Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
DA INCERTEZA FOGE
Da incerteza foge, pois é bruma
a macerar os dedos e os olhos.
Que ela não se prenda a coisa alguma
das tuas pobres vestes e trabalhos,
do teu remar em barcas desavindas
por oceanos de agrestes palavras,
mesmo em lugares de assombro
ou mesmo quando as ondas
são tapetes de perigo e tu não sabes.
João Rui de Sousa, Quarteto para as próximas chuvas
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L E R N A E S C O L A T O D A
DE BOMBORDO A ESTIBORDO
Grandes eram os dias
em que a paisagem - múltipla - flutuava
como um navio perdido.
E balouçavam, de bombordo a estibordo,
no sol-a-sol do seu naipe de cabos
e escotilhas, de remos e roldanas,
de velas e lanternas e jangadas.
E navegavam
- tal como em tabuleiro de xadrez já muito gasto,
com peças de marfim desconjuntadas:
em restos de peões submissos e calados,
em bispos disformes, talvez saturados
pela eterna constância das diagonais;
em alegres cavalos, de buliçoso faina e ameaça;
em torres retilíneas, vigilantes,
abrindo em suas trompas o seu espaço;
num rei que, fero e temido ou talvez
bondoso e venerado, está sempre
barricado, em bom resguardado,
por fim, no porte mais pérfido da rainha
que, pletórica e nunca exausta,
tresloucadamente ataca e sobrevive.
Grandes, esses dias de plangentes rumos
eram sinais cansados, raramente vistos,
de um tempo fragmentário, fustigante
João Rui de Sousa, Quarteto para as próximas chuvas
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L E R N A E S C O L A T O D A
O ESCALER DOS VINTE ANOS
Ser maior. Ser toda a altura
que os deuses conclamam nos seus terraços.
Ser bandeira erguida ou fio de prumo
contra a fremência e mesmo contra
a retumbância das águas.
Ser o passo certo de um destino
que ao grão da incerteza acede.
Ou um áureo gesto, ao sul (desconhecido),
de várias odisseias e contrastes.
Ou ser essa voragem, árdua e fulgurante,
de quem (sagaz) prossegue mas resiste
ao pó dos caminhos, ao cisco das viagens
e àquela solidão tão própria das cidades.
Ser maior e avançar. Aprontar esse escaler
para o poder das vagas, para o inesperado
dos rumos e para o esplendor (e o perigo)
das correntes
que às vezes se cruzam com a neblina.
João Rui de Sousa, Quarteto para as próximas chuvas
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L E R N A E S C O L A T O D A
RÁPIDO DESGOSTO E TODAVIA
Este é um sinal: desgosto breve
de quem às vezes tem a alma cheia,
de quem - por muito ardor e devoção -
cantou a luz, embora não cantando
qualquer inócuo (afável) cantoria.
Rápido desgosto e todavia
alongado além do suportável,
além do erguer das ondas tão despertas
fora da rotina, fora do seu vítreo
mover-se tão perpétuo:
quando elas beijam terra e se derramam
em madrugada e serenidade,
quando elas se misturam bem às brumas
da manhã
e o seu torpor é já um ninho íntimo,
um inefável porto que resguarda.
João Rui de Sousa, Quarteto para as próximas chuvas
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L E R N A E S C O L A T O D A
REBENTAÇÃO
A explosão do mar é uma luz viva
por onde crescem chispas de fragor.
E não há paz que negue este confronto
nas águas rebentadas, estilhaçantes.
E não há som que imite esta disputa
de espumas salgadas e areias.
Nem há barulho igual ao desde estrondo
refeito de cadência e de furor.
Uma e outra e outra vez,
estas canções retumbam, inclementes.
E não há muros que lhe ponham cobro.
E não há sol que dome ou circunscreva
O cenho desses uivos e marradas.
João Rui de Sousa, Quarteto para as próximas chuvas
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L E R N A E S C O L A T O D A
REENCONTRO
Candelabro sobre um barco
vogando em noite gelada,
talvez archote em desterro,
na penumbra que escurece
a terra agreste, cerrada.
Luz tão nítida que enlaça
sem o saberes, erva minha,
toda uma pedra quebrada
quando parti em jangada
de alento tão quase extinto.
Chama de mim, astro ou fada,
presente-ausente no limbo
de estrela antiga, voada
no percurso mais distante
de nevoeiro sem fim
- e agora reencontrada!
João Rui de Sousa, Quarteto para as próximas chuvas
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L E R N A E S C O L A T O D A
PAÍS DE MUITO MAR
Somos um país pequeno e pobre e que não tem
senão o mar
muito passado e muito História e cada vez menos
memória
país que já não sabe quem é quem
país de tantos tão pequenos
país a passar
para o outro lado de si mesmo e para a margem
onde já não quer chegar. País de muito mar
e pouca viagem.
Manuel Alegre, Doze Naus
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L E R N A E S C O L A T O D A
AS ONDAS
Até que a escrita trema
E então do fundo da memória um corpo e o mar
um cheiro de alfazema e de salgema
um acento circunflexo um til um trema
um nome que noutro nome se dizia
um erro no ditado umas letras redondas
uma rosa por dentro da caligrafia
A praia um rosto as ondas.
Manuel Alegre, Doze Naus
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L E R N A E S C O L A T O D A
ATRÁS DA SOMBRA
Atrás da sombra na praia correremos
atrás da sombra
atrás do sol ardendo nos sentidos
do cheiro a sal e a areia atrás da espuma
atrás do tempo correremos
atrás do mar e do verão
atrás da sombra agora
atrás da sombra correremos.
Manuel Alegre, Doze Naus
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L E R N A E S C O L A T O D A
OLHANDO O MAR
Sentados na varanda olhando o mar
não sei ao certo o que pensam ou recordam
se um filho morto ou a viagem nunca feita
um verão há muito um só verão não mais.
Não sei sequer se esperam qualquer coisa
ou simplesmente olham o mar
sentados na varanda ao fim da tarde.
Dois traços sobre um azul de Turner
Um outro traço: a sugestão de um barco
aquele em que navegam ao fim da tarde
quando pega na caneta e devagar começo:
«Sentados na varanda olhando o mar.»
Manuel Alegre, Doze Naus
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L E R N A E S C O L A T O D A
A VIAGEM
Não sabia de que lado era o norte nem o sul.
Nem se para diante ficava o poente ou o levante.
Estava perdido a meio de uma página
só se ouvia a caneta no papel
o ritmo das marés interiores da escrita
estava perdido e era levado
pelo vento imponderável das palavras.
Perdido não sei onde
a meio de uma página atravessada
por correntes desconhecidas.
Era e não era uma viagem
se é que tudo não é senão
uma viagem. Era
dir-me-ão
uma viagem só imaginada.
Batiam ondas no meu rosto
e eu não sabia o sentido. Só um verso que falava
do muito navegar.
E depois de cada palavra outra palavra.
Ventos e ventos. Viajar para quê?
E alguém me respondia: viajar por viajar
Manuel Alegre, Doze Naus
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L E R N A E S C O L A T O D A
ESPUMA
Não se chega por trás ao infinito
nem pela frente ou pelos lados mas por onde
nenhum nome pode ser dito ou escrito
e ninguém sabe ao certo o que se esconde.
