra

a famílias rurais não produz mais nenhum efeito prático, apenas ga-

rante uma sobrevida temporária. Em nossos dias, chegar à terra pró-

pria nada signiica para os mais pobres do campo. Produzirá a chan-

ce do autoconsumo ocasional, antes do abandono deinitivo da terra,

como evidenciado na maioria dos assentamentos rurais. De fato,

trata-se de dura vilania política, pois, enquanto a miséria no campo

se esconde atrás das muletas das políticas sociais, o governo federal

coleta números destinados meramente ao autoelogio.

Por tudo isso, a reforma agrária brasileira concluiu o seu ciclo de

vida. Do ponto de vista econômico e produtivo, seu f racasso é assom-

broso, pois a área total dos assentamentos é maior do que a área

plantada de todos os cultivos nos demais estabelecimentos rurais.

Mas, com surpresa, nada sabemos especiicamente sobre a produção

dos assentamentos, enquanto a agricultura brasileira se tornou uma

das mais eicientes do mundo. É um confronto estatístico que des-

moraliza qualquer defesa de tal política. Persistir em sua continuida-

de, portanto, beira a completa insanidade.

E o Incra e seu gigantesco orçamento, tornado inútil sob tal desen-

volvimento? O caminho lógico seria a sua extinção, mas talvez fosse

adequado transformá-lo num instituto de terras que realizasse as ―ta-

refas inais‖, como a deinitiva emancipação dos assentamentos, reti-

rando a tutela do Estado, a regularização fundiária ou a organização

das ainda iccionais estatísticas cadastrais que diz compilar.

110 Zander Navarro

Page 112: O 2014 que nos espera

Já o Ministério do Desenvolvimento Agrário, preso à sua anacrô-

nica hibernação, mantém-se impassível ante a notícia acima e perse-

vera em fantasias para justiicar o clamoroso desperdício de vultosos

recursos públicos, na tentativa de realizar o irrealizável. Ainda mais

espantoso, tenta ressuscitar o que já morreu. Resta saber se a auto-

ridade maior do país terá a coragem de inalizar este capítulo de

nossa História.

Distintos são os desaios atuais para criar prosperidade e oportu-

nidades no campo. Requer aceitar que a pobreza rural se resolverá,

sobretudo, nas cidades e com outras políticas. E também que não

existem soluções exclusivamente agrícolas para parte considerável

dos estabelecimentos rurais de menor porte. Portanto, é preciso

construir uma estratégia de desenvolvimento rural radicalmente ino-

vadora. Mas para isso é preciso primeiramente abrir as mentes, pois

a ortodoxia e a ideologização dominantes nos deixam sem rumo al-

gum. Enquanto isso, airmam-se o esvaziamento do campo e a incon-

trastável dominação da agricultura de larga escala modernizada e

integrada aos mercados mundiais.

Eis o nosso futuro rural: uma fabulosa máquina de produção de

riqueza, mas fortemente concentrada, pois seria assentada num de-

serto demográico.

Pá de cal na reforma agrária 111

Page 113: O 2014 que nos espera
Page 114: O 2014 que nos espera

V. Batalha das Ideias

Page 115: O 2014 que nos espera

Autores

Flávio R. Kothe

Professor titular de estética na Universidade de Brasília.

Gian Luca Fruci

Pesquisador de História Política da Universidade de Pisa.

Michel Zaidan Filho

Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),

publicou vários livros sobre a história do PCB (um deles, com o prefácio de Leandro Kon-

der) e organizou coletâneas sobre os fundadores do PCB. É coautor de História do Mar-

xismo no Brasil (Paz Terra, 1991).

Page 116: O 2014 que nos espera

Teologia e política: registros rápidos

Flávio R. Kothe

I. Da democracia representativa

A democracia se funda na suposição da igualdade de todos os

seres humanos, embora se perceba, ao se olhar de perto, que sua

igualdade é a de todos serem diferentes. Quanto mais de longe se

olha, mais iguais se tornam. A igualdade parece resultar de uma fal-

ta de acurácia no olhar, enquanto as diferenças parecem resultar da

ênfase a dessemelhanças que poderiam, de outra perspectiva, passar

desapercebidas. As cláusulas pétreas das Constituições são como

traumas neuróticos: pontos problemáticos, nos quais não se quer

tocar. As demonstrações de rua recentes no Brasil colocaram em

questão a democracia representativa. Com o desenvolvimento da in-

ternet, decisões políticas básicas poderiam ser tomadas pela popula-

ção, cabendo à casta política apenas fazer os detalhamentos, em vez

de ser, não importa qual o regime, instrumento da minoria para su-

gar em proveito próprio o trabalho da maioria.

As aristocracias baseavam-se na crença da desigualdade inata

dos homens. Entre os gregos, acreditava-se que os aristocratas ti-

nham sangue divino, por serem descendentes de algum deus ou deu-

sa, o que lhes daria atributos superiores e o direito a governar, ter

gado, cidades e gente. Esse ―sangue azul‖ derivava de relações sexu-

ais entre seres que se distinguiam por serem mortais os humanos e

imortais os deuses. De resto, eles se pareciam muito, no aspecto físi-

co e no modo de ser. O Olimpo era um espaço reservado a deuses

belos. Os feios estavam condenados às forjas dos vulcões ou eram

expulsos. Nesse paradigma, não haveria espaço para um Cristo cru-

115

Page 117: O 2014 que nos espera

ciicado. Os deuses eram vitoriosos, ainda que alguns pudessem so-

frer derrotas ocasionais.

O cristianismo se propagou, na Roma antiga, com sua ética anti-

tética à do patriciado, como religião dos escravos, que se sentiram

valorizados por crerem ter uma alma imortal, serem criaturas de

Deus, irmãos em Cristo, descendentes de Adão e Eva. Ainda que se

diga que democracia se baseia na crença nessa igualdade e que o

socialismo quis tornar a igualdade um fato social e não apenas um

formalismo jurídico, ica difícil explicar como o cristianismo conse-

guiu conviver durante vinte séculos com a desigualdade social, tendo

a Igreja Católica apoiado aristocracias, monarquias, ditaduras e es-

cravismos. Apoiava e era apoiada por.

II. Do igual e do diferente

Mãe de cinco ilhos, uma avó me disse mostrando a mão: ―Olha

essa mão. Da mesma palma saem cinco dedos, e cada um é diferen-

te dos outros. Assim também é com os ilhos‖. Para quem olhar de

perto, os dedos são bem diferentes; quando olhados de longe, os

detalhes desaparecem e tudo parece igual. Quando estamos domi-

nados por problemas do cotidiano, é bom olhar a noite estrelada,

para ver como eles encolhem enquanto descobrimos nossa peque-

nez e fragilidade.

A matemática, que dá fundamento às ciências exatas, iguala o se-

melhante e esquece a diferença. Dois ninhos com dois ovos cada não

são o mesmo que um ninho com quatro ovos, mas para a matemática

2 + 2 = 4. Ela reduz a realidade ao quantitativo, esquece a qualidade e

que nem sempre uma quantidade igual é equivalente. A origem grega

do termo ―matemata‖ signiicava aquilo que se pode entender e trans-

mitir. Como o mais fácil de contar é a contagem, ―matemata‖ virou

matemática, a lógica formal dos números. Até Deus nos tempos mo-

dernos deixou de ser sarça ardente e uma igura antropomórica para

se tornar a ininitude, um símbolo matemático.

Nietzsche dizia que quando se soma um homem e uma mulher,

muitas vezes o resultado pode ser três ou quatro (como poderia ser um,

zero ou oito). A lógica formal numérica gera contradições. A diferença

entre um e zero parece um, mas, olhando mais de perto, h á uma inini-

dade de números possíveis entre ambos, de maneira que teríamos que

um é igual a ininito. Se ampliarmos o número de lados de um pol ígono,

quando se chegasse à ininidade de lados teríamos uma esfera, que já

não tem mais lado nenhum, de maneira que se teria ininito igual a

116 Flávio R. Kothe

Page 118: O 2014 que nos espera

zero. Seria possível supor também que a esfera tem dois lados, o de fora

e o de dentro, e zero seria igual a dois e a ininito.

Supõe-se que as ciências humanas sejam menos exatas que as

exatas. Como estas se fundam na inexatidão matemática, talvez se

deva ouvir a convicção de artistas de que, ao comporem uma obra,

embora partam de uma multiplicidade de possibilidades, quanto

mais avançam o trabalho mais icam convencidos de que só há um

modo certo de fazer um traço, colocar uma cor, escrever uma pala-

vra. Há um rigor na arte que é tão exigente quanto um cálculo de

estrutura. Quando não é cumprido, a obra sucumbe ao seu projeto.

Mesmo no jogo de xadrez, sempre há uma jogada que acaba se mos-

trando melhor que qualquer outra possível.

Alberti dizia que uma arquitetura perfeita é aquela em que não se

pode tirar nem acrescentar nem mudar nada sem que o resultado se

torne pior do que a obra que aí está. Isso depende, porém, da tecnolo-

gia possível. Quando ela muda, novas execuções se tornam possíveis.

O que é do gosto de um tempo e lugar se torna absurdo para outro.

É preciso haver abertura para diferentes modos de encarar as

coisas. Há modos diversos de raciocinar. Por mais que se procure

acertar, cometem-se erros. Muitas vezes os piores erros são cometi-

dos quando há um máximo de preocupação em acertar. Não se co-

nhecem nunca todos os fatos presentes nos fatos nem se podem an-

tecipar todas as consequências de decisões. Pode haver até acertos

no erro, como há erros em acertos.

A democracia se baseia no princípio da igualdade entendido como

igualação de todos. Na teoria, hoje não existe mais voto qualiicado

pela riqueza; na prática, há eleitores que valem mais. O princípio da

igualdade poderia ser entendido, porém, como o reconhecimento da

desigualdade do desigual, com o direito da diferen ça ser diferente. Ha-

vendo tolerância com a diversidade, o resultado geral é uma riqueza

maior do que se uma parte eliminasse as diferen ças do resto. A demo-

cracia envolve uma nova compreensão do que seja a verdade: não

mais a autoridade de um, mas um exercício da liberdade da coisa

aparecer como ela é e o sujeito permitir que isso apareça para ele.

III. Morte assistida

Não só por ser o Brasil um país de formação católica, mas por ser

um tema singularmente difícil e desagradável, não se tem tido um

debate público, que é corrente na Europa Ocidental, sobre o direito à

morte assistida. Será a vida um direito ou uma obrigação? Sob o

Teologia e política: registros rápidos 117

Page 119: O 2014 que nos espera

pressuposto de que ela seja um direito, acaba-se fazendo dela uma

obrigação. O Estado é obrigado a zelar, por exemplo, para que um

preso não se suicide na cadeia. Então, a vida é uma obrigação.

Se o cidadão tem na vida um direito personal íssimo, como o nome

e a identidade, ele deveria ter também o direito de abdicar desse di-

reito, dizendo que não quer mais viver. Na prática, é isso o que fazem

os suicidas, e ninguém tem nada a dizer ou fazer. A religião católica

e a judaica punem esses mortos proibindo que sejam enterrados no

cemitério. Para o morto, isso não faz diferença: punem-se os familia-

res, como se fossem culpados. Eu tenho um tataravô, que se suici-

dou por não aguentar as lembranças da Guerra do Paraguai, perdido

até hoje no meio do mato: faziam uma cova rasa debaixo do galho em

que estava a corda e deixavam cair o corpo. Optar por viver ou não

faz parte da liberdade do cidadão. O Estado não pode decidir por ele,

assim como o Estado não pode decidir por sua morte, ao menos não,

oicialmente, em países nos quais não há a pena de morte.

Geralmente, os suicidas não têm liberdade. Estão eles de tal ma-

neira assolados por um aspecto da vida que confundem essa parcela

com a totalidade. Eles são dominados por uma sinédoque, que eles

nem sabem qual é. Não têm domínio sobre si, portanto não estão

exercendo a liberdade. O impulso para a morte é neles mais forte que

o instinto vital.

Freud propunha a tensão entre ―Eros‖ e ―Thanatos‖, o impulso de

vida e o impulso de morte. Nas batalhas da vida parece prevalecer o

primeiro, mas com a vitória inal do segundo. O homem quer que

essa derrota seja uma vitória. Prefere ir para o inferno a não ir para

lugar nenhum depois de morto. Os que abusam de drogas e bebida a

pretexto de aproveitar a vida estão, de fato, se destruindo aos pou-

cos: são suicidas acovardados.

Na Antiguidade clássica, um guerreiro que agisse contra a sua

coletividade, um general que perdesse uma grande batalha, um go-

vernante que visse o seu palácio invadido pelo inimigo, todos se sen-

tiam no dever de se suicidar ou pedirem a um amigo que o liquidas-

se. Hércules, ao não mais suportar a dor de se ver queimando vivo,

pediu ao ilho que o matasse; tendo o ilho se recusado a fazê-lo, o

herói deu seu arco e suas lechas infalíveis a quem se prontiicou a

auxiliá-lo na eutanásia. O suicídio era visto aí como ato de grandeza,

uma prova de virtude. Em geral, os suicidas não são dignos dessa

virtude antiga.

Em vários países europeus, já existe o direito de o cidadão deixar

disposto que, em circunstâncias extremas, sua vida não seja manti-

118 Flávio R. Kothe

Page 120: O 2014 que nos espera

da artiicialmente por aparelhos ou que, em caso de doença grave

irreversível e dores insuportáveis, ele tenha o direito à morte assisti-

da. Uma junta médica faz a avaliação do paciente, para decidir se ele

deve ser aliviado deinitivamente dos sofrimentos. Aqui o médico se-

ria criminalizado. Por menos que se queira fazer uso dessa possibili-

dade, para muitos é um consolo pensar que, numa situação sem re-

torno, ele possa deixar disposto contar com esse auxílio.

A vida que temos é a única certeza que temos. Certo é também

que iremos perdê-la. Vida sem nenhuma qualidade não vale a pena

ser vivida. Ela pode se tornar um fardo tão pesado que morrer se

torna um alívio para todos. Nem os que acreditam numa vida após a

morte costumam ter a coragem de se tornarem mártires para ganhar

o céu nem gostariam de usar uma doença grave para, com todos os

ritos, se encaminharem para a eternidade.

No convento cisterciense de Bad Doberan, na beira do Báltico, os

monges medievais viviam apenas 22 anos em média. Faziam grandes

jejuns, madrugavam para orar e laborar. Em compensação, bebiam

três a quatro litros de cerveja por dia. Tanta cerveja em estômago

ralo permite ver aparições celestiais entre os hinos. O céu, nessa

concepção, tinha lugar para muitos. O importante não era viver, e

sim salvar a alma.

Nós procuramos médicos e tratamos de cuidar do corpo, pois sa-

bemos que a mente é atividade cerebrina. Não estamos em geral dis-

postos a nos embalar na crença de que uma religião nos religa ao céu

e nos evita os quintos do inferno. Quer se assuma isso ou não, na

prática, na prioridade entre o céu e a terra, entre o ininito e a initu-

de, opta-se pelo segundo termo, esperando que se converta em algu-

ma forma do primeiro.

Nessa época de grandes catequeses, quer se queira ou não, está-se

vivendo o que a tradição ilosóica de Hegel e Nietzsche tem chamado

de ―morte de Deus‖. Hegel queria dizer com isso que, ao olhar ao seu

redor, em Berlim, há duzentos anos, percebia que a religião já não

desempenhava função básica nas decisões e no modo de existência

das pessoas. Nietzsche levou mais longe, falando da reversão de todos

os valores, a partir de uma revisão radical da visão de mundo.

Em países como Inglaterra, Holanda e Alemanha, milhares de

igrejas estão sendo desmontadas e vendidas simplesmente por falta

de ieis. Muitas estão sendo convertidas em restaurantes, ringues de

patinação, casas de espetáculos, moradias. Os objetos de culto estão

sendo vendidos para países do Leste europeu. Dessa perspectiva, o

espetáculo de milhões de ieis na praia querendo sentir-se perto de

Teologia e política: registros rápidos 119

Page 121: O 2014 que nos espera

Deus tende a ser visto como demonstração de atraso coletivo que de

progresso da razão crítica. Embora os crentes estejam buscando seu

aperfeiçoamento, será que não estão reforçando o dogmatismo?

IV. In God we trust

Nos dólares americanos está escrito: ―In God we trust‖ (em Deus

coniamos). O que tem Deus a ver com a nota de dinheiro? Será ele

quem valida todas as relações entre as pessoas, dá um retorno ime-

diato como uma nota de dinheiro? Soa estranho que os homens es-

clarecidos que fundaram os Estados Unidos tenham apelado para

um Deus que os iluministas e cientistas do século XVIII normalmen-

te dispensavam como hipótese para explicar o universo. No máximo,

aceitavam que a religião era um mal necessário porque a maioria da

população não saberia se comportar bem sem ter a ameaça de um

inferno e uma divindade disposta a punir os pecadores.

De que Deus se está aí falando? Ainda que os católicos tenham

sido uma minoria entre os americanos, parece que se está falando de

um Deus-Pai cristão, que descende de Jeová, mas não é o mesmo,

pois este não tinha ilho e era só de um povo. Também não é o Deus

de Maomé. Parece não ser o Jesus dos sentimentos fraternos nem o

Espírito Santo a iluminar os espíritos e propor uma nova era para a

humanidade, a suceder o mundo cristão, o império de Cristo. Se os

pais da pátria eram maçons, esse God seria o arquiteto do universo,

um deus de novo diverso.

Em 1968, numa palestra dada no Centro Acadêmico da Faculda-

de de Direito da UFRGS, o palestrante, que era de origem judaica, foi

violentamente atacado por membros da comunidade judaica de Porto

Alegre, porque havia postulado a tese de que Israel era o braço arma-

do dos Estados Unidos na região. Eu não sei se Israel é um protegido

dos Estados Unidos ou se estes são dominados por ele: o God das

notas seria então antes Jeová do que Deus-Pai. Talvez convenha a

confusão. Na fala de Obama na ONU, foi impressionante o seu tom

imperial. Ele negocia só se quiser.

Os americanos têm procurado se apresentar como campeões da

liberdade e da democracia, mas encheram a América Latina de dita-

duras que desgraçaram mais de uma geração. Em todos os cantos do

planeta, eles se metem na vida de outros países, sem respeitar sua

soberania, sua capacidade de decidir internamente qual o governo

que lhe serve. Eles constroem porta-aviões e foguetes intercontinen-

tais caríssimos, estão mantendo bases militares há dezenas de anos

120 Flávio R. Kothe

Page 122: O 2014 que nos espera

no Japão, na Espanha, na Alemanha e assim por diante, como se

tivessem sido convidados. É de se icar admirado que eles tenham

saído de suas bases no Nordeste brasileiro.

O governo americano se dá o direito de intervir em qualquer país

cujo governo não lhe agrade, de enviar seus drones fazendo matan-

ças onde quer que suspeitem poder haver um suposto inimigo, de

espionar o que qualquer pessoa, em qualquer parte do planeta, es-

creva ou pesquise em seu computador. Suas embaixadas estão re-

cheadas de agentes de informação disfarçados de diplomatas, a Na-

tional Agency of Information tem mais de 40 mil funcionários e

consegue armazenar e avaliar tudo o que passa pela internet. Esta-

mos protegidos diante disso? Seguramente não. Se um par de ado-

lescentes izer uma brincadeira de mau gosto sobre bombas e aten-

tados, sua segurança estará a perigo, onde quer que estejam. A

espionagem na Petrobras mostrou que é apenas uma desculpa esfar-

rapada dizerem que só buscam informações para evitar atentados. O

monopólio de informações é uma garantia de poder para o Estado.

Na geração dos jovens americanos que se recusaram a ir como

soldados para a guerra do Vietnã, muitos tiveram de emigrar para

outros países ou viver como clandestinos para não serem presos. Há

alguns anos, consegui uma lista de pessoas com o meu sobrenome e

que haviam emigrado da Alemanha para os Estados Unidos. Numa

família pequena, havia mais de trinta homens que haviam morrido

nas várias guerras dos americanos: Primeira Guerra, Segunda Guer-

ra, Camboja, Vietnã. Hoje a lista seria ainda maior, com as guerras

que a indústria armamentista americana ica inventando para ter

mais lucros. O orçamento militar americano é maior que os dez maio -

res seguintes juntos. O povo da Silésia, origem da família, foi extinto

com a política de Hitler.

O que representa God, para que se possa coniar nele? Ele repre-

senta a vontade de saber tudo, de estar em toda parte, de poder tudo.

O conceito de onipotência contém uma contradição interna, pois o

poder é a capacidade de se sobrepor a resistências. Um ser onipoten-

te, a quem nada nem ninguém há de resistir, não pode ter noção de

quanto poder ele próprio tem. O saber é um esforço para vencer a

ignorância: quem já sabe tudo, não tem nenhuma ignorância a supe-

rar. Ele não pode sequer saber o que sabe, o que o torna autocontra-

ditório. O saber sempre é limitado. Quem está por toda parte tem de

ser tudo o que há, não pode icar fora de nada que existe. Se ele é

tudo, ele é alguém que não é ninguém: um ser onipresente não con-

segue sair de si, se torna o seu próprio prisioneiro. Ou ele é o univer-

so inteiro, ou está fora dele. Se estiver fora, não pode ser ininito,

Teologia e política: registros rápidos 121

Page 123: O 2014 que nos espera

pois seria ele, menos o universo; se for o universo, cai-se no panteís-

mo de que tudo é divino e maravilhoso. Essa discussão já tem mais

de duzentos anos na ilosoia.

