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Ao comear a guerra mundial, em 1939, o presidente da Aca-
demia Brasileira de Letras, Cludio de Souza(1876-1954), empreende
uma viagem pelas ilhas do Atlntico sul e nelas registra, fundamental-
mente, o mistrio daquelas paragens.
Mistrio, porque mistrio foi essa res nulliusat s vespe-ras de nossos dias. Quem a queria at o segundo quarteldo sculo passado?... Ninguem! Fantasmagoria espectral,
plago de perigos mil, bratro inacessvel, onde a vidaagonizava no soluo desesperado dos ventos, de deusesrebelados e vencidos, essa terra, essas cordilheiras, essasilhas, sse arquiplago so o estrangulamento da terra es-facelada pelo cataclismo e esmigalhada entre as espiraisdas serpentes imensas, das giboias sinistras dos canais...A gua entrou-lhe pelo corpo decepado. Cortou-o de fs-
tulas. Impediu-lhe a comunicao universal, e, isolando-ada solidariedade do continente, tornou-a um amontoadode rochedos e arrecifes.Res nullius... Ninguem a queria. Aavidez humana de terras enviava-lhe, entretanto, seguidas
Diversidade
e histria
Raul Antelo(Universidade Federal de Santa Catarina)
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expedies. Mas os descobridores morriam de sede e defome, esmigalhavam-se contra as pedras, ou regressavamesqulidos e combalidos para todo seu curto resto de vida,
escrevendo como Cook em 1769: a terra mais horr-vel que at hoje tenho visto. No pde haver na naturezalugar mais agreste.
Outro explorador, o capito Samuel Wallis, conrma essaimpresso, escrevendo:
Regio selvagem e inhabitvel que mais parece ruina deum mundo que habitao de seres humanos.
Contavam outros, entretanto, como John Byron, naquelamesma poca: Vi nela res no inferiores s nossas navariedade, no colorido e no perfume. Essa regio, traba-
lhada pela cultura, ser uma das mais belas do mundo.Outros haviam avistado naquela costa seres humanos depropores avantajadas, com enormes ps lanudos, torsosvigorosos e cabeas altivas, raa forte e rara, descenden-tes dos deuses gigantescos de mundo desaparecido. En-tretanto ningum queria essa terra, espcie de polvo demil tentculos, onde as frias infernais ora se deixavamsurpreender na horridez de seu monstruoso sabbath, orase mostravam oridas e festivas, inundadas de sol, chil-reantes de pssaros, repousantes de sombra e cheias dosencantos das sereias para atrair o viajante e devor-lo.1
A condio de ser uma terra habitada pelo mistrio alimenta, em1 SOUZA, Claudio de. Terra do fogo (Impresses de viagem regio do polo Sul).
Rio de Janeiro, P.E.N. Clube do Brasil, s/d, p. 7-9. Adolfo Prieto, partindo da hiptese de que
algunos de los viajeros ingleses que llegaron a la Argentina entre los aos 1820 y 1835 aproxi-
madamente, elaboraron una imagen del pas segn pautas de seleccin y de jerarquizacin muy
especcas, concluiu que algunas de esas pautas se anticiparan en varios aos o fueran, en el
momento de publicacin de los textos, estrictamente contemporneas a las empleadas por es-
critores que, como Alberdi, Echeverra, Sarmiento y Mrmol, proclamaron y contribuyeron, de
hecho, a la fundacin de la literatura nacional argentina (p.12-3). No obstante, Prieto conclui
o retrospecto do relevamento britnico com a constatao de que esse cenrio expandido por
Darwin e Fitz-Roy, com a incorporao do imenso territrio patagnico, a Terra do Fogo e asilhas Malvinas, un paisaje distinto, una poblacin y una historia remota o escasamente vincu-
lada a la poblacin y la historia asentadas en el varias veces secular corredor establecido por los
colonizadores espaoles. De alguna manera, entonces, la particular naturaleza de este comple-
mento viene a redimensionar, a reubicar, a ordenar de nuevo el grueso del material acumulado
por el propio Darwin y por los otros viajeros que lo precedieron de cerca. Entender la segunda
operacin como complementaria de la primera es admitir, simplemente, que Darwin construye
en su diario una imagen de la Argentina ms abarcadora y compleja de la que muchos de los
propios argentinos tenan del pas entre los aos 1835 y 1845. La tercera operacin, sin embargo,
la del rescate del recuerdo de la Patagonia como el recuerdo ms perdurable del viaje alrededor
del mundo, tiene menos que ver con una Patagonia poblada todava de nativos de alta talla, que
con el ambiguo sentimiento sugerido por sus vastas latitudes a un observador europeo: el de
representar acaso la ltima frontera a la voluntad de apropiacin del conocimiento. PRIETO,
Adolfo. Los viajeros ingleses y la emergencia de la literatura argentina, 1820-1850. Buenos
Aires: Editorial Sudamericana, 1996, p. 88.