Não pela palavra Nada (a tão terrível)
nem pela palavra Tudo (a tão perigosa)
mas aquém do visível e do dizível
ou da palavra rosa antes de ser rosa.
Ou talvez onde um vento ignoto sopre
entre a pedra e o vitral o dentro e o fora
lá onde cheira a incenso e cheira a enxofre
e Deus não cabe na palavra agora.
Entre aquém e além ser e não ser
tantas portas abertas ou talvez nenhuma.
Não há senão um verso por escrever
E sobre a areia branca a breve espuma.
Manuel Alegre, Doze Naus
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L E R N A E S C O L A T O D A
SUL
Tudo, ali, é simples e complexo: a luz,
a solidão, o olhar que se comove com o cair
da noite e com o nascer do dia; e, até,
os riscos de mulheres que se ouvem desde longe,
trazidos pelo ar cuja transparência se sente
na própria respiração. No entanto, debruço-me
da varanda e dou por que algo se oculta,
para além dos muros e dos quintais, e chama
por mim sem que eu possa responder. Então,
volto para dentro; preparo o café; e
enquanto a água ferve o mistério desaparece,
inútil e excessivo, no início da tarde.
Nuno Júdice, Poesia reunida
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L E R N A E S C O L A T O D A
SUBITAMENTE SURGE.TEM O TEU ROSTO
O paraíso terrestre é uma flor verde.
As árvores abrem-se ao meio.
O que é sucessivo perde-se.
Se o tempo modifica os seres e os objetos
eu sinto a diferença e gasto-me.
O sol é um erro de gramática, a luz da madrugada
uma folha branca à transparência da lâmpada.
Soam então os barulhos. Soam
de dentro das janelas,
de dentro das caixas fechadas há mais tempo,
de dentro das chávenas meias de café.
É tarde e és tu,
acima de tudo,
entre a manhã e as árvores,
à luz dos olhos,
à luz só do límpido olhar.
Nuno Júdice, Poesia reunida
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L E R N A E S C O L A T O D A
ESTIO
A poesia corrompe os dedos que escrevem. Caem
dos braços, como frutos podres, e infetam a terra
branca do amanhecer. Leio o verso interrompido
pela doença. Reconstituo o final do poema,
A evocação do corpo com febre; e abraço
a mulher pálida que o poema oculta.« Amo-te», digo-
-lhe. Ela despe-se na obscuridade da memória, deixando
atrás de si uma sombra de antigos lençóis. A luz
do meio-dia, ouço, apagou essa imagem; e revela
o vermelho dos lábios de onde escorre
o risco límpido do amor.
-Tarde em que as janelas batem; e um
vento interrompe a conversa dos amantes; e
o mar se despede de Agosto com as marés
vivas que o hábito ignora.
Nuno Júdice, Poesia reunida
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L E R N A E S C O L A T O D A
POEMA
De tarde, no campo, nenhum pássaro cantou;
e só neste fim de dia um vento traz o assobio
da primavera melancólica: despedidas,
imagens breves, nenhuma inspiração. O sopro noturno,
porém, anuncia um reflexo de espelho no fundo
do corredor. A voz surge de um dos quartos
em que a ausência se perde. Um baço
murmúrio se aproxima do gemido que evoca
o mar - sem que a onda se decida, quebrando
o som agonizante. Então, abro a porta
e chamo-te; sabendo que só a noite me
responderá.
Nuno Júdice, Poesia reunida
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L E R N A E S C O L A T O D A
ÉTICA
Chego em frente do mar, das suas ondas,
das marés que setembro enfurece, dos cinzentos
e azuis que alteram com verdes estranhos;
uma voz trata da loucura, ou do olhar vazio
dos peixes, ou de um tema ressequido como as algas
da maré baixa; um vento percorreu a praia,
no silêncio da tarde, devolvendo ao corpo das águas
uma unidade antiga. O mar, no entanto, supõe
que o esqueçam. Nos seus fundos dormem as imagens
que o sonho já não guarda; braços que se agarram
aos mastros do naufrágio. Um barco abstrato
passou devagar pelo horizonte que a manhã não viu,
entrando no outro lado da terra, esquecido
por instantes da música dos portos. O poema, disseram-me,
ignorou essa distração: atravessou
o limite da eternidade, vestiu-se com as palavras
noturnas, deixou que a morte o contaminasse.
À beira-mar, não dou por isso; e digo-o,
devagar, repetindo em voz baixa
todas as suas contradições.
Nuno Júdice, Poesia reunida
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L E R N A E S C O L A T O D A
POEMA
Quero de volta o mar, esse mar
escuro quando o sangue do poente
o mancha; e branco com as
indecisões de Setembro.
Mas o mar não existe, aqui,
onde o papel pousado na mesa
repeliu a maré de uma
última inspiração
nem o rumor da maresia
se confunde com a
hesitação obscura de uma
luz tardia.
O mar, porém, entrou por
aqui dentro: inundação
de que restam as algas
abstratas do sonho.
Nuno Júdice, Poesia reunida
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L E R N A E S C O L A T O D A
A ILHA DE OVÍDIO
Aqui, o vento e a chuva
falam com o mar. Ouço-os,
sem entender o
que dizem. Mas no fundo,
onde os relâmpagos não
chegam para iluminar o
horizonte, a tua voz conversa
com as sombras, como no dia
em que chegaste.
Nuno Júdice, Poesia reunida
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L E R N A E S C O L A T O D A
RECEITA PARA FAZER O AZUL
Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.
Nuno Júdice, Poesia reunida
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L E R N A E S C O L A T O D A
POEMA
Um dia nasce como se
tivesse de ser. Branco,
de nuvens baças,
com céus baixos
sobre a maré vazante.
No entanto, esse dia
morre com a angústia
estranha dos teus olhos.
A luz parece que se
agarra aos montes, pedindo
mais tempo. E a noite
torna-se vaga como
os teus lábios.
Entre o dia e a noite,
embalo símbolos e arquétipos,
troco deuses por palavras,
ou limito-me a reler as cartas
em que nunca falas de amor.
Nuno Júdice, Poesia reunida
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L E R N A E S C O L A T O D A
PRAIA
De manhã, o mar parecia saltar de dentro
das nuvens, como se não fosse ele que as
refletisse. Depois, o sol restabeleceu
a ordem das coisas, o prumo voltou a in-
dicar o alto e o baixo, e até o ruído das
ondas deixou de nos submergir com a sua
insistência, deixando ouvir de novo o
bater dos toldos com o vento, os gritos
de um bando de gaivotas, e a tua voz,
atravessando toda a memória deste dia.
Nuno Júdice, Poesia reunida
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L E R N A E S C O L A T O D A
PORTUGAL
Deita-se com a cabeceira
voltada para o norte e os pés a mergulharem
no atlântico. Em cima, a cabeça sonha com
as brumas que invadem os vales, no Outono,
e os olhos iluminam-se quando o amarelo
das flores invade o cume dos montes, no fim
da primavera. Como um cinto, no Tejo prende-
-o a essa cama estreita; e olha
o mar, deixando que as ondas o despertem,
por instantes, do sono antigo. De-
pois, vira-se para o outro lado, como se
não quisesse saber de nevoeiros matinais; e
volta a adormecer, enquanto o sol
agoniza no horizonte.
