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ROMANTISMO JUDICIAL Vs. PRAGMATISMO POLÍTICO: COMO LIDAR COM CRIMES INTERNACIONAIS? N’GUNU N. TINY FDUNL N.º 5 - 2004

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ROMANTISMO JUDICIAL Vs. PRAGMATISMO POLÍTICO: COMO LIDAR COM CRIMES INTERNACIONAIS?

N’GUNU N. TINY FDUNL N.º 5 - 2004

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ROMANTISMO JUDICIAL Vs. PRAGMATISMO POLÍTICO: COMO LIDAR

COM CRIMES INTERNACIONAIS?

N’GUNU N. TINY ∗

I. INTRODUÇÃO

Como lidar com crimes internacionais? Nos dias que hoje correm, é “politicamente

incorrecto” afirmar-se que nem todas as situações de violação de direitos humanos devem

dar origem à intervenção de um processo judicial, isto é, dos tribunais. É objectivo deste

breve estudo ilustrar as diversas formas de se lidar com a ocorrência ou vigência de actos

que se consubstanciam em crimes internacionais. O nosso ponto de partida consiste numa

série de premissas que, de seguida, passamos a anunciar. Primeiro, a intervenção do

processo judicial, ou, ao invés, do processo político, através, por exemplo, das comissões

de verdade, como meio de processamento de crimes internacionais depende da situação

vivida em concreto e dos objectivos que se pretendem atingir. Segundo, o processo

judicial não tem nenhuma razão para, ab initio, ter qualquer primazia sobre o processo

político. Terceiro, a opção por um ou por outro processo não tem que ver com questões

moralistas ou de justiça; isto porque, tal como tentaremos demonstrar, pode ser moral e

justo o processamento ou resolução de crimes internacionais através do processo político.

Iremos lançar mão de uma nova metodologia, a análise institucional comparada,

para, face a situações-regra e tendo em conta determinadas variáveis, estabelecer qual a

instituição que, em termos comparativos, melhor resolve uma situação de crime

internacional. Para sabermos qual a melhor instituição a seleccionar, defenderemos a

necessidade de analisar comparativamente os custos e benefícios da utilização de uma e

outra. Tal deverá ser feito a dois níveis: em primeiro lugar, comparando os dois processos

∗ Doutorando na London School of Economics and Political Science (LSE). A primeira versão do presente texto foi elaborada enquanto aluno do primeiro curso de licenciatura da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (FDUNL), no âmbito da disciplina de Análise Económica do Direito, leccionada pelo Senhor Professor Doutor Miguel Poiares Maduro no ano lectivo 2001/2002. O autor

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– o judicial e o político – em termos abstractos, de modo a estabelecer as situações-regra

em que uma e outra melhor funcionam; em segundo lugar, a comparação será feita entre

as diversas modalidades do processo judicial e do processo político, dentro das situações-

regra previamente determinadas. Apenas o segundo nível de comparação tornará

completo o método por nós seleccionado e defendido.

Na parte II deste estudo, forneceremos as ferramentas essenciais ou coordenadas

fundamentais para se lidar com esta problemática: o conceito, espécies e modalidades de

inserção de crimes internacionais; identificaremos os interesses que merecem tutela em

caso de violação de direitos humanos; e definiremos o conceito de análise institucional

comparada, a ferramenta metodológica que nos permitira lidar com a questão orientadora

deste estudo.

Na parte III, relacionamos a metodologia da análise institucional comparada com

a problemática dos crimes internacionais. Analisaremos os custos e benefícios da

utilização, em abstracto, do processo judicial e do processo político. De seguida, faremos

a ponderação dos custos e benefícios e procederemos a escolha da instituição adequada a

lidar com uma situação concreta de crime internacional. Por último, pormenorizaremos

em termos comparativos cada uma das modalidades do processo judicial com o processo

político e concluímos com a abordagem à questão “quem decide quem deve decidir”, o

mesmo é dizer, quem tem a competência das competências para a efectuar a escolha da

instituição adequada.

II. COORDENADAS FUNDAMENTAIS

A. Crimes Internacionais

Por crimes internacionais entendemos o conjunto de actos praticados por indivíduos –

pessoas singulares identificadas ou identificáveis – que violam os direitos humanos, isto

é, o conjunto de normas, regras e princípios que têm como função primeira (ou última) a

agradece muito reconhecido ao Armando Marques Guedes, Kiluange Tiny, Miguel Poiares Maduro, Teresa Anjinho e Ravi Afonso Pereira as sugestões e críticas às primeiras versões do presente estudo.

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protecção universal da dignidade da pessoa humana. Assim sendo, desta noção podemos

destacar três elementos caracterizadores do conceito de crime internacional, a saber:

1. Existência de comportamentos positivos (actos), ou negativos (omissões)

tipificados em leis (ou costumes) internacionais, ou pelo conjunto das ordens

jurídicas nacionais, ilícitos e culposos;

2. Actuação de indivíduos – pessoas singulares – identificados ou identificáveis

através de um processo prévio – jurisdicional ou político –, destinado a apurar a

responsabilidade individual dos agentes;

3. Violação de normas que protegem direitos humanos1;

Não obstante a diversidade de classificações ao nível dos diversos instrumentos legais

nacionais e internacionais, a enumeração dos tipos de crimes internacionais pode ser

elaborada da seguinte forma: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e

crimes de agressão2.

A violação de direitos humanos, sob os quatro tipos acima mencionados pode, por

sua vez, inserir-se numa de quatro modalidades:

1. Conflitos internos, em que a violação dos direitos humanos surge no contexto de

lutas ou guerras civis intraestaduais, isto é, circunscrita geograficamente ao

território de um único Estado;

2. Conflitos interestaduais, em que, tal como o nome indica, as atrocidades

cometidas envolvem conflitos entre dois ou mais Estados, sem que se possa falar

de um conflito à escala mundial ou global;

3. Conflitos transnacionais, aqueles que envolvem uma pluralidade de Estados à

escala global, de tal modo que se possa falar de uma guerra mundial, envolvendo

1 O segundo e terceiro elementos caracterizadores deste conceito encontram-se presentes no primeiro elemento por nós caracterizado. No entanto, a sua autonomização justifica-se pelo facto de estarmos a recortar, para o conceito de crime internacional, apenas as condutas de indivíduos identificados ou identificáveis e pelo facto de fazermos relevar, não obstante as diversas nomenclaturas legais, apenas os actos que violam direitos humanos. 2 Seguimos aqui de perto a enumeração prevista no artigo 5º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional; o Código Penal Português acolhe uma enumeração distinta na medida em que este apenas distingue entre crimes contra a paz e crimes contra a humanidade, reconduzindo o crime de genocídio à categoria de crime contra a humanidade e tratando elementos relativos à guerra quer nos crimes contra a paz quer nos crimes contra a humanidade; cfr. Arts. 236º e ss. do CP.

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uma grande parte de Estados ou, pelos menos, as superpotências existentes e seus

aliados;

4. Terrorismo internacional, em que a ocorrência de crimes internacionais resulta da

actuação de actores não estaduais, envolvendo vários países, quer pelo uso do seu

território para as acções terroristas, quer pela nacionalidade dos agentes, quer

ainda pela nacionalidade das vítimas.

B. Interesses que Merecem Tutela em Casos de Ocorrência ou Vigência de Crimes

Internacionais

Após, ou durante a prática de crimes internacionais, ou violação de direitos humanos, que

interesses devem ser alvo de tutela por parte dos órgãos – jurisdicionais ou de outra

natureza –, a quem incumbe o processamento ou resolução do conflito em causa? Será

que só devemos tomar em consideração os interesses individuais ou sociais esquecendo

os interesses estaduais? Apenas devemos considerar os interesses das vítimas ou também

dos agentes que presumivelmente praticaram os crimes? Qual a natureza dos interesses

que merecem tutela?

Do nosso ponto de vista e tal como tentaremos deixar claro ao longo da nossa

exposição, devemos ter em consideração interesses dos indivíduos (vítimas e agressores),

da sociedade (conjunto dos cidadãos que compõem o Estado ou a comunidade onde os

crimes foram cometidos), dos Estados enquanto estrutura ou organização política e,

ainda, da comunidade internacional como instituição que, ao longo das últimas décadas,

tem vindo a ganhar centralidade ao nível das relações jurídicas internacionais.

Note-se que a escolha dos interesses que merecem tutela ao nível da resolução dos

conflitos varia de caso para caso e determina a instituição que, tendo em vista os

objectivos e interesses seleccionados, melhor resolve e analisa os crimes cometidos. À

melhor ponderação de todos os interesses em jogo num determinado caso concreto

designaremos por justa composição do litígio. A questão está em saber qual a instituição

que melhor prossegue o objectivo da justa composição do litígio. Qualquer das

instituições intervenientes neste processo intervirá à luz deste objectivo. Propomo-nos

através do método da análise institucional comparada, descobrir, perante os casos

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concretos, qual das instituições actua de forma mais eficiente e qual aquela de que resulta

a decisão socialmente mais eficiente, isto é, aquela que melhor consegue compor os

interesses tutelados no litígio.

1. Interesses dos indivíduos: vítimas e agressores

Do ponto de vista daqueles que sofreram as agressões e os prejuízos, o processo de

resolução do conflito deve tutelar os seguintes direitos e interesses legítimos:

- Direito à justiça;

- Direito à verdade/informação;

- Direito à reparação3.

Do ponto vista doutrinal e apesar de isto ser um acquis recente, é hoje pacífico que

perante violações de direitos humanos, os Estados e demais entidades estão vinculados a

um dever de investigar, acusar, punir os agentes criminosos e compensar as vítimas4. A

existência destas obrigações não é controversa, centrando-se a discórdia apenas em torno

do seu âmbito de aplicação. Por conseguinte, é possível destrinçar alguns pontos de

consenso entre a doutrina nacional e estrangeira. Há um consenso relativo ao direito à

justiça. Um conteúdo mínimo deste direito engloba a identificação – judicial ou

extrajudicial – dos agentes e das vítimas bem como alguma forma de punição – criminal,

administrativa ou política – e reparação. Quanto a este aspecto, existe um consenso no

sentido da proibição da concessão de amnistias e perdões automáticos e incondicionais.