Os americanos declaram coniar em Deus, mas construíram a

coniança só em si mesmos: dão-se ao direito de bisbilhotar tudo,

serem oniscientes; se meter por toda a parte, serem onipresentes;

impor sua vontade onde quiserem, serem onipotentes. Eles querem

ser Deus. Tendo alcançado a hegemonia sobre a Terra, o planeta já

não lhes basta. Querem o universo inteiro. Só que este é ininito, não

uma elipse que dá volta sobre si e que se poderia controlar. Em quem

quer ser Deus não se pode coniar.

V. Na Catedral da Sagrada Família

Quando cometemos um erro, geralmente não o percebemos como

erro. Há quem faça o errado de modo intencional, mas costuma então

inventar um jeito de torná-lo um acerto. A vida é má: ela sobrevive da

morte da vida alheia. Há muito a ilosoia diz que o homem é mau por

natureza; o marxismo achava que ele se torna malvado pela m á socie-

dade de classes, bastando corrigi-la para que nele aparecesse um an-

jinho a bater asas. As religiões cristãs acham que o homem nasce

mau, com o pecado original, mas que com água miraculosa e algumas

palavras mágicas ele vira a promessa de um santo. Todos estão se

comovendo com as fotos do herdeiro do trono ingl ês sendo batizado.

Que se queira acertar não evita, no entanto, as sequelas do erro

que foi feito com as melhores intenções. Por isso se diz que de boas

intenções o inferno está cheio. Seria bom se assim fosse: um morto é

que teria de pagar a dívida. Elas tornam, porém, um inferno a pró-

pria vida do bobo bem intencionado.

Quando alguém cobra um pênalti, logo percebe se a cobrança foi

mal feita, mas ele não pode mais fazer nada. A bola continua voando

para onde não deveria. Resta a esperança de que em outra ocasião o

resultado seja melhor. De boas intenções se faz um céu. Quanto

maior, mais ele pesa sobre o sujeito, esperando ser alcançado.

O herói trágico é um bom sujeito, que quer fazer tudo certo e,

quanto mais se esforça, mais cava a própria cova. Nas execuções

sumárias em operações bélicas, condenados à morte foram muitas

vezes forçados a cavar a própria cova. Se o sujeito vai morrer de qual -

quer modo, será que ele deve ainda facilitar a vida do carrasco ou o

mínimo de dignidade seria se recusar a fazê-lo? Cavar a cova pode

retardar a execução, alimentar a ilusão de que uma legião de anjos

122 Flávio R. Kothe

Page 124: O 2014 que nos espera

ou uma cavalaria venham trazer a salvação. Não adianta dividir cada

momento em dois, para provocar a ininitude do tempo: o relógio é

inexorável, o carrasco tem mais coisas a fazer.

Dito em outros termos: a criança que era forçada a buscar a vara

com que seria açoitada pelo pai ou pela mãe, deveria ela recusar-se

a fazer isso, e apanhar dobrado? De quem ela poderia esperar socor-

ro? Da avó, do tio, do juiz, da polícia? Ninguém se metia. Havia na

minha região natal reproduções baratas da tela A última ceia, de

Leonardo da Vinci, atrás da qual icavam as varas de marmelo ou

pereira, para dizer que naquela casa família e ordem eram sagradas.

Nas colônias alemãs do Sul, já em 1849 a escravidão estava abolida.

Como os colonos tinham cavalaria, os ulanos, e infantaria, os escra-

vos das fazendas ao sul do Jacuí fugiram para o meio deles. Como

quem não trabalha também não come, os colonos, não tendo escra-

vos, tinham atitudes de quem escravizou os ilhos. Não podiam ven-

dê-los nem matá-los, conforme previa o Direito Romano, mas deci-

diam até casamentos. Quando criança, eu mesmo vi amiguinhos

sendo açoitados por não terem ―feito a obrigação‖. Brincar não era

propriamente um direito.

Quando em agosto de 2013, visitei a Catedral da Sagrada Família

projetada e construída por Gaudí, em Barcelona, estranhei que nin-

guém estranhasse o sagrado dessa família: o pai não era o pai (daí

que José, no México, vira Pepe, de pater praesumptus , PP, o pai pre-

sumido, como se registrava nos catecismos para não esquecer que

Jesus era ilho de Deus), a mãe não havia sido iel ao marido (que não

podia ter intimidades com ela, donde que) e, a essa altura do campeo-

nato, o ilho era...

Nietzsche disse que como Deus tudo pode, não precisaria cum-

prir os próprios mandamentos. Faltou anotar que Jeová também já

não havia cumprido o primeiro mandamento, aquele que diz que ele

icaria muito zangado com quem não respeitasse as crianças e proi-

bia ainda que se izesse escultura ou imagem de qualquer ente que

estivesse na água, sobre a terra ou nos ares: ele próprio mandou fa-

zer, poucos depois, a escultura de uma serpente para curar picadas

venenosas. Ainal, vacinas nem sempre são eicazes e às vezes, por

um bem maior, é preciso rever o que se disse.

Na catedral, após pagar vinte euros de entrada para cada um de

nós, iquei pensando com meus botões, enquanto junto com um mé-

dico socorria uma estudante da UnB que, sob o sol inclemente, havia

desmaiado ao meu lado na imensa ila da entrada: como se justiica-

ria essa construção quando se espera que a arte transmita a verda-

Teologia e política: registros rápidos 123

Page 125: O 2014 que nos espera

de? Qual era sua verdade? Se o modelo de família era esse, nenhum

pai poderia querer um ilho do qual fosse genitor nem aceitar compa-

nheira que lhe fosse iel. O sagrado é modelar e deve ser seguido.

Minhas luzes eram fracas, mas a arquitetura era impressionante.

Enquanto eu andava sem luzes em meio às lindas cores advindas

dos vitrais, lembrei -me do Evangelho de Maria, considerado ap ócrifo,

em que José, ao voltar de uma longa ausência, encontra a esposa

grávida e, indignado, dá-lhe uma surra. Logo depois é intimidado por

um enviado do Sumo Sacerdote. Ora, Zacarias havia pecado grave-

mente: supremo encarregado de manter os preceitos, ele se engraça-

ra com essa virgem do templo. Anjo quer dizer enviado. Para acalmar

José, que temia os sacerdotes, Zacarias prometeu zelar pelo herdei-

ro. Depois icou mudo por um ano. Anos mais tarde foi assassinado

por um grupo de sacerdotes de outra facção. Acabou sobrando para

o ilho, que poderia tentar uniicar o governo sacerdotal com o civil e

militar, numa rebelião dos judeus contra o domínio romano. Política,

política. Eterno retorno do mesmo.

Ah, a jovem se recuperou bem. Há dias passou por mim lépida

e fagueira.

124 Flávio R. Kothe

Page 126: O 2014 que nos espera

A história (in)inita

da democracia direta

Gian Luca Fruci

participação política historicamente vinculado a ela reingres-

saram fortemente no discurso público italiano graças ao formi-

dável aspirador – e, ao mesmo tempo, anestesiador – de movimentos

sociais representado pelo ―Movimento 5 Estrelas‖ (M5S), que canali-

zou as mais diversas mobilizações da última década numa narrativa

consoladora do ―povo virtuoso‖ em luta irredutível contra a ―casta

política‖ e o seu principal articulador novecentista – a forma-partido

–, respondendo com um discurso abrangente, tradicionalmente nem

de direita nem de esquerda, às demandas difusas de transformação

social e política.

A hibridização entre retórica antipolítica, ou mais precisamente

contra a política, e direitismo procedimental é, por sua vez, um des-

dobramento fundamental da constelação discursiva que contesta,

desde as origens, a democracia representativa, contrapondo a esta a

simplicidade e a evidência ―objetiva‖ de soluções alternativas basea-

das na ausência de delegação e no envolvimento imediato (e contí-

nuo) dos cidadãos na gestão da coisa pública. Na França, logo após

a desilusão com a primeira experiência europeia de sufrágio univer-

sal direto (masculino) – que levou, em abril de 1848, à escolha de

uma Assembleia Constituinte moderada e, em maio de 1849, ao

triunfo eleitoral dos conservadores –, o universo republicano derrota-

do mergulhou, entre a primavera de 1850 e o verão de 1851 (portan-

to, bem antes do golpe de Estado do príncipe-presidente Luís Napo-

leão Bonaparte), num amplo debate que identiicou aquilo que, na

linguagem da época, se chamava de ―representomania‖ como princi-

pal responsável por um resultado considerado não apenas imprevis-

to, mas também (e sobretudo) inconcebível do exercício eleitoral da

soberania popular. Plus d’élections, plus de représentants du peuple

intitulava-se signiicativamente um opúsculo, que reapresentava a

velha ideia de sorteio dos deputados, enquanto naquele contexto,

não à toa, apareceram pela primeira vez expressões como ―governo

direto‖, ―legislação direta‖ e ―democracia direta‖, desconhecidas do

125

Aexpressão ―democracia direta‖ e o horizonte (imaginário) de

Page 127: O 2014 que nos espera

vocabulário político da Revolução Francesa e da primeira metade do

século XIX.1

Termos sinônimos utilizados para imaginar um novo regime polí-

tico, baseado fundamentalmente na inversão do pressuposto concei-

tual (e funcionalista) que sustentara até 1848 a reivindicação do voto

universal: o ―povo eleitor‖ reunido em assembleia não é capaz de se

autogovernar, mas sabe perfeitamente escolher os melhores e os

mais sábios como governantes.2 De fato, a ilosoia de governo direto

prevê que o ―povo eleitor‖ , considerado propenso a se enganar e a ser

enganado quanto às pessoas, seja substituído pelo ―povo legislador‖,

que, graças ao seu bom senso, não pode se equivocar quando discute

ideias, princípios, interesses, e é levado naturalmente (e facilmente)

para a deliberação sobre textos e quadros normativos. A formulação

da democracia direta se coloca, portanto, no quadro de uma hiper-

simpliicação do político, que se recusa a pensar não só a represen-

tação, mas também (e sobretudo) o Poder Executivo, denunciado

como usurpador da soberania popular, e no âmbito de uma harmo-

nia destituída de conlito, que subentende a unanimidade em nome

da obviedade objetiva das decisões.

Na Itália, onde a crítica ao parlamentarismo do período liberal

tem como correspondente simétrico a condenação à partidocracia da

época republicana, o nexo entre contrapolítica, apelo ao povo (na

forma soisticada da ―sociedade civil‖ ou na versão comum das ―pes-

soas‖) e democracia direta aparece, se possível, ainda mais forte,

emergindo recorrentemente em diversos momentos de crise da histó-

ria pós-unitária.3 Isto é visível precisamente na trajetória editorial do

principal texto teórico que, na Península, se encarregou de pleitear a

causa do diretismo, a saber, o pequeno livro do intelectual republica-

no-socialista Giuseppe Rensi, publicado pela primeira vez em 1902,

na Suíça, logo em seguida à crise de inal do século, com o título Os

antigos regimes e a democracia direta. Reeditada em 1926 com o ti-

tulo abreviado A democracia direta, após a tomada deinitiva do po-

1 Rosanvallon, P., La démocratie inachevée. Histoire de la souveraineté du peuple en

France. Paris: Gallimard, 2000, p. 157 -79.

2 FRUCI, G. L., ―La banalità dela democrazia. Manuali, catechismi e instruzioni elet-

torali per il primo voto a suffragio universale in Italia e in Francia (1848-49)‖, in

ROMANELLI, R. (org.), ―A scuola di voto. Catechismi, manuali e istruzioni elettorali

fra Otto e Novecento‖, Dimensioni e problemi dela richerca storica , 1/2008, p. 17-46.

3 LUPO, S., ―Il mito dela società civile. Retoriche antipolitiche nella crisi dela demo-

crazia italiana‖, Meridiana. Revista di storia e scienze sociale , 38-39/2000, p. 17-43;

idem, Partito e antipartito. Uma storia politica dela prima Republica (1946-1978),

Roma: Donzelli, 2004; idem, Antipartiti. Il mito dela nuova politica nella storia dela

Republica (prima, seconda, terza), Roma: Donzelli, 2013.

126 Gian Luca Fruci

Page 128: O 2014 que nos espera

der pelo fascismo, que o autor havia considerado de maneira favorá-

vel por um breve momento, esta obra foi, por im, republicada pela

editora Adelphi, sob os cuidados de Nicola Emery, tanto em 1995

quanto em 2010, concomitantemente com duas agudas – e, em mui-

tos aspectos, análogas – conjunturas de contestação do sistema po-

lítico e, consequentemente, da legitimidade da democracia represen-

tativa republicana fundada entre 1946 e 1948.4

Não se sabe se o ex-cômico Beppe Grillo e o empresário Gianro-

berto Casaleggio alguma vez leram Rensi, que terminou sua carreira

acadêmica como professor de Filosoia Moral na Universidade de Gê-

nova, mas deve-se sublinhar que o discurso antipartido de ambos é

perfeitamente simétrico à critica radical dirigida à classe política,

que Rensi retomava, com o próprio conceito, de Gaetano Mosca, es-

tudioso conservador e nostálgico da direita histórica e inquiridor po-

lêmico ―de uma política expressiva não mais da sociedade civil, mas

de si mesma – ou seja, da classe que vive de política‖.5 Nos seus tex-

tos programáticos, os dois colíderes do Movimento 5 Estrelas profe-

tizam o advento iminente da democracia direta, apresentando-o

como um produto inevitável da revolução digital em curso, que tor-

naria possível a realização virtual de um horizonte utópico de expec-

tativas que perpassa toda a história da democracia moderna: a si-

multânea e imediata participação de todo o corpo político nas

deliberações numa unidade de tempo e lugar, segundo o modelo mí-

tico (e mitiicado) da democracia clássica.6 De fato, foi a partir da

inviabilidade desta aspiração em espaços estatais de grandes dimen-

sões que surgiu historicamente o discurso minimalista a favor da

democracia representativa, apresentada como sucedâneo da deseja-

da, mas irrealizável, democracia absoluta dos antigos. No imaginário

―cinco estrelas‖, a sacralização da ―rede‖ (grafada, com deferência,

com ―r‖ maiúsculo) se conigura, assim, como a solução prática de

uma aporia constitutiva da tradução procedimental da soberania po-

pular, que parece tão mais eiciente quanto mais olha para o passado

4 RENSI, G., Gli anciens régimes e la democrazia direta. Saggio storico politico, Bellin -

zona, Colombi, 1902; idem, La democracia direta, Roma, Libreria politica moderna,

1926. A obra foi também reeditada entre 1943 e 1945, respectivamente em Roma

(pela renascida Libreria politica moderna, com o titulo Forme di governo del passato

e dell‘avvenire) e Milão (pela Libreria editrice milanese, com o titulo Governi d ‘ieri e

di domani).

5 LUPO, S., ―Il mito...‖, cit., p. 21-2

6 CASALEGGIO, G.; GRILLO, B., Siamo in guerra. Per una nuova política, Milão:

Chiarelettere, 2011, p. 7 -15, 61-8; FO, D.; CASALEGGIO, G.; GRILLO, B., Il grillo

canta sempre al tramonto. Dialogo sull ‘Italia e il Movimento 5 Stelle, Milão: Chiare-

lettere, 2013, p. 84-96.

A história (in)inita da democracia direta 127

Page 129: O 2014 que nos espera

e se projeta no futuro, deixando indeinida e problemática sua con-

cretização no presente.

Isto ocorre em per feita continuidade com a hist ória da democracia

direta, que é principalmente uma narrativa (in)inita, reapresentada

pelos seus diferentes speakers como sempre igual a si mesma e colo -

cada constantemente em outro lugar, temporal ou espacial (a Atenas

de Péricles, a Comuna de Paris, a Rússia dos Sovietes, os Cantões

helvéticos da Landsgemeinde, o Chiapas do subcomandante Marcos,

o blog de Grillo). Em suma, o não lugar representado pela rede, com

seus potenciais desenvolvimentos tecnológicos, assume hoje, para

Grillo e Casaleggio, uma função mitopoética análoga à das Comunas

medievais para Jean Charles Léonard Simonde de Sismondi (Histoire

des républiques italiennes du Moyen-âge, 1807-1808), ou da ilha de

Pasquale Paoli para Jean-Jacques Rousseau (Projet de Constitution

pour la Corse, 1765). Hoje como ontem, o discurso da democracia

direta se revela, portanto, eminentemente polêmico e antinômico,

além de imaginário. Sua força não deriva da credibilidade dos mode-

los propostos ou mesmo só evocados. Deve seu sucesso quase exclu-

sivamente à realidade que denuncia e proclama querer mudar pro-

fundamente, e extrai sua legitimação de uma ideia teleológica do

desenvolvimento histórico, baseada, no século XIX, num racionalis-

mo político de derivação revolucionária e, hoje, num superinvesti-

mento nos poderes taumatúrgicos da ―rede‖.

Entretanto, resulta paradoxal o fato de que o revival da democra-

cia direta e a proposta de um paradigma de participação absoluta e

contínua ressurjam – não apenas na Itália – precisamente quando a

ilosoia e a historiograia política contemporânea reletem sobre a

originalidade e o peril autônomo (e de modo algum derivado) da de-

mocracia representativa, a partir de autores liberais radicais como

Condorcet e Thomas Paine, o qual, em 1792, escrevia signiicativa-

mente que, ―se tivesse tido a representação‖, Atenas teria ―superado

sua própria democracia‖.7 Faz tempo que, no plano teórico e também

no histórico, a dicotomia entre a democracia dos antigos e a dos mo-

dernos pode-se dizer, de fato, superada em favor de uma ideia mais

articulada da representação, que não se exaure no momento eleito-

ral, mas se conigura como um processo político complexo, capaz de

integrar uma pluralidade de arenas participativas e estabelecer um

canal contínuo de comunicação, condicionamento e vigilância entre

representados e representantes.8 Nesse sentido, é necessário traba-

7 Citado em URBINATI, N., Lo scettro senza il re. Participazione e rappresentanza

nelle democrazie moderne, Roma: Donzelli, 2009, p. 11.

8 ROSANVALLON, P., La légitimité démocratique. Imparcialité, rélexivité, proximité, Pa-

128 Gian Luca Fruci

Page 130: O 2014 que nos espera

lhar e inovar com fantasia criadora no plano institucional, tendo em

conta que a democracia, antes de ter uma história, é ela própria uma

experiência histórica e, portanto, um laboratório conceitual e prático

do nosso presente a que se deve recorrer inventivamente para res-

ponder às tensões e às crises (velhas e novas) que apresentam os

sistemas democráticos desde as próprias origens.9

Tradução: Alberto Aggio

ris: Seuil, 2008; URBINATI, N., Democrazia rappresentativa. Sovranit à e controlo dei

poteri, Roma: Donzelli, 2010.

9 ROSANVALLON, P., ―L‘universalisme démocratique: histoire et problèmes‖ , Esprit ,

jan. 2008, p. 104-20.

A história (in)inita da democracia direta 129

Page 131: O 2014 que nos espera

A propósito de uma resenha: um convite ao diálogo fraterno com Leandro Konder,

a propósito da origem do marxismo brasileiro

Michel Zaidan Filho

periódica da Fundação Astrojildo Pereira, fui surpreendido

com uma resenha, de autoria de Antonio Ianni Segatto, ilho

do meu dileto amigo José Segatto, sobre o livro de Leandro Konder,

A derrota da Dialética. O que mais chama atenção nessa resenha é o

desconhecimento do autor em relação à história do PCB, em relação

ao trabalho do Leandro Konder e em relação ao trabalho de seu pró-

prio pai, Breve História do PCB (1980, LECH).

Por uma feliz coincidência, tive a oportunidade de ler, na casa de

Marco Aurélio Nogueira, nos idos dos anos 80, o manuscrito (ou o

―caroço‖, como dizia o próprio Leandro) daquilo que viria a se tornar

depois a Tese de Doutorado do professor carioca. Esse texto era uma

espécie de ―salvado‖ das andanças de Konder pela Europa, quando

ele se exilou do país, durante o regime militar.

Nessa condição, era visivelmente um texto inacabado, produto das

vicissitudes típicas do exílio. Um rascunho que deveria ser melhorado,

complementado e aprofundado com muitas outras pesquisas, a partir

de fontes primárias (na Itália, na Alemanha Oriental e em Moscou) que

naturalmente o Leandro Konder não pode ter acesso, antes de voltar

ao Brasil. Digamos que ele permaneceu como um ambicioso protocolo

de intenções, nunca terminado. Outra questão que o resenhista des-

conhece é a natureza ambígua do texto: é um ensaio, é uma tese, é

trabalho de divulgação sobre a história das ideias socialistas no Bra-

sil, na América Latina? Não se sabe ao certo.

O que se sabe é que o trabalho padece de uma deinição de gêne-

ro: a tese é em ilosoia ou em história das ideias? Que tipo de histó-

ria das ideias? Fora do contexto, sem contexto histórico, suspensas

no céu da especulação ilosóica? Essas questões não só emperraram

a defesa da tese, como determinaram a mudança de orientador na

UFRJ. Para que fosse aceita na Filosoia, adotou-se a solução de

compromisso de se acrescentar um verbete sobre a dialética, no iní-

cio da tese, que já tinha sido escrita pelo Leandro, para a coleção

―que é‖... da Editora Brasiliense. Qualquer leitor mais avisado percebe

130

No volume nº 25, da revista Politica Democrática, publicação

Page 132: O 2014 que nos espera

a costura que foi feita. O ―nariz de cera‖ dialético não se relaciona

com o texto, de natureza histórica.