Nuno Júdice, Poesia reunida
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L E R N A E S C O L A T O D A
POEMA DE AMOR COM IMAGENS NATURAIS
De súbito, todas as ondas correram para ti:
para os teus cabelos, os teus seios, a linha
exata dos teus olhos, onde o destino se fixa
como o centro das águas que nascem em todos os
pontos da terra.
De súbito, todos os rios deixaram de correr:
para os teus lábios, quando te ris, e esse riso
desce como a mais alta das cascatas para o vale
obscuro onde te procuro, sem ver mais do que as
sombras do céu.
De súbito, as montanhas parecem pálidas,
as árvores sem um abraço de ramagens, os
lagos sem uma profundidade de abismo, o mar
sem o brilho azul de cada dia: quando te olho,
e os teus lábios sugam toda a luz do mundo.
Nuno Júdice, Poesia reunida
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L E R N A E S C O L A T O D A
SEM TÍTULO
Como se começasse pelo fim, o poema
constrói um espaço de trás para a frente,
trazendo consigo as imagens da noite
iluminadas de dia, e um raio de sol
esvaziado de luz. Então, ponho-o
na mesa que orienta a direção da casa:
a cabeceira, para nascente, e as cadeiras
em que ninguém se vai sentar encostadas
ao crepúsculo. Vejo-o beber o fogo noturno,
abrindo o tampa da mesa com a nitidez
de um rumo. Sigo essa linha, que me faz
levantar, atravessando a sala até
à porta. Aí, ainda olho para trás: mas
nada feito. O poema empurra-me para fora,
em frente, e leva-me para o mar
onde um poema se afunda com a maré cheia.
Nuno Júdice, Poesia reunida
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L E R N A E S C O L A T O D A
BEIRA-MAR
Mitológica luz da beira-mar
A maré alta sete vezes cresce
Sete vezes decresce o seu inchar
E a métrica de um verso a determina
Crianças brincam nas ondas pequeninas
E com elas em brandíssimo espraiar
Em volutas e crinas brinca o mar
Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar
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L E R N A E S C O L A T O D A
O BÚZIO DE CÓS
Este búzio não o encontrei eu própria numa praia
Mas na mediterrânica noite azul e preta
Comprei-o em Cós numa venda junto ao cais
Rente aos mastros baloiçantes dos navios
E comigo trouxe o ressoar dos temporais
Porém nele não oiço
Nem o marulho de Cós nem o de Egina
Mas sim o cântico da longa vasta praia
Atlântica e sagrada
Onde para sempre minha alma foi criada
Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar
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L E R N A E S C O L A T O D A
FOI NO MAR QUE APRENDI
Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela
Ao olhar sem fim o sucessivo
Inchar e desabar da vaga
A bela curva luzidia do seu dorso
O longo espraiar das mãos de espuma
Por isso nos museus da Grécia antiga
Olhando estátuas frisos e colunas
Sempre me aclaro mais leve e mais viva
E respiro melhor como na praia
Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar
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L E R N A E S C O L A T O D A
ALI, ENTÃO
Ali então em pleno mundo antigo
À sombra do cipreste e da videira
Olhando o longo tremular do mar
Num silêncio de luas e de trigo
(Como se a morte a dor o tempo e a sorte
Não nos tivessem nunca acontecido)
Em nossas mãos a pausa há de posar
Como o luar que poisa nas videiras
E em frente ao longo tremular do mar
Num perfume de vinho e de roseiras
A sombra da videira há de poisar
Em nossas mãos e havemos de habitar
O silêncio das luas e do trigo
No instante ameaçado e prometido
E os poemas serão o próprio ar
- Canto do ser inteiro e reunido –
Tudo será tão próximo do mar
Como o primeiro dia conhecido
Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar
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L E R N A E S C O L A T O D A
NÁUFRAGO ACORDANDO
Um homem só na areia lisa, inerte.
Tão esquecido de si, que tudo o envolve
Em halos de silêncio e nevoeiro.
Um homem de olhos fechados procurando
Dentro de si memória do seu nome.
Um homem na memória caminhando,
De silêncio em silêncio derivando,
E a onda
Ora o abandonava, ora o cobria.
Com vagos olhos contemplava o dia.
Em seus ouvidos
Com um longínquo búzio o mar zunia.
Líquida e fria,
Uma mão sobre os seus membros escorria:
Era a onda,
Que ora o abandona, ora o cobria.
Um homem só na areia lisa, inerte,
Na orla dançada do mar.
Nos seis cinco sentidos, devagar,
A presença das coisas principia.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar
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L E R N A E S C O L A T O D A
PIRATA
Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.
Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.
A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar
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L E R N A E S C O L A T O D A
NAVIO NAUFRAGADO
Vinha dum mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.
É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.
Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.
E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves de cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos dos videntes.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar
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L E R N A E S C O L A T O D A
JARDIM DO MAR Vi um jardim que se desenrolava Ao longo de uma encosta suspenso Milagrosamente sobre o mar Que do largo contra ele cavalgava Desconhecido e imenso. Jardim de flores selvagens e duras E catos torcidos em mil dobras, Caminhos de areia branca e estreitos Entre as rochas escuras E aqui e além, os pinheiros Magros e direitos. Jardim do mar, do sol e do vento, Áspero e salgado, Pelos duros elementos devastado Como por um obscuro tormento: E que não podendo como as ondas Florescer em espuma, Raivoso atira para o largo, uma a uma, As pétalas redondas Das suas raras flores. Jardim que a água chama e devora Exausto pelos mil esplendores De que o mar se reveste em cada hora. Jardim onde o vento batalha E que a mão do mar esculpe e talha. Nu, áspero, devastado, Numa contínua exaltação, Jardim quebrado Da imensidão. Estreita taça A transbordar da anunciação Que às vezes nas coisas passa.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
MULHERES À BEIRA-MAR
Confundindo os seus cabelos com os cabelos do vento,
têm o corpo feliz de ser tão seu e tão denso em plena
liberdade.
Lançam os braços pela praia fora e a brancura dos seus
pulsos penetra nas espumas.
Passam aves de asas agudas e a curva dos seus olhos
prolonga o interminável rastro no céu branco.
Com a boca colada ao horizonte aspiram longamente
a virgindade de um mundo que nasceu.
O extremo dos seus dedos toca o cimo de delícia
e vertigem onde o mar acaba e começa.
E aos seus ombros cola-se uma alga, feliz de ser tão verde.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
PRAIA
Os pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.
Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.
Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.
As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.
E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
CAIS
Para um noturno mar partem navios,
Para um noturno mar intenso e azul
Como um coração de medusa
Como um interior de anémona.
Naturalmente
Simplesmente
Sem destruição e sem poemas,
Para um noturno mar roxo de peixes
Sem destruição e sem poemas
Assombrados por miríades de luzes
Para um noturno mar vão os navios.
Vão.
O seu rouco grito é de quem fica
No cais dividido e mutilado
E destruído entre poemas pasma.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar novo
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
PRAIA
Na luz oscilam os múltiplos navios
Caminho ao longo dos oceanos frios
As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de bruços
A praia é longa e lisa sob o vento
Saturada de espaços e maresia
E para trás fica o murmúrio
Das ondas enroladas como búzios.
Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo Dividido
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
A MINHA RUA TEM O MAR AO FUNDO
Sou algarvio
E a minha rua tem o mar ao fundo
Sempre que passa aqui algum navio
(Passam, aqui, navios de todo o mundo
Passam, aqui, navios pr’a todo o mundo)
Oiço a voz que me namora
Da outra banda do mar…
Que me namora e me chama
Da outra banda do mundo
E se eu abalasse mãe?
E se eu abalasse e nunca mais voltasse?
Choravas, sim, eu sei bem
Posso não ser filho às vezes
Mas tu és mãe, sempre, mãe!
(Se não fosse a minha mãe,
Ah! Se não fossem os meus,
Adeus aldeia, adeus praias,
Adeus gaivotas, adeus!)
E eu vou ficando, não chores…
[…]
O mar e o céu azul que mais adoro,
Que não é o mesmo azul dos outros céus
- Palma da mão de Deus
Sobre a aldeia onde moro
António Pereira
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
O mar do Algarve, meu poeta e meu monge,
Que chega e ajoelha e fica orando.
(Meu velho pescador que vem de longe,
No rosário das ondas vem rezando…)
Mar que rebenta as ondas, uma a uma,
Para subir às rochas sobranceiras,
Que lança ao vento ondulações de espuma
E a espuma vai florir as amendoeiras…
Sorriso que se espelha, mar do sul
Que reflete ondas de azulino-esmalte;
(É azul do mar aquela cor azul
das serras de Monchique e Pena de Alte!)
O mar, o encantador, alto e romântico,
Que beija a Terra-Noiva-Luz-e-Cal,
Que enche de glória o grande Sonho-Atlântico
Do Marinheiro-Mor de Portugal
Sempre o mar seduzindo o território:
- Jardim suspenso, meu poeta aéreo –
Terra onde o Infante viu no Promontório
O Dedo-Indicador do Império!
António Pereira
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
DEVE SER ÁRABE, SIM
O coração deve ter passeado
aqui, no mesmo espaço
ou outro tempo tão igualmente
azul: as arcadas de sol
e a pedra branca e uma fonte
final
contra um fundo de renda
toda branca, a chaminé
sem fumo. Mas lume pelo mar
de laranjeiras
e um perfume de flor
de bandolim.
(e a conclusão: que sim,
deve ser isso
que o título entrelaça
com o fim)
Ana Luísa Amaral, in Algarve todo o mar
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
Mas nulos são
os pontos cardeais
Onde quer que o olhar,
navegam as estradas,
e o mar sobeja
– sempre o mar –
sobrando,
campos bordados
a rosa e a lilás,
demais, demais
as flores
Não há voz
que resista,
nem coração
que fale
Ana Luísa Amaral
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
TEMPLO SUBMERSO
O mar descobre em seu tempo
de aridez
Templo onde brilha a lenta
madrugada do mundo pedras desprendidas de-
formadas
pelos elementos em visita
vigilante
Pedras ou pássaros gravados na sombra dos barcos
de rosto humano
Essa é a outra face da ferida
talhada no centro da terra no centro
do sol pelo fulgor das marés pela ternura
de armas marítimas
o mar os alimenta com seus frutos
de plena infinitude
o tempo a paciência
Casimiro de Brito, in Algarve todo o mar
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
Se o mundo não tivesse palavras
a palavra do mar, com toda a sua paixão,
bastava. Não lhe falta
nada: nem o enigma nem
a obsessão. Entregue ao seu ofício
de grande hospitaleiro
o mar é um animal que se refaz
em cada momento.
O amor também. Um mar
de poucas palavras.
Casimiro de Brito
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
Quando me aproximo do mar
tudo me parece aceitável.
As ondas são folhas que vão
a caminho da perfeição.
Perfeito é pois quem do tempo
tem a longa paciência –
também a tenho quando escuto
a nervura mágica de tudo,
um tudo feito de sombras
que amaciam a pedra luminosa
que todas as coisas são.
Saltando de estação para estação
como se o caminho se fizesse,
sereno, entre o mar e o céu.
As ondas que vejo cair
também as sinto nas areias de mim
como se tudo, na barca deste mundo,
fosse mar e luz.
Por isso a minha vida é intensa
e velha como a paciência
que não cessa de se renovar
no sangue da pedra, das aves.
Casimiro de Brito, in Algarve todo o mar
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
AMO-TE PORQUE NÃO ME AMO INTEIRAMENTE
Amo-te porque não me amo
inteiramente. O que me faz falta
é infinito
mas tu és do bem que me falta
o enigma onde se condensam
a terra e o sol o ar as águas
invioladas
e tenho a boca cheia
de música ondulação
do teu silêncio.
Casimiro de Brito
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
AQUA MARINA
Pássaros somos e a pão sabemos
nesta noite luminosa de fadiga
barcos somos mais leves que o sangue
onde agora um no outro
navegamos
O coração não mente as palavras
não mentem quando
sobre as ondas iluminamos
o mundo inundamos de luz
o próprio sol
Casimiro de Brito, in A cidade e o mar na poesia do Algarve, Fernando Cabrita
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
MENINO SENTADO FRENTE AO MAR
Em silêncio
como se não fosse ninguém
Como se não tivesse um nome uma casa
na cidade
Como se fosse uma simples raiz
crescendo
na sombra
A criança
sentada numa rocha
contempla o mar
Casimiro de Brito, in A cidade e o mar na poesia do Algarve, Fernando Cabrito
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
DESCRIÇÃO DO MAR
Árido corpo nas pedras deitado na magra
substância do planeta deitado lavrado -
corpo longo secreto pura construção
de formas absolutas – movimento circular
sempre recomeçado: mar ou mármore renascido
em labirintos em ruínas ó berço
ó sepultura da
humanidade ó mais natural das
substâncias este barro sensível por onde caminho
deitado nos astros: onde a película da pele cava
da morte o fosso a ressaca o conflito – a árvore
sem raízes: árvore tumultuosa e tumultuosa
balança definitiva – falam-me dos teus frutos.
Casimiro de Brito, in A cidade e o mar na poesia do Algarve, Fernando Cabrita
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
TERRAÇO ABERTO
Terraço aberto
aos ventos e aos astros
crivado
das balas de frescura
das ranhuras do sol
muros
onde vejo dedos
muros fraternos
de meus ossos
aqui respiro
através das flores
da chaminé
nos planos brancos
nos montes azulados
Nas velas brancas
nas areias douradas
aqui respiro
a claridade
António Ramos Rosa, in Algarve todo o mar
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
BARCOS NA RIA
Os barcos que na ria
traçam rápidas vias
de espuma e o meu dia desafiam
saltam à luz que é música aumentando
até quase tornar
impossível abrir os olhos neste dia
que verdadeiramente não parece
meu como noutra idade eu o sentia
O sol dilata e faz
subir o céu
desconhecidos
os corpos contra a água
verde e azul agora calma frente à casa
Nenhum barco
já passa há um
silêncio que só o diminuto
murmúrio da maré crescendo
molha Mas outros barcos vêm e recortam-se
velozmente na água que retalham
Gastão Cruz, in Algarve todo o mar
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
A DESTRUIÇÃO DAS CIDADES
Os navios procuram as cidades
Percorreram o mar dos oceanos
as descrições febris das tempestades
A carga dos humanos
fardos do tempo figurada
resta roída nos porões pelos ratos
enquanto abandonada imagem
pendurada do céu como um canal de
figo a chuva enche
a turva sanguessuga do passado
Gastão Cruz, in A cidade e o mar na poesia do Algarve, Fernando Cabrita
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
MAR DE SETEMBRO
Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves - só
ritmo e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio. Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto.