Quanto ao direito à verdade/informação, há um consenso no sentido da obtenção

para as vítimas de um sentimento de justiça, que se traduz na existência de um processo

de descoberta da verdade. Trata-se de um direito simultaneamente individual e colectivo

que tem como sua contrapartida o dever de lembrar. No entanto, aquilo que

verdadeiramente se pretende é uma verdade global e não individual (aquilo que cada

3 Cfr. semelhante classificação dos interesses das vítimas em Ana Filipa Santos Carvalho, Prosecutions and/or a Truth Commision? Dealing with Human Rights violations in East Timor (London, London School of Economics Working Paper, 2000), pp. 5-8. 4 Podemos encontrar, nos mais diversos autores que abordam esta matéria, a referência aos seguintes diplomas: Convenção de Genebra, Convenção sobre o Genocídio, Convenção contra a Tortura, Convenção de Viena e Carta das Nações Unidas; também são feitas referências ao nível do Direito Internacional Costumeiro.

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agente fez em cada momento), uma vez que esta é impossível de ser alcançada. Outra

vez, identificamos um conteúdo mínimo: identificação dos agressores, das vítimas e dos

factos mais relevantes que ocorreram.

Também é pacífico que existe, em relação às vítimas, um direito à reparação, que

engloba medidas de compensação – ao nível individual e colectivo – e medidas de

prevenção geral e especial.

Do ponto de vista daqueles que perpetraram os actos considerados criminosos,

também há interesses, inerentes a um Estado de Direito, que necessitam de tutela,

nomeadamente as garantias de imparcialidade, o direito à presunção de inocência, o

direito à defesa, o princípio da proporcionalidade e da medida da pena e o direito à não

politização do processo penal (quando exista).

2. Interesses da sociedade

Do ponto de vista da colectividade há que salvaguardar a chamada “memória colectiva”,

pacificar a sociedade e potenciar a união de comunidades desavindas e garantir, se for o

caso, a transição ou consolidação do processo democrático e do Estado de Direito.

3. Interesses do Estado

Como veremos mais desenvolvidamente aquando da discussão entre “Romantismo

Judicial Vs. Pragmatismo Político”, na resolução de crimes internacionais, sobretudo

aqueles que estão inseridos em conflitos interestaduais e transnacionais, há que acautelar

os interesses dos Estados, nomeadamente no que tem que ver com a sua continuidade

física e política. No limite, em situações de conflitos interestaduais e transnacionais

poderá haver soluções que passem pela liberdade dos Estados em “transaccionarem”

entre si como melhor ajuizarem.

4. Interesses da comunidade internacional

Estão em causa principalmente interesses de prevenção geral a nível internacional, bem

como a consolidação de uma cultura jurídica internacional que não é conivente com

violações de direitos humanos.

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Em suma, da conjugação destes interesses com as situações concretas obtemos a

melhor ponderação de interesses – a justa composição do litígio, isto é, a solução que no

caso concreto melhor satisfaz o conjunto dos interesses das vítimas, dos agentes

criminosos e da comunidade em geral. A questão a analisar é a de saber, perante casos

concretos, qual a instituição que melhor, em termos comparativos, prossegue este

objectivo, sendo que à partida todas elas o perseguem5.

C. Análise Institucional Comparada

A análise institucional comparada aborda a questão de saber, perante uma determinada

questão jurídica, quem deve decidir essa questão, o mesmo é dizer, quem tem

competência para decidir uma determinada questão jurídica. Assim sendo, então a análise

económica do Direito, da qual deriva a análise institucional comparada, tem que ver não

só com o objectivo social do melhor uso eficiente de um bem, resultante da agregação das

diferentes maximizações da utilidade que cada indivíduo retira do bem, mas também com

o funcionamento das instituições, visto que é através delas que se decide, nomeadamente

o mercado, os tribunais e o processo político6.

A análise institucional normalmente usada na literatura jurídica baseia-se na

análise do funcionamento de apenas uma instituição – análise institucional singular. Isto

é: quando uma instituição, seja ela qual for, funciona bem, então deve ser ela, de forma

quase automática, a decidir a questão em análise; quando, ao invés, funciona mal, então a

resolução deve ficar a cargo de uma outra institução7. Exemplo: se o mercado enquanto

instituição resolve por si só uma aparente colisão de direitos de propriedade, os tribunais

não deverão interferir neste potencial conflito; se o processo político apresenta carências

5 Para uma análise ao modo como estes diferentes interesses interagem numa relação de complementaridade ou, ao invés, de conflito ou tensão, confira infra Parte III. Note, ainda, que num primeiro nível de análise institucional comparada, a alternativa situa-se entre o processo político e o processo judicial; num segundo nível, e após a análise em abstracto das duas instituições, devemos comparar as diversas modalidades do processo judicial, isto é, o tribunal penal internacional, os tribunais internacionais ad hoc e os tribunais nacionais, tendo em conta os dados do caso concreto, com o processo político, isto é, as comissões de verdade. 6 Cfr. Neil Komesar, “Exploring the Darkness: Law, Economics and Institutional Choice” (1997) 1997 Wisconsin Law Review 465. 7 Ibid.

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para resolver uma determinada questão, então recorre-se aos tribunais. Ora, se a questão é

uma escolha institucional, isto é, a possível substituição de uma instituição por outra,

então a análise institucional comparada diz-nos que a análise correcta é a comparação

das instituições alternativas e não a análise de cada uma de per se.

Neste contexto, torna-se mister proceder à análise das vantagens e desvantagens

de cada instituição decisora e, dentre estas, cabe seleccionar aquela que melhor funciona.

Este método chama a atenção para o facto das inabilidades de uma certa instituição não

implicarem o seu afastamento automático, mas sim a necessidade de confrontar a

instituição em alternativa com as mesmas questões e problemas e ver se o seu

funcionamento permite, perante o mesmo objectivo definido, dar uma resposta mais

eficiente. Como nos diz Neil Komesar: “A economia é o estudo das escolhas e escolhas

só podem ser compreendidas através da compreensão das alternativas”8.

A performance das instituições – mercado, tribunais, instituições políticas, etc. –

depende da dinâmica da participação institucional. Tudo está em saber quem transacciona

(no mercado), quem litiga (nos tribunais) e quem vota e organiza o processo de votação

(no processo político). Essa participação institucional depende dos custos e dos

benefícios da participação, tipicamente os custos de organização do processo e de

informação. Perante as diversas instituições em alternativa a análise institucional

comparada aponta para uma escolha racional, que se traduz no cálculo dos custos e

benefícios da escolha de cada uma das instituições em alternativa. O estudo da escolha

institucional chama a atenção para a escassez de bens e serviços nas diversas instituições

e para as inabilidades de cada instituição, que tende a aumentar consoante aumente o

número de pessoas a participar nos processos e consoante aumente o grau de

complexidade das questões a tratar. Logo, a escolha recairá naquela instituição que, entre

as alternativas, melhor funcione; mas incidirá sempre sobre uma instituição imperfeita.

Existe, por exemplo, a tendência para fazer funcionar o processo judicial, através dos

tribunais, sempre que as outras instituições – mercado e processo político – não

funcionem bem. Ora, é preciso – e é isto que nos diz este método – olhar numa

perspectiva comparada e ver aquilo que o tribunal é capaz de fazer melhor do que as

8 Ibid., p. 3.

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outras instituições. Numa palavra: não interessa tanto aquilo que o tribunal faz bem, mas

antes aquilo que faz melhor.

III. ANÁLISE

A. Formas Clássicas de Lidar com Crimes Internacionais

Historicamente, podemos visualizar três tipos de políticas para se lidar com a violação de

direitos humanos:

1. Políticas judiciais, cujo principal objectivo é a prossecução da justiça retributiva e

preventiva; isto é, visa, através de processos jurisdicionais, julgar os agentes que

cometeram crimes internacionais9;

2. Políticas de reconciliação, isto é, aquelas que procuram, através das comissões de

verdade, alcançar a reconstrução social e política de uma determinada

comunidade, a reparação das vítimas e alguma forma de punição (ex. através da

admoestação pública) para os agentes criminosos;

3. Políticas combinadas, com características dos dois tipos atrás mencionados.

Apesar do calor das discussões em torno de um ou outro processo de resolução dos

conflitos, podemos afirmar que existe um lugar-comum, um consenso mínimo entre os

vários autores: existe uma obrigação internacional – para os Estados – de combater a

impunidade internacional, ex vi da combinação de várias previsões normativas de tratados

e normas costumeiras.

Até então e salvo raras excepções, tem imperado em torno da questão de se saber

quem dever “julgar” as violações dos direitos humanos, a utilização da análise

institucional singular, senão vejamos. Há autores que, incluídos na categoria de

9 Nesta fase da exposição, abstraimo-nos de saber se se trata de um julgamento em tribunal nacional, tribunal internacional ad hoc ou, num futuro próximo, em Tribunal Penal Internacional.

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“judicialmente românticos” por David P. Forsythe10, defendem, independentemente dos

casos concretos, a justiça criminal em todas as situações11. Martha Minow, na sua obra

notável Between Vengeance and Forguiveness, escreveu em relação a esses autores o

seguinte:

A maior parte dos comentadores defende que a acusação criminal é a melhor resposta para as atrocidades

cometidas e que as comissões de verdade apenas devem ser instituídas como alternativa apenas e quando a

justiça criminal não funcionar12.

Nesta passagem é patente o uso da análise singular: onde a justiça criminal não funciona,

devemos usar o processo político. Não há qualquer ponderação dos custos e benefícios de

ambas as instituições de modo a possibilitar uma escolha racional. Mas o inverso também

é verdade, com autores a defenderem em primeira linha o processo político, sem fazerem

acompanhar dessa escolha uma ponderação dos custos e benefícios do funcionamento

dessa instituição, comparando-a com o processo judicial; são aqueles a quem designamos

por “politicamente pragmáticos”.

Dedicaremos os restantes capítulos desta exposição a analisar comparativamente

o funcionamento do processo político com o processo judicial, procurando estabelecer,

perante situações concretas, qual dos processos a adoptar. Para tal, iremos analisar as

vantagens e desvantagens de cada instituição perante casos concretos na busca da justa

composição do litígio, de modo a estabelecermos positiva e negativamente as situações-

regra em que uma e outra melhor funcionam. Defenderemos que, após este primeiro nível

de análise, é fundamental ir adiante, complementando-o com um outro nível de

comparação. Do nosso ponto de vista, em última análise e após a identificação de

situações-regra, devemos comparar não o processo judicial em geral, com o processo

político, mas sim as suas diversas modalidades, isto é, devemos comparar o

10 Cfr. David P. Forsythe, Human Rights in International Relations (Cambridge, Cambridge University Press, 2000), p. 84. Aí, o autor fala em romantismo judicial em confronto com aquilo a que chama neoliberalismo; a expressão pragmatismo político foi por nós escolhida. Referimo-la vista nos parecer melhor emparelhar com a primeira, sendo (ao contrário de “neoliberalismo”) um conceito do mesmo tipo de generalidade. 11 Para um exemplo deste tipo de abordagem, ver Aryeh Neier, “The New Double Standard” (Winter, 1996-1997) Foreign Policy, pp. 91-101. 12 Cfr. Martha Minow, Between Vengeance and Forguiveness (Massachusetts, Beacon Press, 1998), p. 58.