Por ocasião da minha primeira leitura desse manuscrito, escrevi

ao Leandro elogiando a graça e a leveza do estilo literário – caracte-

rística dele, como excelente divulgador de temas espinhosos. Mas

critiquei a pobreza da pesquisa histórica realizada, certamente em

condições muito difíceis, pois toda a construção relativa à década de

1920 e ao nascimento do PCB, dependia do acesso a arquivos e do-

cumentos que só apareceram depois (documentos que estavam em

Milão, em Leipzig e Moscou). Mais grave é a pretensão do autor de

julgar quem nos anos vinte era ou não era dialético. Teria Leandro o

monopólio da dialética em nossos dias para dizer que Brandão era

positivista, Astrojildo era dialético. Caio Prado era dialético, Nelson

Werneck Sodré, não. Claro que não. Isso seria uma total ausência de

perspectiva histórica, anacronismo e presunção. Aliás, a pergunta

que lhe dirigiram na banca examinadora foi se teriam sido melhores

políticos os comunistas se tivessem sido – como o Leandro – melho-

res conhecedores da dialética. É evidente que não. Não obstante, se

não fosse a presunção e a má-vontade do autor, poderia ele ter ob-

servado a originalidade do pensamento político dos nossos primeiros

dirigentes comunistas, no âmbito do pensamento da Terceira Inter-

nacional Comunista.

Mas o que faltou no trabalho de Leandro foi a generosidade inte-

lectual e histórica para perceber que não se pode analisar a história

a partir das obsessões intelectuais de nossa época pós-comunista

(ou pós-stalinista). Leandro tinha uma premissa ilosóica, antes de

abordar a história do PCB, e tentou prová-la a todo custo, utilizando

a primeira década de experiência comunista no Brasil: a tese da su-

bordinação do marxismo brasileiro ao stalinismo. Mas para isso não

precisava fazer uma pesquisa sobre a história do PCB. Bastava co-

piar o texto de Lukacs sobre o stalinismo. Outra coisa muito diferen-

te seria o difícil e paciente garimpo intelectual das intuições desse

―marxismo nacional‖ elaborado pelo primeiro núcleo dirigente do

PCB e derrotado em 1929, pelo sexto congresso da Internacional Co-

munista. Esta parte, o nosso historiador-ilósofo vai icar devendo. E

o nosso entusiasmado resenhista pode começar lendo o livro de José

Antonio Segatto, seu pai, para começar a conhecer a história do PCB.

A propósito, quando a Editora Anita Garibaldi republicou o op ús-

culo de Otávio Brandão, Agrarismo e Industrialismo , escrevi uma rese-

nha sobre as opiniões do Leandro e uma defesa da originalidade da

hermenêutica de Brandão, sobre a situação brasileira, intitulada: ―O

Lênin que poderia ter acertado‖. É o que se segue abaixo.

A propósito de uma resenha 131

Page 133: O 2014 que nos espera

O Lênin que poderia ter acertado 1

Acabo de receber a boa notícia de que a Editora Anita Garibaldi,

ligada ao Partido Comunista do Brasil, reeditou um dos primeiros

clássicos das ciências sociais brasileiras: o opúsculo de Octavio

Brandão, Agrarismo versus industrialismo. 2

Só se conhece uma edição precária dessa brochura, feita em

1926, para servir de base para a política de alianças do então Partido

Comunista. De lá para cá, o historiador das ideias políticas ou socia-

listas no Brasil só podia se valer de exemplares fotocopiados guarda-

dos a sete chaves nos arquivos do movimento operário brasileiro.

Anos atrás, me encontrei com o Valter Pomar no Aeroporto do Recife

(PE), que naquela ocasião manifestou o interesse da editora Anita

Garibaldi em reeditá-lo. Eu disse que concordava inteiramente com

o interesse dele e da editora, porque considero desde muito tempo o

livrinho de Octávio Brandão ―um clássico do marxismo brasileiro‖,

apesar da discordância de amigos e camaradas, como, por exemplo,

Leandro Konder, com quem troquei amistosas cartas em torno do

assunto, quando ele estava terminando sua tese de doutorado.

De fato, há muitos anos que tive o trabalho de recuperar ou ―ga-

rimpar‖, como dizia o Marco Aurélio Garcia, essas ideias seminais

sobre a revolução brasileira. E a originalidade do pensamento de

nosso líder comunista é incontestável, nos quadros da política revo-

lucionária da Internacional Comunista, sobretudo pela relação com

a conjuntura interna no Brasil: as revoltas tenentistas de 1922 e

1924. A adaptação da questão pequeno-burguesa para o movimento

tenentista é valiosa (heurística, mesmo), em comparação com a situ-

ação do campesinato russo. E a ideia da revolução democrática pe-

queno-burguesa é um achado da mais alta importância.

Nos idos de 1980, Gildo Marçal Brandão – então editor da revista

Temas de Ciências Humanas e hoje professor de Ciência Política da

USP – teve a gentileza de ler um pequeno ensaio meu sobre as rela-

ções entre anarquistas e comunistas no Brasil, durante a década de

vinte. A recepção de Gildo foi boa, mas ele recomendou que se rees-

crevesse o texto para que servisse de introdução a uma coletânea de

artigos de Astrojildo Pereira sobre a fundação do PCB (Construindo o

PCB: 1922-1924). O pequeno ensaio que resultou daí levantava uma

tese importante: o Partido Comunista Brasileiro foi, sim, um partido

1 Gramsci/La Insignia. Brasil, agosto de 2006.

2 BRANDÃO, Octavio. Agrarismo versus industrialismo. A guerra de São Paulo e a luta

de classes no Brasil . São Paulo: Anita Garibaldi, 2006.

132 Michel Zaidan Filho

Page 134: O 2014 que nos espera

nacional – não nacionalista – e seus erros não estavam ligados a ne-

nhuma determinação estrangeira ou estalinista.

Faltava concretizar a tese com estudos e pesquisa empírica sobre

a trajetória política do partido. Este trabalho de garimpagem foi feito

ao longo de cinco anos, com documentos, panletos, jornais, cartas,

entrevistas etc. Dele resultou uma tese de doutorado: O Partido Co-

munista e a Internacional Comunista. E a base foi exatamente a con-

tribuição teórica e estratégica do camarada Octavio Brandão.

O primeiro grande esforço de análise marxista-leninista da con-

juntura brasileira nos anos vinte foi este Agrarismo versus industria-

lismo. Ele serviu com justiicação para política de alianças do PCB

com os ―tenentes‖ e a pequena burguesia urbana. A inluência do

documento é patente nas teses do II Congresso do PCB (1925), onde

a contradição básica é entre nação e imperialismo. Torna-se ainda

maior no artigo ―As tarefas do proletariado diante da revolução pe-

queno-burguesa‖ (1926), publicado no boletim Autocrítica . E é derro-

tada no VI Congresso da Internacional Comunista (1928), já desapa-

recendo nas teses do III Congresso do PCB (1929). Em 1930, há uma

reunião ampliada, com membros da IC, onde Brandão é obrigado a

renegar solenemente a sua criação e aceitar a tese da revolução de-

mocrático-burguesa anti-imperialista.

De lá para cá, muita água correu debaixo da ponte. E o PCB tor-

nou-se muito mais suscetível às inluências de Moscou e de Prestes.

Mas nada disso ofusca ou tira os méritos daquele que poderia ter

sido o Lênin brasileiro, depois de ter dado uma excelente contribui-

ção – através de seus escritos – à teoria da revolução brasileira. Está

na hora de resgatar a igura – sempre polêmica, mas muito injustiça-

da – de Octavio Brandão.

Por tudo isso, esse trabalho deve ser lido e muito valorizado em

qualquer arqueologia do pensamento político socialista brasileiro.

É uma pena que o livro tenha sido prejudicado pela personalidade

forte e polêmica do autor. Não é a primeira nem a única vez.

A propósito de uma resenha 133

Page 135: O 2014 que nos espera
Page 136: O 2014 que nos espera

VI. Questões do Estado

e da Cidadania

Page 137: O 2014 que nos espera

Autores

Comte Bittencourt

Educador, deputado estadual (PPS-RJ) e presidente do Diretório Estadual do PPS.

Habib Jorge Fraxe Neto

Biólogo, mestre em Biologia pela Universidade de Bras ília e consultor legislativo do Se -

nado na área de meio ambiente.

Oriana Piske

Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.

Zulu Araújo

Arquiteto, produtor cultural e ativista do movimento negro latino-americano. Ex-presidente

da Fundação Cultural Palmares e diretor da Casa da Cultura da Am érica Latina/UnB.

Page 138: O 2014 que nos espera

A Reforma do Código Florestal

Habib Jorge Fraxe Neto

tal e insular da Terra, bastando que existissem clima e relevo

adequados ao seu crescimento. Com o surgimento das socie-

dades sedentárias, o homem passou a utilizar regiões antes domina-

das por essa vegetação primária com o intuito de cultivar plantas e

de criar animais para os mais diversos usos, destacando-se o alimen-

tar. Nas lorestas tropicais, a descoberta do Novo Mundo intensiicou

esse processo de ocupação.

No Brasil, sua exploração formou a base econômica durante qua-

se cinco séculos. Caio Prado Júnior critica a maneira como se deu

essa expansão, com base em práticas rudimentares, associadas à

exploração predatória de madeiras e ao uso de queimadas. Em al-

gum momento seria preciso repensar os fundamentos de tais proces-

sos, e isso passou a acontecer com maior intensidade a partir da

década de 1960.

O efeito direto da presença de vegetação nativa sobre o solo – o

principal componente da agricultura – é protegê-lo de processos ero-

sivos e melhorar sua estabilidade e estrutura. Em termos da cicla-

gem de nutrientes e retenção de água, solos protegidos por matas

são signiicativamente melhores que solos desnudos, cujos compo-

nentes são facilmente carreáveis, perdendo-se nutrientes. Além dis-

so, matas abrigam os componentes da biodiversidade, em especial

agentes polinizadores, fundamentais para a produtividade em plan-

tas cultivadas. Ainda, determinam o regime de nascentes e de cursos

hídricos, ao permitir a iniltração de águas das chuvas, cujo ciclo

137

Florestas já ocuparam porção signiicativa do espaço continen-

Page 139: O 2014 que nos espera

também depende da presença da vegetação. Por esses motivos, lo-

restas no interior de propriedades agrícolas deveriam ser considera-

das como ativos estratégicos da unidade de produção agropecuária.

Na recente reforma do Código Florestal, a antiga Lei nº 4.771, de

1965, o relator do projeto de lei na Câmara dos Deputados defendeu

que interesses externos ao país seriam os responsáveis pela – na sua

visão – draconiana legislação lorestal, com o objetivo de minar nosso

crescimento como potência agrícola mundial. O presente artigo apon -

ta raízes outras, associadas a decisões internas inluenciadas por

iguras de destaque nos rumos do Brasil, como José Bonifácio de

Andrada e Silva e Getúlio Vargas. A eles vinculam-se importantes

marcos, respectivamente, no desenvolvimento de uma consciência

preservacionista e no fortalecimento de uma legislação que garantis-

se a perpetuidade dos recursos hídricos e lorestais para a nascente

indústria de base.

Mais recentemente, e aqui explica -se o marco temporal antes cita -

do – a década de 1960 – a ―culpa‖ pelo fortalecimento de normas res -

tritivas sobre exploração de lorestas pode ser atribuída à tecnologia

espacial. O lançamento do homem à órbita do planeta resultou nas

primeiras imagens da Terra vista do espaço, em 1961 – e na espontâ-

nea reação de Yuri Gagarin: a Terra é azul! A beleza do planeta visto a

partir do espaço, com suas nuvens, mares e lorestas, foi divulgada

aos seus habitantes, pela primeira vez, e coincide com uma crescente

conscientização sobre os limites de seus recursos naturais. Além dis-

so, o acompanhamento via satélite da perda de áreas nativas loresta-

das revelou uma realidade antes pouco perceptível. Os monitoramen-

tos realizados por um centro de excelência brasileiro, o Instituto

Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a partir da década de 1980,

mostravam o destino de nosso patrimônio natural, contido em lores-

tas: rumo à atmosfera, em forma de gases e fumaça.

O presente artigo busca apontar a importância de conservar nos-

sa lora e de enfrentar as causas do desmatamento, como um tema

de interesse do próprio povo brasileiro. Com esse objetivo, analisa o

histórico normativo para indicar os fundamentos da legislação prote-

tiva de lorestas. Resume virtudes e críticas à Lei nº 12.651, de 2012,

resultado da recente reforma do Código Florestal. E, inalmente, ana-

lisa essa reforma no contexto dos problemas do setor agrícola e na

ótica de um desenvolvimento que promova a manutenção de lores-

tas ―em pé‖.

138 Habib Jorge Fraxe Neto

Page 140: O 2014 que nos espera

Histórico normativo e motivação para conservar lorestas

Segundo Pereira apud Antunes (2010), normas regulatórias sobre

lorestas datam do século XVII, com o Regimento do Pau-Brasil, que

vedava o corte dessa madeira sem expressa autorização da Coroa

Portuguesa. Uma Carta Régia de 1797 declarou a propriedade real

―sobre todas as matas e arvoredos à borda da costa, ou de rios que

desemboquem imediatamente no mar, e por onde em jangadas se

possam conduzir as madeiras cortadas até o mar‖. Em 1799, o pri-

meiro Regimento sobre extração de madeira estabeleceu inclusive o

cargo de juiz conservador, competente para autorizar a atividade.

Em 1829, o Império proibiu o corte de árvores em terras devolutas,

sem a devida licença, que era concedida então pelas Câmaras de Ve-

readores. Em 1830, o Código Criminal instituiu penas para o corte

ilegal de árvores.

Essas informações apontam que, muito antes de nascer o movi-

mento mundial pela conscientização ambiental – e a suposta inluên-

cia externa em matéria de meio ambiente pátrio – o próprio Poder

Público preocupou-se em regular o uso e a exploração de lorestas.

Essa tendência ganha força a partir do primeiro Governo Vargas,

com a edição do Decreto nº 23.793, de 1934, considerado o primeiro

Código Florestal do país. Ao lado do Código de Águas e do Código de

Minas, regulou a exploração de matérias-primas essenciais à nas-

cente indústria de base.

O Código de 1934 classiicou as lorestas em quatro categorias:

lorestas protetoras, lorestas remanescentes, lorestas de rendimen-

to e lorestas modelo. Enquanto as lorestas de rendimento e modelo

coniguravam-se, respectivamente, para o fornecimento de lenha à

atividade industrial e para plantios artiiciais – a exemplo de relores-

tamentos – as demais tinham objetivos preservacionistas.

Florestas protetoras tinham como inalidade preservar o regime

hídrico, impedir a erosão do solo, garantir condições de salubridade

pública e conservar sítios de destacada beleza ou abrigos para espé-

cies raras. As lorestas remanescentes integravam áreas que hoje

poderiam serdenominadas unidades de conservação, com o objetivo

de proteger a fauna e a lora e de promover o gozo público desses

espaços. Ambas – lorestas protetoras e remanescentes – foram dei-

nidas pelo Código como ―de conservação perene‖.

O conceito de perenidade para determinadas regiões que abrigam

formações vegetacionais foi reforçado pela norma que substituiu o

Código de 1934. Nesse sentido, a Lei nº 4.771, de 1965, trouxe im-

portantes inovações, destacando-se o instituto da Área de Preserva-

A Reforma do Código Florestal 139

Page 141: O 2014 que nos espera

ção Permanente (APP), cujas funções assemelhavam-se às previstas

para as lorestas de conservação perene (protetoras e remanescentes)

do Código de 1934. A nova lei também proibiu o corte raso (ou seja,

cortar na base todas as árvores de uma determinada área) em uma

área mínima de 20% da propriedade ―nas regiões Leste Meridional,

Sul e Centro-Oeste, esta na parte sul‖: ainda sem este nome, era o

conceito de Reserva Legal.

A partir da década de 1980, o Código Florestal recebeu signiica-

tivas alterações. As Leis nº 7.511, de 1986, e nº 7.783, de 1989,

alargaram as dimensões das áreas de preservação permanente loca-

lizadas às margens de cursos d‘água e incorporaram novas tipologias

como APP, regiões mais sensíveis do ponto de vista da estabilidade

do solo, da manutenção da qualidade dos recursos hídricos e da pro-

teção das espécies animais e vegetais.

Conforme já mencionado, o texto original de 1965 já previa uma

área de vinte por cento da propriedade onde se devia manter a ―vege-

tação arbórea‖. A alteração promovida em 1989 denominou essa área

como Reserva Legal (RL). Nessa porção, não se permite o corte raso.

A alteração também determinou a averbação da Reserva Legal ―à

margem da inscrição da matrícula do imóvel no registro de imóveis

competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos

de transmissão a qualquer título ou de desmembramento da área‖.

As alterações promovidas na década de 1980 alteraram signiica-

tivamente as restrições impostas pelo Código, especialmente para os

agricultores. A título de exemplo, a largura da APP às margens de

rios – porção que basicamente deveria ser mantida intocada – passou

de 5 para 30 metros, em cursos d´água que tinham até 10 metros de

largura. No caso dos rios cuja largura fosse superior a 200 metros, a

largura da APP exigida às suas margens, que era de até 100 metros,

passou a ser de até 500 metros.

Cabe aqui ressalvar tais observações. O presente artigo considera

proprietários e posseiros rurais como parceiros potenciais de políti-

cas protetoras de lorestas e como pessoas de boa-fé que, ao longo

das décadas de 1980 e 1990, testemunharam o crescente rigor das

limitações impostas sobre o uso de suas terras. Além disso, ressalva-

mos que políticas públicas direcionadas a desmatadores ilegais e a

outros tipos de especuladores (desmatar, em geral, valoriza a terra)

não são o objeto precípuo da presente análise, ainda que tais ques-

tões sejam abordadas adiante. Feitas as ressalvas, o fato é que as

novas previsões do Código, após a reforma que a seguir analisare-

140 Habib Jorge Fraxe Neto

Page 142: O 2014 que nos espera

mos, tiveram como efeito dar a ambos, agricultores e desmatadores,

os mesmos benefícios, em alguns casos especíicos.

O aumento das restrições à exploração de lorestas nativas ainda

ganhou força ao longo da década de 1990. Como já se disse aqui, o

monitoramento via satélite das taxas de desmatamento foi um im-

portante fator nesse aspecto. Além disso, a crescente inserção do

Brasil no cenário mundial de acordos regulatórios em matéria am-

biental, cujo ápice naquela década foi a Conferência Rio-92.

O maior rigor na proteção lorestal tinha sobretudo (como ainda

tem) amparo na nova Constituição da República, a primeira a tratar

especiicamente do tema ambiental, dedicando-lhe o Capítulo VI. Seu

art. 225 estabeleceu o meio ambiente ecologicamente equilibrado

como direito intergeracional, impondo ao Poder P úblico a preservação

dos ecossistemas e do patrimônio genético, dentre outras determina-

ções, que fundamentavam a proteção legal de matas nativas.

Finalmente, em resposta aos índices crescentes de desmatamen-

to então registrados ao longo da década de 1990, editou-se a Medida

Provisória (MP) nº 1.511, de 1996, cujas sucessivas reedições resul-

taram na MP nº 2.166-66, de 2001. Com o novo texto, estabelecem-

-se conceitos fundamentais para aplicação do Código de 1965, des-

tacando-se a deinição de pequena propriedade ou posse rural para

efeitos de lexibilização no cumprimento de exigências de recomposi-

ção de APP e RL. E, dentre outras inovações, ampliou-se a área exi-

gida como RL na Amazônia Legal.

Para regulamentar a aplicação de infrações e sanções administra-

tivas previstas, dentre outras normas, pela Lei de Crimes Ambientais

(Lei nº 9.605, de 1998), o Executivo federal editou o Decreto n º 6.514,

em 22 de julho de 2008. Guardemos essa data, ela é fundamental

para entendermos os pontos mais controversos da reforma do Códi-

go, a seguir apresentada. No Decreto, havia especialmente dois dis-

positivos rigorosos – ao menos quanto ao valor das multas, calcula-

das em até R$ 5.000 por hectare – para quem não recuperasse a

vegetação nativa em APP ou RL e não averbasse em cartório sua Re-

serva Legal, respectivamente arts. 48 e 55. O dispositivo que deter-

minava prazo para averbação foi alterado diversas vezes, sempre no

sentido de sua prorrogação, o que provavelmente indicava a impopu-

laridade de tal medida.

Na mesma época, um artigo publicado por um pesq uisador da Em-

presa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) argumentava

que, devido às diversas restrições legais em porções do território dedi-

cadas a unidades de conservação (UC), terras indígenas, terrenos qui-

A Reforma do Código Florestal 141

Page 143: O 2014 que nos espera

lombolas, APP e RL, ―apenas 7% do bioma Amazônia e 33% do país

seriam passíveis de ocupação econômica‖ e que ―o alcance da legisla -

ção ambiental e territorial seria de, pelo menos, 67% do Brasil ‖.

Os dados eram, no entendimento deste autor, contestáveis. Por

exemplo, a maior parte das unidades de conservação são do tipo uso

sustentável, em que se permitem atividades econômicas. Pratica-

mente todo o território do Distrito Federal insere-se em unidades

desse tipo, tais como a Área de Proteção Ambiental (APA) do Planalto

Central. E, no entanto, há inúmeros centros urbanos, industriais e

agrícolas no DF. De fato, em alguns biomas, a exemplo da Mata

Atlântica, da Caatinga e dos Pampas, as UC de uso sustentável –

como as registradas no DF – respondem por mais da metade da ex-

tensão de áreas protegidas.

A despeito dos dados questionáveis, o artigo sintonizava -se com o

entendimento dos grupos de pressão que, desde as alterações pro-

movidas ao longo das décadas de 1980 e 1990, buscavam diminuir o

rigor do Código Florestal. Contudo, a edição do Decreto nº 6.514, de

2008, com sanções expressivas para os que não averbassem a RL

nem realizassem a recuperação/recomposição de APP e RL, foi talvez

o estopim para que a reforma inalmente avançasse.