Puríssimo. Doirado.
Eugénio de Andrade, Mar de setembro
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L E R N A E S C O L A T O D A
Atravessara o verão para te ver
dormir, e trazia doutros lugares
um sol de trigo na pupila;
às vezes a luz demora-se
em mãos fatigadas; não sei em qual
de nós explodiu uma súbita
juventude, ou cantava:
era mais fresco o ar.
Quem canta no verão espera ver o mar.
Eugénio de Andrade, O Peso da Sombra
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L E R N A E S C O L A T O D A
APENAS UM RUMOR
E no teu rosto aberto sobre o mar
cada palavra era apenas o rumor
de um bando de gaivotas a passar.
Eugénio de Andrade, Os Amantes do dinheiro
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L E R N A E S C O L A T O D A
RAPARIGA DESCALÇA
Chove. Uma rapariga desce a rua.
Os seus pés descalços são formosos.
São formosos e leves: o corpo alto
parte dali, e nunca se desprende.
A chuva em abril tem o sabor do sol:
cada gota recente canta na folhagem.
O dia é um jogo inocente de luzes,
de crianças ou beijos, de fragatas.
Uma gaivota passa nos meus olhos.
E a rapariga – os seus formosos pés –
canta, corre, voa, é brisa, ao ver
o mar tão próximo e tão branco.
Eugénio de Andrade
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L E R N A E S C O L A T O D A
A FIGUEIRA Não tenho mãos para o azul.
Sonho com o mar
que não está longe mas não vejo
arder.
Só a sombra parece estar em casa
debaixo dos meus ramos:
canta baixinho enquanto se descalça.
Eugénio de Andrade, Com o sol em cada sílaba
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L E R N A E S C O L A T O D A
O mar. O mar novamente à minha porta.
Vi-o pela primeira vez nos olhos
de minha mãe, onda após onda,
perfeito e calmo, depois,
contra falésias, já sem bridas.
Com ele nos braços, quanta,
quanta noite dormira,
ou ficara acordado ouvindo
seu coração de vidro bater no escuro,
até a estrela do pastor
atravessar a noite talhada a pique
sobre o meu peito.
Este mar, que de tão longe me chama,
que levou na ressaca, além dos meus navios?
Eugénio de Andrade, Branco no branco
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L E R N A E S C O L A T O D A
PESCADOR DA BARCA BELA Pescador da barca bela, Onde vais pescar com ela, Que é tão bela, Oh pescador? Não vês que a última estrela No céu nublado se vela? Colhe a vela, Oh pescador! Deita o lanço com cautela, Que a sereia canta bela... Mas cautela, Oh pescador! Não se enrede a rede nela, Que perdido é remo e vela Só de vê-la, Oh pescador! Pescador da barca bela, Ainda é tempo, foge dela, Foge dela, Oh pescador! Almeida Garrett
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
AS MENINAS
as minhas filhas nadam. a mais nova
leva nos braços bóias pequeninas,
a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas:
entre risadas como serpentinas,
vai como a formosinha numa trova,
salta a pés juntos, dedos nas narinas,
e emerge ao sol que o seu cabelo escova.
a água tem a pele azul-turquesa
e brilhos e salpicos, e mergulham
feitas pura alegria incandescente.
e ficam, de ternura e de surpresa,
nas toalhas de cor em que se embrulham,
ninfinhas sobre a relva, de repente.
Vasco Graça Moura
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
estou deitado sobre a minha ausência,
como poderia estar deitado se existisse.
amanhã as ondas imitar-me-ão na praia.
José Luís Peixoto, A Criança em Ruínas
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
SE PARTIRES
Se partires, não me abraces – a falésia que se encosta
uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre
e sonha com viagens na pele salgada das ondas.
Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão
das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;
mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,
porque o ar que respiras junto de mim é como um vento
a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces –
o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno
nos dias sem ninguém – longe de ti, o corpo não faz
senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta
as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto
espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.
Se me abraçares, não partas.
Maria do Rosário Pedreira
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
Esta noite o vento ceifa os bosques e
uma raiva sacode a terra. Se a voz
do mar chamasse pelas velas, os estreitos
aguardariam um naufrágio. E se dissesses
o meu nome eu morreria de amor.
Devo, por isso, afastar-me de ti – não
por ter medo de morrer (que é de já não
o ter que tenho medo), mas porque a chuva
que devora as esquinas é a única canção
que se ouve esta noite sobre o teu silêncio.
Maria do Rosário Pedreira
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
SONETO DO AMOR DIFÍCIL
A praia abandonada recomeça
logo que o mar se vai, a desejá-lo:
é como o nosso amor, somente embalo
enquanto não é mais que uma promessa…
Mas se na praia a onda se espedaça,
há logo nostalgia duma flor
que ali devia estar para compor
a vaga em seu rumor de fim de raça.
Bruscos e doloridos, refulgimos
no silêncio de morte que nos tolhe,
como entre o mar e a praia um longo molhe
de súbito surgido à flor dos limos.
E deste amor difícil só nasceu
desencanto na curva do teu céu.
David Mourão-Ferreira
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
MEMÓRIA
Tudo que sou, no imaginado
silêncio hostil que me rodeia,
é o epitáfio de um pecado
que foi gravado sobre a areia.
O mar levou toda a lembrança.
Agora sei que me detesto:
da minha vida de criança
guardo o prelúdio dum incesto.
O resto foi o que eu não quis:
perseguição, procura, enlace,
desse retrato feito a giz
pra que não mais eu me encontrasse.
Tu foste a noiva que não veio,
irmã somente prometida!
— O resto foi a quebra desse enleio.
O resto foi amor, na minha vida.
David Mourão-Ferreira, Tempestade de Verão
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
MAR DE AGOSTO
Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.
David Mourão-Ferreira
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
CANTIGA
Todo o dia senti, bem funda em mim,
a tortura do beijo que não demos:
lago sereno, preso num jardim,
saudoso dum nenhum sulcar de remos...
David Mourão-Ferreira, Obra Poética
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L E R N A E S C O L A T O D A
INSCRIÇÃO SOBRE AS ONDAS
Mal fora iniciada a secreta viagem,
um deus me segredou que eu não iria só.
Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que o deus me segredou.
David Mourão-Ferreira, Obra Poética
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
EM MADEIRA ESCULPIDOS
No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
Como podem só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!
David Mourão-Ferreira, A Secreta Viagem
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
ABANDONO
Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar
Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria
Foi de noite numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia.
Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar.
David Mourão-Ferreira
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
PAISAGEM
Desejei-te pinheiro à beira-mar
para fixar o teu perfil exacto.