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funcionamento dos tribunais nacionais ou tribunais penais internacionais ad hoc ou,

ainda, o Tribunal Penal Internacional com o processo político (comissões de verdade).

Perante uma situação concreta, devemos indagar, em primeiro lugar, qual das

modalidades do processo judicial que a ela melhor se ajusta; só após esta prévia

determinação será possível a comparação com o processo político (comissões de

verdade).

Adiantaremos para já o seguinte. Primo, a escolha institucional determina o

conteúdo daquilo a que temos vindo a designar por justa composição do litígio – a

solução que no caso concreto melhor satisfaz o conjunto dos interesses das vítimas, dos

agentes criminosos e da comunidade em geral. Isto é, os tribunais ponderam os diversos

interesses que merecem tutela em caso de violação de direitos humanos de forma distinta

das instituições políticas. O contrário também é verdade: as instituições políticas também

seguem uma racionalidade específica na busca da justa composição do litígio. Secundo, o

que está em causa na escolha institucional é tão-só a determinação do conteúdo da justa

composição do litígio. Ambas instituições procuram alcançar a justa composição do

litígio. No entanto, a utilização de metodologia e racionalidade distintas está na origem

do conteúdo também ele distinto e específico da justa composição do litígio. Tertio, a

escolha institucional depende de uma série de variáveis, nomeadamente a quantidade de

actores que participam num e noutro processo, a qualidade destes mesmos actores ou

agentes e a complexidade da informação a ser processada.

Vamos, como do exposto resulta, aplicar a esta problemática a análise

institucional comparada13.

B. O Processo Judicial e a Justa Composição do Litígio

Quanto a nós, a justiça criminal apresenta, face ao processo político, algumas vantagens.

Analisemos cada uma a se.

13 Autores há, como, por exemplo, Minow, que defendem este tipo de análise, embora sem nunca se referirem ao método por nós aqui utilizado e, sobretudo, não dando as ferramentas necessárias para sabermos quando usar determinada instituição; limitam-se a dizer que na situação X deve usar-se a instituição A, mas não dizendo como se chega - e com que instrumentos - a instituição A. Destas análises

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A justiça criminal beneficia, em primeiro lugar, de todo o conhecimento adquirido

pelos diversos processos judiciais nacionais e internacionais existentes. Não se tratando

de uma realidade nova, pelo menos a justiça interna, isto é, ao nível dos Estados, antes

pelo contrário sendo uma realidade multissecular, beneficia do acumular das regras,

técnicas e experiências adoptadas. Deste ponto de vista, ressalvando os casos dos

tribunais internacionais ad hoc14, existe a afirmação de normas jurídicas gerais e

previamente determinadas, aumentando desta forma a segurança jurídica e evitando a

retroactividade das regras jurídicas incriminadoras.

Outra vantagem da justiça criminal é a de que este processo garante aos agentes

violadores dos direitos humanos todas as garantias processuais existentes, pelo menos ao

nível abstracto. O due process garante a independência do tribunal em relação ao poder

político15, bem como permite o estabelecimento de garantias processuais ao arguido,

como, por exemplo, a presunção de inocência, in dubio pro reo, garantia do contraditório,

ne bis in idem, direito à defesa, proibição da aplicação de leis imprecisas ou leis penais

em branco, direito à proporcionalidade e à justa medida da pena. Deste ponto de vista, o

processo judicial terá êxito não pelo número de indivíduos que condena, mas pela

realização justa dos julgamentos, afastando desta forma os naturais e possíveis

sentimentos de vingança.

É nesta sede, pensamos assim, que o direito à justiça melhor se prossegue. É este,

por conseguinte, o melhor campo para a investigação, julgamento, punição e execução

das penas. Mas, tal como iremos ver, este não é o campo ideal para a descoberta da

verdade – ao contrário do que o senso comum poderia apontar – nem para a

implementação de uma política de reparação dos danos causados às vítimas. No entanto,

não podemos deixar de admitir que, apesar dos demais vícios do julgamento, estes

asseguram quase sempre a chamada memória colectiva.

também não resulta claramente o facto de por vezes serem as próprias instituições a decidir qual das instituições deve decidir, isto é, qual atribui a si própria a competência das competências. 14 Ver infra. 15 Mais uma vez as dúvidas colocam-se em relação aos tribunais internacionais ad hoc, onde o risco de captura em relação aos interesses políticos, principalmente ao nível do Conselho de Segurança das Nações Unidas, se faz sentir. O mesmo, mutatis mutandis, em relação a alguns julgamentos em tribunais nacionais que podem transformar-se facilmente nos tribunais dos vencedores face aos vencidos.

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Analisemos agora as desvantagens ou os inconvenientes, o mesmo é dizer os

custos de litigação.

O funcionamento do processo judicial sofre de desvantagens estruturais que

podem ser agrupadas em seis conjuntos de problemas, a saber:

- Risco de aplicação retroactiva de normas penais incriminadoras;

- Risco de captura pelos interesses políticos;

- Problema de selectividade16 (“grandes números”);

- A questão da execução das sentenças;

- Inexistência de especialização e complexidade das questões;

- Inexistência de mecanismos de compensação.

A aplicação retroactiva de normas penais incriminadoras pode derrogar, de forma

substancial, as garantias processuais dos arguidos. É de realçar que não foi só em

Nuremberga que se verificou a aplicação retroactiva de normas incriminadoras17. Nos

dois tribunais internacionais ad hoc instituídos pelo Conselho de Segurança da ONU –

Tribunal Internacional Penal para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda – tal facto também se

verificou. Em diversos processos onde esses tribunais tiveram de lidar com questões

jurídicas novas – por exemplo, saber se o crime de violação no contexto de conflitos

étnicos configura um crime internacional, saber se a limpeza étnica insere-se dentro do

conceito de genocídio, saber que causas de exclusão da culpa ou da ilicitude relevam no

âmbito dos crimes internacionais – ao nível internacional, tal verificou-se.

Em relação ao risco de captura pelos interesses políticos. Tal risco emerge,

sobretudo, quando o modus operandi, os recursos e decisões processuais, está dependente

da vontade dos actores políticos18. Quando tal sucede19, a criação de tais tribunais

encontra o seu fundamento não num sentimento de justiça e respeito pela regra de direito,

mas numa resposta política – nacional ou internacional – para o conflito em causa. A

própria natureza política das questões – sobretudo em matéria internacional – funciona

16 Cfr. a enumeração dos três primeiros problemas em Minow, op. cit., p. 29 e ss. 17 Na altura, após a II Guerra Mundial, não existiam normas internacionais que tipificassem crimes de genocídio e contra a paz e humanidade. 18 Cfr. Minow, op. cit., p. 37.

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nestes casos como factor de captura e influência em relação ao sistema e processos

judiciais. Haverá nestas situações uma imbricação entre o fenómeno político e jurídico,

com natural predomínio do político, uma vez que este determinará nestes casos a criação

daquele, conformando ab initio o seu funcionamento. Por outro lado, existe o fenómeno

da dependência estrutural, isto é, os recursos disponíveis para o funcionamento do

aparelho judicial, maxime na busca da verdade, estarem excessivamente na dependência

da vontade dos actores políticos. Em todas estas situações haverá um desvio em relação

aos objectivos que presidem ao funcionamento do sistema judicial, dificultando desta

forma a prossecução do nosso objectivo – a decisão socialmente mais eficiente, isto é,

aquela que mais se aproxima da justa composição do litígio.

Associado ao factor político está a questão não menos importante da revisão

jurídica, nomeadamente judicial, de decisões do poder político nacional ou

internacional20. Decisões tomadas ao abrigo do poder político – por vezes legítimo, outras

vezes ilegítimo – poderão ser alvo de revisão ou derrogação por parte dos tribunais. Esta

questão põe a nu a necessidade de encararmos uma possível revisão da clássica teoria da

separação de poderes, bem como a necessidade de se reforçar a obrigação do poder

político de respeitar os direitos humanos. Não obstante tal obrigação de respeito, e uma

concepção mais flexível da teoria da separação dos poderes, a verdade é que em questões

de fronteira entre decisões políticas legítimas e ilegítimas o tribunal não será porventura o

órgão adequado para resolver a questão. Como nos diz Paula Escarameia: “O direito

internacional já não se baseia exclusivamente na soberania territorial dos Estados, mas

ainda não se baseia noutros autores ou valores”21.

No limite, o tribunal poderá fazer juízos acerca da legitimidade ou ilegitimidade

de um poder político ou até da existência ou não de um Estado. Pergunta-se: admitindo,

mas não concedendo, que o tribunal tivesse as condições para elaborar um tal juízo, com

que meios poderá garantir a execução das decisões e medidas decretadas? A esta questão

voltaremos mais adiante.

19 Ver infra a propósito dos Tribunais Internacionais Penais para a Ex-Jugoslávia e para o Ruanda, a abordagem mais desenvolvida desta problemática. 20 Para uma enunciação da questão, cfr. Paula Escarameia, “Quando o Mundo das Soberanias se Transforma no Mundo das Pessoas: O Estatuto do Tribunal Penal Internacional e as Constituições Nacionais”, (2001) 3 Themis 143, pp. 148 e 149.

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Note-se ainda que existe uma incapacidade dos tribunais em lidar com situações

em que os agentes criminosos ainda se mantêm no poder ou detêm um poder considerável

mesmo não exercendo formalmente o poder. Nessas situações, por razões práticas (o

risco consiste, nas mais das vezes, em perigar a transição democrática), o processo

judicial torna-se desapropriado e é de se equacionar como alternativa o processo político,

nomeadamente as comissões de verdade.

É essencial, parece-nos, antes de passarmos à análise do terceiro conjunto de

problemas, esclarecer o seguinte aspecto. Quando falamos do risco do processo judicial

ser capturado por interesses políticos, apenas referimo-nos aos casos em que a influência

do processo político desvirtua o funcionamento dos mecanismos jurisdicionais.

Chamamos a atenção, no entanto, para o facto de qualquer tribunal, seja nacional ou

internacional, que se propõe a julgar crimes internacionais, depender quanto à sua

existência, criação e funcionamento da vontade política dominante. Também nesta linha,

podemos afirmar que o exercício do poder político pode servir – tal como aconteceu em

Nuremberga – de precedente e reforço das normas internacionais protectoras de bens

jurídicos individuais fundamentais.