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consequncia, a conexo desse territrio com o mito. Um estudioso da
questo, o italiano Furio Jesi (1941-1980), pautou suas pesquisas pelos
estudos de um precursor como Bachofen, que conguravam um desaopara o Esclarecimento, na medida em que foram sempre considerados
equvocos para aqueles que do Iluminismo tinham escolhido, to so-
mente, seu aspecto diurno, espalhando a luz, no entanto, para a objeti-
vidade lolgica, que praticavam com todas as armas do positivismo.
Bachofen, pelo contrrio, inclinava-se em direo s profundidades do
ser e do pensamento, essa regio obscura que se apresentava como um
perigo, um terreno tambm de perigosas areias movedias ou de pnta-
nos cheios de fantasmas, onde o risco era particularmente grande porque
a essncia do pensamento iluminista implicava uma dialtica entre a
luz e as trevas, que se traduzia, frequentemente, em exorcismo das tre-
vas: considerava-se a luz como o contrrio das trevas, quando, caberia
pensar, maneira de Santo Agostinho, na treva como uma ausncia de
luz. Bachofen, que propunha um fundamento funerrio da propriedade,
argumentando que o ncleo da propriedade era a posse fundiria, e que
o ncleo desta o tmulo, punha o estudioso da mitologia frente res-
ponsabilidade, despertada alis por Rousseau, de ser um simples exege-
ta das caractersticas das sociedades primitivas e, portanto, de todas associedades humanas, graas equivalncia entre primitivo e primordial,
ou, em outras palavras, em virtude da postulao de um fundamento pe-
rene para a avaliao simblica ou cultural2. Particularmente em seu en-
saio sobre Bachofen, Jesi esclarece um aspecto da mquina mitolgica
sobre a qual descansavam relatos como o de Cludio de Souza, aspecto
esse que tributrio, alis, das teses sobre losoa da histria de Benja-
min, ao argumentar que a relao com o antigo sempre suscitou, na cul-
tura ocidental, uma quantidade de pesquisas esotricas, frequentementemescladas a outras, propriamente lolgicas, mas, desde os incios da
etnograa e a etnologia, em todas elas, comprova-se que os diversos,
enquanto antigos, possuem segredos e mistrios de que os diversos, en-
quanto selvagens, foram desprovidos. Para ilustrar essa violncia de pri-
vao simblica, poderamos nos valer da imagem de John Byron citada
por Cludio de Souza, os mares do sul como um conm habitado por
um polvo de mil tentculos que a dominava em um monstruososabba-
th,em que bem podemos reconhecer a gura doLeviathan de Hobbes.Mas Jesi relembrava outro caso, o do monge benedetino Antoine-Joseph
2 JESI, Furio. O Mito. Trad. Lemos de Azevedo. Lisboa, Presena, 1977, p.70
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Pernety, ou ainda Dom Pernety (1716-1801), um dos primeiros visitan-
tes da ilha de Santa Catarina, que foi tambm arquelogo, llogo e
esoterista, em cujos estudos, embora, de um lado, se admitisse que atradio mitolgica da guerra de Troia se relacionava com smbolos al-
qumicos, de outro, antecipando-se, por exemplo, a Cludio de Souza,
limitava-se a assumir a funo objetiva de etngrafo, em seu relato da
viagem empreendida com Louis-Antoine de Bougainville s ilhas Mal-
vinas, em que descrevia os hbitos dos selvagens que l encontrou sem
resgatar-lhes, porm, nenhum segredo, nenhum enigma, como puro e
simples viajante curioso e discretamente objetivo pelos mares do sul3.