Desejei-te encerrada num retrato
para poder-te contemplar.
Desejei que tu fosses sombra e folhas
no limite sereno dessa praia.
E desejei: «Que nada me distraia
dos horizontes que tu olhas!»
Mas frágil e humano grão de areia
não me detive à tua sombra esguia.
(Insatisfeito, um corpo rodopia
na solidão que te rodeia.)
David Mourão-Ferreira, A Secreta Viagem
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L E R N A E S C O L A T O D A
MAR PORTUGUÊS
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa, Mensagem
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
D. DINIS
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
Fernando Pessoa, Mensagem
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
NEVOEIRO
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo - fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer,
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a hora!
Fernando Pessoa, Mensagem
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.
O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...
Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.
Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
Cecília Meireles
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
CANÇÃO DA ETERNA DESPEDIDA
A noite é linda
inda palpita no mar
a lua cheia a se esvair em luar
Vem, ó minha amada
e fica linda e sem véu
como essa lua no céu
Eu sou o mar
Ó meu amor, diz que sim
E vem pousar o teu luar sobre mim
Vem que todo dia
cada noite tem um fim
só para nos separar
Ai, minha amada
madrugada chegou
e a sua luz me diz que devo partir
Mas meu coração
não compreende a razão
de me arrancarem de ti
É tanta a mágoa
desta separação
que já meu corpo chora a falta do teu
Que esses cantos meus
são como prantos de adeus
por me arrancarem de ti
Vinicius de Moraes
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
SÚPLICA
Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.
Miguel Torga
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
REGISTO
Mar feliz do Algarve!
Calmo,
Azul, transparente,
Deitado no areal ao sol ardente
Como qualquer rapaz,
Despido
E adormecido
Sob o toldo do céu…
Que vento inquietador e pertinaz
Se arrependeu
E te deixou em paz?
Que lua te esqueceu?
Miguel Torga, Diário X
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L E R N A E S C O L A T O D A
O mar é uma piscina
De calda bordalesa mal mexida.
Um charlatão ladra cansado à vida,
A vender restos de fascinação.
Morosa, a multidão
Recolhe em formigueiro da torreira
Apagada na carne sonolenta.
Um som de flauta, rouca e forasteira,
Não sei de que tristeza se lamenta
Miguel Torga, Diário XII
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L E R N A E S C O L A T O D A
ALGARVE
O mistério do mar,
O milagre do sol
E a graça da paisagem
Na moldura dos olhos.
E a paz feliz de que tenho o que é meu.
Ah, terra bem amada!
Bênção da natureza
Caiada
De pureza
E nimbada de saudade
Algarve. Liberdade
Dos sentidos.
Férias ao sul
Da imaginação.
Ainda a mesma nação,
Mas com ouros sinais.
E a memória também
De que todo o além
Começa neste cais.
Miguel Torga, in Algarve todo o mar
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L E R N A E S C O L A T O D A
MANHÃ
Abro a janela sobre as açoteias.
A luz é uma indolência universal, despida.
Nos tépidos lençóis de cal varrida
Acordam estremunhadas
Do mesmo sono
Sombras pacificadas
No total abandono
Que a volúpia pedia.
Minaretes alados,
De fantasia,
Desabrocham no ócio dos telhados.
Além o mar, sonâmbulo, tropeça
Na praia movediça
Onde o ia tem pressa
E a vida tem preguiça.
Miguel Torga, Diário XII
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L E R N A E S C O L A T O D A
Em Lixboa sobre lo mar
barcas novas mandei lavrar,
ay mia senhor velida!
Em Lisboa sobre lo lez
barcas novas mandei fazer,
ay mia senhor velida!
Barcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
ay mia senhor velida!
Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
ay mia senhor velida!
João Zorro
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L E R N A E S C O L A T O D A
Sedia-me eu na ermida de San Simion
e cercaram-me as ondas, que grandes son:
Eu atendendo o meu amigo
eu atendendo o meu amigo!
Estava eu na ermida ante o altar,
e cercaram-me as ondas grandes do mar:
Eu atendendo o meu amigo,
eu atendendo o meu amigo!
E cercaram-me as ondas, que grandes son!
Non hei barqueiro, nem ar son remador:
Eu atendendo o meu amigo,
eu atendendo o meu amigo!
E cercaram-me as ondas do alto mar!
Non hei i barqueiro, nem ar sei remar
Eu atendendo o meu amigo,
eu atendendo o meu amigo!
Non hei barqueiro, nem ar son remador.
e morrerei fremosa, no mar maior:
Eu atendendo o meu amigo,
eu atendendo o meu amigo!
Non hei barqueiro, nem ar sei remar,
e morrerei, fremosa, no alto mar:
Eu atendendo o meu amigo,
eu atendendo o meu amigo!
Mendinho
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
VOZES DO MAR
Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d'oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?...
Tu falas de festins, e cavalgadas
De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?
Tens cantos d'epopeias? Tens anseios
D'amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!
Donde vem essa voz, ó mar amigo?...
... Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade!
Florbela Espanca, Poesia Completa
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L E R N A E S C O L A T O D A
POEMA DA MALTA DAS NAUS Lancei ao mar um madeiro, espetei-lhe um pau e um lençol. Com palpite marinheiro medi a altura do sol.
Deu-me o vento de feição, levou-me ao cabo do mundo. Pelote de vagabundo, rebotalho de gibão.
Dormi no dorso das vagas, pasmei na orla das praias, arreneguei, roguei pragas, mordi peloiros e zagaias.
Chamusquei o pêlo hirsuto, tive o corpo em chagas vivas, estalaram-me as gengivas, apodreci de escorbuto.
Com a mão direita benzi-me, com a direita esganei. Mil vezes no chão, bati-me, outras mil me levantei.
Meu riso de dentes podres ecoou nas sete partidas. Fundei cidades e vidas, rompi as arcas e os odres.
Tremi no escuro da selva, alambique de suores. Estendi na areia e na relva mulheres de todas as cores.
Moldei as chaves do mundo a que outros chamaram seu, mas quem mergulhou no fundo Do sonho, esse, fui eu.
O meu sabor é diferente. Provo-me e saibo-me a sal. Não se nasce impunemente nas praias de Portugal.
António Gedeão, Teatro do Mundo
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L E R N A E S C O L A T O D A
POEMA DO HOMEM-RÃ
Sou feliz por ter nascido
no tempo dos homens-rãs
que descem ao mar perdido
na doçura das manhãs.
Mergulham, imponderáveis,
por entre as águas tranquilas,
enquanto singram, em filas,
peixinhos de cores amáveis.
Vão e vêm, serpenteiam,
em compassos de ballet.
Seus lentos gestos penteiam
madeixas que ninguém vê.
Com barbatanas calçadas
e pulmões a tiracolo,
roçam-se os homens no solo
sob um céu de águas paradas.
Sob o luminoso feixe
correm de um lado para outro,
montam no lombo de um peixe
como no dorso de um potro.
Onde as sereias de espuma?
Tritões escorrendo babugem?
E os monstros cor de ferrugem
rolando trovões na bruma?
Eu sou o homem. O Homem.
Desço ao mar e subo ao céu.
Não há temores que me domem
É tudo meu, tudo meu.