Passemos à análise do problema seguinte. Entenda-se por problema de

selectividade22 a dificuldade que o processo judicial tem em justificar porque é que uns

são julgados e outros não23. Em alguns tribunais, como o Tribunal para a ex-Jugoslávia,

as dificuldades em deter, para investigação e julgamento, os oficiais de patente superior

ou políticos que ocupam ou ocuparam altos cargos, origina apenas a detenção de oficiais

ou políticos de hierarquia inferior. Esta circunstância exibe decerto algumas vantagens

uma vez que ainda permite a responsabilização individual e impede ou atenua a

destabilização de um regime político ou militar. No entanto, as desvantagens ou

inconvenientes que lhe andam associadas são seguramente em maior número.

Enumeremos algumas.

Haverá, para além da questão inerente de justiça, um risco de inutilidade ou

ineficácia do julgamento, isto porque as altas patentes militares ou pessoas a exercer altos

21 Ibid., p. 143. 22 Cfr. enunciação e tratamento sistemático da questão em Minow, op. cit., p. 40 e ss. 23 A definição é nossa.

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cargos políticos, como não são alvos de acusação em tribunal, ficarão em condições de

continuar ou recomeçar as atrocidades. Por outro lado, quando conjugamos esta questão

com o fenómeno dos “grandes números”, isto é, quando os agentes que cometeram os

crimes internacionais são aos milhares, como e com que recursos julgá-los? Sempre

podemos dizer que, nestes casos, apenas julgaríamos os agentes directa e principalmente

responsáveis. Mas há casos (massacres administrativos ou violações em larga escala) em

que, mesmo assim, a complexidade da questão e os números mantêm-se elevados, uma

vez que podemos estar a falar de actuações coordenadas no espaço e no tempo. Nestes

casos o processo judicial terá um problema de selectividade uma vez que os seus meios

para investigar, julgar e executar as decisões não permitirão um julgamento de todos os

agentes em causa24. O problema de selectividade na acusação potencia o risco de se criar

mártires no seio das “minorias” que são julgadas e punidas. Haverá, nestes casos, o risco

do criminoso se transformar em vítima, já que tais julgamentos são, por via de regra,

submetidos a um espectáculo público e mediático, sobretudo nos tempos modernos e na

sociedade de informação em que vivemos.

Analisemos, muito sucintamente, os restantes problemas acima enunciados.

Haverá sempre um risco de inexecução das penas. Tratando-se de um tribunal

internacional, o problema pode ser resolvido se a pena, por exemplo, de prisão, for

executada num Estado terceiro ou num organismo internacional. A questão é mais

complexa quando analisamos o comportamento dos tribunais nacionais, onde pode haver

um risco de sublevação popular ou captura pelos interesses políticos. As mais das vezes,

a solução passa por decretar penas simbólicas.

Ao julgar crimes internacionais, salvo casos excepcionais, o processo judicial é

por regra deficitário, no sentido em que não comportando mecanismos de compensação,

pode dificultar a reabilitação das necessidades e dignidade das vítimas. Mecanismos

como a compensação financeira, restituição ou acompanhamento ou tratamento médico

não são previstos, marginalizando desta forma a preocupação pela reabilitação das

vítimas.

24 Enquanto o Tribunal Internacional para o Ruanda julgava figuras importantes, encontravam-se, nesse país, cerca de 120 mil pessoas encarceradas – para julgamento? – em condições deploráveis.

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O último problema tem que ver com a complexidade das questões levantadas por

este tipo de criminalidade, que também origina a deterioração do processo judicial. O

tribunal, isto é quem “oferece” o serviço prestado, poderá sentir muitas dificuldades ao

ter que abordar temáticas políticas, económicas, sociais, médico-psicológicas, etc. Note-

se, no entanto, que este problema poderá ser minimizado com o pedido de pareceres e

opiniões de especialistas e não acontecerá de certa forma quando existam tribunais

internacionais especializados na problemática da violação dos direitos humanos. O

problema também se manifesta do lado da “procura”, isto é, da parte de quem busca os

serviços dos tribunais – vítimas e outras pessoas legitimadas por lei. Embora estes

recorram aos órgãos promotores da acção penal e a advogados, haverá sempre o

problema da percepção e compreensão da informação em causa e da sua capacidade de

assimilação.

Eis, em suma, os problemas do processo judicial.

C. O Processo Político e a Justa Composição do Litígio

A alternativa ao processo judicial para lidar com violações de direitos humanos é o

processo político. No âmbito genérico deste dispositivo alternativo existem duas vias

diferentes de actuação: a primeira é a possibilidade – limitada aos casos de conflitos

interestaduais e transnacionais – de os Estados transaccionarem entre si, em autonomia

ou em complementaridade com os tribunais, resolvendo desta forma os litígios e questões

que os opuseram; a segunda via, historicamente mais recente, consubstancia-se nas

chamadas comissões de verdade, cujo paradigma é a Comissão de Reconciliação e

Verdade para a República da África do Sul.

No âmbito da economia da nossa exposição optamos por analisar apenas, e dada a

pertinência e actualidade da discussão, as comissões de verdade.

A ideia-força ou ponto de partida para a implementação de uma comissão de

verdade são os conceitos de humanidade, entendimento e senso de comunidade, que é

traduzida, por exemplo, na expressão sul-africana “unbuntu”. Este quadro conceptual tem

como pressuposto a convivência dentro de um espaço geográfico determinado, ou seja, na

mesma comunidade, entre aqueles que perpetraram os crimes internacionais e aqueles

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que foram vítimas das atrocidades ou, no contexto em que a generalidade da população

esteve em conflito, entre intervenientes no conflito civil, político ou militar. Os seus

âmbitos de aplicação privilegiados são as sociedades profundamente divididas em

consequência de guerras ou conflitos armados. Sistematicamente podemos apontar os

seguintes objectivos como sendo os de uma comissão de verdade:

- Reconstrução social, implicando que as vítimas e agressores continuem a partilhar

do mesmo espaço geográfico;

- Reconstrução política ou viabilidade de um sistema político;

- Processo de pedido público de desculpas; e

- Mecanismo de compensação ou reparação.

Para efeitos desta exposição iremos, ao referir-nos ao conceito de comissão de verdade

(aqui doravante CV), abordar, sobretudo, a Comissão de Reconciliação e Verdade (CRV)

da República da África do Sul. Este será a nosso paradigma, embora em alguns pontos

nos referiremos a outras experiências onde tal mecanismo também foi consagrado – El

Salvador, Argentina, Brasil e Ruanda26, 27.

A CV pode actuar de forma completamente autónoma do processo político, ou de

forma articulada com este; neste caso estaremos perante políticas combinadas. Na

maioria dos casos, como foi o caso sul-africano, a CV aparece como um mecanismo de

estabelecimento de critérios de atribuição de amnistias: quem colaborasse plenamente e

de forma aceitável com a CRV poderia ver-se atribuída uma amnistia ou perdão; no caso

contrário, isto é, a não participação ou a participação insuficiente, os agentes serão alvos

de processos judiciais. A CRV da República da África do Sul, ao contrário das outras

26 A CRV foi impulsionada pelo ANC (African National Congress), partido então liderado por Nelson Mandela e que lutou décadas contra o regime do apartheid, tendo após a abertura democrática do país, em 1994, ganho as eleições democráticas com maioria absoluta dos votos. O ANC pugnou por uma CRV que pudesse investigar as atrocidades, torturas e violações dos direitos humanos. Note-se, no entanto, que o ANC, antes de pugnar pela CRV já tinha instaurado dois inquéritos independentes sobre o abuso de direitos humanos cometidos por próprios membros do ANC, especialmente nos campos de treino em Angola. A CRV viria a ser instituída, após um acordo entre o ANC e o National Party (partido dominante durante o período do apartheid) e após as eleições livres, pelo parlamento em 19 de Julho de 1995. 27 A Comissão de Verdade em El Salvador foi criada no âmbito de um acordo de paz entre as partes conflituantes, sob os auspícios das Nações Unidas; a experiência na Argentina (“Comissão Nacional para o Desaparecimento das Pessoas”) resultou de uma decisão executiva; o Brasil e o Ruanda também tiveram formas incipientes de comissões de verdade.

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CV, resulta de um acto legislativo democrático28, o que lhe conferiu uma legitimidade

acrescida.

Através do mecanismo de uma CV, haverá uma diminuição dos custos financeiros

e emocionais de uma litigação, uma vez que o seu objectivo é a obtenção de desculpas ou

uma retractação pública. Como dissemos anteriormente, a CV não afasta completamente

a possibilidade da via judicial. Ouçamos, a este propósito, as palavras de Martha Minow:

Litigação não é o modelo ideal de actuação social.[...] Os custos financeiros e emocionais de litigação são

mais evidentes quando a litigação se faz entre privados, mas há um problema paralelo quando um tribunal

nacional ou internacional acusa29.

As vítimas e testemunhas terão a oportunidade, quase sem exclusão, de participar no

processo em causa, com pelo menos uma narração das experiências por si vividas. A

oportunidade de contar os acontecimentos vividos sem interrupções, constitui um factor

de recuperação para as pessoas que viveram e estão afectadas por traumas, permitindo

através de testemunhos individuais testar os acontecimentos vividos pela comunidade

inteira. Se, como nos diz Minow, o objectivo é alcançar o retratamento público, então o

processo judicial não é, à partida e sem qualquer análise prévia, a única alternativa em

causa. A CV não estando sujeita ao regime rígido das garantias processuais, talvez será a

única instituição que nos permite saber com profundidade da verdade dos factos

(sobretudo quando estamos a lidar com grandes números), isto porque da verdade

depende a atribuição de amnistias e perdões. Esta é a via privilegiada para, através de um

período de recolha pública de testemunhos e investigação independente, se reconstruir os

acontecimentos passados e construir a memória colectiva.

Quando comparamos as CV com o mecanismo do processo judicial, uma

vantagem parece-nos evidente, qual seja: as vítimas ganham lugar central, mesmo as

vítimas mais ocultas nos lugares mais despercebidos30. Para além deste aspecto geral, na

CRV da República da África do Sul ainda se junta a preocupação pela reconciliação e

28 The National Unity and Reconciliation Act, Act n. 34, 1995, Republic of South Africa. As outras formas mais comuns de criação de uma Comissão de Verdade consistem na via referendária ou na eleição de uma personalidade que colocou esta medida no seu programa eleitoral. 29 Minow, op. cit., p. 58.

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pacificação da sociedade. O facto de uma vítima ou testemunha poder, após um processo

sério de investigação, ouvir de uma CV palavras como “tu estás certa, eles estão errados,

eles agiram mal”, pode trazer uma certa acalmia ou paz psicológica para essas pessoas. A

CV, através do seu poder de restaurar a veracidade dos factos contados pode funcionar

como antecâmara para ajuda individual das vítimas de stress e traumas pós-conflitos.