Em poucas palavras, Jesi nos diz que, para equacionarmos as relaes
entre o antigo e o selvagem, necessrio, antes de mais nada, analisar os
modelos gnoseolgicos utilizados para produzir as mltipas categorias
do diversos quais recorremos quase sem pensar. Em suma, Pernety
procedeu a des-historicizar uma cultura que Cludio de Souza, a seguir,
pde, enm, ccionalizar mais livremente. Mas isso no libera os textos
em questo de uma marca histrica muito precisa, que Jesi desentranha
com agudeza. Julga, assim, que os primeiros viajantes s Malvinas eram
esotricos, na medida em que reconheciam, nas formas simblicas, a
precedncia de antigos esquemas, mas, no obstante, observa que eleseram igualmente cientcos enquanto, abolindo o segredo, descreviam
usos e prticas culturais com uma suposta objetividade universal. Com
esse raciocnio, Furio Jesi instala, no corao mesmo do mito (a fbula),
o espelho da mitologia (a co), e nos diz, portanto, que a lgica da re-
presentao (a histria) est minada, ento, pelo regime da verdade (da
ambivalncia). E a esse respeito explica que
Ao atriburem aos diversos-antigos e no aos diversos-selvagens a propriedade do segredo, os esoteristas nose limitam a preservar passivamente sua riqueza, mas adefendem ativamente, usufruindo da dimenso temporal(em que colocam a exibio dos bens) para dar fundamen-to projeo da durao dos bens exibidos. A esfera dosdiversos-antigos preserva como um estojo denitivamen-te congelado a raiz do segredo, entendido como diferena
por antonomsia. Ao conservar a essa raiz, os esoteristascolocam-na, deliberadamente, a resguardo das turbuln-cias da histria: no seguro, em um lugar onde ela no po-
der nunca mais ser cortada e, portanto, sempre podervir a fundamentar e alimentar a futura durao da planta.
3 IDEM.Bachofen. Torino, Bollati Boringhieri, 2005, p. 25.
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Os diversos-selvagens, que gozam de contemporaneidadecom os esoteristas, esto, pelo contrrio, expostos coti-dianamente aos perigos da histria e tanto mais, a partir
do momento em que a descoberta de sua condio de ci-dados, quebrou as ltimas barreiras que separavam seuprprio tempo daquele dos civilizados, sua prpria his-tria da histria da Europa. Isso signica, alm do mais,que a verdadeira diversidade, a diversidade por antono-msia, essa que pode coincidir com o segredo enquantoextrema diversidade, apenas a diversidade no tempo,uma vez que somente a diversidade no tempo pode sercongurada como elemento ecaz de ruptura do modeloda histria como continuum nico. E justamente essaruptura o objetivo preliminar das doutrinas e das prticasesotricas4.
bom observar que, pouco antes de Cludio de Souza, um dos
mais celebrados modernistas do grupo Martn Fierro, Sergio Piero
lho, a quem Borges, alis, dedica seu prototpico Leyenda policial
(1927), sorte de proto-texto de Homem da esquina rosada, empreende
a mesma viagem mtica ao sul (tpico compartilhado no s com Bor-
ges, mas tambm com Marechal ou Molinari), mais especicamente s
Orcadas, e tambm equaciona o mistrio austral em chave policial, pois
na conveno desse gnero que ento se exprimia o infame.
La vida aventurera tiene una atraccin invencible. Es lavida del abandono donde impera constantemente la suer-te. A la despreocupacin de lo que les rodea se aade lavoluptuosidad de lo imprevisto que cambia la vida y lasrutas de la existencia. En las almas nmades esa inclina-cin al constante vagar se torna imperativo, obsesionante.Y en cuestin de suerte muchos hay que no pueden subs-
traerse a la emocin de un pleno cuando la ruleta es lavida misma
Viven dedicados a su trabajo atisbando nicamente el mo-mento de encontrarse frente a frente con una botella dewhisky. A las escasas mujeres, retradas en sus casas, pocose las ve; y cuando por cualquier motivo cruzan a la vis-ta, los ojos van tras sus carnes, libremente desparramadasen impdica observacin que desconcierta. Las conver-saciones hieden a comercio y sexualismo como la bahaa aceite. Pero teniendo la precaucin de repartir sendas yvirtuosas copas, la pltica se vuelve inagotable surtidor deasuntos novedosos que se escuchan con avidez.