Os representantes do setor agropecuário mobilizam-se e aprovam

na Câmara dos Deputados um projeto de lei que tramitava há 15

anos, com grandes alterações em relação ao Código vigente. Analisa-

do pelo Senado Federal, que realiza signiicativas modiicações, o

projeto foi novamente deliberado na Câmara, antes de ir à sanção

presidencial, que resultou na Lei nº 12.651, de 25 maio de 2012.

Nessa fase, a presidente da República vetou diversos dispositivos e

editou medida provisória para preencher lacunas normativas criadas

em função dos vetos. A Medida Provisória foi convertida na Lei nº

12.727, de 17 de outubro 2011, trazendo nova coniguração para a

Lei nº 12.651, de 2012.

Há pontos positivos na reforma, que mereçam ser apontados? Air -

mar que não, a nosso ver, seria desconsiderar a função constitucional

do Congresso Nacional. Talvez a principal virtude da reforma tenha sido

aproximar o produtor rural do cumprimento de uma legisla ção possível,

ao menos foi esse o argumento apresentado pelos reformistas.

Por outro lado, não há como negar que a reforma acarretou perda

considerável de matas nativas e de áreas que deveriam, no regime

anterior, ser preservadas. Analisaremos a seguir as virtudes e críti-

cas ao novo Código.

142 Habib Jorge Fraxe Neto

Page 144: O 2014 que nos espera

Aspectos positivos e negativos da reforma do Código Florestal

Qual a motivação para tal reforma, em especíico quanto à lexi-

bilização das obrigações de manutenção e recuperação de áreas na-

tivas no interior das propriedades e posses rurais? A resposta mais

óbvia (e mais simplista) poderia ser uma que foi comumente repercu-

tida pela mídia e por diversos setores do chamado ―ambientalismo‖.

A agricultura e a pecuária seriam as responsáveis pela devastação de

lorestas, e pretendiam livrar-se de suas responsabilidades, incluin-

do o pagamento de multas e a recuperação da degradação causada.

Contudo, estereótipos pouco contribuem para a análise da ques-

tão, que envolve incentivos do próprio Estado e do sistema de inan-

ciamento agrícola, por meio de políticas públicas para a conversão de

áreas nativas – posteriormente deinidas, por alterações legislativas,

como APP ou RL – em campos agropecuários. Além disso, opinamos

que se deve distinguir entre o homem que ocupa terras para devastá-

-las (invadindo, grilando, extraindo ilegalmente sua madeira, para

então buscar arrasar a próxima mata virgem) e o homem de boa-fé

que depende da sua propriedade ou posse rural como base para seu

sustento ou lucro.

Uma das virtudes da reforma seria trazer segurança jurídica à

atividade agropecuária e proporcionar uma legislação cujo cumpri-

mento fosse possível. Argumentou-se, em favor dos agricultores, que

as medidas mais duras do Código de 1965 teriam sido implementa-

das por meio de medidas provisórias, editadas e reeditadas livremen-

te pelo Executivo, sem a participação do Legislativo. Entendemos,

contudo, que o argumento é inconsistente, pois o Congresso Nacio-

nal detinha (como ainda detém) a prerrogativa de apreciar tais MPs e

de rejeitar dispositivos que desfavorecessem a atividade agrícola.

Na ótica da agricultura, o Código de 1965 estaria defasado. Fora

editado quando o campo não conseguia suprir nem mesmo o merca-

do interno, devido à baixa produtividade e à pequena extensão na

ocupação das terras. Desde a década de 1970, contudo, a agricultu-

ra teria passado por uma enorme dinamização que culmina, hoje, na

posição do país como um dos mais importantes atores no mercado

global de commodities agrícolas e no avanço da fronteira sobre o Cer -

rado e a Amazônia.

Segundo dados da Confederação Nacional da Agricultura e Pecu-

ária do Brasil (CNA), devido ao crescente rigor promovido pelas alte -

rações ao Código, 90% dos cerca de 5,2 milhões de propriedades

rurais contrariavam algum dos dispositivos da Lei nº 4.771, de 1965.

Nessa categoria enquadravam-se os cultivos de arroz nas várzeas

A Reforma do Código Florestal 143

Page 145: O 2014 que nos espera

gaúchas, ―responsável por dois terços da produção nacional, algo

entre 6 a 7 milhões de toneladas por ano‖. Em situação semelhante

estaria o café plantado em terrenos inclinados de Minas Gerais, ―res-

ponsáveis por 40% da produção brasileira‖.

A CNA aponta ainda uma das principais virtudes da reforma: li-

vrar os produtores rurais das pesadas multas a que estariam sujei-

tos. Além disso, a reforma aliviaria o pesado custo econômico da re-

cuperação de áreas desmatadas e da imobilização, para a preservação

ambiental, de terrenos aptos a cultivos.

Sob a ótica do fortalecimento de uma política lorestal protetiva,

alguns pontos positivos poderiam ser apontados. Elevaram-se ao ní-

vel legal dispositivos antes contidos em normas infralegais, a exem-

plo da deinição de veredas e de mangues como APP. O novo Código

também dedicou capítulos ao controle da origem dos produtos lores-

tais, à proibição do uso do fogo e do controle de incêndios, ao progra-

ma de apoio e incentivo à preservação e recuperação ambiental, ao

controle do desmatamento e à agricultura familiar.

O Ministério do Meio Ambiente foi um dos mais engajados em

incorporar na reforma dispositivos que assegurassem a recuperação

de passivos, a exemplo do Cadastro Ambiental Rural e do Programa

de Regularização Ambiental (PRA). Segundo o próprio MMA, o termo

―anistia‖ não se aplicaria, já que os proprietários isentos de multas

aplicadas até 22/8/2008 teriam agora a obrigação de recuperar ou

compensar a área degradada por meio do PRA.

Ainda que anistiar não seja o termo adequado aos que dispõe a

nova lei, não se pode deixar de concluir que extinguiram-se obriga-

ções de recuperar, pelo menos para todas as propriedades liberadas

da exigência de RL e para os casos em que houve diminuição da ex-

tensão das APP ou a possibilidade de cômputo de APP como parte da

RL. São aspectos que introduzem as críticas feitas à reforma do Có-

digo Florestal, a seguir apresentadas.

Tais críticas podem ser representadas pelo conteúdo das três

Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizadas pelo Procura -

dor-Geral da República (PGR), que contestam em torno de quarenta

dos 84 artigos da nova lei. Nas ações, o PGR requer a declaração de

inconstitucionalidade desses dispositivos, destacando-se a seguir os

principais pontos questionados:

• a deinição de área rural consolidada com base unicamente

na data de 22 de julho de 2008, sem que se exija ―qualquer

circunstância razoável‖ – além do corte temporal – para a sus-

144 Habib Jorge Fraxe Neto

Page 146: O 2014 que nos espera

pensão de multas e a dispensa de ações de recuperar áreas

antes consideradas APP ou RL, em violação à exigência cons-

titucional de que a propriedade atenda sua função social;

• a ampliação dos usos agrícolas possíveis em várzeas, de forma

geral. Tal possibilidade deveria aplicar-se apenas a casos

especíicos;

• a deinição inadequada de APP em nascentes e olhos d‘água

apenas para as perenes, com a exclusão da proteção vegetal

para nascentes e olhos d‘água intermitentes;

• a permissão de intervenção em APP para gestão de resíduos

(por exemplo, instalação de aterros sanitários) não seria ade-

quada do ponto de vista da manutenção da qualidade

hídrica;

• a autorização para execução, em manguezais degradados, de

obras habitacionais e de urbanização, inseridas em projetos

de regularização fundiária de interesse social, em áreas con-

solidadas ocupadas por população de baixa renda;

• a equiparação de tratamento ―dado à agricultura familiar e às

pequenas propriedades ou posse rurais familiares àquele diri-

gido às propriedades com até quatro módulos iscais‖. Nesse

ponto, o PGR argumenta que ―propriedades de até quatro mó-

dulos iscais podem atingir dimensões de aproximadamente

quatrocentos hectares, na Amazônia Legal, e não necessaria-

mente estão dedicadas à agricultura familiar. A equiparação

seria, portanto, uma afronta ao princípio da isonomia‖, já que

para ambas categorias a nova lei lexibiliza exigências de re-

cuperação de APP e RL;

• a admissão do plantio de até 50% de espécies exóticas, como

medida de recuperação em APP, descaracteriza suas funções

ecológicas;

• a desoneração do dever de recuperar RL em propriedades com

até quatro módulos iscais, ―premiando injustiicadamente

aqueles que realizaram desmatamentos ilegais‖. Com base em

estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, quase

quatro milhões de hectares deixarão de ser recuperados;

• a autorização para cômputo de APP no percentual de RL, para

qualquer tamanho de propriedade rural. A argumentação do

PGR corrobora dados cientíicos no sentido de que APP e RL

desempenham funções ecossistêmicas distintas.

A Reforma do Código Florestal 145

Page 147: O 2014 que nos espera

Além do Ministério Público, o meio acadêmico indicou – com voz

ativa, pelo menos no trâmite da matéria no Senado Federal, em au-

diências públicas realizadas sobre o tema – seu posicionamento, por

meio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e

da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Defendeu que o projeto de

lei deveria ser discutido com maior profundidade e menos pressa. E

contribuiu com diversos documentos técnicos.

Destacam-se considerações acerca da inadequação em permitir a

compensação da RL em locais distantes da propriedade (inclusive em

outro Estado da Federação), ainda que em mesmo bioma, já que a

―maioria das espécies tem distribuição geográica limitada dentro de

cada bioma‖, considerando inclusive a ocorrência de endemismos

(espécies que só ocorrem em determinado local). Ainda, para os re-

presentantes da Ciência, eventuais alterações deveriam basear-se

em planejamento e ordenamento territorial, com fundamento na in-

tegração entre propriedade rural e adequação ambiental, com base

em incentivos – tais como pagamentos por serviços ambientais – e

em recursos tecnológicos de imageamento e modelagem computacio-

nal de terrenos, ―para a construção de paisagens rurais com susten-

tabilidade social, ambiental e econômica‖ .

Talvez a maior cr ítica à reforma seja que, como motivação inicial,

havia questões pontuais a serem resolvidas, atividades rurais que

precisavam ser regularizadas, a exemplo dos plantios de arroz em

várzea e de café em encostas. Contudo, o resultado inal foi muito

além disso e estendeu de maneira geral lexibilizações que poderiam

ter sido concedidas de forma especíica. Por conta disso, nos termos

do conteúdo das ADI, que reverberam a insatisfação de setores mais

associados à proteção ambiental, ocorreu uma signiicativa diminui-

ção no regime protetivo de lorestas.

No resultado inal, em diversas situações o desmatamento para

especulação e venda ilegal de madeira, um dos mais graves problemas

observados na Amazônia – onde o preço da terra desmatada tem maior

valor de mercado – foi tratado com isonomia em relação à tradicional

atividade agrícola. Esse foi um dos efeitos da reforma, devido, entre

outros, à lexibilização nas exigências de manutenção e recuperação

de APP e RL em propriedades de até quatro módulos iscais – que na

Amazônia podem alcançar em torno de 400 hectares. Dada a precária

governança fundiária e a imensa diiculdade de iscalização, aumen-

tam as chances de novos desmatamentos na região.

Por outro lado, o Código Florestal de 1965 tinha foco prec ípuo em

políticas de comando e controle, com dispositivos vinculados a ou-

146 Habib Jorge Fraxe Neto

Page 148: O 2014 que nos espera

tras normas punitivas tais como a Lei de Crimes Ambientais. Entre-

tanto, uma regra básica em economia diz que as pessoas reagem a

incentivos, e não só a punições. Contudo, incipientes têm sido os

programas de incentivo e de apoio a agricultores no sentido de prote-

ger a biodiversidade contida em matas nativas, o que pode explicar

sua baixa adesão às regras da Lei nº 4.771, de 1965.

Nesse sentido, o antigo Código já trazia previsões (algumas copia-

das pela nova lei) cuja efetivação jamais ou raramente se realizou, a

exemplo da possibilidade de conversão de excedentes de Reserva Le-

gal em cotas lorestais, títulos que poderiam ser negociados. Outros

mecanismos poderiam contribuir com as ações de proteção, a exem-

plo de incentivos pela prestação de serviços ambientais e de medidas

compensatórias por ações que reduzam emissões de gases do efeito

estufa, associadas à manutenção de matas, tais como o REDD (redu-

ção de emissões por desmatamento e degradação de lorestas).

A ausência desses incentivos é, de fato, um dos principais obstá-

culos à manutenção de matas nativas em propriedades rurais, em

especial para pequenos agricultores. A reforma do Código Florestal

não necessariamente resolverá esse nem outros problemas críticos

enfrentados pelo setor agrícola.

Conclusões

Se a agricultura tinha (como ainda tem) problemas graves que afe -

tam os produtores rurais, as soluções poderiam ser buscadas no âmbi-

to de uma política agrícola adequada e não necessariamente com foco

tão destacado na lexibilização do arcabouço normativo ambiental, que

tinha no Código Florestal de 1965 um de seus principais pilares.

A raiz dos problemas no campo continua latente, em especial

para os pequenos produtores, e a reforma do Código não os resolve-

rá: virtual ausência de assistência técnica com métodos adaptados

aos trópicos; pecuária extensiva de baixa produtividade ocupando

quase 76% das terras dedicadas à agricultura; extrema vulnerabili-

dade da agricultura familiar a eventos climáticos, conforme se obser-

vará este ano para o Nordeste semi-árido; crescente perda de mão-

-de-obra que migra para áreas urbanas; precariedade dos serviços

públicos e da infraestrutura no Brasil interiorano; e tendência de

declínio na renda oriunda da atividade primária, dentre outros.

Reforçamos a importância no aumento da eiciência, muito espe-

cialmente para os pequenos proprietários e posseiros rurais. A ex-

pansão da fronteira agrícola resultou em grandes extensões de pro-

A Reforma do Código Florestal 147

Page 149: O 2014 que nos espera

priedades dedicadas à pecuária de baixa produtividade. São terras

que abrangem 211 milhões de hectares, em torno de 25% do territó-

rio brasileiro – e de 76% da área agrícola. O aumento da produtivida-

de média na criação animal poderia liberar quase 70 milhões de hec-

tares, que seriam incorporados ao estoque de terras agrícolas, sem a

necessidade de novos desmatamentos.

Ainda que os pequenos agricultores enfrentem graves problemas

para a manutenção de suas atividades, conforme exposto, a força de

nossa agricultura é incontestável. Safras e safrinhas recordes, abas-

tecimento do mercado interno com excedentes que permitem a regu-

lação de preços, posição entre os maiores exportadores mundiais de

commodities agrícolas, manutenção do equilíbrio da balança comer-

cial e garantia de insumos com preços razoáveis à indústria nacio-

nal, são algumas das características pujantes do setor.

Dada sua relevância econômica e social, não é difícil entender

como, na elaboração da nova lei, o setor agrícola emplacou as princi-

pais alterações no sentido da lexibilização da proteção lorestal, com

ampla margem de apoio, baseando-se nos resultados das votações

na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

A base da política de restauração de APP e RL reside agora nos

Programas de Regularização Ambiental. Esses são ainda uma incóg-

nita a ser solucionada no médio e longo prazos, pois dependem da

articulação institucional entre os entes federativos, assim como de

medidas para incentivar agricultores à recuperação e à preservação

das matas que ainda existam em suas terras. E aqui reside outra

incógnita: a efetiva adesão de proprietários e posseiros rurais a tais

programas e às demais regras do novo Código.

Aziz Nacib Ab‘Sáber, em artigo in memoriam publicado pela

SBPC11, defendeu que ―por muitas razões, se houvesse um movi-

mento para aprimorar o atual Código Florestal, teria que envolver o

sentido mais amplo de um Código de Biodiversidades, levando em

conta o complexo mosaico vegetacional de nosso território‖ e que ―a

utopia de um desenvolvimento com o máximo possível de lorestas

em pé não pode ser eliminada‖.

A conservação dessa vegetação, nosso patrimônio nacional, de-

termina a própria sustentabilidade da agropecuária, já que os ma-

nanciais de água, a fertilidade e estabilidade do solo e a presença de

agentes polinizadores – insumos e serviços fundamentais à atividade

agrícola – dependem diretamente da presença de lorestas.

148 Habib Jorge Fraxe Neto

Page 150: O 2014 que nos espera

Municipalização da Educação

no Estado do Rio de Janeiro: cumprimento da legislação

ou transferência de responsabilidade?

Comte Bittencourt

tido início, de forma efetiva, em dezembro de 1987, com a

Resolução nº 1.411, assinada pelo então Secretário de Estado

de Educação, Carlos Alberto Direito (Ministro do STF), que criou o

Programa de Municipalização do Estado do Rio de Janeiro (Promurj),

quase 26 anos depois, a descontinuidade das políticas educacionais,

levadas a cabo pelos sucessivos governos do Estado do Rio de Janei-

ro, tornou esse processo ainda mais complexo, além de suas próprias

implicações decorrentes das diiculdades encontradas para cumprir

a legislação sem prejuízo das comunidades escolares.

Nesse imbricado contexto de descompasso das políticas educa-

cionais do Estado, conseguimos aprovar a Lei do sistema de ensino

do Estado do Rio de Janeiro, Lei nº 4.528 de março de 2005, que

procurou dar uma organização sistêmica à rede pública estadual no

território luminense, sem perder de vista a necessária consolidação

das atribuições dos entes federados – estado e municípios, previstas

nas Constituições Federal e Estadual e na Lei de Diretrizes e Bases

da Educação Nacional n° 9.394/96.

Na Lei n° 4.528/2005 o princípio norteador era de que a incum-

bência dos entes federados fosse cumprida, conforme estabelece a

legislação vigente, mas, no que concerne à municipalização, que o

Regime de Colaboração fosse observado em todas as etapas do pro-

cesso, a im de garantir que seriam respeitadas as peculiaridades do

município e, particularmente, das comunidades em que as escolas,

possíveis de serem municipalizadas, estavam inseridas. Isto porque

se tinha a consciência das inúmeras diiculdades que perpassam as

instâncias municipais, acrescidas, repentinamente, da necessidade

de absorver uma intensa demanda de alunos.

Nossa preocupação foi, mais uma vez, reiterada na aprovação do

Plano Estadual de Educação do Rio de Janeiro (PEE/RJ), instituído

pela Lei nº 5.597/09, no qual as quatro primeiras metas para a Edu-

cação Básica apontavam a necessidade de ―assegurar‖ e ―apoiar‖ a

expansão da oferta de Educação Infantil nas redes municipais por

149

Embora a municipalização no Estado do Rio de Janeiro tenha

Page 151: O 2014 que nos espera

meio do Regime de Colaboração, bem como o estabelecimento, por

parte do Estado, de programas de formação de proissionais de Edu-

cação Infantil, no âmbito do ―Programa Escola-Infância‖, nos termos

da Lei Estadual nº 5.311/2008, também de nossa autoria.

No que se refere ao Ensino Fundamental legislamos pela garantia

de acesso e de viabilização ―da permanência do aluno no Ensino

Fundamental obrigatório de qualidade, com duração de nove anos,

planejando em regime de colaboração com os municípios, no prazo

de 10 (dez) anos, a partir da publicação deste Plano, a progressiva

transferência das matrículas dos anos iniciais do Ensino Fundamen-

tal para a rede municipal, conforme o que estabelece a Lei Estadual

nº 4.528/2005 (art. 62)‖.

Todavia, embora o PEE/RJ apontasse para a necessidade da mu-

nicipalização realizada sob determinadas condições, entre as quais

se destacava a necessidade do levantamento de diversas variáveis em

ambas as redes públicas locais, do Estado e do município, com a i-

nalidade de garantir que esse processo não se caracterizasse por

uma simples ―desresponsabilização‖ do Estado para com parte da

Educação Básica, não foi isso que se viu, nesse período, na quase

totalidade dos processos concluídos e em andamento. Na prática,

foram poucos os casos em que o estudo de possibilidades entre os

entes federados ocorreu, de fato. Na grande maioria, os critérios uti-

lizados estavam muito mais atrelados a negociações políticas do que

a condições técnicas de oferta e demanda.

Além disso, ao retomar o processo de municipalização via Pro-

murj, nos dias atuais, a Secretaria de Estado de Educação (Seeduc)

―criou‖ categorias diferenciadas para a municipalização, na qual pas-

sou a considerar como ―municipalização de escolas‖, aquela que

ocorre envolvendo as instalações físicas e demais recursos materiais

ou de pessoal lotado na escola, e ―curiosamente‖ de ―municipalização

do ensino‖ , aquilo que se refere t ão somente ao fechamento gradativo

da oferta dos anos iniciais do ensino fundamental nas escolas da

rede estadual e comunicação aos municípios que a partir de então,

caberia a esta instância provê-la. Observa-se que a nomenclatura

―municipalização do ensino‖ pode, nesses termos, ser traduzida tão

somente por encerramento da oferta nas escolas públicas do Estado

com expectativa de que o município a assuma em suas escolas ou

naquelas que venha a construir, alugar ou comprar para fazê-lo!

A par desse contexto, ao receberem o ofício de comunicação do

Estado do interesse de municipalizar escolas ou ―ensino‖ em deter-

minado município, é plausível que os secretários de educação sin-

150 Comte Bittencourt

Page 152: O 2014 que nos espera

tam-se extremamente inseguros em aceitar tal ―Regime de Colabora-

ção‖ que, por vezes, não passa da assinatura de um termo de cessão,

ou de assunção da demanda por parte dos municípios.

Na perspectiva da legislação, especialmente aquela emanada da

Comissão de Educação da Alerj, sinalizamos ao poder executivo, os

caminhos possíveis e viáveis, por meio do disposto nas Leis de nossa

autoria, entre elas a Lei nº 4.528/05, o PEE/RJ, Lei 5.597/09, e a Lei

nº 5.311/2008, para que o processo de municipalização ocorresse de

forma responsável e comprometida com a educação luminense.