Note-se que esta afirmação não é um argumento de fé, religião ou moral, mas

antes uma asserção que pode ser testada. De que forma? Por um lado, a confrontação com

o passado deverá permitir a vítima distinguir claramente os factos do passado, do

presente e o futuro. Por outro lado, a não completa diluição dos danos e perdas

individuais dentro dos danos e perdas colectivas, permite-nos aferir os resultados da

terapêutica individual das vítimas de stress e traumas pós-conflitos.

Uma outra dimensão de valor acrescentado pode ser aflorada, embora as

vantagens que disso advêm se situem do lado daqueles que perpetraram as violações aos

direitos humanos. As CV permitem testemunhas abonatórias daqueles que, previsível ou

alegadamente, cometeram crimes internacionais, sem que isso constitua para essas

testemunhas qualquer juízo de cumplicidade ou imoralidade.

Ainda ligada à centralidade dos interesses das vítimas, podemos falar da

importantíssima questão da reparação, questão essa que tal como vimos não merece

atenção na generalidade dos processos judiciais. Existe uma dupla dimensão no processo

reparatório ao nível das CV. Em primeiro lugar, podemos encontrar actos de reparação de

natureza simbólica ou de natureza económica. Em segundo lugar, a reparação pode ter

natureza individual ou comunitária. Conjugando as duas dimensões descritas podemos ter

as seguintes modalidades de reparação ou compensação:

- Pagamentos pecuniários;

- Prestação de serviços de saúde e sociais, nomeadamente através de

aconselhamento e tratamento médico; e

- Construção de memoriais e outros actos simbólicos que assinalem os

acontecimentos vividos.

30 Ibid., p. 60.

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Esses mecanismos compensatórios visam o estabelecimento, ou lançamento de uma via

de comunicação entre os agentes criminosos e as vítimas, criando ligações

transversalmente novas entre os membros da comunidade. Esta conexão permitirá, por

sua vez, dotar os membros das comunidades onde ocorreram as violações dos direitos

humanos de instrumentos que lhes permitam retomar o controlo das suas próprias vidas.

Essa tarefa gradual de retoma do controlo da própria vida passa pelos seguintes

elementos:

- Recuperação de bens individuais roubados ou parcialmente destruídos;

- Pagamentos pecuniários pelos danos causados; e

- Garantia de pedidos de desculpas públicas.

A possibilidade de reparação não deve ser vista como uma panaceia que não comporta

riscos. Riscos existem e convém referi-los.

Em primeiro lugar, existem problemas de índole monetária. Como é evidente,

apenas os sobreviventes se tornam elegíveis para o pagamento de indemnizações. Serão

indemnizados, apenas, por danos e perdas por si sofridos, ou terão direito a uma

indemnização, a título sucessório, pelos danos e perdas causados aos familiares directos

já falecidos? O que é que pode ser alvo de compensação financeira? Apenas os bens de

natureza pecuniária, ou também bens jurídicos como a liberdade, a privacidade, a

igualdade, a dignidade da pessoa humana? E poderá haver compensação pela demora na

atribuição da indemnização causada pelo processo judicial ou político31? Estas questões

terão de ser alvo de cuidada ponderação caso a caso.

Existem, ainda, problemas relacionados com o fundamento e origem das

indemnizações. A ideia central destas indemnizações reside na teoria da justiça. Danos e

perdas podem e devem ser compensados. Os agentes criminosos devem compensar as

vítimas pelas perdas. Essa teoria é importada do regime jurídico da falência, dos

contratos e dos danos pessoais. Mas como transportá-la para os casos de violação em

31 Esta última questão não deve ser negligenciada. Os tribunais americanos debateram a questão e concluíram, após vários recursos, pela inclusão deste dano na indemnização à propósito da questão dos danos causados pelo Governo Federal dos EUA aos americanos de origem nipónica e japoneses residentes nos EUA aquando da II Guerra Mundial. Foram atribuídas compensações a essas vítimas pela privação da

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grande escala dos direitos humanos onde, ao contrário do contexto onde estas noções

foram retiradas, os bens em causa não têm um valor de mercado? Como podemos

equacionar o valor das torturas e das violações? Mesmo no caso de se indemnizar apenas

os sobreviventes e estes forem em números pequenos a questão mantém-se. As dúvidas

levantadas evidenciam problemas morais e jurídicos complexos, susceptíveis de inquinar

o bom funcionamento das CV.

Tomemos o seguinte caso verídico32. Quando o Primeiro-Ministro japonês

Ryutura Hashimoto ofereceu uma declaração de desculpas e uma compensação financeira

para 500 sobreviventes (das 200 000 vítimas), para compensar o “emprisionamento e

exploração de escravas sexuais” levado a cabo pelo exército imperial na II Guerra

Mundial, apenas 6 mulheres aceitaram. As restantes rejeitaram argumentando que a fonte

da indemnização eram dinheiros privados e não propriamente do Governo. Aquelas que

na altura aceitaram realçaram o facto de que nenhum dinheiro podia compensar o que

haviam sofrido. A maioria mostrou-se mais satisfeita quando o Departamento de Justiça

dos EUA colocou o nome de 16 mulheres envolvidas na “escravatura sexual” em paredes

públicas e impediu os criminosos de guerra de entrar nos Estados Unidos. Na sua

maioria, as mulheres reivindicaram processos judiciais e tratamento e acompanhamento

clínico. Por detrás da recusa das mulheres esteve a resposta a seguinte questão: de onde

vem o dinheiro? Naturalmente que vem de todos, dos contribuintes, incluindo daqueles

que sofreram as agressões. Não existe uma pura transferência de recursos dos agressores

para as vítimas das agressões. Por conseguinte, podemos considerar que a reparação de

todos danos resultantes de factos históricos é, na verdade, uma política redistributiva,

onde os bens de uma pessoa (não necessariamente do agressor) se transferem para outra

(necessariamente para a vítima). Pese embora a pertinência da argumentação, a verdade é

que a compensação financeira pode contribuir – juntamente com outros aspectos – para a

afirmação da dignidade e sociabilidade das vítimas.

Do exposto, uma conclusão se pode retirar de imediato: dada a complexidade do

problema e os custos de informação envolvente, esta questão será de muito difícil

liberdade através de encarceramentos, violação da igualdade e dignidade e, ainda, pelas perdas causadas pelo tempo de espera em relação à indemnização. 32 Caso retractado em Minow, op. cit., p. 105.

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tratamento pelos tribunais, apenas podendo ser resolvida ao nível do processo político.

Não se trata de uma escolha dos tribunais; trata-se antes de uma impossibilidade.

Como ultrapassar os problemas da reparação económico-financeira?

Uma via alternativa é o recurso à restituição, ou seja, o retorno de bens

específicos e desapropriados injustamente33 e/ou ao retratamento público, isto é, pedido

de desculpa verbal e assunção de responsabilidade pelos crimes cometidos.

Mas estas vias também sofrem de inconvenientes. Por restituição entenda-se o

retorno da coisa actual à esfera jurídica da vítima. Estamos aqui a aludir a coisas como o

retorno de bens imóveis, contas bancárias, peças de arte, etc. Neste caso não haverá

problemas de avaliação do bem, como vimos acontecer com outros bens jurídicos. Mas

pergunta-se: como restituir após utilização sucessiva do bem, durante um período

considerável, por parte de pessoas inocentes ou de boa fé? Muitas vezes não será possível

refazer-se o percurso comercial do bem, noutras ficará também por indemnizar o actual

“proprietário” do bem, que o adquiriu de boa fé e a título inocente. Não estaríamos a

cometer uma injustiça presente para concertar uma pretérita? Note-se que o problema

tornar-se-á mais complicado sempre que o número de pessoas envolvidas nas transacções

for elevado – é novamente a questão dos “grandes números”. É verdade, tal como diz

Minow, que após uma desapropriação injusta todas as restantes aquisições não seriam

válidas e que as pessoas que adquiriram os bens já usufruíram dele durante algum tempo.

Mas o problema não se resolve por esta via; isto porque os adquirentes de boa fé

construíram a sua vida em torno destes bens e criaram expectativas legítimas de vir a

usufruir deles no futuro. Não se pode rectificar males passados independentemente da

justiça relativa do presente. Por outro lado, a restituição significa partir do princípio de

que os titulares dos bens retirados teriam feito, durante o período de tempo da violação do

seu direito de propriedade, um uso racional, eficiente e prudente do bem em causa.

Uma outra questão, esta porventura mais contextual, mas nem por isso menos

pertinente, se coloca. Tomemos um novo exemplo, desta vez o caso sul-africano. Mesmo

quando há restituição (e até compensação financeira), esse mecanismo compensatório,

face ao cenário de pobreza e desigualdade existentes, torna-se escasso para potenciar a

33 Utilizamos o termo injusto e não ilegal, porque na altura pode haver lei (injusta do nosso ponto de vista) que permita tal privação da propriedade.

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reabilitação da economia e da sociedade civil. Note-se como a questão pode ainda ser

mais complexa. A nova constituição da República da África do Sul protege o direito de

propriedade da minoria branca enquanto, em simultâneo, garante o direito à compensação

ou reparação, incluindo a restituição, das vítimas do apartheid e dos conflitos emergentes

ao abrigo desse regime. Como será possível, sem se violar a constituição, haver

restituições, sem que haja violação dos direitos35 adquiridos pela minoria branca? Entre

compensar as vítimas passadas com novas injustiças e manter o estado actual de coisas

sem nada fazer, ainda é possível recorrer a uma dimensão simbólica, isto é, ao pedido de

desculpas e retratamento público. Na África do Sul, para além de muitos memoriais que

se construíram, assistiu-se à atribuição a determinadas comunidades de pedaços de terra

com valor religioso e histórico, que revestem as características de serem únicos e

infungíveis.

Mas também aí podemos encontrar dificuldades de três espécies, a saber: a falta

de sinceridade; a falta de vontade de mudar; e incompletude do retratamento. Note-se que

desculpas não são apenas palavras; assume um papel crucial, no mecanismo

desencadeado, a forma ou o processo do pedido de desculpas. Pedir desculpas não é um

acto unilateral, requer antes uma forma de comunicação entre o agressor, vítima e a

comunidade no seu todo; constituindo assim um processo comunitário moral.

Quatro aspectos negativos podem ainda ser apontados à CV. O primeiro tem que

ver com o risco de captura em relação a certos movimentos religiosos, com a inerente

perda de objectividade do processo político. Na CRV na África do Sul foi notório, em

certos momentos, a pressão religiosa que se formava em torno da figura do Arcebispo

Desmond Tutu.