Un viejo obrero de factora se hizo gran amigo mo. Ha-
4 IDEM ibidem, p. 27-28.
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ca quince aos que viva en la isla. Contaba ya sesenta ycinco de edad. Por sobre la cabecera de su lecho de viudo,atrjome el cristal de una fotografa reproduciendo una
preciosa joven noruega de ojos transparentes y cabellossobre la cara, del color de los crepsculos boreales. Erasu hija. Me hablaba de ella con la emocin temblorosa deun alucinado. Relatbame cmo se vi obligado a dejarlay cmo pasaron de veloces los aos, uno tras otro, en elansia de reconstruir la fortuna perdida en una mala rachadel juego obstinado.
Pero ya lo he conseguido, me deca, zarpar el pr-ximo mes para estrecharla entre mis brazos. Pobrecilla!Quin sabe dnde est y lo que es! Pero la ver. Oh, s laver! Comprende usted? Ver a mi hija!...
Una noche mi viejo amigo me envi a bordo un gentil ob-sequio: una gorra noruega de cuero, recubierta de pieles.Para sorprenderlo la coloqu sobre mi cabeza y me dirijde puntillas a su habitacin en un pequeo chalet cercanoa la factora. Sobre el lecho, el anciano descansaba con
placidez, soando quizs en las sonrosadas mejillas deaquella su hija, tan inocente y tan rubia Me acerqu allamarlo.
Estaba muerto.5
Se o relato de Piero, como Lenda policial, uma maneira de
sentir-se em mortee equivale, remedando Sarlo, a um formalismo re-
gional de vanguarda, o poeta Manoel Ricardo de Lima opera, em uma
mesa de trabalho no muito diversa de Vitor Chlovski em sua Viagem
sentimental, no intuito de ler a poesia brasileira contempornea, em par-
ticular, o caso limite de Anbal Cristobo (1971- ), poeta bilingue e en-
cavalgado a duas culturas, atravs da evocao de um muito conhecido
poema de Borges, Juan Lpez y John Ward, que trata de um encontro
imprevisto entre dois soldados, durante a guerra nas Malvinas. Observa
o crtico que a transparncia desse enfrentamento rosto a rosto, ou livro
a livro, e lngua a lngua, numa peculiar postulao do neutro (os nin-
gunsJuan Lpez e John Ward) e, ao mesmo tempo, a demarcao da
literatura de Cervantes e Conrad, que Borges louva, no poema, como
paradigmas de suas respectivas lnguas, desfaz o semblante sugerido
pelas ideias de mito e territrio, ou de lei e nome, e tensiona, enm, um
quadro que, apoiado em Giorgio Agamben, Manoel Ricardo identica
com a tpica de o amigo e a amizade. Evoca assim o nosso autor
5 PIERO HIJO, Sergio. El pual de Orion. Apuntes de viaje. Buenos Aires: Proa,
1925, p. 113-116.
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que, em O amigo, Giorgio Agamben parte, com efeito, de uma tela de
Giovanni Serodine, chamadaIncontro de San Pietro e San Paolo sulla
via del martirio para, a certa altura, armar que
Na Galleria Nazionale di Arte Antica, em Roma, se con-serva um quadro de Giovanni Serodine que representa oencontro dos apstolos Pedro e Paulo a caminho de seumartrio. Os dois santos, imveis, ocupam o centro datela, rodeados pelos gestos desordenados dos soldados edos carrascos que os conduzem ao suplcio. Os crticosmuitas vezes mostraram o contraste entre o rigor hericodos dois apstolos e a balbrdia da multido, visvel aquie ali por clares respingados quase que por acaso sobreos braos, sobre os rostos, sobre as trombetas. Por mimconsidero que aquilo que torna esse quadro propriamenteincomparvel que Serodine representou os dois apsto-los to perto um do outro, com os rostos quase colados,que eles no podem absolutamente ver-se: a caminho domartrio, eles se olham sem se reconhecer. Essa impressode uma intimidade por assim dizer excessiva ainda in-tensicada pelo gesto silencioso das mos que se apertamabaixo, um pouco escondidas. Sempre me pareceu queesse quadro contivesse uma perfeita alegoria da amizade.O que , na verdade, a amizade, seno uma proximidadetal que no possvel represent-la, nem fazer dela um
conceito?