Do mesmo modo, não se pode esquecer que as determinações

contidas na Emenda à Constituição Federal n° 59/2009 de amplia-

ção da escolaridade obrigatória no Brasil, exigem que as instâncias

federativas dialoguem e pratiquem o Regime de Colabora ção previsto

na legislação, a im de universalizar o ensino dos 4 aos 17, até 2016.

Por sua vez, os municípios sentem-se incapazes de assumir as

lacunas deixadas pelo Estado, além de temer o comprometimento de

seu orçamento e planejamento da gestão pública. Somam-se a isso,

as muitas diiculdades que os municípios enfrentam e alegam para

irmar o Regime de Colaboração com o Estado, especialmente, quan-

do envolve a municipalização dos anos iniciais do Ensino

Fundamental.

Neste contexto político, o processo de municipalização continua

ocorrendo por meio de ofícios disparados pela Seeduc, que são lidos

por secretários municipais de educação e prefeitos surpreendidos e

confusos para entender o teor dos documentos, ou para, na prática,

transformar as informações contidas no papel em ações a serem re-

alizadas junto a uma comunidade ávida por melhorias e mudanças

na educação pública.

No que tange às crianças e aos adolescentes, estes não pertencem

nem a uma nem a outra instância exclusivamente, mas deveriam ser

alvo de políticas educacionais conjuntas que buscassem complemen-

taridade e a superação dos inúmeros desaios que se apresentam às

redes públicas municipais e estaduais, para oferecer aos seus alunos

condições de igualdade de oportunidades de escolaridade, emprego e

ascensão social, especialmente, quando a Emenda à Constituição

Federal determina um imenso avanço quanto ao período de perma-

nência obrigatória na escola.

Municipalização da Educação no Estado do Rio de Janeiro 151

Page 153: O 2014 que nos espera

“Acabou chorare”

Zulu Araújo

avançou, a democracia se consolidou e o movimento negro

se faz presente nos quatro cantos do país. Ao que tudo indi-

ca, apesar dos percalços, das dores e dos sofrimentos que ainda se

fazem presente em nosso cotidiano, o saldo das lutas empreendidas

pelo movimento social, pa ís afora, é positivo.

Poderia listar um sem número de conquistas, mas vamos icar só

nas emblemáticas: a aprovação, por unanimidade, pelo Supremo Tri-

bunal Federal das cotas raciais nas universidades; a aprovação pelo

Congresso Nacional da Lei no 10.639/2004, que instituiu o ensino da

História da África e Cultura Afro-Brasileira nas escolas; a edição pelo

Poder Executivo do Decreto no 4.887/2003, regulamentando a Certi-

icação e Titulação das Terras Quilombolas e a criação de dezenas de

Secretarias e órgãos públicos de Promoção da Igualdade Racial por

todo o país. Tudo isto, graças à luta, à persistência e à garra de mi-

lhares de militantes e aliados, assim como da sensibilidade e com-

promisso social dos últimos governos, liderados pelos presidentes

Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.

Importante dizer que estes avanços só foram possíveis por estar

ancorados na histórica Assembleia Nacional Constituinte, que pro-

duziu a tão celebrada Constituição Cidadã, após intensos e acirrados

debates. Ou seja, a democracia é e continuará sendo o grande esteio

das conquistas sociais em tempos modernos. Sem que tivéssemos

esse manto protetor que abrigou o processo democrático vivido até o

momento, diicilmente teríamos percorrido com tanta irmeza o cami-

nho atual. Mas, a demanda por justiça social é enorme e a dívida do

país para com a comunidade negra é maior ainda e infelizmente a

conquista da igualdade racial só é percebida como miragem.

E são exatamente estes avanços, ao que tudo indica, que sinali-

zam para o encerramento de um ciclo, ao celebrarmos mais um 20 de

Novembro – Dia Nacional da Consciência Negra. As manifestações de

junho, ainda latentes e mal resolvidas, nas quais milhões de pessoas

foram às ruas protestar contra a mesmice que se instalou na política

152

Deinitivamente os tempos mudaram. A sociedade brasileira

Page 154: O 2014 que nos espera

nacional, foi apenas um sinal, um alerta. E o movimento negro não

está imune a estas intempéries.

Se é verdade que tivemos avanços e conquistas, também é verda-

de que os setores conservadores e racistas de nossa sociedade se

rearticularam, reorganizaram e encontraram novas formas de asse-

gurar seus privilégios. Ocuparam espaços importantes, tanto no go-

verno quanto na sociedade. Vide a paralisação de toda e qualquer

titulação de terras quilombolas, nos últimos três anos, e a conquista

da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, onde

instalaram um deputado dos mais retrógrados na sua presidência.

Tudo isto sob os auspícios da tão propalada governabilidade.

Na sociedade, os dados são alarmantes e trágicos. Segundo o

Mapa da Violência 2013, publicado pelo Centro Brasileiro de Estu-

dos Latino-Americanos, houve um decréscimo da ordem de 26,4% do

número de assassinatos de jovens brancos no país, nos últimos dez

anos, enquanto na juventude negra o acréscimo foi da ordem 30,4%.

Ou seja, foram 35.297 jovens negros assassinados, na maioria dos

casos pela polícia ou por grupos de extermínio, que são formados

basicamente por policiais.

A intolerância religiosa, liderada pelos neopentecostais, amplia-

-se de forma vertiginosa no país, atingindo de maneira dura as reli-

giões de matrizes africanas e até mesmo a implementação da Lei no

10.639, sem que sejam adotadas quaisquer medidas punitivas, ape-

sar do uso intenso dos meios de comunicação para tal im, meios

estes que são concessão pública e estão sob controle do Estado.

Não há como esconder, é um preço muito alto para as conquistas

que tivemos.

O que vimos na última Conferência Nacional de Promoção da

Igualdade Racial foi muito mais que um sintoma, foi um aviso.

O modelo de discussão restrito e controlado, em que o tempo era o

senhor da razão, sem que houvesse uma análise crítica do ocorrido

entre uma conferência e outra, também não contribuiu muito para

que houvesse uma relexão profunda que identiicasse as razões da

nossa atual desmobilização, das diiculdades na relação com o gover-

no e de como enfrentar os novos desaios.

Diante de tantas perguntas sem respostas, é que icou a sensação

de que encerramos um ciclo. Após tantas conquistas e avanços, o

movimento negro não pode se contentar apenas com bolsa família e

mais médicos ou com as denúncias e constatações de sempre. Aca-

bou chorare.

―Acabou chorare‖ 153

Page 155: O 2014 que nos espera

Como diria os Titãs, a gente não quer só comida, a gente quer co-

mida, diversão, arte e igualdade. Igualdade traduzida no orçamento

público para que possamos implementar as políticas públicas de

ações airmativas, igualdade traduzida na legislação que puna efeti-

vamente aqueles que praticam o racismo. Assim como igualdade na

ocupação real de espaços de poder.

Neste sentido, teremos que inevitavelmente mudar o rumo da

prosa. Apontar para o futuro, com a certeza de que o que izemos

bem no passado não pode mais ser modelo para o presente. Cons-

truir uma nova agenda política, com novos atores, novos métodos e

novas propostas é a nossa tarefa maior. Ter coragem para colocá-la

em discussão aberta na sociedade é outro imperativo. E dialogar com

todas as forças políticas antirracistas, retomando o caráter supra-

partidário da nossa luta, deve ser muito mais que uma estratégia,

mas uma questão de princípio.

Axé!

Toca a zabumba que a terra é nossa!

154 Zulu Araújo

Page 156: O 2014 que nos espera

Fundamentos ilosóicos

dos Juizados Especiais

Oriana Piske

Os Juizados Especiais têm seus fundamentos ilosóicos no va-

Vale lembrar que a ilosoia é a relexão do espírito sobre seu com-

portamento valorativo teórico e prático e, igualmente, aspiração a

uma inteligência das conexões últimas das coisas, a uma visão racio-

nal do mundo. Portanto, a ilosoia ―é a tentativa do espírito humano

de atingir uma visão do mundo, mediante a auto-relexão sobre suas

funções valorativas teóricas e práticas.‖

A ilosoia passa, atualmente, a assumir um papel extraordinário

na História – no dizer de Richard Rorty, ―a grande conversação‖ –

portanto, um diálogo crítico, permanente e renovador com as outras

áreas do saber humano. Ainal, com o desenvolvimento das ciências

sociais, a exemplo da Psicologia, da Antropologia e da própria Histó-

ria, a partir do século XIX, estas levariam ao impasse do esgotamen-

to da tradicional concepção ilosóica.

Apresentar as questões contemporâneas da ilosoia como even-

tos em um certo estágio de uma conversação, demonstra que os se-

res humanos não perderam o contato com os problemas reais que se

deseja resolver. Portanto, trata-se de uma visão ilosóica pragmática

que certamente vem contribuindo aos diversos ramos do saber, mui-

to especialmente ao Direito.

Consideramos que os Juizados Especiais brasileiros, por terem so -

frido inluência das Small Claims Courts norte-americanas, trazem no

seu substrato o inluxo da ilosoia pragmatista, incorporando um prag-

matismo jurídico na maneira de conduzir e de decidir o processo.

O termo pragmatismo tem sua origem etimológica do grego prâg-

ma, que signiica ação. Segundo Johannes Hessen, a concepção

pragmatista tem no conceito de verdade o mesmo sentido de ―útil,

valioso, promotor da vida‖. Acrescenta, que ―o homem é, antes de

mais nada, um ser prático, dotado de vontade, ativo...‖.

155

lor Justiça, na prudência e no pragmatismo jurídico. Conhe-

cendo os fundamentos ilosóicos em que estão calcados os

Juizados encontraremos suas raízes e suas balizas.

Page 157: O 2014 que nos espera

A ilosoia pragmática visa situar o pensamento ilosóico mais

próximo dos problemas práticos por considerar que o homem e o

mundo constituem uma unidade. A experiência autêntica é a histó-

ria desta unidade, exclui a possibilidade de o homem, de qualquer

modo ou em alguma atividade, quer seja a arte, a ciência ou a iloso-

ia, poder ser espectador desinteressado do mundo, sem ver-se en-

volvido nas suas vicissitudes. Não seria diferente com relação ao Di-

reito, encarado como instituição humana, surgido de necessidades

humanas, a exigirem sempre uma solução prática para os conlitos.

A ilosoia pragmática, ao nosso sentir, desenvolve uma prudên-

cia; visto que, ao partir da experiência, busca investigar logicamente

respostas capazes de resolver o problema, não como uma verdade

absoluta, mas como uma solução para aquele determinado proble-

ma, naquele dado momento.

A prudência pressupõe um saber prático; não é ciência ou arte,

mas, sim, uma virtude acompanhada de razão. É a prudência, antes

de tudo, uma razão intuitiva, que não discerne o exato, porém o corre-

to. A prudência é o meio de deliberar de forma boa e conveniente. Para

tal desiderato, é fundamental observarmos a importância da lingua-

gem, pois ―a consciência humana é o resultado da comunicação e não

o contrário. A linguagem é comunicação entre o natural e o cultural, o

que dá à inteligência o caráter social do comportamento humano.‖

Veriicamos uma inluência marcante da ilosoia pragmática na

linguagem jurídica, mormente diante do seu caráter polissêmico e

das diiculdades ao enfrentar a obscuridade, a ambigüidade e a im-

precisão semântica da linguagem nos textos legislativos, por vezes

deliberada, em face dos difíceis processos de negociação. Em decor-

rência, o Poder Judiciário enfrenta a articulação de um direito posi-

tivo, conjuntural, evasivo, transitório, complexo e contraditório,

numa sociedade de conlitos crescentes. A análise pragmática permi-

te articular certas características do funcionamento signiicativo

(persuasão, legitimação, antecipação), explicitando em grande parte

as funções dos discursos jurídicos.

Não há como dispensar o discurso argumentativo/persuasivo,

conjugado com a ponderação prática (critério da razoabilidade) vi-

sando à compatibilização de valores contraditórios e lutuantes que

a realidade em freqüente mudança apresenta. A importância da apli-

cação do referido critério ao fato concreto para a solução do proble-

ma jurídico demonstra a aplicação de um sentido pragmático à lin-

guagem jur ídica

156 Oriana Piske

Page 158: O 2014 que nos espera

Desta forma, a pragmática, projetada ao Direito, permite compre-

ender que a ideologia é um fator indissociável da estrutura conceitu-

al explicitada nas formas gerais. A análise pragmática é um bom

instrumento para a formação de juristas críticos, que não realizem

leituras ingênuas e epidérmicas das normas, mas que tentem desco-

brir as conexões entre as palavras da lei e os fatores políticos e ideo-

lógicos que produzem e determinam suas funções na sociedade.

Ressalte-se que não se pode fazer ciência social ou jurídica sem

sentido histórico, experiencial, sem nenhum compromisso direto

com as condições materiais da sociedade e com os processos nos

quais os atores sociais estão inseridos. Ao nosso entender, o eixo

central do pragmatismo, numa concepção interpretativa do Direito, é

no sentido de que as decisões sejam tomadas observando suas con-

seqüências e efeitos práticos, desenvolvendo uma prudência, visan-

do harmonizar os valores da sociedade.

Na obra Topica y Jurisprudencia, a importância dada por Viehweg

ao fato concreto para a solução do problema jurídico e o uso da tópi-

ca no discurso persuasivo demonstram a aplicação de um sentido

pragmático à linguagem jurídica. Não sendo diferente em face ―del

logos de lo razonable‖ de Recaséns Siches, jusilósofo que percebe as

insuiciências do modelo lógico-formal para o tratamento das ques-

tões jurídicas e prega a importância do problema, do fato social para

o Direito, da mesma maneira pragmática de Viehweg. Neste sentido,

sustenta Margarida Maria Lacombe Camargo:

―Com a ideia inicial de lógica material, Recaséns Siches se posi-

ciona junto a autores como Viehweg e Perelman, que tratam o direito

de forma assistemática. Recaséns Siches não enfrenta propriamente

a questão metódica proposta pela tópica aristotélica, resgatada por

Viehweg, e nem a retórica, retomada por Perelman, que adotam como

base de raciocínio opiniões‖ lugar comum ―. Essas bases de verossi-

milhança, e não de verdades, levam à formulação de um raciocínio

opinativo que guarda força apenas em seus argumentos; ao contrário

do raciocínio matemático, que se apoia na certeza das inferências

retiradas das premissas e que levam a uma solução correta. Não obs-

tante a possibilidade de se estabelecer um raciocínio não-sistemáti-

co, à medida que se privilegia o problema – o fragmento, em lugar do

todo -, e também poder, com o auxílio da tópica, iluminar o problema

sob os seus diversos ângulos, são ambas as possibilidades aprovei-

tadas por Recaséns Siches. Na realidade, seria esta a grande contri-

buição de Recaséns Siches: buscar, a partir do problema, a axiologia

do direito.‖

Fundamentos ilosóicos dos Juizados Especiais 157

Page 159: O 2014 que nos espera

Nesse trilhar, observamos que a ilosoia pragmática vem contri-

buindo fortemente para uma compreensão ativa da prática judicial,

desenvolvendo um pragmatismo jurídico. Este é considerado um pa-

radigma do direito contemporâneo ao procurar situar-se diante das

mudanças nos hábitos sociais através de decisões que buscam sope-

sar o momento histórico-social em que são proferidas.

O que denominamos hodiernamente de pragmatismo jurídico

consiste no renascimento do Realismo Jurídico, movimento prepon-

derante na esfera jurídica norte-americana do início do século XX,

também conhecido como Jurisprudência Sociológica. Esta tendência

doutrinária teve entre seus principais idealizadores Oliver Wendel

Holmes Jr. e Benjamin Cardoso, os dois últimos juízes em atividade

naquele período. Introduzindo um conceito de direito puramente ins-

trumental, os realistas foram responsáveis por um período de efer-

vescência na Suprema Corte daquele país, bem como por decisões

que entraram para a história de seu ativismo.

Os anos de serviço de Holmes no tribunal, bem como a sua pro-

dução teórica, marcada pela análise sobre a natureza da lei, mos-

tram a inluência do pragmatismo. A Constituição dos Estados Uni-

dos, defendia ele, ―é um experimento, como toda a vida é um

experimento.‖ E essa é a razão por que Holmes estava sempre pronto

a contestar como inconstitucionais todas as invasões das liberdades

civis básicas, porque sem elas, tanto a experimentação pessoal como

a experimentação social tornar-se-iam impossíveis. As premissas de-

senvolvidas por Holmes no livro The Common Law apresentam-se

como um março histórico-intelectual.

O Realismo Jurídico, com sua concepção instrumental de Direito,

foi retomado na década de oitenta, porém então renomeado de prag-

matismo jur ídico.

Esclarecido este pequeno março histórico do pragmatismo jurídi-

co, cabe, ainda, explicitar três elementos fundamentais que operam

nesta doutrina, quais sejam: contexto, conseqüência e anti-funda-

cionalismo. A ideia de contexto de que se vale o pragmatismo implica

que quaisquer proposições sejam julgadas pela sua conformidade

com necessidades humanas e sociais. Estas mesmas proposições de-

vem também ser testadas por suas conseqüências e resultados, con-

igurando assim o elemento conseqüencialista. E, por im o pragma-

tismo rompe com qualquer crença em entidades metafísicas.

O pragmatismo não é uma teoria do Direito, mas sim uma teoria

sobre como usar teoria. Pensar o Direito sob a ótica pragmatista,

implica compreendê-lo em termos comportamentais, como a ativida-

158 Oriana Piske

Page 160: O 2014 que nos espera

de dos juízes. O juiz pragmatista avaliará comparativamente diver-

sas hipóteses de resolução de um caso concreto tendo em vista as

suas conseqüências. De todas as possibilidades de decisão, ele ten-

tará supor conseqüências e, do confronto destas, escolherá a que lhe

parecer melhor, aquela que melhor corresponder às necessidades

humanas e sociais. Ele não se fecha dentro de seu próprio sistema,

ou subsistema jurídico, pois a concepção pragmatista de Direito im-

plica a adoção de recursos não jurídicos em sua aplicação e contri-

buições de outras disciplinas em sua elaboração.

O pragmatismo jurídico é também um modo de desempenhar a

própria prática e cabe ressaltar que a hermenêutica adota o papel de

motor do processo jurídico: ela é o pressuposto da discussão. Neste

sentido, Boaventura de Souza Santos, entende que ―a dimensão her-

menêutica visa compreender e desvelar a ininteligibilidade social que

rodeia e se interpenetra nas ciências sociais, elas que são, na socie-

dade contemporânea, instrumentos privilegiados de intelegibilidade

sobre o social. A compreensão do real social proporcionada pelas ci-

ências sociais só é possível na medida em que estas se autocompre-

endem nessa prática e nô-la desenvolvem, duplamente transparente,

a nós que somos o princípio e o im de tudo o que se diz sobre o

mundo. A relexão hermenêutica permite assim romper o círculo vi-

cioso do objeto-sujeito-objeto, ampliando o campo da compreensão,

da comensurabilidade e, portanto, da intersubjetividade, e por essa

via vai ganhando para o diálogo eu/nós-tu/vós o que agora não é

mais que uma relação mecânica eu/nós-eles/coisas.‖

O direito, em toda a sua complexidade, requer a tarefa do conven-

cimento a respeito de certas situações, o que o torna eminentemente

argumentativo e hermenêutico. A retórica exerce papel fundamental

enquanto processo argumentativo que, ao articular discursivamente

valores, tem por escopo a persuasão dos destinatários da decisão jurí-

dica no que concerne à razoabilidade da interpretação prevalecente.

Necessita-se introduzir na análise discursiva, também, uma Se-

miologia que procure reletir sobre a complexidade sociopolítica dos

fenômenos das signiicações jurídicas, ideológicas e ilosóicas. Ai-

nal, o Direito ocorre na sociedade, tanto no estrato do real concreto,

na medida em que os indivíduos em comunidade necessitam de re-

gras de convivência, quanto no estrato da representação dessa reali-

dade. Com efeito, é de fundamental importância que a especialização

dos juristas seja complementada com novas sínteses que permitam

obter as perspectivas necessárias para a concretização do Direito,

dentre elas a concepção ilosóico-pragmática.

Fundamentos ilosóicos dos Juizados Especiais 159

Page 161: O 2014 que nos espera

Para analisar as bases ilosóicas dos Juizados Especiais é preci-

so destacar, ainda, quais são os valores e princípios que, acredita-

mos, dão-lhe o fundamento.

A tutela do Direito por parte do Estado exercita-se, primeiramen-

te, por uma forma preventiva, destinada a impedir que haja a viola-

ção da norma jurídica, mas, depois, quando a violação foi efetuada,

temos a forma de tutela, que se concretiza na administração da Jus-

tiça, e que é destinada a constranger a execução da norma, se ainda

é possível, ou sofrer as conseqüências da sua violação.

Nesse passo, veriica-se que o espírito que sempre orientou o le-

gislador foi o de que a composição das lides se desse da maneira

mais célere possível. Isso vem desde o direito romano, como bem le-

ciona Moreira Alves. Entretanto, as varas e os tribunais vão se tor-

nando incapazes de dar vazão ao grande número de processos que

diariamente ali entram, muito mais do que aqueles que podem ser

solucionados. O acesso à Justiça passa a ser encarado como um cal-

vário a ser percorrido pelo cidadão. Inúmeros são os motivos desse

problema, dentre eles a complexidade das normas procedimentais, o

valor das despesas processuais, bem como encargos com advogados,

apresentam-se como fatores para a grande diiculdade de acesso à

Justiça principalmente da população mais pobre.