António Gedeão
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L E R N A E S C O L A T O D A
ENTREI PELO MAR
Entrei pelo mar mulher
açodado, a colher algas
Esqueci-me do meu mister
embalado pelas ondas.
O mar homem não se esquece
embalado pelas ondas.
Ruy Cinatti
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
POEMA
Água peregrina fina flor do vento
Tua voz divina dá-me ainda alento
Navios antigos há muito partiram
Os mastros vão lindos
As velas caíram.
No cais beira-d'água meus olhos perdidos
escuta a mágoa
Dos barcos esquecidos
A força ou perdão quer ainda levar
todo o coração nas ondas do Mar?
Ruy Cinatti
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
Porque será que meus olhos tanto necessitam
de ver mar ao longe?
Ou pelo menos a água
de um rio
para aí cheirar a sua raiz
Se calhar foi por tanto apetecer o azul
da água ao longe
que meus olhos são claros
e por tanto amar o mar
que meus desgostos
se tornaram destemidos e salgados
e têm
o voo a pique das gaivotas
e o grito ácido
dos pássaros marinhos
Teresa Rita Lopes, Afetos
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L E R N A E S C O L A T O D A
MAR NOSSO
Emocionadamente
te reencontro
hoje
e
sempre
Mar nosso
que estás na terra
nesta minha
tua nossa
terra
e és sempre a mesma bênção
de água
a mesma mágoa
doce
o mesmo indizível júbilo
Teresa Rita Lopes, O sul dos meus sonhos
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L E R N A E S C O L A T O D A
LEVANTE
Desde que chegámos que faz Levante
o abominado vento
do deserto que aquece as águas ah sim! As pessoas gostam
mas pagam o preço:
ondas altas a arremeter raivosas
e este calor de forno este céu pesado.
Desde menina que recebo
o Levante com rancor.
Logo pela manhã percebia pelo som do mar
que Ele o Monstro tinha chegado.
Mesmo assim ia – e vou – à praia
medir forças com as altas ondas:
cavalgo-as agarrada às suas crinas
de espuma
e deixo que me arrastem até à praia.
Às vezes desisto
De lhes fazer frente:
Agacho-me e deixo que a onda me passe por
cima
para não me derrubar.
Quem pudesse fazer o mesmo na vida
perante as calamidades impossíveis de enfrentar!
Teresa Rita Lopes, O sul dos meus sonhos
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L E R N A E S C O L A T O D A
PAISAGEM DE ÁGUA
Do que mais gosto neste rio nem é do espelho de água
onde meus olhos bebem devagar
nem das quietas casas
das margens
que convidam meu olhar a poisar em seus ombros:
é do ir-vir dos barcos
afadigados
a florir espuma
no tenro dorso azul
Teresa Rita Lopes, O sul dos meus sonhos
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L E R N A E S C O L A T O D A
ILHA DE FARO
Em Faro aprendi a amar as ilhas todas e quaisquer Ainda hoje só a breve palavra me comove Sempre situei o paraíso numa ilha Embora com muita vegetação Ir à ilha de Faro era uma aventura na minha meninice Começava logo no cais Como não havia ponte íamos de barco Começávamos a apetecer o mar de longe Quando finalmente nos recebia nos seus braços possantes já o nosso corpo o tinha longamente desejado Quando nos cansávamos da violência da sua presença íamos para a ria para a doçura das suas mansas águas onde aprendi a nadar Nessa altura a ria não tinha ainda adoecido de poluição Na ilha podíamos ir dos braços do mar para os do rio e vice-versa por isso nunca nos fartámos de nenhum Regressávamos ao crepúsculo com o corpo em fogo Às vezes o barco encalhava nos baixios na maré vazia e tínhamos que ficar no meio da ria à espera que a maré enchesse Mas também isso tinha um sabor a viagem e as pessoas nesses tempos tinham menos pressa Talvez sem saber estivesse aprendendo que ir ao encontro do amor e do mar tem que ser devagar
Teresa Rita Lopes, O sul dos meus sonhos
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L E R N A E S C O L A T O D A
FUNDO DO MAR
Quero ver
o fundo do mar
esse lugar
de onde se desprendem as ondas
e se arrancam
os olhos aos corais
e onde a morte beija
o lívido rosto dos afogados
Quero ver
esse lugar
onde se não vê
para que
sem disfarce
a minha luz se revele
e nesse mundo
descubra a que mundo pertenço
Mia Couto, Raiz de orvalho e outros poemas
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L E R N A E S C O L A T O D A
VIAGEM
O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na funda transparência
sinto a vertigem
da minha própria origem
e nem sequer já sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga minha alma
Se chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos
Mia Couto, Raiz de orvalho e outros poemas
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L E R N A E S C O L A T O D A
SEGREDO
A noite estava escura
escura e fechada até à beira do mar
escura e fechada estava a noite.
E os langues
olhos dos dois encontraram
no céu o Cruzeiro do Sul Xi-Ronga
e uma poalha de estrelas cobriu confidências
mundos de silêncio
o litúrgico frenesi dos dedos
e o desejo ardente de não ser
mais do que um.
A noite estava escura
E fechada à beira do mar.
Mas o beijo
Dos dois no tempo esquecido
Transformou a noite.
José Craveirinha
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L E R N A E S C O L A T O D A
ESTRELA DO MAR
Secreto, o labirinto. Dos meus passos
irrompiam às vezes outros passos
quando plo céu de agosto a lua ia
subindo pouco a pouco. Em tons de azul
uma pequena praça, a esplanada
tão cheia de rapazes, raparigas
difíceis de sonhar, fiéis apenas
ao frio vento que lhes dissolvia
as palavras em espuma - é bom esquecer
lembrando-me de tudo, é bom deixar
os olhos sobre a praia como estrelas
perdidas de si mesmas, já sem luz.
Secreto, o labirinto. Renascendo
de febres e cansaços, talvez seja
ainda a minha voz este murmúrio
absoluto e vão. Nenhuma lágrima
brilhando sobre o mar-nenhum desejo
e todos os desejos deste mundo
Fernando Pinto do Amaral
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L E R N A E S C O L A T O D A
SENHORA DA ROCHA
Procuras neste mar ainda o espelho
a espuma de outro tempo No levante
movendo as novas ondas
respiras a memória tão azul
da tua juventude Há vinte anos
o cenário do mundo talvez fosse
límpida linha de água
agora exposta ao frio de Fevereiro
a este sol gelado quando as ondas
avançam e rebentam
na esperança de um sonho que brilhasse
mais do que a própria espuma e atingisse
a tua face
debruças-te à varanda e absorves
o vento Mal procuras
no azul de outros olhos o que resta
da tarde que se arrasta enquanto escutas
as promessas de Averno
os estridentes gritos das gaivotas
voam de novo em círculos Procuram
também a luz
de outro sol que as salvasse e que lhes desse
um céu fora do tempo
Fernando Pinto do Amaral, in Algarve todo o mar
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L E R N A E S C O L A T O D A
AZUL
em memória de Sophia
Cega-te a luz do sol – nunca te esqueças
deste dia sem fim:
no horizonte nascem as promessas
e hás-de ficar assim,
à espera de um milagre que te fale
com a voz de uma sereia
até te libertar de todo o mal
e deixar sobre a areia
o gesto inconsolável de algum deus
desfeito na espuma
dos sonhos que algum tempo foram teus
ou das nuvens que fogem uma a uma.