Manoel Ricardo, em poucas palavras, sublinha o carter xtimo
da relao amigo-inimigo mas, por outro lado, no deixa de destacar
que, com a assertiva de um tempo que no podemos entender, retirada
alis do poema de Borges, e partindo, ainda, do princpio de que o tem-
po rme e imvel e que, em torno dele, ns, os homens, criamos uma
iluso insuspeita de movimento, poderamos concluir que
imprescindvel ler e ver tambm a poesia de AnbalCristobo numa tripartio de quando, quantoe comoela
pode ou consegue (ou conseguiria) ainda se desprender dahistria e, assim, sucessivamente, das ideias que poderiamvir de um lugar especco e nacionalizado. Arma-se, as-sim, um tempo da contingncia irreetida do corpo soltono mundo para experimentar a aventura, a aventura comoespera, suspenso e, principalmente, com a permisso do
encontro e da existncia de UM OUTRO, ou seja, comcoragem. Para Walter Benjamin, a coragem tem a ver nos com limitao, mas tambm com a possedo prpriocorpo; diz ele que a coragem entrega ao perigo queameaa o mundo, que para uma pessoa corajosa o pe-
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rigo existe, no entanto, ela no o trata com considerao(...). Uma abolio da diferena entre um eusuposto e umoutromais suposto ainda tende a abolir a coragem, esta
atitude que quanto mais profundamente compreendida,torna-se menos uma caracterstica do que uma relao dohomem com o mundo e do mundo com o homem (...); eainda, sem parar, tende a abolir tambm a possibilidadede um eunum outro, apagando assim qualquer heteroge-neidade.
Uma tal anlise, acionada, no esqueamos, pelos rostos colados
dos dois soldados amigos-inimigos, mas, certamente, mutuamente des-
conhecidos, leva o crtico Manoel Ricardo a montar esses textos juntoa mais um, um poema de Francisco Alvim, logo de seu primeiro livro,
Sol dos cegos(1968), intitulado Paralaxe, em que se pode ler, enm,
a repetio diferida da imagem do quadro de Serodine e, tambm, a rei-
terao de uma imagem imposta como encontro e, ao mesmo tempo, a
certeza de ser um encontro, certamente, fadado ao insucesso e, portanto,
um poderoso signicante da paisagem do vazio, que Manoel Ricardo
ilustra, vertiginosamente, com alguns fragmentos do trecho nal desse
poema:
Amo-te sim como a
mim
mesmo
irmo paralelo
olho
no
olho
a luz do mundo s se ilumina
quando soma tua viso e a minha
Nutre o tempo, o real de
nossos ombros paralelos
elos
contra o velho)
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[...]
Um pas de putas
cho pisado de botas
Um pas pobre
fezes que a cobra expele
e que redevora
[...]
Puxa o gogo o pedagogo
cusporeja a grande perda
No deviam consentir
mesmo um pas de merda
Putas inventam o
rio da sede
Tambm na mesa do bar
conversa d-se trela
eu mais ela ela mais eu
quando ela e eu eu e ela
por onde navegas a
paisagem do vazio6
Estes aspectos de uma luta cultural primordial se reativam quan-
do ponderamos que a recente comemorao dos trinta anos da guerra das
Malvinas provocou tambm uma srie de aes e avaliaes to inditas
quanto ambivalentes. Exerccios blicos britnicos que, ao que tudo in-
dica, no desdenham armamento nuclear; novas exploraes de petrleo
na regio, que se somam pesca predatria j empreendida por outros
6 LIMA, Manoel Ricardo de.Anbal Cristobo. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2013, p. 17-22
[Col. Ciranda da Poesia].