Nesse terreno surgiram os Juizados de Pequenas Causas e, em

seguida, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais trazendo a simpli-

icação das normas processuais e acesso a uma Justiça rápida.

Os ideais de justiça e de eqüidade encontram-se nos fundamen-

tos ilosóicos dos Juizados Especiais. A justiça, como princípio jurí-

dico, tem a função de harmonizar os interesses em conlito. Com

efeito, o sentido primordial dos juizados é distribuir a justiça com

eqüidade. Julgar com eqüidade e justiça apresenta-se como o desaio

constante dos juízes dos Juizados Especiais, uma vez que, para ado-

ção de tais critérios decisórios, devem valer-se dos demais princípios

jurídicos, como o da razoabilidade e da proporcionalidade num ba-

lanceamente dos interesses em conlito observando sempre os ins

sociais da lei e as exigências do bem comum.

Longe dos rituais tradicionais, que há mais de século trazem a

Justiça engessada, nos quais predomina uma ideologia mecânica,

onde o juiz é um autômato, como concebido por Montesquieu, os

Juizados revelam-se um instrumento de resgate da cidadania dos

excluídos e da imagem do Poder Judici ário. Como bem assevera Luiz

Fux ―A tão decantada ‗morosidade da Justiça‘ guardava íntima cor-

relação com o cumprimento das solenidades processuais que imobi-

160 Oriana Piske

Page 162: O 2014 que nos espera

lizavam o judiciário a pretexto de garantir o réu contra os arbítrios

da magistratura‖.

Nesse contexto, surge um novo princípio processual – a efetivi-

dade – como resposta judicial tempestiva e adequada, irmando-se,

cada vez mais, como um dos axiomas fundamentais dos Juizados

Especiais. A efetividade traduz a certeza de quem busca a proteção

judicial e não quer apenas que o Judiciário aprecie seu direito, mas

que ponha um im naquele conlito. Vale lembrar, que ―O juiz, de-

clarando a vontade da lei, não só vincula as partes àquela decisão,

como também garante o seu efetivo cumprimento, através da exe-

cução, caso, espontaneamente, o perdedor não se submeta ao jul-

gado. Assim, não se esgota a jurisdição, com a prolação da senten-

ça, pois nesta o juiz cumpre e acaba tão só seu ofício jurisdicional

no processo de conhecimento (art. 463, CPC), haja vista icar atre-

lado a outros procedimentos até a concretização do justo declarado

na decisão.‖

Os princípios e critérios que habilitam o juiz a dirigir e decidir o

processo nos Juizados Especiais estão explicitados nos artigos 2o,

5o, e 6o, da Lei no 9.099/95:

―Art. 2o. O processo orientar-se-à pelos critérios da oralidade, sim-

plicidade, informalidade, economia processual e celeridade, bus-

cando sempre que possível, a conciliação ou a transação.

(...omissis)

Art. 5o . O Juiz dirigirá o processo com liberdade para determinar

as provas a serem produzidas, para apreciá-las e para dar especial

valor às regras de experiência comum ou técnica.

Art. 6o. O Juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais

justa e eqüânime, atendendo aos ins sociais da lei e às exigências

do bem comum.‖

Também é fundamental que o magistrado tenha prudência. Res-

salte-se que a interpretação é uma prudência. A interpretação do

direito está em concretar a lei em cada caso, em sua aplicação, ha-

vendo uma intrínseca co-relação entre estes dois conceitos, visto que

a interpretação e a aplicação do direito se complementam. A inter-

pretação e aplicação são dois momentos distintos de uma mesma

equação. Ambos tem um conteúdo eminentemente prático da

experiência humana.

Na solução das contendas, deve-se lidar com os diversos ramos

do Direito articuladamente, com especial destaque à Constituição,

aos variados dados normativos que são relevantes, aos níveis ins-

Fundamentos ilosóicos dos Juizados Especiais 161

Page 163: O 2014 que nos espera

trumentais (processo), bem como aos critérios de proporcionalidade

e razoabilidade.

Consideramos, que é, também, de fundamental importância que

a especialização dos juristas seja complementada com novas sínte-

ses que permitam uma visão multidisciplinar, a im de se obter as

perspectivas necessárias para a concretização do Direito, dentre elas

a concepção ilosóico-pragmática.

Os fundamentos losóico-pragmáticos dos Juizados Especiais

encontram-se nos valores e princípios de justiça, eqüidade, efetivida-

de e na prudência.

Referências

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162 Oriana Piske

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RÊGO, George Browne. Considerações sumárias sobre os conceitos

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RORTY, Richard. A ilosoia e o espelho da natureza. Rio de Janeiro:

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SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-

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(Extraído de: Direito Legal – 08 de Dezembro de 2011– www.direitolegal.

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Fundamentos ilosóicos dos Juizados Especiais 163

Page 165: O 2014 que nos espera
Page 166: O 2014 que nos espera

VII. Ensaio

Page 167: O 2014 que nos espera

Autor

João Cláudio Bonim

Estudante da Faculdade de Filosoia da Universidade Federal Fluminense e membro do

Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosoia Pol ítica e Educação, coordenado pelo profes-

sor Giovanni Semeraro.

Page 168: O 2014 que nos espera

Gramsci disputado: As interpreta ções

do seu pensamento político no Brasil

João Cláudio Bonim

setembro de 19311, Gramsci airma que em 10 anos de jorna-

lismo (período anterior à prisão) havia escrito ―linhas suicien-

tes para encher quinze ou vinte volumes de quatrocentas páginas‖,

entretanto esses textos eram sobre questões do dia a dia, por isso,

fadados, segundo o próprio autor ―a morrer no im do dia‖ . De fato,

ao chegar à prisão, em novembro de 1926, Gramsci já havia produ-

zido uma enorme quantidade de textos em suas atividades de jorna-

lista, secretário de redação do jornal L`Ordine Nuovo , dirigente do PCI

(Partido Comunista da Itália) e da Terceira Internacional (Komintern).

Durante esse per íodo de ―juventude‖ começa a desenhar uma original

concepção política já presente em artigos memoráveis como ―Socialis-

mo e cultura‖, ―A revolução contra O capital, ―Democracia Operária‖,

―O programa de L`ordine Nuovo‖, ―A questão meridional‖ etc.

Entretanto, ao contrário de seus escritos juvenis, Gramsci parece

disposto, na prisão , a produzir uma relexão de maior fôlego, como

ica explícito na carta de 19 de março de 19274 também endereçada

à cunhada. Nesta carta, Gramsci confessa estar atormentado com a

ideia de fazer algo desinteressado, de longo fôlego, para sempre.

Apesar da precariedade das condições carcerárias, Gramsci desen-

volveria na prisão uma velha vocação intelectual até então ―bloqueada‖

pela imaturidade, precária saúde, limitações inanceiras e pela militân-

cia política. Além disso, a possibilidade de estudar e não apenas ―devo-

rar livros‖ certamente o ajudaria a suportar as duras angústias do cár-

167

1 Introdução

Em carta endereçada à cunhada Tatiana Schucht datada de 7 de

Page 169: O 2014 que nos espera

cere: ―gostaria de me ocupar intensa e sistematicamente de alguns

temas que me absorvessem e centralizassem minha vida interior ‖.

As relexões de longo fôlego desenvolvidas no cárcere tornariam

Gramsci um clássico do pensamento político, por outro lado, a recep-

ção de sua obra tem sido marcada por uma enorme pluralidade. O

presente artigo propõe-se investigar as principais características das

diferentes interpretações a respeito do pensamento político de Gra-

msci no Brasil. Esse pensamento, sobretudo sua teoria política, tem

forte inluência no mundo acadêmico, nos movimentos populares, na

sociedade civil, partidos políticos e mais recentemente no Estado. Do

ponto de vista partidário, do PSTU ao PPS, passando por todo o PSOL

e PT, além de PCdoB, PCB, PSB, todos, mesmo em graus diferencia-

dos, estabelecem algum tipo de interlocução com o pensador político

italiano. A mesma abrangência acontece em relação aos movimentos

sociais. Sua inluência vai do MST ao chamado Terceiro Setor, pas-

sando por inúmeras manifestações da sociedade civil. Mesmo do

ponto de vista do Estado não são poucas as políticas públicas formu-

ladas tendo como referência sua obra.

Das conferências nacionais de políticas públicas ao orçamento

participativo, passando por políticas educacionais, conselhos de

saúde e o tema da reforma do Estado. Em relação às áreas do conhe-

cimento, acontece a mesma abrangência. Gramsci tem sido investi-

gado pela Ciência Política, Educação, História, Sociologia, Serviço

Social, Filosoia, Relações Internacionais e Letras.

Ora visto como comunista revolucionário, seguidor de Lênin, ora

como uma alternativa ao marxismo-leninismo, ou teórico da cultura,

estrategista da revolução no ―ocidente‖, teórico do Estado ampliado,

propositor de um novo reformismo, inspirador dos movimentos popula -

res na América Latina, Gramsci tem sido mobilizado de diferentes ma -

neiras e com diferentes objetivos. Não é por outro motivo que sua obra

serve de interlocução de autores como Carlos Nelson Coutinho, Marco

Aurélio Nogueira, Álvaro Bianchi, Marcos Del Roio, Evelina Dagnino,

Edmundo Fernandes Dias, Giovanni Semeraro, Lui z Werneck Vianna,

Oliveiros Ferreira, Juarez Guimarães, Demerval Savianni etc.

2 As interpretações do pensamento politico de Gramsci no

Brasil

Chega a impressionar a enorme pluralidade de interpretações so-

bre o pensamento político desse autor no Brasil. Entre elas, a de Car-

los Nelson Coutinho parece ocupar um lugar central. Tal interpreta ção

168 João Cláudio Bonim

Page 170: O 2014 que nos espera

ganhou tamanha inluência que tem condicionado a maneira como se

lê Gramsci, a tal ponto que é difícil estudá-lo fora dos termos apresen-

tados por Coutinho. Sua contribuição, para além de uma dimensão

original, será fortemente marcada por duas inluências: a tradição eu-

rocomunista, sobretudo, nas formula ções de Palmiro Togliatti , Pietro

Ingrao e Enrico Belinguer; e do marxista húngaro Georg Lukács. As-

sim, Coutinho lê a democratização como um valor universal, transfor -

mando a democracia em meio e im, ou seja, como caminho para o

socialismo e ao mesmo tempo objetivo da luta socialista. Ou nas pala -

vras do próprio Coutinho: ―se sem democracia não há socialismo, tam-

pouco há democracia plena e consolidada sem socialismo‖. Outra

marca de sua interpretação é o realce no conceito de Estado ampliado

e na ideia de socialização da política. Além disso, o conceito de guerra

de posição é visto como alternativa à guerra de movimento e pode ser

traduzido na estratégia do reformismo revolucionário. Essa visão dá à

noção de revolução em Gramsci um sentido mais processual, sem ne-

cessariamente uma ruptura decisiva. Para Coutinho o centro dessa

concepção estaria na noção de ―Ocidente‖ , formulada por Gramsci:

No Oriente, o Estado era tudo e a sociedade civil era primitiva e

gelatinosa; no Ocidente, entre Estado e sociedade civil havia uma

relação equilibrada: a um abalo do Estado, imediatamente se per-

cebia uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era ape-

nas uma trincheira avançada, por trás da qual estava uma robusta

cadeia de fortalezas e casamatas. (CC, 3, 262).

Além da interpretação de Coutinho, outra interpretação inluente

aqui no Brasil é majoritariamente articulada em torno do conselho

editorial da Fundação Astrojildo Pereira e com forte interlocução na

Itália com o presidente do Instituto Gramsci, Giuseppe Vacca. Essa

interpretação, evidentemente plural, conta com pesquisadores como

Luiz Werneck Vianna, Luiz Sergio Henriques, Marco Aur élio Noguei-

ra, Alberto Aggio, Gildo Marçal Brandão, Marco Mondaini.

Duas características serão marcantes nessa interpretação: a lei-

tura de Gramsci como alternativa ao chamado marxismo-leninismo,

e a apropriação do conceito de revolução passiva numa chave tam-

bém positiva. A crítica ao marxismo-leninismo tem relativamente a

mesma origem de Coutinho, ou seja, a tradição eurocomunista e sua

tentativa de ler Gramsci como um autor que compatibilizou socialis-

mo e democracia. Portanto, a tentativa de elaboração de uma teoria

democrática e a crítica ao stalinismo marcará essa interpretação.

Quanto à leitura do conceito de revolução passiva em chave positi-

va, Luiz Werneck Vianna será seu principal animador. O autor de

Gramsci disputado: As interpretações do seu pensamento político no Brasil 169

Page 171: O 2014 que nos espera

Caminhos e Descaminhos da Revolu ção Passiva à brasileira constrói

uma original interpretação da história política brasileira a partir do

conceito de revolução passiva. Curiosamente, ele interpreta esse con-

ceito também numa chave positiva, ou seja, não só como critério de

interpretação da história, mas como programa político de transforma-

ção molecular. Usei o termo, ―curiosamente‖, pois Gramsci no § 62 do

tardio Caderno 15 (1933) explicitamente recusou o uso do conceito de

revolução passiva como programa: ―Portanto, não revolução passiva

como programa, como foi nos liberais do Risorgimento, mas como cri -

tério de interpretação‖. Realmente, parte dos conceitos formulados por

Gramsci tinha duas dimensões, ou seja, eram, ao mesmo tempo, cri-

térios de interpretação da realidade e projeto político. Esse fato tinha

a ver com a mentalidade gramsciana de não separar o conhecer do

transformar. Entretanto, foi o próprio pensador italiano quem desau-

torizou a leitura do conceito de revolução passiva como programa ou

em chave positiva. Esse conceito, nele signiicava uma transição à

modernidade sem passar por uma revolu ção política do tipo jacobino -

-radical . Na nota 11 do caderno 15 não icam dúvidas quanto ao ca-

ráter negativo (conservar -mudando) desse conceito:

Das necessidades da tese se desenvolver integralmente, até o ponto

de conseguir incorporar uma parte da própria antítese, para não se

deixar ―superar‖, isto é, na oposição dialética somente a tese de-

senvolve, na realidade, todas as suas possibilidades de luta, até

capturar os supostos representantes da antítese: exatamente nisso

consiste a revolução passiva ou revolução – restauração.

O problema dessa leitura, em chave positiva, é que ela transfor-

ma Gramsci num reformista ainda mais radical (transformação mo-

lecular) do que proposto por Coutinho, cuja formulação ainda tem

uma mediação com a ideia de reformismo revolucionário. O clássico

debate entre Rosa Luxemburgo e Eduard Bernstein de certo modo

sempre condicionou a esquerda a pensar a estratégia a partir da di-

cotomia entre reforma e revolução. O que essa interpretação do con-

ceito de revolução passiva faz é fragilizar, talvez, a grande contribui-

ção de Gramsci à teoria da revolução: superar a dicotomia entre

reforma e revolução. Porém, deve-se ressaltar que Werneck teve o

mérito de advertir para textos de Gramsci, pouco estudados no Bra-

sil, como notas sobre Americanismo e Fordismo e as sobre o Risorgi-

mento e a História da Itália.

Além disso, como já mencionado, outra marca dessa leitura é

pensar Gramsci como uma alternativa à tradição bolchevique, in-

cluindo tanto as relexões de Trotski e Stalin, quanto do próprio Lê-

nin. Em relação a este último, o assunto é mais complexo. Gramsci

170 João Cláudio Bonim

Page 172: O 2014 que nos espera

é, em linhas gerais, em seus cadernos carcerários, muito elogioso a

Lênin. Deine-o como o maior teórico da ilosoia da práxis e chega

mesmo a atribuir a formulação do conceito de hegemonia ao autor de

Que fazer?. Entretanto, de fato, a comparação entre suas obras, so-

bretudo suas relexões mais ilosóicas, icam evidentes também dife-

renças. Nesse sentido, tem razão Coutinho quando fala em relação

de ruptura e continuidade ao referir-se à relação entre os dois auto-

res. Alberto Aggio e Luiz Sergio Henriques pensam diferentemente.

Para eles, Gramsci é uma alternativa ao velho bolchevismo:

Não seria exagerado ver neste tipo de cuidado um primeiro sinal de

distanciamento entre Gramsci e a ilosoia da história, seu acentu-

ado ―inalismo‖, que assinala a tradição bolchevique. (...) ―O que

Gramsci ―nos proíbe‖, por assim dizer, é regredir à cultura política,

bem como à práxis do velho bolchevismo, cujos limites insuperá-

veis ele foi um dos primeiros a ver. (Ibid, pg..6)

Nessa mesma linha ―anti-bolchevique‖ , Evelina Dagnino apresen-

ta uma contribuição adicional e ―traduz‖ para um debate especíico

sobre democracia, participação da sociedade civil e políticas públicas

às ideias de Gramsci. Para Dagnino, o impacto renovador de Gramsci

no âmbito da esquerda refere-se, sobretudo, à sua crítica ao determi-

nismo econômico. A autora sustenta dois desdobramentos importan-

tes dessa ideia: uma imbricação entre cultura, política e economia; e

uma equivalência entre forças materiais e elementos culturais dentro

de uma visão integrada de sociedade como um todo.

Valorizando o aspecto cultural em Gramsci, ela argumenta que tanto

a reforma intelectual e moral, quanto a ideia de consentimento ativo mo -

diicam os parâmetros do pensamento de esquerda, abrindo assim uma

alternativa ao marxismo-leninismo. É interessante como Dagnino, a par-

tir de Gramsci, ou seja, fora do referencial teórico hegemonizado por Ha-

bermas e pelas teorias do terceiro setor, consegue contribuir no debate

sobre democracia participativa na chave da socialização da política.

Marco Aurélio Nogueira também investiga o tema da democracia,

das relações Estado – sociedade civil e o conceito de política. Este

último é tratado em Em defesa da política, no qual ele sustenta ser a

política a possibilidade de uma convivência construtiva entre os ci-

dadãos, por isso, critica seu enfraquecimento e ―despolitização‖.

Sustenta que não faz sentido pensar a construção da hegemonia de

―costas‖ para o Estado, para a política e os partidos. Além disso, as-

socia hegemonia aos soisticados mecanismos de mídia, cultura,

subjetividade e direção capazes de ―ixar parâmetros de sentido que

desloquem valores e movimentem grandes massas de pessoas‖.

Gramsci disputado: As interpretações do seu pensamento político no Brasil 171

Page 173: O 2014 que nos espera

Em Um Estado para sociedade civil sustenta a ideia de um con-

trole da sociedade civil sobre o Estado como mecanismo de democra -

tização. A partir de um reinado conhecimento da dialética gramscia-

na, estabelece nexos entre a ilosoia da práxis e o debate acerca das

relações Estado-sociedade civil. Assim, foi possível superar constru-

ções ancoradas na ideia de que o Estado é o lugar da corrupção e do

autoritarismo, enquanto a sociedade civil é virtuosa e democrática.

Um contraponto a essas interpretações da obra de Gramsci é

construído por autores que procuram valorizá-lo como comunista,

revolucionário e continuador da tradição bolchevique. É em torno de

autores como Edmundo Fernandes Dias, Marcos Del Roio e Álvaro

Bianchi que essa interpretação é articulada. Uma de suas principais

características é valorizar os escritos de Gramsci anteriores à prisão

e traçar uma linha de continuidade entre esses escritos e os Cader-

nos do cárcere. Nesse sentido, Os dois primeiros autores produziram

interessantes trabalhos sobre o tema.

Em O laboratório de Gramsci , Álvaro Bianchi teve o mérito de va-

lorizar as relexões mais ilosóicas de Gramsci, sobretudo sua con-

cepção dialética, assim como constrói uma original interpretação das

relações entre Estado/sociedade civil, força/consenso, guerra de po-

sição/guerra de movimento. Ele trava com Coutinho uma interlocu-

ção crítica que vai permear todo seu livro. Num desses momentos,

ele sustenta que Gramsci articulou guerra de posição e guerra de

movimento e, por isso, não poderia ser lido em uma chave reformis-

ta, ou seja, a guerra de posição seria um momento de preparação da

guerra de movimento, ao contrário do que pensa Carlos Nelson.

Bianchi atribui a Coutinho um jogo-de-soma-zero do Estado, em que

―mais sociedade civil igual a menos sociedade política tem como co-

rolário uma concepção algébrica das formas de luta das classes su-

balternas, na qual mais ―guerra de posição‖ equivale a menos ―guer-

ra de movimento‖. Essa concepção permite a Bianchi relativizar as

diferenças entre Gramsci e Trotski: ―não se trata, pois, de estabelecer

uma falsa identidade entre esses autores, assim como não há mais

sentido em uma inventiva oposição de princípios‖. Bianchi tem ape-

nas parcial razão no encaminhamento da discussão sobre a relação

entre guerra de posição/guerra de movimento. Ao considerar que a

forma de luta (guerra de posição/guerra de movimento) depende, so-

bretudo, das relações de força, acaba não conseguindo valorizar al-

gumas especiicidades presentes na concepção de guerra de posição.

Além disso, não são poucos os momentos dos Cadernos nos quais

Gramsci critica a estratégia do ataque frontal.

172 João Cláudio Bonim

Page 174: O 2014 que nos espera

Ele estava convencido do caráter estratégico desse debate e che-

gou a considerá-lo a questão fundamental da teoria política do pós-

-guerra. No taxativo § 138 do Caderno 6, o autor italiano sustenta

que a estratégia do ataque frontal proposta por Trotski tem sido ape-

nas causa de derrotas:

Esta me parece a questão de teoria política mais importante posta

pelo período do pós-guerra e a mais difícil de se resolver correta-

mente. Ela está ligada às questões levantadas por Bronstein, que,

de um modo ou de outro, pode ser considerado o te órico político do

ataque frontal num período em que este é apenas causa de derro-

tas. (CC, 3, 255).