O segundo problema é mais elaborado e mais complexo. O que fazer com os que

não colaboram com as CV? A resposta clássica é a de fazer funcionar o processo judicial,

subsidiariamente – cá estamos, outra vez, perante a análise institucional singular. Quem

teve a oportunidade de participar no processo político e não quis, deve sujeitar-se de

pleno às malhas da justiça. E quem participou e teve uma participação considerada

35 Referimo-nos, naturalmente, àqueles que foram adquiridos em violação dos direitos das vítimas, por exemplo, os resultantes de ocupações de terrenos e aldeias de diversas populações; direitos fundados nas mais inacreditáveis injustiças.

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insuficiente, também será alvo de processo judicial? Com que critério se deve definir

“participação suficiente”? Quem decide se a participação foi ou não suficiente? Fazendo

uma análise institucional comparada a melhor resposta levar-nos-ia a concluir no sentido

de ser a CV a fornecer tais critérios e a decidir da suficiência, ou não, da participação,

isto porque é este mecanismo que estará em condições para definir os critérios e avaliar

individualmente a participação dos agentes na busca da verdade, uma vez que é a

instituição mais próxima para a avaliação dos factos. Os tribunais não estarão em posição

de decidir até porque tudo o que se diz nas CV não faz prova para os tribunais, onde

funciona a presunção de inocência e as garantias processuais do ofendido. Mas esta

resposta, que como vimos é a melhor à luz da análise institucional comparada, é

compatível com o princípio da independência dos tribunais? Por outras palavras, o

tribunal estará obrigado a julgar as pessoas cuja participação é considerada insuficiente

pela CV? O processo judicial terá de intervir, mas não necessariamente os tribunais; estes

só intervirão se e quando a entidade competente provar que há indícios suficientes ou

manifestos da violação de direitos humanos. Neste caso, haverá julgamento e todo o

processo de produção de prova terá lugar nessa sede.

O terceiro aspecto implica uma questão já abordada a propósito do processo

judicial – a limitação temporal e de recursos humanos e financeiros. Perante uma tarefa

quase hercúlea – a busca da verdade individual e colectiva – a CV tem limitação

temporal; a CRV da África do Sul funcionou num período máximo de dois anos. A

limitação de recursos também é um factor a ter em conta, isto porque nesta sede o âmbito

da investigação é muito maior quando comparada com a investigação nos tribunais. Mas

como dissemos, dos mesmos problemas padece o processo judicial.

Abordemos o derradeiro problema, que podemos designar por problema da

adesão. No funcionamento de uma CV, a dimensão social ou comunitária assume maior

ou tanta importância quanto a dimensão individual. A dimensão social faz-se sentir em

todo o funcionamento desta instituição, sobretudo ao nível da reconstrução moral e das

consequências políticas do processo; a dimensão individual está patente, principalmente,

nas audiências individuais e nos mecanismos de reparação. A CV é um processo

cooperativo que requer a interacção dos diversos agentes de uma sociedade. Por

conseguinte, o seu funcionamento requer informação e participação. Ora se assim é,

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então o bom funcionamento de uma CV dependerá do nível de participação da

comunidade, isto é, do seu nível de adesão. É aí justamente onde se encontra o paradoxo.

Ao afirmar-mos que o bom desempenho institucional depende em larga medida do nível

de adesão, estamos a fixar no tempo a avaliação, ainda que parcelar, do funcionamento de

uma CV. No entanto, quando da análise do nível de participação a decisão sobre a

instituição ou não de uma CV e a respectiva análise institucional comparada já teve lugar.

Faz-se – e outra forma não podia deixar de ser – a análise custos/benefícios sem ter em

linha de conta – porque o facto é superveniente – um dos aspectos que determinam o bom

funcionamento de uma CV; o mesmo é dizer, sem tomar em conta o nível de adesão. Isto

é: o bom funcionamento de uma CV depende do grau de participação que lhe está

associada. Porém, no momento em que ponderamos a escolha de uma CV ou de um

tribunal, esta variável fundamental – o nível de participação – não pode ser determinada

por constituir um facto superveniente, ou seja, que só pode ser apurado após a criação de

uma CV. Pergunta-se: como proceder, então, à comparação sem este dado fundamental?

A única forma de não falsear a comparação será a de presumir, no momento da

análise comparativa e com os dados disponíveis, se haverá ou não um elevado ou

significativo número de participação36. Passemos a ilustrar. Se um político se candidata a

um alto cargo político e toma como uma das bandeiras principais a constituição de uma

CV e for eleito com uma maioria expressiva dos votos e sendo o nível de abstenção

diminuto, então podemos presumir que haverá uma forte adesão. Tomemos ainda uma

outra hipótese de trabalho. Se há um referendo sobre a constituição de uma CV e a

votação for de uma maioria significativa no sentido da criação de uma CV e, mais uma

vez, o número de abstenção for diminuto, será correcto presumir-se o alto nível de

participação37.

A elevada participação originará, olhando a questão de um outro prisma,

problemas de organização do modo de funcionamento da instituição e compreensão e

assimilação de informação (que é complexa nestes casos) por parte dos participantes.

36 No tribunal, a questão é inversa, visto que, de acordo com o princípio dispositivo, o impulso processual é ónus das partes, maxime do agente processual responsável pela acção penal; o tribunal é passivo e só funciona quando há, ab initio, participação dos intervenientes legítimos. 37 Nestas hipóteses, os custos de realização de eleições ou de um referendo terão de ser “contabilizados” para efeitos de análise comparada.

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Estando em presença de “grandes números”, o funcionamento da CV (tal como vimos

acontecer com os tribunais) tenderá a deteriorar-se38. Aqui, vemos de que forma uma

elevada participação pode trazer desvantagens; nos parágrafos anteriores, vimos como

esse mesmo fenómeno pode ser benéfico, aumentando a legitimidade de todo o processo.

Uma última nota. Quanto mais transparente (e.g., num processo público e aberto

sem assegurar, em regra, a confidencialidade39), democrático e legítimo for o processo de

criação de uma CV maior será o impulso de participação; a relação é directamente

proporcional.

D. A Escolha da Instituição Adequada

Chegados a este ponto, é tempo de ponderar os custos e benefícios do funcionamento das

instituições analisadas em situações-regra; e sobrevém o momento de seleccionar, em

função disso, a instituição que mais e melhores vantagens comparativas oferece. Para tal

é preciso recordar que o nosso objectivo é alcançar a solução que, no caso concreto,

melhor satisfaz o conjunto dos interesses das vítimas, dos agentes criminosos e da

comunidade em geral, isto é, que melhor realiza a justa composição do litígio.

Como temos defendido até aqui, a justiça é um processo e não um fim em si

mesmo; é um conjunto de actos e práticas com o objectivo de alcançar algo previamente

definido. A questão está em saber se o fim previamente traçado pode e deve ser sempre

alcançado pelos tribunais, ou se momentos há em que tais objectivos melhor são

realizados através de um outro processo – o político. A ser assim, em que situação-regra

deve ser usado um e outro processo com vista à obtenção da justa composição do litígio?

Comecemos por enunciar o problema. A questão, a nosso ver, estará em saber se

as CV apenas são uma segunda escolha quando o processo judicial não se apresente

capaz de dar uma resposta cabal ao problema; ou se pelo contrário, são uma verdadeira

38 Quando estamos em presença de “grandes números” e informação complexa, a escolha institucional será feita entre instituições cujo funcionamento se encontra altamente deteriorado; escolheremos a melhor dentre as piores. No caso inverso, isto é quando estamos em presença de “pequenos números” e baixa complexidade na informação, escolheremos entre as melhores alternativas, isto porque a tendência é para que as instituições, neste contexto, funcionem bem.

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alternativa, impondo desta forma uma ponderação casuística de custos e benefícios da

utilização de uma instituição em substituição de outra. No primeiro caso, estamos a falar

de uma análise institucional singular; no segundo, de uma análise institucional

comparada.

Sobre esta problemática diremos o seguinte. Em primeiro lugar, há que

estabelecer uma análise em função de um caso concreto, sem embargo de se construírem

respostas para situações-regra que terão de ser alvo de um teste face às situações

concretas. Em segundo lugar, tal como já deixamos transparecer, é necessário uma

análise comparada das instituições em presença. Como estabelecer esta comparação é o

que demonstraremos de seguida.

O método por nós proposto apresenta uma dupla dimensão. Num primeiro nível,

deve-se comparar as potencialidades de cada instituição mediante a modalidade de

inserção do crime internacional em causa. Depois desta primeira abordagem, devemos

estabelecer uma grelha comparativa em função dos objectivos que uma e outra instituição

melhor prosseguem.

O processo judicial, prima facie, poderá funcionar nas situações de conflitos

internos, interestaduais, transnacionais, ou mesmo em casos de terrorismo internacional.

Há como que uma vocação universal para o funcionamento das instâncias judiciais,

nacionais ou internacionais consoante os casos. O mesmo já não se pode dizer em relação

às CV. Esta pressupõe a resolução ou pacificação de uma sociedade, de um conjunto de

pessoas em litígio dentro de um espaço geográfico determinado. Pressupõe que as vítimas

e agressores mantenham uma forte ou substancial conexão e que convivam numa

determinada comunidade. O objectivo será o estabelecimento de condições que permitam

diminuir a tensão e fracturas existentes nessa comunidade, lançando as bases para uma

futura convivência pacífica dos seus membros.

Por conseguinte, as CV têm o seu âmbito de aplicação privilegiado restringido aos

conflitos internos e nalguns conflitos interestaduais (nomeadamente quando os estados

em conflito partilham fronteiras terrestres). Isto significa que nos restantes casos –

39 Note-se que o facto de não se assegurar, em regra, a confidencialidade tem as suas desvantagens, uma vez que pessoas que genuína e compreensivelmente ainda se sentem ameaçadas não darão o seu testemunho.

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conflitos transnacionais e terrorismo internacional – não devemos proceder a uma

comparação entre as duas instituições em causa? A resposta deve ser negativa. Ainda

assim a análise institucional comparada mostra-se útil por duas ordens de razões.

Primeiro, porque coloca em evidência os aspectos negativos do processo judicial e os

aspectos positivos das CV; aspectos estes que podem – face à natureza das instituições –

ser “importados” para os tribunais. Em segundo lugar, note-se que pode haver situações

em que o funcionamento de um tribunal traz desvantagens de tal forma consideráveis que

pode ser preferível nestes casos o recurso às CV ou a mecanismos análogos40.