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pases como o Japo e a Espanha, cujos efeitos, alis, sentem-se em nos-
sas mesas, dia a dia, com o sumio de variedades outrora frequentes. No
entanto, a cobertura corriqueira da mdia insistiu, quase exclusivamente,no carter anormal das declaraes do governo argentino, quase tacha-
das de bravatas, tirando relevncia, ou mesmo naturalizando, a presena
do Prncipe britnico, em roupas de combate, no arquiplago. Estara-
mos, nos dizem, frente a um clssico exemplo de contradies polticas
em torno a uma soberania inconteste, questo qual no sensato de-
dicar nem tempo nem mesmo reexo. Mas possvel, contudo, ainda
qualicar o diferendo de Malvinas de contradio lgica? Seria mesmo
um conito entre mito e razo? Entre arcasmo e modernidade? Mesmo
Kant e, na sua esteira, lsofos como Galvano Della Volpe, partindo da
diferenciao estabelecida pelo antecessor alemo entre a contradio
lgica, que sempre uma contradio entre conceitos, e a oposio real,
entre os objetos do mundo, que sempre uma disputa de poder, che-
garam certeza de que o antagonismo no pode ser uma contradio,
simplesmente porque a contradio no pode acontecer entre objetos l-
gicos. A losoa hegeliana, hoje banalizada pela mdia at se tornar con-
sensual, considera os antagonismos sociais meras contradies, porque
opera com um pensamento idealista que reduz a realidade a conceitos,quando o caso Malvinas nos ilustra, pelo contrrio, algo mais importante
ainda: que os antagonismos sociais no so contradies, nem oposies
reais. Antes pelo contrrio, so o limitede toda objetividade, o contorno
do que signica acatar a lei social universal e, portanto, iluminam tam-
bm o instante em que a sociedade descobre sua prpria impossibilidade
de constituir-se como ordem objetiva necessria.
Apesar de todas as exortaes das Naes Unidas, a recusa bri-
tnica em sentar-se mesa de negociaes representa esse limite que o
universalismo idealista, tambm conhecido como colonialismo, decide
ignorar: as efetivas condies histricas de uma produo simblica,
o fato de o Atlntico Sul ter sido, tradicionalmente, uma rea de paz,
condies que so uma parte da produo histrica ela mesma. Relem-
bremos que, em plena I Grande Guerra, e em Buenos Aires, ento come-
morando seu primeiro Centenrio de independncia, Rui Barbosa cons-
tatava uma regra da modernidade ocidental, qual seja, a de que cresce,
com efeito, a convico de que os povos mais civilizados so os que
mais lutam e investem em armamento, colaborando com o pensamento
dominante no sentido de apresentar a guerra como uma divindade que
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sagra e purica os estados. esse o mito aguerrido dos nacionalismos
colonialistas. Contra o risco de que o ideal do estado se corrompa no
ideal do dinheiro, ou diante da impossibilidade de ocultar essa inegvelconivncia, a nica alternativa possvel residiria na guerra. Portanto, a
guerra, dizia Rui Barbosa em 1916, um dos fatores essenciais da mo-
ralidade ocidental, uma vez que, graas a ela, a tica passa a se separar
completamente da vontade, porque aquele que primeiro usar a fora,
sem medir o sangue derramado, ter sempre consigo, inexoravelmente,
grande vantagem sobre o adversrio. Mas, caberia ainda, em um cenrio
to complexo quanto o contemporneo, a possibilidade de sermos neu-
trais? No se trata apenas de ser neutral, como Rui propunha aos pases
do Atlntico Sul em 1916. Trata-se, pelo contrrio, de que os grandes
acatem a lei e se sentem mesa de negociaes para garantirem a paz.
Caso contrrio, nunca tero sido mais vlidas as palavras de Harold Pin-
ter, em War: The dead are dirt / The lights go out / The dead are dust.
Qual a lio que nos deixa a poeira do tempo? Diante da atual
crise da ordem global e, em particular, frente ausncia de respostas da
democracia ao desao da igualdade, o cientista social portugus Boa-
ventura de Sousa Santos perguntava-se, recentemente, por que motivo aatual crise do capitalismo acaba fortalecendo, paradoxalmente, a quem
a provoca. Por que a grande maioria dos cidados assiste a seu prprio
empobrecimento como se fosse inevitvel, e, no entanto, avalia o es-
candaloso enriquecimento de uma minoria como se fosse necessrio?