Uma interpretação à parte do pensamento político de Gramsci é a

formulada por Giovanni Semeraro. Em seu último trabalho ―Hegemo-

nia e Libertação: para realizar a América Latina pelos movimentos

populares‖ articula Gramsci, Paulo Freire e Teologia da Libertação

para pensar a luta dos movimentos populares no subcontinente. Sua

interpretação, ainda que muitas vezes de forma não explícita, procu-

ra relativizar o papel dos partidos políticos enquanto instituições que

detêm o ―monopólio‖ do momento catártico, além de questionar o

eleitoralismo, pragmatismo e ―realismo‖ presentes na esquerda bra-

sileira. Já em ―Gramsci os novos embates da ilosoia da práxis‖ pro-

duz uma das mais completas sistematizações dessa concepção no

Brasil. Como ponto alto dessa sistematização, ele explica como Gra-

msci articulou uma visão de totalidade com valorização do particu-

lar, numa dialética capaz de identiicar diversidade dentro de uma

visão de totalidade: ―Buscar a real identidade na aparente diferencia-

ção e contradição, e descobrir a substancial diversidade por trás da

aparente identidade é a mais delicada, incompreendida e, contudo

essencial capacidade do crítico das ideias e do historiador do desen-

volvimento social‖.

Por im, Juarez Guimarães, em Marxismo e Democracia: crítica à

razão liberal, dedica o capítulo oito de seu trabalho a uma densa in-

terpretação de Gramsci. Para o professor da UFMG o conceito de

hegemonia ―centraliza e solda um campo teórico que permite superar

a visão determinista da história‖. Segundo ele, as tensões entre mar-

xismo e democracia estariam relacionadas às tensões deterministas

presentes no marxismo. Esse foi o sentido das críticas formuladas

por autores como Croce, Weber, Popper e Bobbio cuja raiz, sobretudo

na visão de Bobbio, está na crítica à ilosoia da história, determinis-

mo/economicismo e à visão organicista ou anti-individualista. Foi

exatamente o marco teórico formulado por Gramsci, segundo Gui-

Gramsci disputado: As interpretações do seu pensamento político no Brasil 173

Page 175: O 2014 que nos espera

marães, que superou deinitivamente as tensões deterministas e os

impasses da relação socialismo e democracia.

Guimarães salienta, ainda, que mais recentemente ocorre a devi-

da valorização das relexões ilosóicas de Gramsci, em cujo centro

está o conceito de práxis, ―isto é, a relação entre vontade humana

(superestrutura) e a estrutura econômica‖. Embora essas relexões

tenham sido taxadas de idealistas, Guimarães sustenta a tese de que

a ilosoia da práxis supera tanto o idealismo quanto o materialismo,

ao superar essas duas correntes ilosóicas incorpora seus elementos

vitais. Essa superação estaria contida na noção de hegemonia: ―As-

sim, o conceito de hegemonia carrega dentro de si a superação do

dualismo matéria/ideia. Como vontade coletiva objetivada, ele tem o

estatuto de uma força material (a base material da hegemonia); como

projeção da vontade no grau máximo, ele é subjetividade e cultura.

Não é, pois, nem ―estrutura‖ nem ―superestrutura‖, mas a síntese de

ambas‖. (Ibid, p. 145).

3 Os limites das interpretações do pensamento político de

Gramsci no Brasil

Apesar de Gramsci revelar ao longo de seus Cadernos uma pecu-

liar e coerente concepção de mundo, que resultará em uma densa

relexão politica, não há como negar o caráter inacabado de sua obra

carcerária. De fato, não teve tempo tanto de transformar todos os

textos A em textos C, assim como completar a própria tarefa que ele

mesmo havia já advertido aos seus prováveis leitores: ―As notas con-

tidas neste caderno, como nos demais, foram escritas ao correr da

pena, como rápidos apontamentos para ajudar a memória. Todas

devem ser revistas e veriicadas minuciosamente, já que certamente

contêm inexatidões, falsas aproximações, anacronismos. Escritas

sem ter presentes os livros a que se referem, é possível que, depois

da veriicação, tenham de ser radicalmente corrigidas, precisamente

porque o contrário do que foi escrito é que é verdadeiro‖.

Devido à deterioração de sua precária condição de saúde, já em

1936 Gramsci praticamente não conseguia mais trabalhar (escrever)

em seus Cadernos. Esse trabalho que ele não podia mais continuar,

no que tange as suas relexões mais ilosóicas, não foi, ainda hoje,

devidamente ―valorizado‖ pela sua própria tradição intelectual (mar-

xismo). Elas foram subestimadas, ignoradas ou mesmo consideradas

idealistas por alguns dos seus principais intérpretes, por isso, não se

formou, ainda, uma cultura de continuidade, aprofundamento, com-

plementação dessas relexões. Uma das razões desse fato tem origem

174 João Cláudio Bonim

Page 176: O 2014 que nos espera

nas apropriações que o pensamento de Gramsci obteve tanto da tra-

dição eurocomunista, quando do marxismo mais ortodoxo e mesmo

daqueles que produziram interpretações heterodoxas. Por isso, Gra-

msci icou limitado ora a um estrategista da revolução no ―ocidente‖,

teórico da cultura, ou mesmo continuador do leninismo, enquanto o

Gramsci ilósofo da práxis era pouco ressaltado. Nesse sentido, a

tradução e o diálogo entre essas relexões mais ilosóicas e sua teo-

ria política, ou seja, o estabelecimento de nexos entre essas duas

dimensões da obra de Gramsci, que no fundo compõe (em conjunto,

articuladas) a sua original relexão política, ainda não foi devidamen-

te investigado.

Apenas tardiamente autores como Giorgio Baratta, Fabio Frossi-

ni, Renato Zangheri, Alberto Caracciolo; no Brasil, o pioneiro traba-

lho de Michel Debrum, as interessantes pistas de Juarez Guimarães,

Rosemary Dore e, sobretudo, o esforço de Giovanni Semeraro come-

çam a apontar os principais eixos de constituição dessa pesquisa. De

fato, tal tarefa é trabalho árduo que certamente levará décadas e será

levado adiante, como já está sendo, por uma geração de novos pes-

quisadores (apoiada, evidentemente, pela longa caminhada dos estu-

dos gramscianos). Nesse sentido, o presente artigo, além de localizar

parte desse debate, propõe-se a apresentar uma contribuição, ainda

que inicial, a esse desaio interpretativo.

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178 João Cláudio Bonim

Page 180: O 2014 que nos espera

VIII. Homenagem

Page 181: O 2014 que nos espera

Autores

Arildo Dórea

Jornalista, ensaísta, ex-diretor geral da Fundação Astrojildo Pereira.

Ana Luisa Zaniboni Gomes

Jornalista e pesquisadora, diretora da Oboré e curadora do 35º Prêmio Vladimir Herzog.

Ivan Alves Filho

Jornalista, historiador, autor de mais de uma dezena de importantes obras, com destaque

para Memorial dos Palmares.

Page 182: O 2014 que nos espera

Centenário de Giocondo Dias

Ivan Alves Filho

―Pensar é fácil, agir é difícil; agir de acordo com o pensamen-

Giocondo Dias faria 100 anos neste mês de novembro de 2013. E

acredito que a Fundação Astrojildo Pereira, ao me convidar para uma

reedição atualizada da obra, quis marcar com esse gesto sua grande

dívida para com o velho revolucionário comunista. Ainal, Giocondo foi

um dos principais representantes daquilo que o pensamento democrá-

tico brasileiro teve de melhor, em toda sua história. E um dos artíices

mais brilhantes da estratégia vitoriosa de isolamento da ditadura mi-

litar, derrotada politicamente pela luta de massas, após 21 anos no

poder. Nem é preciso dizer que a FAP resulta de todas essas lutas.

Nascido em Salvador, Bahia, em 1913, Giocondo Dias começou a

trabalhar com apenas sete anos de idade no caís do porto da cidade,

socando pimenta em pilões. Aos 13 anos, já distribuía pelas ruas de

sua cidade o jornal do Partido Comunista. Em 1935, ele encabeça o

levante aliancista no Rio Grande do Norte, quando os comunistas to-

mam o poder por três dias. Ferido e preso, sai com a anistia de 1937

e mergulha novamente na clandestinidade, até 1945. Em 1946, é elei-

to deputado constituinte pelo BCB na Bahia, mas, j á em 1947, retorna

à vida clandestina, ocupando-se do aparelho de Luiz Carlos Prestes.

Somente voltaria a ver a luz do dia em 1958, quando os principais

líderes do PCB esboçam um retorno à vida legal. E este é também o

181

to impossível‖ – essa máxima do grande escritor alemão

Goethe não se aplica ao grande revolucionário brasileiro

Giocondo Dias, cuja trajetória sempre se pautou por uma busca pela

total identiicação entre visão de mundo e prática política.

Page 183: O 2014 que nos espera

ano da célebre Declaração de Março, que ele apoia de corpo e alma.

Ao lançar este documento, os comunistas optavam pela ultrapassa-

gem da ordem capitalista no terreno da democracia. Com o advento

do Golpe de 1964, Giocondo enfrenta seu período mais longo de per-

seguições, do qual só emergiria 15 anos mais tarde.

No início dos anos 1980, torna-se o secretário geral da organiza-

ção, substituindo o legendário Luiz Carlos Prestes. No total, Giocon-

do passaria 41 anos de sua vida na clandestinidade, na cadeia ou no

exílio. E sempre pertenceu a um partido só, o PCB. Sua trajetória

serve de lição para muitos políticos e militantes de hoje. teve uma

vida de cortar o fôlego.

Como se isso não bastasse, Giocondo Dias morreu em 7 de se-

tembro de 1987, no Dia da Pátria.

Ao publicar a primeira versão de um dos seus livros biográicos,

em 1991, eu me perguntava, ainda impressionado pelo seu despoja-

mento e capacidade de luta, sobre as razões pelas quais um homem

se tornava revolucionário. Não há uma resposta única – ou melhor, a

resposta só pode resultar de uma combinação de fatores, já que o ser

humano é o conjunto das relações sociais de sua época.

Nesse sentido, tanto a luta por melhores condições quanto a ne-

cessidade que todos temos de inserção em um projeto coletivo ou o

desenvolvimento de uma concepção humanista dos fatos da vida

como que conluem para a personalidade do lutador social. Se todo

indivíduo é, ao mesmo tempo, um ser particular e genérico, é forçoso

reconhecer, como o fez certa feita a ilósofa húngara Agnes Heller,

que, no tocante ao revolucionário, a ―esfera do genérico‖ é bem mais

acentuada. Para a personalidade revolucionária, não há oposição en-

tre o individual e o coletivo, o particular e o genérico, justamente.

Para mim, que conheci Giocondo Dias rapidamente em 1971,

quando se deslocou até minha casa para uma conversa reservada

com meu pai, é motivo de grande orgulho reeditar novamente as suas

memórias, acrescidas de alguns novos dados e análises. Cheguei a

colaborar diretamente com ele no período da legalidade do PCB, em

1985, conforme digo no livro.

Raramente vi uma personalidade tão calma e segura de suas con-

vicções. E, ao mesmo tempo (e talvez até mesmo por isso), extrema-

mente aberta ao diálogo, ao novo. Era um homem tolerante. Foi um

dos meus mestres, não só na militância política, como na vida em

geral, pois eu nutria por ele uma admiração profunda. Sua experiên-

cia contagiava aos mais jovens como eu.

182 Ivan Alves Filho

Page 184: O 2014 que nos espera

Não são muitos os partidos políticos no mundo que alinham em

seus quadros um homem da sua grandeza, coerência e retidão. Sua

grande preocupação? Nunca afastar o Partido das massas populares,

daí a importância que dava à luta pela democracia e, com ela, pela

própria legalidade do Partido Comunista, o qual viveu mais de dois

terços de sua existência atuando sob a vigilância e/ou a repressão

dos órgãos policiais e militares.

Giocondo Dias deixou imensas saudades.

Centenário de Giocondo Dias 183

Page 185: O 2014 que nos espera

Rui Facó, um intérprete do Brasil

Arildo Dórea

Quando Euclides da Cunha se deslocou para a região de Ca-

O contato direto, no entanto, com a situação ali encontrada mo-

diicou por inteiro essa pré-conceituação. E Euclides se sentiu levado

a escrever obra fundamental à análise da formação histórica e social

de nosso país.

O cientiicismo reinante à época, para o qual tudo teria de ser

examinado segundo a trilogia deinida por Taine: raça, meio e mo-

mento, levou-o a um linguajar por vezes gongórico, por isso distan-

ciado do entendimento geral, mas não o impediu de trazer, para nós,

até hoje, uma ideia de nação que, até então, sequer se imaginava.

Mário de Andrade age no mesmo sentido, ou seja, na procura

dessa nação a que chamamos Brasil. Seu Macunaíma, como numa

fábula, corre todo o país, levanta aculturamentos, descobre receitas

de formação social e percebe que essa nação ainda não tinha caráter,

ou seja, ainda não tinha, já ao princípio do século XX, aquelas carac-

terísticas fundamentais que delineiam uma cultura especíica. No

caso, a Nação Brasileira.

Nessa linha de pesquisa, seja nessa necessidade de encontrar o

Brasil – no Brasil e para os brasileiros – Rui Facó escreve seu primei-

ro livro, o Brasil Século XX.

Marcou para isso uma data, a década de 30. Entendeu que o mo-

vimento rebelde cheiado por Getúlio Vargas trazia em seu bojo a exata

deinição de nossa caracterização nacional. É que, a partir dali, o Bra-

sil, com característica de uma nação, teria lançados seus deinitivos

alicerces. E sobre eles iríamos começar a construir nosso futuro.

De fato, no período, a cultura ganhou as especiicidades nacio-

nais de que nosso povo e nossa terra estavam necessitados. Érico

Veríssimo e Dyonélio Machado, no Sul, Dalcídio Jurandir, no Norte,

184

nudos, como repórter do jornal O Estado de São Paulo , já te-

ria ideia formada sobre aqueles revoltosos. Seriam bandidos

fanatizados por um louco e pretendiam derrubar a jovem República.

Page 186: O 2014 que nos espera

os romances de Marques Rebelo, a obra de Graciliano Ramos, a de

Jorge Amado, o romance proletário de Alina Paim, todos, por diferen -

tes caminhos, apontavam uma direção: a deinitiva caracterização de

uma cultura nacional.

Um destaque está na utilização de todo o instrumental da doutri-

na marxista de que se valeu Rui Facó para sua aprofundada análise

social. E isso quando esses estudos marxistas ainda engatinhavam

em nosso país, enfrentando as diiculdades decorrentes de um mun-

do intelectual para o qual apenas o que era francês ou inglês ou es-

panhol ou russo seria erudito e válido.

Astrojildo Pereira, com sua visão antecipativa desses avanços, já

se referia à pobreza franciscana dos estudos brasileiros com o em-

prego do arsenal composto por Marx. Ele mesmo, aliás, já tentara

romper tais e tantas amarras. Enquanto a crítica cabocla gastava

tinta e papel para deinir, por exemplo, a obra de Machado de Assis,

procurando nela encontrar a inluência de Jonathas Swift, de Char-

les Dickens ou de Nicolas Gogol, nosso Astrojildo lan çou seu clássico

Machado de Assis, um romancista do Segundo Império, ixando, com

isso, num contexto nacional, o espaço social em que se desenvolveu

a prosa machadiana: no Brasil de Dom Pedro II. Nada mais preciso.

Rui Facó não para por aí com seu processo, digamos assim, de

desmistiicação. Celebrizou-o, ainda, uma segunda obra – Cangacei-

ros e Fanáticos.

Ali ele já entende desnecessário procurar se deinir como um es-

critor brasileiro. Valendo-se de sua vivência – um cearense instalado

na Bahia de Todos os Santos – busca derrubar os mitos de que os

tipos examinados decorriam muito mais de ilusões sociológicas que

da realidade mesma que todos enfrentavam.

Analisar a igura de Padre Cícero Romão Batista – o grande líder

dos fanáticos – como um fenômeno de essência religiosa é desviar a

análise de sua destinação especíica: esclarecer a verdade daquela

realidade. Seja, valer-se da metodologia marxista, segundo a qual a

realidade objetiva teria de ser examinada à base de uma análise tam-

bém objetiva.

Os fanáticos do Padim, como, de resto, aqueles que pululavam

por praticamente todo o Nordeste, seguidores de apocalípticos profe-

tas, queriam, essencialmente, libertar-se de condições de vida que

chamar de subumanas seria pouco exato. A essa gente se prometiam

milagres e outras transcendências artiiciosas. Ora, diante do nada

em que viviam, as promessas divinatórias seriam tudo.

Rui Facó, um intérprete do Brasil 185

Page 187: O 2014 que nos espera

Os cangaceiros são bandidos. Mas não nasceram bandidos. Vi-

viam ali onde viviam aquelas multid ões de fanáticos e visionários. Só

que tinham outra visão de sua existência, cujos problemas teriam

que ser resolvidos por eles mesmos. Sem lei, na marra.

Uns e outros eram vítimas de situações diferentes na forma, mas

idênticas na origem: a desesperança e a falta de perspectiva. Daí que

o milagre ingia curar uma e a violência, a outra.

O sertão, aquele de Padre Cícero e Lampião, acabou. Nem que

seja quantitativamente. Nossa população rural, hoje, é de cerca de

apenas 20% do total.

Mas o sertão continua. E continua na periferia dos grandes cen-

tros urbanos, ali onde, não por acaso, surgem novos tipos de fanáti-

cos e milagreiros e bandidos.

É nesse sentido que atua não o intelectual Rui Facó, mas o mili-

tante comunista que entendeu seu país, nossa realidade, e que bus-

cou participar, como sempre o fez, daquilo que entendeu – que en-

tendemos – como solução para essas urgências, essas carências.

É o militante comunista que, no velho Partidão, lutou em todas

as trincheiras, ali onde se necessitava de orientação consciente, da

compreensão dos problemas de nosso país e de nosso povo. Ali onde

o futuro não seria uma promessa fugaz para acalmar os desesperan-

çados, os desencantados, mas, sim, uma certeza de um novo futuro

ao alcance de nossas mãos.

No último dia 4 de outubro, comemoramos o centenário de nasci-

mento de Rui Facó. E nos lembramos de que, há cinquenta anos,

nosso querido companheiro morria num desastre aéreo, numa via-

gem em que seguia a cumprir tarefa partidária: perdeu a vida lutan-

do por um ideal que era o nosso: o futuro socialista, num mundo

fraterno e igual coletivo.

É o que há de ser feito lutando, seguindo o exemplo de um mili-

tante que morreu a meio mesmo dessa luta. Seguia, vale observar, a

lição de Joaquim Nabuco: ―Não nos basta acabar com a escravidão;

é preciso destruir a obra da escravidão‖.

186 Arildo Dórea

Page 188: O 2014 que nos espera

Prêmio Vladimir Herzog

celebra 35 anos

Ana Luisa Zaniboni Gomes

rica Latina, em São Paulo, na noite de 22 de outubro, reviveu

momentos marcantes da história social e política do Brasil

das últimas décadas. A 35ª edição do Prêmio Vladimir Herzog de

Anistia e Direitos Humanos reuniu cerca de 600 convidados – entre

jornalistas, estudantes, artistas, juristas, políticos e militantes – para

aplaudir o trabalho de jornalistas que, através de suas reportagens,

colaboraram na defesa e promoção da Democracia, da Cidadania e

dos Direitos Humanos e Sociais.

A cerimônia foi conduzida pelos jornalistas Juca Kfouri, colunista

da Folha de S. Paulo, CBN e ESPN Brasil, e Mônica Teixeira, da TV

Cultura e Univesp TV. Ao todo, foram 18 trabalhos jornalísticos pre-

miados em nove categorias: Artes, Fotograia, Jornal, Revista, Rádio,

Internet, Reportagem de TV, Documentário de TV e uma categor ia es-

pecial, envolvendo todas as mídias com o tema ―Violências e agressões

físicas e morais contra jornalistas e contra o direito à informação‖.

Diante de uma plateia acolhedora, o discurso de abertura foi de

José Augusto Camargo, presidente do Sindicato dos Jornalistas Pro-

issionais no Estado de São Paulo, representando as onze entidades

que integram a Comissão Organizadora do evento: Associação Brasi-

leira de Imprensa/SP; Associação Brasileira de Jornalismo Investiga-

tivo; Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil; Comissão

Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo; Escola de Comunicações

e Artes da Universidade de São Paulo; Federação Nacional dos Jor-

nalistas; Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de

São Paulo; Instituto Vladimir Herzog; Conselho Federal da Ordem

dos Advogados do Brasil, Ouvidoria da Pol ícia do Estado de São Pau-

lo e Sindicato dos Jornalistas Proissionais no Estado de São Paulo.

Em sua fala, José Augusto Camargo fez um apelo à sociedade e

ao governo para que voltem suas atenções ao problema da violência

contra os proissionais de imprensa. Segundo ele, o número de agres-

sões e mortes de jornalistas no ano de 2012 colocou o Brasil em uma

posição indigna entre as nações democráticas, com o agravante de

que, em 2013, ao eclodirem as manifestações de rua em todo o país,

―teve início um onda de violência física contra jornalistas como não

187

Quem esteve no Auditório Simón Bolívar do Memorial da Amé-

Page 189: O 2014 que nos espera

se via desde os mais duros anos da ditadura‖. Muitos jornalistas fo-

ram agredidos pelas forças policiais mas também por manifestantes,

o que caracteriza uma intimidação que impede o livre luxo da infor-

mação e põe em risco as instituições democráticas.