A mensagem a reter será a de que existe uma vocação universal do funcionamento

do processo judicial, enquanto que o processo político vê o seu âmbito de aplicação mais

diminuído. Tal facto não pode ser visto como uma desvantagem natural, até porque os

conflitos internos e interestaduais são mais frequentes e requererão sempre, para o seu

apuramento e contabilização, uma análise institucional apurada.

Aqui importa, sobretudo, realçar os aspectos em que cada instituição melhor

funciona em busca de uma determinada solução, em busca da prévia determinação da

justa composição do litígio. Não interessa tanto aquilo que cada instituição faz bem, mas

sim o que cada instituição faz melhor. Podemos dizer, tendo em conta o que escrevemos

até este ponto, que o processo judicial (tribunais) prossegue com eficiência e vantagens

(em termos comparativos) os seguintes objectivos ou metas:

1. Resolução de conflitos que envolvem crimes internacionais, seja qual for a sua

modalidade de inserção, que já ocorreram, ou seja, onde não há risco de piorar a

situação uma vez que os conflitos já cessaram e só falta apurar as eventuais

responsabilidades criminais;

2. Resolução de conflitos em situações de pequenos números, isto é, situações em

que o número de pessoas a julgar seja diminuto;

3. Processos em que questões, embora complexas, não ultrapassem em demasia a

fronteira da especialização jurídica;

40 Em casos de terrorismo internacional pode funcionar uma CV? Note-se que não há uma definição internacional e consensual acerca do conceito de terrorismo. No entanto, se, por exemplo, considerarmos as actuações do Hamas e da Jihad Islâmica, como sendo terroristas, então é possível equacionar uma CV conjunta entre Israel e Palestina. O mesmo, mutatis mutandis, poderá vir a acontecer no País Basco em relação as actuações da ETA e no conflito da Irlanda do Norte.

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4. Estabelecimento de melhor e mais eficazes garantias processuais para os alegados

criminosos;

5. Garantia de melhor segurança jurídica, ex vi da aplicação de regras gerais e

abstractas previamente determinadas;

6. Garantia de uma investigação mais rigorosa (mas menos profunda e abrangente);

7. Preservação da memória colectiva.

Em suma e tendo em conta os interesses a ser tutelados, podemos concluir o seguinte:

a) Os interesses das vítimas são protegidos no que respeita à justiça

retributiva, mas não no concernente ao direito à reparação ou

compensação; o direito à verdade ou à informação também é alcançado;

b) Os interesses dos agressores têm o seu mais alto grau de garantia e

protecção uma vez que são accionadas as demais garantias processuais;

c) Não há qualquer garantia de pacificação de uma sociedade e de

viabilização de um regime democrático (se for caso disso);

d) Há um reforço da consciência jurídica nacional e internacional acerca da

obrigação de investigar, julgar e punir aqueles que cometem crimes

internacionais;

e) É a melhor via para a prevenção geral.

Por conseguinte, podemos estabelecer, com os dados anteriormente descritos, a situação-

regra em que, prima facie, os tribunais funcionarão com eficiência e eficácia41. Os

tribunais têm um funcionamento tão mais eficiente, comparando com as CV, quando

mais o objectivo for o de resolver um conflito passado (em que o risco de divisão da

sociedade é baixo), em que o número de pessoas a julgar é diminuto, e onde o grau de

especialização de questões não jurídicas é baixo; quando o objectivo for garantir ou

prevenir que semelhantes acontecimentos não voltem a repetir-se no futuro, proteger os

direitos dos arguidos e a segurança jurídica e garantir a justiça retributiva. O grau de

41 Chamamos mais uma vez a atenção para o facto de estarmos a falar de situações abstractas que terão de ser confrontadas com os casos concretos. Só perante a factualidade se poderá, em última análise, testar a validade destas asserções.

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eficiência será, por outro lado, tão mais elevado quando, à semelhança do que aconteceu

em Nuremberga e Tóquio, tais julgamentos melhor servirem para reforçar a defesa dos

direitos humanos. Neste caso, o aspecto compensatório sairá prejudicado bem assim

como a preocupação com a pacificação da sociedade.

Comparativamente, as CV apresentam as seguintes vantagens ou benefícios:

1. Resolução de conflitos internos – actuais, ou passados – e, por vezes,

interestaduais, onde o número de pessoas que cometeram as atrocidades é

elevado42 e onde existe uma profunda divisão comunitária entre as pessoas que

partilham do mesmo espaço geográfico;

2. Resolução de questões cujo âmbito de especialização em relação a problemas não

jurídicos é elevado43.

3. Maior preocupação com as vítimas e estabelecimento de mecanismos de

reparação;

4. Melhor contributo para o estabelecimento de uma nova ordem democrática;

5. Contribuição para a pacificação e reconciliação da comunidade;

6. Não exclusão do processo judicial, visto que este poderá funcionar

subsidiariamente – há uma melhor relação interinstitucional.

A conclusão face ao exposto deverá ser a seguinte44:

a) Elevada protecção dos interesses das vítimas, não só no que concerne à

reparação, mas também devido ao grau de intervenção no processo;

b) Menor garantias processuais para os alegados criminosos, sobretudo

quando os critérios de utilização subsidiária dos tribunais não estão em

rigor definidos;

c) Elevada eficiência na pacificação e reconciliação dos membros desavindos

de uma mesma sociedade;

d) Enfraquecimento da regra jurídica e politização dos conflitos45;

42 Com a inerente deterioração do funcionamento. 43 É certo que nos tribunais também podem intervir especialistas das mais diversas áreas, mas a sua participação será sempre residual e estes não participam do processo de tomada das decisões. 44 Quando for de presumir um elevado grau ou nível de participação ou adesão.

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e) Falta de garantia da verdadeira “reabilitação” dos agentes criminosos.

Assim sendo, defendemos, as CV funcionarão com eficiência na seguinte situação-regra:

conflitos actuais ou passados e internos ou interestaduais46, onde as vítimas e agressores,

em grande número, partilharam uma futura sociedade já por si dividida no presente e

onde a preocupação com as vítimas e com a garantia de uma nova ordem democrática é

fundamental.

E. Tribunal e Comissões de Verdade

Até aqui comparámos o funcionamento do processo judicial em abstracto com o

funcionamento das CV. Daqui em diante, iremos analisar comparativamente, e após

prévia determinação das situações-regra e das situações de exclusão, o funcionamento de

cada modalidade do processo judicial com as CV. Só após este nível de comparação

poderemos escolher a instituição adequada a resolver o litígio pendente.

1. Tribunal nacional e comissões de verdade

Apesar do processo judicial ter vocação universal, isto é, de poder julgar crimes

internacionais seja qual for a sua modalidade de inserção, há situações em que se

recomenda, dentro do processo judicial, a ponderação da utilização de um tribunal

nacional. Que situações são estas? Tal é susceptível de acontecer em situações de conflito

interno (ou conflito que envolva dois Estados vizinhos, em que cada um julgue os seus

próprios nacionais e até cidadãos estrangeiros47). Em tais casos como fazer a análise

comparativa, com que variáveis?

45 Em relação ao risco de captura pelos interesses políticos é de referir que o processo tenderá a ser dominado pelas forças políticas e militares vencedoras do conflito e pela comunidade internacional, nomeadamente as grandes potências. 46 Com a ressalva feita anteriormente. 47 Este entendimento encontra a sua base legal na Convenção de Genebra de 12 de Agosto de 1949. Foi ao abrigo desta Convenção e desta interpretação que o Estado espanhol pretendia julgar o General Augusto Pinochet em seu território. Note-se, no entanto, que antes de 1990, só a França e Israel tiveram julgamentos nacionais que envolveram crimes contra a humanidade. Quanto ao crime de genocídio, com excepção da Alemanha e da Guiné Equatorial, não se realizaram julgamentos nacionais até 1994/95, data dos julgamentos das atrocidades cometidas na Jugoslávia e no Ruanda. Cfr. Forsythe, op. cit., p. 88 e ss. Os

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Tudo o que dissemos anteriormente quanto aos custos e benefícios da utilização

de uma CV mantém-se. Mas já não em relação ao processo judicial. Nestes casos, há que

ter em conta a susceptibilidade do tribunal nacional para resolver ou contribuir para a

estabilização democrática e para a reconciliação social. Tal habilidade é maior em

comparação com um tribunal internacional e menor se a comparação for feita com uma

CV. Mas ainda assim, este dado terá de ser tido em conta. Por outro lado, tratando-se de

uma estrutura interna, terá ainda a vantagem de poder usufruir do conhecimento

adquirido ao longo dos tempos. Note-se, ainda, que o problema da (in)execução das

sentenças, prima facie, não se fará sentir com muita acuidade, isto porque ao nível

interno existem mecanismos de natureza judicial e policial que poderão desenvolver esta

tarefa com apreciável eficiência e eficácia. Por fim, saliente-se que só com os tribunais

nacionais poderá existir uma relação de subsidiariedade em relação a uma CV.

Quanto ao mais as vantagens e desvantagens mantêm-se.

2. Tribunal penal internacional ad hoc e comissões de verdade

Estes tribunais apresentam especificidades que merecem ser analisadas de forma cuidada.

Este tipo de tribunal poderá funcionar em casos de conflitos internacionais,

transnacionais e de terrorismo internacional. Tal como iremos ver, em situações deste

género (“grandíssimos números”), quer o tribunal internacional quer a CV tendem a

funcionar de forma muito deficiente. Qualquer das soluções não dará resposta cabal ao

problema em causa.

O funcionamento das CV tenderá a deteriorar-se fortemente em cenários de

conflito internacional. O mecanismo de compensação ou reparação – que é visto como

uma das maiores vantagens desta instituição – não existirá, ex vi do número de vítimas a

ter em conta e da complexidade da questão. À medida que as vítimas e os agressores vão

deixando de partilhar o mesmo espaço geográfico, diminui a capacidade, a possibilidade

mesmo, de reconstrução social. Existirá uma drástica diminuição de eficiência nos

seguintes aspectos: possibilidade das vítimas participarem no processo; capacidade de

lidar com a complexidade dos factos; legitimidade do processo e apuramento da verdade

tribunais nacionais têm jurisdição em caso de ocorrência de crimes internacionais com base em quatro princípios: territorialidade, nacionalidade, personalidade passiva e universalidade.

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material. Nestes casos, o nível de deterioração do funcionamento da CV será elevado; o

mesmo acontecerá com os tribunais internacionais.