Por que a estabilidade dos mercados nanceiros s possvel custa da
instabilidade, na vida da grande maioria da populao? A resposta a es-
sas questes, segundo Sousa Santos, porque o crescimento econmico
parece atualmente a panaceia exclusiva para todos esses males, econ-
micos e sociais, sem que nada se questione acerca dos custos sociais e
ambientais dessa alternativa e isso simplesmente porque
o neoliberalismo , antes de tudo, uma cultura do medo,do sofrimento e da morte para as grandes maiorias: a eleno se combate ecazmente se no lhe opuser uma culturada esperana, da felicidade e da vida. A diculdade queas esquerdas tm, para assumirem-se portadoras dessaoutra cultura, advm da queda, durante grande tempo, naarmadilha com que as direitas sempre se mantiveram no
poder: reduzir a realidade ao que existe, por mais injustoe cruel que seja, para que a esperana das maiorias pareairreal. O medo na espera mata a esperana de felicidade.Contra esta armadilha preciso partir da ideia de que a
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realidade a soma do que existe, e de tudo o que nelaemerge, como possibilidade e luta por concretizar-se. Seas esquerdas no sabem detectar as emergncias, sero
submergidas ou iro parar nos museus, o que o mesmo.
Esse deveria ser, segundo o autor, o novo ponto de partida para as
esquerdas, ampliar a realidade sobre a qual se deve atuar politicamente,
como prova de que possvel lutar contra a suposta fatalidade da morte,
em nome do direito vida. E essa luta, a seu ver, deve ser conduzida por
trs palavras-guia: democratizar, desmercantilizar, descolonizar.
Democratizar a prpria democracia, j que a atual deixou-se sequestrar pelos poderes antidemocrticos. precisotornar evidente que uma deciso tomada de forma demo-crtica no pode ser destruda, no dia seguinte, por umaagncia qualicada de riscos ou por uma baixa na cota-o das Bolsas (...). Desmercantilizar signica mostrarque usamos, produzimos e intercambiamos mercadorias,
porm que no somos mercadorias, nem aceitamos nosrelacionarmos com os outros, e com a natureza, como sefossem uma mercadoria a mais. Somos cidados antes desermos empreendedores e, para que o sejamos, imperati-vo que nem tudo se compre, nem tudo se venda, que exis-
tam bens pblicos e bens comuns como a gua, a sade, aeducao. Descolonizar signica desenraizar das relaessociais a autorizao para dominar os outros, sob o pre-texto de que so inferiores: porque so mulheres, porque
possuem uma cor de pele diferente ou porque pertencem auma religio estranha7.
O desao, portanto, garantir a diversidade cultural, porm, no
vendo os diversos enquanto selvagens, desprovidos do direito vida,
mas consider-los, entretanto, diversos enquanto antigos detentores de
segredos e enigmas que ainda nos determinam, na linguagem e no pen-
samento.
7 SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar, desmercantilizar, descolonizar. Pgina/12,
Buenos Aires, 12 abril, 2012.
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BIBLIOGRAFIA
JESI, Furio. O Mito. Trad. Lemos de Azevedo. Lisboa, Presena, 1977.
_____.Bachofen. Torino, Bollati Boringhieri, 2005.
LIMA, Manoel Ricardo de.Anbal Cristobo. Rio de Janeiro, EdUERJ,2013 [Col. Ciranda da Poesia].
PIERO HIJO, Sergio. El pual de Orion. Apuntes de viaje. BuenosAires: Proa, 1925.
PRIETO, Adolfo.Los viajeros ingleses y la emergencia de la literaturaargentina, 1820-1850. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1996
SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar, desmercantilizar, descoloni-zar.Pgina/12,Buenos Aires, 12 abril, 2012.
SOUZA, Claudio de. Terra do fogo (Impresses de viagem regio dopolo Sul). Rio de Janeiro, P.E.N. Clube do Brasil, s/d.