Prêmio Especial Vladimir Herzog 2013

Além das premiações por categoria, também foram homenageados

na cerimônia três grandes nomes da imprensa brasileira pelos relevan -

tes serviços prestados às causas da Democracia, Paz e Justiça: Perseu

Abramo (criador do Prêmio, in memoriam), Marco Antônio Tavares Co-

elho, editor da revista Política Democrática, e Raimundo Pereira.

A iniciativa das instituições promotoras retoma proposta original

do Prêmio, que previa tal homenagem a personalidades ou jornalis-

tas que jamais inscreveriam seus trabalhos em qualquer tipo de con-

curso. Já foram homenageados Lourenço Diaféria (in memoriam),

David de Moraes, Audálio Dantas, Elifas Andreato, Alberto Dines e

Lúcio Flavio Pinto.

Raimundo Pereira recebeu seu troféu das mãos de André Freire,

diretor do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, em nome do mi-

nistro Aldo Rebelo, do Esporte. Aos 87 anos, Marco Ant ônio Tavares

Coelho recebeu o troféu das mãos de seu ilho, Marco Antônio Tava-

res Coelho Filho, diretor da Empresa Brasil de Comunicação. Zilah

Abramo, esposa de Perseu, fez as honras em nome da família e rece-

beu a homenagem das mãos do jornalista Giancarlo Summa, diretor

do Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil.

Os organizadores do Prêmio Vladimir Herzog também promove-

ram uma Roda de Conversa com os jornalistas premiados. A troca de

experiências entre os participantes se deu na manhã de 22 de outu-

bro, na Sala dos Espelhos, no Memorial da América Latina, e contou

com transmissão ao vivo pela TV PUC.

Coordenado pelos jornalistas Sergio Gomes, diretor da Obor é, Aldo

Quiroga, da PUCSP e TV Cultura, e Angelina Nunes, diretora da Abra -

ji, o bate-papo reuniu 14 jornalistas em uma verdadeira aula de bom

jornalismo. Participaram da Roda: José Raimundo e Caio Cavechini,

da TV Globo; Bianca Vasconcellos, Gustavo Minari e parte da equipe

de reportagem da TV Brasil; Matheus Leit ão, da Folha de S.Paulo; Ma-

rilu Cabanãs e Anelize Moreira, repórteres da Rádio Brasil Atual; Allan

Costa Pinto, repórter fotográico da Tribuna do Paraná; Kleber Soares,

ilustrador no Correio Braziliense; Wagner William, rep órter da revista

Brasileiros; Janaína Garcia, do Portal UOL; Ismael Xavier, do Diário

do Pará; e Fausto Salvadori Filho, da revista Apartes.

188 Ana Luisa Zaniboni Gomes

Page 190: O 2014 que nos espera

IX. Resenha

Page 191: O 2014 que nos espera

Autores

José Antonio Segatto

Professor Titular do Departamento de Sociologia da FCL/Unesp/CAr.

Karina Toledo

Jornalista, da equipe da Folha de S. Paulo.

Page 192: O 2014 que nos espera

Gramsci nos anos de cárcere

José Antonio Segatto

sua morte, continua a inspirar e exercer inluência em intelec-

tuais e políticos, movimentos e partidos, instituições e orga-

nizações dos mais diversos tipos e concepções. Seu legado teórico-

-político — desde a ―edição temática‖ dos anos cinquenta, organizada

por Palmiro Togliatti e Felice Platone, à ―edição crítica‖ dos Cadernos

(1975), realizada por Valentino Gerratana — foi e prosseguiu sendo

avaliado e recepcionado por vertentes pol ítico-ideológicas as mais va-

riadas (comunistas, socialistas e até liberais-democratas). Traduzida

em muitas línguas e com inúmeras edições, a fortuna crítico-analí-

tica de sua obra é constituída, provavelmente, de alguns milhares

de estudos, ensaios, artigos, livros, teses acadêmicas etc., em todo

o mundo. É reconhecidamente um dos maiores e mais importantes

teóricos da política dos séculos XX e XXI. Pode-se dizer, sem exage-

ros, que Gramsci é, indubitavelmente, um clássico da teoria política.

Sua obra excede em muito o momento em que foi produzida e insiste

em conservar-se admiravelmente contemporânea — ―é um autor que

vive além do próprio tempo e também fala aos pósteros‖ (p. 38).

O reconhecimento e a apropriação de seu patrimônio teórico-po-

lítico por múltiplas correntes e tendências (ou facções delas), cada

qual à sua maneira — em alguns casos de forma instrumental ou

segundo conveniências momentâneas —, na intervenção política ou

nos embates ideológicos não são, porém, um fato sem implicações e

consequências. Isso relete-se nas leituras e interpretações que têm

sido feitas dos escritos de Gramsci, gerando, inclusive, um embate

histórico-teórico em torno de sua herança. E é nesta controvérsia

191

Aobra de Antonio Gramsci, mais de tr ês quartos de século após

Page 193: O 2014 que nos espera

que se inscreve o novo livro de Giuseppe Vacca, Vida e pensamento

de Antonio Gramsci (1926-1937).

Fruto de décadas de investigação, Giuseppe Vacca realiza uma

releitura da obra de Antonio Gramsci, especialmente dos Cadernos

do cárcere, seguindo a melhor tradição do Partido Comunista Italia-

no — PCI, expressa em Palmiro Togliatti e Enrico Berlinguer. Faz

uma exaustiva análise dos anos em que Gramsci esteve nos cárceres

fascistas (1926, p. 37), utilizando-se da correspondência (em parte

inédita) que manteve com a mulher (Giulia), a cunhada (Tania Schu-

cht) e Piero Sraffa; efetua um minucioso trabalho de reconstituição

histórica, cotejando a correspondência com as notas do cárcere; en-

tende que ―o epistolário é uma chave privilegiada de acesso à leitura

dos Cadernos: em alguns casos, sintetiza seu conteúdo, em outros,

acompanha sua evolução ou antecipa as linhas de pesquisa‖ (p. 34-

5). Concomitante a isso, vale-se de depoimentos de contemporâneos

e documentos da Internacional Comunista — IC, checando as várias

fontes com a bibliograia e inserindo-os no complexo período da

―grande guerra civil europeia‖ (1914-1945). Observe-se que Vacca

não analisa os escritos de Gramsci anteriores à prisão, com poucas

exceções, como é o caso das ―Teses de Lyon‖ e do famoso texto ―Al-

guns temas da questão meridional‖, ambos de 1926.

A biograia reconstruída por Vacca faz convergir os dramas pesso-

ais/íntimos com as relexões políticas; ou melhor, realiza uma releitu-

ra dos Cadernos juntamente com ―a reconstrução das vicissitudes po-

líticas e humanas de Gramsci na prisão‖, unindo ―teoria e biograia‖

(p. 29) — é, de fato, uma biograia, a um só tempo, intelectual, pol ítica

e pessoal. Há, no livro, alguns capítulos exemplares desse recurso to-

talizante utilizado por Vacca. Sobretudo os cap ítulos X e XI, nos quais

analisa as cartas para a mulher sobre a psicanálise e a questão he-

braica, envolvendo temas e indagações do universo familiar que o an -

gustiavam. Imbricado com as inquietudes dos problemas familiares

(em especial da mulher e dos ilhos), a biograia aborda de maneira

sóbria a condição humana do prisioneiro do fascismo, seus incômodos

com a saúde precarizada pela difícil situação das prisões, além de ali-

gido pelas suspeitas em relação ao Partido e sua direção (em especial

Togliatti), que desconiava terem prejudicado sua liberta ção. Aliás, so-

bre isso Vacca faz uma longa e documentada reconstituição das fra-

cassadas tentativas de libertação de Gramsci e conclui:

Togliatti não precisava sabotar tentativas de libertação que, na re-

alidade, jamais foram realizadas seriamente pelo único ator que

poderia empreendê-las, vale dizer, o governo soviético. Empregan-

do uma linguagem mais ―familiar‖, Mussolini já cuidava de manter

192 José Antonio Segatto

Page 194: O 2014 que nos espera

Gramsci no cárcere, e sua libertação jamais conigurou objeto de

interesse estatal soviético (p. 494).

Não obstante todos os infortúnios do prisioneiro, Gramsci em mo -

mento algum deixou de proceder como dirigente político do PCI —

por meio de uma linguagem cifrada fazia chegar a Togliatti, por meio

de Sraffa, suas avaliações sobre a situação política italiana e interna-

cional e, claro, suas discordâncias com as orientações da IC e do PCI.

Gramsci se oporia frontalmente à tese da IC do ―social-fascismo‖,

segundo a qual a social-democracia era caracterizada como inimiga

principal e identiicada com o fascismo. Isso implicava que o PCI de-

veria abandonar a política de frente única e ―adequar-se a nova es-

tratégia do Komintern, que considerava iminente uma nova onda re-

volucionária e indicava como objetivo imediato a insurreição‖ (p.

142). É contra essa orientação, da ―tática de classe contra classe‖ e

da ―estratégia insurrecional‖ (1929-34) da IC que Gramsci iria se

opor e que o levaria a repensar e reelaborar a teoria política do socia-

lismo ou a ―ilosoia da práxis‖.

Para Vacca, ―a discordância de Gramsci estava condensada na

proposta pol ítica de Constituinte‖ (p. 197). A palavra de ordem Cons -

tituinte implicava não só o descarte da ―estratégia da revolução pro-

letária‖, mas também ia além da tática da frente única. Ela seria um

meio — não um im — para a instauração da democracia; ―é conce-

bida como certidão de nascimento da nação democrática‖ (p. 246).

Corresponderia ―ao objetivo de refundar as bases da vida nacional de

modo reformista‖ (p. 244). Isso pressupunha superar a noção de re-

volução permanente — originária do Manifesto do Partido Comunista

em 1848 e bem sucedida na Rússia de 1917 — de transformação da

revolução democrática em revolução proletária; ou seja, a luta pela

democracia não podia ser pensada como uma fase de transição para

o socialismo. E vai além ao airmar que a proposta política de Cons-

tituinte de Gramsci só pode ser entendida no interior do ―sistema

teórico dos Cadernos (p. 207) e que o ponto de partida para sua com-

preensão é a análise do fascismo.

O fascismo, para Gramsci, seria uma modalidade de revolução

passiva — e mesmo desdobramento histórico do Risorgimento — que

estaria procurando efetuar, dentro das condições do atraso e no con-

texto da crise, a modernização e/ou americanização da Itália. Para

tanto, conferia ao Estado o papel de agente primordial de transfor-

mação e conservação concomitantemente, que a classe dominante

ou qualquer força política seria incapaz de executar. Ou seja: o fas-

cismo como agente europeu da ―revolução passiva‖ que se segue à

derrota da revolução proletária, mas também como variante italiana

Gramsci nos anos de cárcere 193

Page 195: O 2014 que nos espera

daquele processo de adaptação da Europa ao ―americanismo‖, que,

em resposta à crise de 1929, parece destinado a impor-se também no

velho continente (p. 208).

Com esse entendimento, ressalta G. Vacca, da reestruturação do

capitalismo a partir dos Estados Unidos e seu potencial de universa-

lização, Gramsci considera ser necessário repensar a ação política e

os modos e formas de conceber as transformações sociopolíticas e

impulsioná-las. Tornara-se premente a superação dos paradigmas

da revolução de Outubro de 1917 — derivados do modelo francês de

julho de 1789 —, da revolução como ruptura súbita e convulsiva,

como assalto ao poder (Estado) e sua instrumentalização para operar

mudanças ―desde cima‖, por meios e modos ditatoriais.

Nas novas condições do desenvolvimento do capitalismo e com o

―Estado ampliado‖ , segundo Gramsci, a passagem da guerra de movi -

mento para a guerra de posição seria a questão fundamental da teoria

política do pós-Primeira Guerra Mundial. E ―o objeto da guerra de

posição é a obtenção da hegemonia política antes da chegada ao po-

der; seu teatro é a sociedade civil, e o epicentro, a luta política nacio-

nal‖ (p. 213). Vacca nota também que Gramsci vai superar a no ção de

hegemonia do proletariado e elaborar a de hegemonia política e que

essa só se constrói na competição permanente pela direção política.

Assim, o ―horizonte dos Cadernos não é mais a ‗hegemonia do proleta-

riado‘ , mas a teoria da pol ítica como luta pela hegemonia, que pressu -

põe uma revisão geral do marxismo em termos de ilosoia da práxis‖

(p. 89). Nesse sentido, revolução passiva, guerra de posição, hegemo-

nia, Estado ampliado não podem ser dissociados — ―o conceito de

guerra de posição conjuga-se com o de revolução passiva e, juntos,

articulam o dispositivo anal ítico da teoria da hegemonia‖ (p. 207).

Por conseguinte, ainda segundo Vacca, as asserções gramscinia-

nas superariam o velho paradigma da revolução permanente e a fór-

mula terceiro-internacionalista, e lançariam os fundamentos da po-

lítica dos comunistas italianos no pós-guerra. Segundo elas, ―a luta

política é a luta pela hegemonia‖ e o âmbito ―no qual esta pode se

explicitar como luta pela hegemonia é o terreno de um Estado demo-

crático que não antecipa inalisticamente o advento da ‗ditadura do

proletariado‘‖ (p. 246).

Da leitura que Giuseppe Vacca faz das formulações de Gramsci,

é possível sintetizá-las na sentença, segundo a qual seu projeto de

hegemonia está expresso em uma política para a democracia na

perspectiva do socialismo. Uma política capaz de efetivar transfor-

mações que garantam a realização do ser social em condições de

194 José Antonio Segatto

Page 196: O 2014 que nos espera

equidade e democracia — ampliação das liberdades, socialização da

política, expansão dos direitos de cidadania, publicização do Estado,

criação de mecanismos e pressupostos capazes de induzir a supera-

ção da clássica contradição entre o caráter social da produção e a

apropriação privada do excedente gerado.

Não por acaso setores sociais os mais conservadores e empeder-

nidos da(s) classe(s) dominantes — aferrados e habituados, secular-

mente, ao uso instrumental e patrimonial do poder — temerem tanto

o campo democrático como espaço antagônico e de disputa da hege-

monia. Exemplar desse pavor foi expresso, recentemente no Brasil,

por uma importante representante do tradicionalismo antidemocrá-

tico, a presidente da Confederação Nacional da Agricultura, Senado-

ra Kátia Abreu (PMDB-TO) ao airmar que estava em andamento no

país uma revolução comunista tendo por base a teoria política de

Gramsci. Diz que o dirigente comunista italiano ―ensinava que o tea-

tro de operações da revolução comunista não era o campo de bata-

lha, mas o ambiente cultural‖ e, mais, diz que Gramsci insistia ―que

o novo homem, anunciado por Marx, emergiria não do terror revolu-

cionário, mas da transformação das mentes‖ (Folha de S. Paulo,

16/03/2013, p. A3).

É óbvio que há uma evidente exorbitância e uma certa dose de

rudeza nos enunciados dessa senhora. Também é compreensível

esse tipo de postura em se tratando, sobretudo, de uma representan-

te das classes dominantes tradicionais que temem projetos de trans-

formação de natureza democrática que lhes subtraiam poder de

mando e que criem possibilidades de redenção sociopolítica dos su-

balternos. Mas, por outro lado, atesta a extraordinária atualidade do

legado teórico-histórico de Antonio Gramsci, agora reposto com mui -

ta propriedade e fundamento no livro de Giuseppe Vacca.

Sobre a obra: Vida e pensamento de Antonio Gramsci (1926-

1937), de Giuseppe Vacca, 2012, Fundação Astrojildo Pereira e Edi-

tora Contraponto, 507 pg.

Gramsci nos anos de cárcere 195

Page 197: O 2014 que nos espera

Um pioneiro do jornalismo

cientíico no Brasil

Karina Toledo

co, Julio Abramczyk noticiou a erradicação da varíola no Bra-

sil, acompanhou a primeira campanha de vacinação contra a

poliomielite e narrou a agonia vivenciada pelo presidente Tancredo

Neves em seus últimos dias. Escreveu as primeiras matérias no país

sobre transplante de córnea, sobre um ―novo tipo de exame radiológi-

co‖ batizado de tomograia e sobre o ―som que não se ouve, mas que

faz diagnóstico‖ – o ultrassom.

Mas foi ao reportar a realização da primeira cirurgia de ponte de

safena para o infarto agudo do miocárdio, em 1970, que Abramczyk

ganhou o Prêmio Esso, o principal do jornalismo brasileiro. Essas e

outras histórias estão no livro Médico e Repórter. Meio século de jor-

nalismo cientíico

A obra traz uma coletânea de artigos e reportagens publicados por

Abramczyk no jornal Folha de S.Paulo , onde ele trabalha desde 1959

e, atualmente, mantém a coluna semanal ―Plantão Médico‖. O mate-

rial está dividido em cinco capítulos temáticos: ―Saúde Pública‖, ―En-

fermidades do Coração‖, ―Saúde Pessoal‖, ―Doenças de Personalida-

des‖ e ―Jornalismo Cientíico‖. A apresentação de cada bloco é feita por

nomes de destaque do jornalismo cient íico, como Marcelo Leite, Clau-

dia Collucci, Almyr Gajardoni, Lins da Silva e C élio da Cunha.

Ao contrário do que todo mundo pensa, ele não foi da medicina

para o jornalismo, mas do jornalismo para a medicina, e começou a

trabalhar no jornal O Tempo, aos 17 anos. Quando ainda era estu-

dante da Escola Paulista de Medicina – hoje pertencente à Universi-

dade Federal de São Paulo (Unifesp) – , foi convidado por seu ex-chefe

de reportagem naquele periódico, Hugo Penteado Teixeira, para as-

sumir a vaga de redator na seção ―Biologia e Medicina‖ da então Fo-

lha da Manhã, cujo posto estava sem um titular havia seis meses.

Após a formatura, Abramczyk continuou conciliando a vida atri-

bulada de repórter de jornal diário com a rotina não menos caótica

de médico. Especializou-se em cardiologia e foi, durante muitos anos,

196

Em pouco mais de meio século dedicado ao jornalismo cientíi-

Page 198: O 2014 que nos espera

um dos diretores do Hospital Santa Catarina. Todos os meses, fre-

quentava pelo menos um congresso das mais diferentes áreas. Se-

manalmente, visitava os departamentos de Medicina e as bibliotecas

das principais universidades paulistas, em busca de pautas.

Ao longo de 53 anos, publicou mais de 2,5 mil textos no jornal Fo-

lha de S.Paulo. Já nos anos 1970, alertou sobre o problema crescente

do alcoolismo, os riscos de substituir refei ções por lanches rápidos e a

importância do leite materno para a saúde infantil. Por meio de seus

textos, ajudou a difundir o recém-descoberto soro caseiro. É que, an-

teriormente, a hidratação era feita somente nos hospitais, direto na

veia. Havia ilas de mães com crianças desidratadas no colo e a mor-

talidade infantil por desidratação era uma calamidade.

Em outubro de 1970, publicou um texto em que relatava a desco-

berta, por especialista em saúde pública, das causas desse mal: au-

sência de saneamento básico e água tratada. O assunto havia sido

destaque no 18º Congresso Brasileiro de Higiene. Antes, em 1961,

publicou uma reportagem sobre um novo método para caçar vírus na

Amazônia: iscas humanas. Os mosquitos eram apanhados por uma

pessoa que, de braços e pernas descobertas, icava à espera de que

os insetos viessem picá-la. Antes mesmo de atingir o corpo da isca

humana, os mosquitos eram apanhados em redomas individuais, se-

gundo narrou Abramczyk no jornal. O método de captura permitiu

aos pesquisadores isolar 1,5 mil vírus, 22 deles completamente des-

conhecidos pela ciência. A reportagem rendeu ao médico e repórter o

Prêmio Governador do Estado de São Paulo daquele ano.

Ao longo da carreira, também foi agraciado com o Prêmio José

Reis de Divulgação Cientíica, concedido pelo Conselho Nacional de

Desenvolvimento Cientíico e Tecnológico (CNPq), e com o Prêmio

Abradic de Divulgação Cientíica, oferecido pela Associação Brasilei-

ra de Divulgação Cientíica.

Presidiu a Associação Ibero-americana de Jornalismo Cientíico e

a Associação Brasileira de Jornalismo Cientíico, entidade que aju-

dou a fundar.

Em diversos congressos, seminários e livros, ―Abramczyk apre-

sentou sua contribuição, fundamental, para construir um referencial

teórico para o jornalismo cientíico nas Américas e na Península Ibé-

rica‖, destacou Lins da Silva na apresentação do livro.

Segundo seu organizador, a obra é de potencial interesse para

todos os que fazem ou que leem jornalismo cientíico, além das pes-

soas que se interessam por temas de medicina e de ciência em geral.

Um pioneiro do jornalismo cient íico no Brasil 197

Page 199: O 2014 que nos espera

Ao comparar o jornalismo cientíico feito nas últimas décadas do sé-

culo 20 com o de hoje, Lins da Silva airmou que o nível médio dos

repórteres da área melhorou em função do maior acesso à informa-

ção. Mas piorou em relação ao espaço e ao destaque na cobertura

jornalística, hoje muito menor. Paradoxalmente, a ciência torna-se

cada vez mais importante para o desenvolvimento do país.

Júlio Abramczyk também reclama da falta de valorização do jor-

nalista especializado em ciência pelos gestores da informação e dá a

receita para ser um bom repórter da área: ―O jornalista não deve

apenas divulgar o que fazem os pesquisadores. Deve ter uma visão

crítica da importância da ciência para o país e deve ajudar a sensibi-

lizar as autoridades. Ficar do lado de quem luta por mais verbas para

a pesquisa‖, concluiu.

Sobre a obra: Médico e Repórter. Meio século de jornalismo cientí-

ico, de Julio Abramczyk, 2013, Fundação de Amparo à Pesquisa de

São Paulo (Fapesp), p. 288

198 Karina Toledo

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Page 201: O 2014 que nos espera

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