Após o julgamento dos crimes internacionais ocorridos durante a Segunda Guerra

Mundial, apenas dois tribunais internacionais foram criados: um para a ex-Jugoslávia e

outro para o Ruanda. Imensas vozes têm-se levantado contra a criação e funcionamento

destes tribunais e a sua eficácia posta em causa. A primeira vista, podemos considerar a

implementação destes tribunais como sendo um reflexo de um judicialismo romântico, de

um apego à regra do direito; porém, uma análise mais atenta leva-nos a concluir o

contrário. Estes tribunais são o exemplo claro da captura do processo judicial pelos

interesses políticos. Os tribunais foram criados por deliberação do Conselho de

Segurança das Nações Unidas (res. nº. 927 de 1993 e 955 de 1994, respectivamente)

numa altura em que ambos os conflitos ainda decorriam. O objectivo de tal deliberação

foi o de dar uma resposta política aos acontecimentos, uma vez que os membros do

Conselho de Segurança, nomeadamente os Estados Unidos, não queriam enviar tropas

para o terreno, colocando um ponto final aos conflitos. A motivação principal não foi

legalista ou moral, mas sim política. Na impossibilidade de enviar tropas para o terreno e

perante a pressão dos meios de comunicação social para se pôr fim às atrocidades, havia

que tomar uma decisão política. Por conseguinte, desde o momento da sua formação,

estes tribunais foram capturados por interesses políticos de uma minoria, os Estados

Membros do Conselho de Segurança48. A criação de qualquer tribunal internacional

depende da vontade do Conselho de Segurança, na medida em que a definição de

“ameaça à paz mundial”, “quebra da paz mundial” ou “agressão”, que são pressupostos

da criação destes tribunais, depende da vontade daquele órgão das Nações Unidas.

Outro aspecto negativo, salientado pela maioria dos críticos, prende-se com o

facto de a criação destes tribunais não ter colocado fim à limpeza étnica que se

verificava49. Uma coisa é julgar os criminosos; outra, bem diferente, é colocar fim a

violência. Por conseguinte, a criação destas instituições, na vigência de conflitos, tem de

ser bem ponderada.

48 Ver, no mesmo sentido, Forsythe, op. cit., p. 93 e ss. 49 Existem documentos públicos que, quanto ao caso do Ruanda, confirmam um aumento generalizado dos massacres, com o intuito de não deixar testemunhas vivas e perpetuar o conflito.

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Em nossa opinião, um aspecto positivo (em todo o caso positivo da perspectiva do

apaziguamento de conflitos e tenções) resulta, porém, decerto da criação destes tribunais:

existe um efeito de prevenção geral a médio/longo prazo, perspectivando e reforçando a

ideia de um tribunal internacional permanente.

Em conclusão, diremos que a escolha entre CV e tribunal penal internacional ad

hoc, em caso de conflito internacional, é uma escolha entre instituições que apresentam

um funcionamento, em regra, deficiente.

3. Tribunal Penal Internacional e comissões de verdade

Padecerá o recém-criado TPI dos males que enfermam os restantes tribunais

internacionais? Perante a inviabilidade destes, devemos recorrer de forma automática às

CV, ou devemos ponderar a utilização do TPI?

Convém dizer que o TPI não poderá julgar retroactivamente, isto é, só julgará

crimes que ocorrerem desde a entrada em vigor dos seus Estatutos, que após terem sido

concluídos em 1999 e assinados por 160 Estados, entraram recentemente em vigor após

terem sido ratificados por mais de 60 Estados signatários. Este aspecto é fundamental na

compreensão do funcionamento desta instituição. Será o TPI uma alternativa as CV em

casos de conflitos internacionais? E quanto aos conflitos internos? A criação do TPI

desde cedo originou um debate aceso no mundo da política e do direito internacional,

fazendo correr rios de tinta. A crispação entre os defensores do projecto e seus

oposicionistas originou uma solução de compromisso em diversas matérias. Passemos a

ilustrar algumas delas.

Em primeiro lugar, o Estatuto de Roma foi aprovado sob a forma de Tratado

Internacional, vinculando, em regra, apenas os Estados-Partes50. Em segundo lugar,

prevaleceu a tese da complementaridade, segundo a qual o Tribunal só actua se e quando

os sistemas nacionais não existirem ou falharem quanto à sua credibilidade (art. 17º)51;

sendo assim, em rigor o TPI não é uma alternativa ao processo judicial nacional, nem

50 A alternativa seria a aprovação via revisão da Carta das Nações Unidas, dando, desta forma, uma maior força-jurídica ao documento, uma vez que este vincularia todos os Estados Membros dessa organização. No entanto, apesar de só estarem vinculados os Estados-Partes, em determinadas situações, o Tribunal poderá julgar indivíduos com nacionalidades diversa das dos Estados-Partes (art. 12º).

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mesmo ao processo político nacional, uma vez que por “sistema nacional”, na nossa

opinião, pode ser entendido sistema ou processo judicial ou político nacional. O TPI está

“desenhado” para uma lógica de complementaridade ou subordinação em relação aos

mecanismos nacionais, pelo que na realidade não constituirá uma verdadeira alternativa a

este. Em terceiro lugar, tal confronto implicou o consentimento dos estados, em certas

instâncias, para que o processo possa ter início (art. 12º) e limitações na definição dos

crimes sob jurisdição do Tribunal (arts. 6º a 10º).

Ao TPI são apontados dois conjuntos de problemas, a saber: “problemas de

legitimidade” e “problemas constitucionais”52. Abordemos brevemente ambos.

O TPI julgará actos ou omissões juridicamente relevantes de indivíduos (pessoas

singulares), em regra, no exercício do poder político-administrativo e militar, o que

colocará em causa a legitimidade de decisões políticas e até a legitimidade de certos

regimes políticos, bem como originará uma limitação da soberania nacional. Nas palavras

de Paula Escarameia:

O Estatuto de Roma vai ainda avivar problemas não resolvidos na nossa ordem mundial e no seu

ordenamento jurídico, em pelo menos, três áreas: o princípio da soberania estatal versus protecção de

direitos humanos de cada indivíduo; o papel de indivíduos enquanto tais na condução e desenvolvimento da

ordem mundial, designadamente da sua ordem jurídica; e, finalmente, a questão fundamental do papel do

Direito perante a Política, isto é, a revisão jurídica, mormente judicial, de decisões do poder político

mundial53.

Quanto aos problemas constitucionais, são apontados essencialmente três tipos de

questões: a proibição de extradição de nacionais, as imunidades de certas autoridades

(Chefes de Estados, membros de Governo e de Parlamentos) e, em determinadas ordens

jurídicas, a questão da prisão perpétua.

O que dizer de todas estas críticas? Estas questões, sem dúvida pertinentes e bem

suscitadas, não se fazem sentir muito no presente, isto porque o próprio Estatuto resolveu

de forma compromissória quase todas os problemas acima mencionados, isto é, estas

51 Note-se como o próprio Estatuto, de forma indirecta, aponta para a ideia de comparação do funcionamento de instituições. 52 Cfr. Escarameia, op. cit., p. 146 e ss.

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questões foram discutidas e resolvidas previamente e as respectivas soluções

incorporadas no Estatuto54. Apesar de nem todas as questões estarem resolvidas, em

comparação com o funcionamento dos tribunais internacionais ad hoc, o TPI parece ser

mais eficiente e eficaz, sobretudo na diminuição do risco de captura pelo poder político.

Note-se: diminuição mas não dissipação do risco de captura. Há e houve influência

política: a definição de crime de agressão foi adiada para o momento da primeira revisão

do Estatuto por influência dos membros permanentes do Conselho de Segurança (art. 5º

n.º 2); por outro lado, nenhuma investigação pode começar ou continuar por um período

de 12 meses se o Conselho de Segurança assim o solicitar, através de resolução aprovada

de acordo com o Capítulo VII da Carta da ONU. Manifestações claras de uma vontade

política.

Em relação às CV não se impõem comentários adicionais.

A terminar, abordaremos a questão de saber “quem decide quem deve decidir”,

isto é, quem tem competência para fazer esta operação de análise institucional comparada

que aqui defendemos como a mais adequada. É por vezes o processo político quem tem

de fazer tal análise e decidir qual das instituições será, em termos comparativos, a mais

adequada a resolver o problema em causa. Mas a última palavra caberá aos tribunais, uma

vez que mesmo que o aparelho político se decida pelo funcionamento de uma CV, um

cidadão ou um conjunto de cidadãos (e/ou o órgão promotor da acção penal) poderá levar

o caso a tribunal para julgamento.

Nestas situações – de decisão de quem deve decidir – dois aspectos fundamentais

são de ser ter em conta. A instituição a realizar esta operação não deve menosprezar os

custos do seu próprio funcionamento e deverá ter em conta os custos da ponderação que

está a efectuar, ou seja, os custos da operação de ponderar quem deve decidir; há que

internalizar tais custos. Há ainda que ter em conta o risco de efeito sistémico. Uma

53 Ibid. 54 Cfr. arts. 27º, 28º, 15º, 16º, 89º, 63º, 112º, 77º, 80º, 103º n.º 1 e 110º n.º 3, 4 e 5.

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decisão errada sobre qual a melhor instituição para resolver o problema, originará uma

espiral de deterioração no funcionamento da instituição (mal) seleccionada55.

IV. CONCLUSÃO

É chegada a altura de concluirmos. Lidar com violação, em larga escala, dos direitos

humanos não tem sido um tarefa fácil. Nos dias de hoje, é pacífico a obrigatoriedade de

“punir” e responsabilizar individualmente os agentes agressores.

Há diversas formas de se processar um litígio cujo objecto é a violação de direitos

humanos. Analisámos, como possíveis vias de resolução, o processo judicial e o processo

político. À partida, não podemos dizer que um é melhor do que o outro. Não é legítimo

dizer que só aplicámos o processo político quando o judicial falhar ou não for possível a

sua utilização. O contrário também é verdade.

Uma utilização correcta e tão completa quanto possível da análise institucional

comparada pode ajudar a resolver esta problemática. Tendo em conta a prossecução de

interesses previamente definidos e as circunstâncias de cada caso, é necessário fazer uma

análise custo/benefício de modo a saber qual a instituição que melhor prossegue o nosso

objectivo – a justa composição do litígio. Um ponto pode ter-se como certo: nenhuma

instituição é perfeita e a escolha recairá sempre sobre instituições imperfeitas. No

entanto, há instituições que, em face dos objectivos traçados e do caso concreto,

funcionam de uma forma mais eficiente e eficaz. A análise institucional comparada dá-

nos a possibilidade de identificarmos a instituição que melhor funciona em termos

comparativos. Foi isso que tentámos aqui demonstrar.

55 O erro pode ocorrer entre a alternativa processo político/processo judicial, mas também pode acontecer que a escolha do processo judicial seja a mais acertada e se errar na escolha da modalidade (dentro deste processo) mais adequada.