Cega-te a luz do dia – sobre o mar
um azul que não sabes decifrar
Fernando Pinto do Amaral, Pena suspensa
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L E R N A E S C O L A T O D A
AGOSTO
Rompem de novo aquelas mãos
a membrana da água
a mortalha do mar Cada braçada
agita o coração que pouco a pouco
atravessa o aquário do passado
Relâmpago do corpo – o que procuras
na voragem das ondas?
Fernando Pinto do Amaral, Pena suspensa
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L E R N A E S C O L A T O D A
ORLA MARÍTIMA
O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali para como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios da vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida
Ruy Belo, Todos os poemas
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L E R N A E S C O L A T O D A
NA PRAIA
Raça de marinheiros que outra coisa vos chamar
senhoras que com tanta dignidade
à hora que o calor mais apertar
coroadas de graça e majestade
entrais pela água dentro e fazeis chichi no mar?
Ruy Belo, Todos os poemas
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L E R N A E S C O L A T O D A
TURISMO
Eu vi morrer um homem e caminho
Vários motivos de morte e uma
agenda mas
almoço
Há mesas e cadeiras e passeios e
sabe-me
a café
Mistério de maresia ou de ninguém
Ruy Belo, Todos os poemas
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L E R N A E S C O L A T O D A
CONSOLO NA PRAIA
Vamos, não chores
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentas te qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros
Carlos Drummond de Andrade, Antologia poética
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L E R N A E S C O L A T O D A
ADEUS A ti que em astros desenhei nos céus, A ti que em nuvens desenhei nos ares, A ti que em ondas desenhei nos mares, A ti, bom anjo, o derradeiro adeus! Parto! Se um dia (que é possível, flor!) Vires ao longe negrejar um vulto, Sou eu que aos olhos desta gente oculto O nosso imenso desgraçado amor. Talvez as feras ao ouvir meus ais, As brutas selvas, as montanhas brutas, Côncavas rochas, solitárias grutas, Mais se condoam, se comovam mais! E lá daquelas solidões se aqui Chegar gemido que uma pedra estale, Que um cedro vibre, que um carvalho abale, Sou eu que o solto por amor de ti… De ti, que em folha que varrer o ar, Em rama, em sombra que bandeia a aragem, De fito sempre nessa cara imagem Verei sorrindo, sentirei passar! De ti que em astros desenhei nos céus, De ti que em nuvens desenhei nos ares! De ti que em ondas desenhei nos mares, E a quem envio o derradeiro adeus! João e Deus, Campo de flores
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L E R N A E S C O L A T O D A
INCÊNDIO
Daqui, desta falésia cor de lava
Dum amarelo rútilo e sangrento,
Outrora debruçava-se um convento
Sobre a maré tumultuosa e brava…
E, à noite, no clamor do vento,
Ao largo, o temporal se anunciava,
E a voz das águas, soluçante e cava,
Punha um trovão nas furnas, agoirento.
Logo, piedosamente, cada monge
Suspendia uma lâmpada à janela,
E tangia a sineta para o coro…
E, no mar alto, o navegante, ao longe,
Via um farol luzir em cada cela,
E cada rocha a arder, em sangue e oiro…
Cândido Guerreiro, Promontório sacro
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L E R N A E S C O L A T O D A
RESSURREIÇÃO
O mar, grande arquiteto e imaginário,
Que ao dobrar este cabo para o Sul,
Faz resplender o eterno sonho azul,
Ao longo desta costa, inquieto e vário,
Saudoso do mosteiro solitário
- Viúvo e inconsolável rei de Thule,
Busca no próprio seio a taça exul, -
Chora por ele um canto funerário…
Mas, segundo uma antiga profecia,
Deus há de erguer a sua linda igreja,
Tão linda como o foi em outras eras.
Neste mesmo lugar, para que seja
De novo (porque o homem se transvia)
Adorado por aves e por feras…
Cândido Guerreiro, Promontório sacro
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
O SONHO DO MAR
Arranha, a negridão da noite, o seu lamento:
A ouvi-lo me ponho,
e sinto as espirais, em que ascende o seu sonho,
Rasgando e verrumando as lufadas do vento.
Entre os fundos da terra é ele o degradado,
A torcer-se, no chão,
Cheia de espuma a boca, eterno condenado,
P’ra que não há perdão!
O que ele tem chorado, a morder o rochedo,
E nas praias do mundo, agonizantemente…
Inútil… O degredo,
Continua, sem fim, e implacavelmente!
João Lúcio, Na asa do sonho
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
CONCHAS
Minha infância de Luz mimada ao colo
Da onda à beira-mar, oh minha infância!
Vais perdida a boiar, feita num rolo,
farpada de saudade, na distância…
Mal se apagou a estrela sobre o polo,
Deixaste a praia em muda extravagância,
E perdeste pela areia, pelo solo,
As conchas que juntei, de sonho e ânsia.
Conchas que rendilharam mãos de magas,
Tão perdida na ausência imémore!...
Ah! Se tu, coração – búzio do mar –
Me toasses aquele som das vagas
Barcarolas azuis, lindo folclore
Às ondinas cantado ao luar!...
Emiliano da Costa, in Musa algarvia
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
NO ARRAIAL FERREIRA NETO
A praia. As âncoras. Rola que rola
A onda… e sangra o mar: fúria sem rédea
Vai o copejo além – tragicomédia
Que ao fundo, lá no mar se desenrola.
Do azul-marinho o atum azul consola
Vê-lo chegar à lota, e rira grei.
Consola, sim… Mas há um não sei quê
Na alegria, um enjoo que desconsola.
Do longe mensageira, a intermédia
Onda traz-nos, em fugas de tragédia,
Estas riquezas, sim… a luz, a Escola,
Esta obra higiénica, social,
Em prol dos pescadores – o Arraial!!...
… Mas sangra o mar: E o sangue desconsola.
Cândido Guerreiro, Asas
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
A PROA E O CABO
A proa aguçada
do barco para partir
o cabo enlaçado
em voltas para reter
ir ou fiar
o rio é uma disputa
permanente
Não vale apena
fingir
somos nós
quem decide
não a corrente
Carlos Brito, O modo e os lugares
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
VELEIROS
Estes iates brancos
resplandecentes como cisnes
feitos de fibras plásticas modernas
não me fazem esquecer
as velhas canoas de madeira
da minha infância
com as suas velas triangulares latinas
a bordejar contra a corrente
Mas às vezes sobem o rio
alguns estranhos veleiros
de talhe antigo
curtido pelos ventos
das travessias oceânicas
Então acordam de repente
os bandos de gaivotas
que trazemos adormecidos na alma
e somos envolvidos
pelas memórias da maresia
os mitos e os feitos
das grandes navegações
em que fomos amamentados
Carlos Brito, O modo e os lugares
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
PRAIA-MAR
uma a uma
fui tecendo as linhas do teu corpo
semi-nudez reclinada.
uma a uma
desenhei no espaço os traços do eu rosto
boca estremecida
mas foste tu
quem fez o meu trote ágil
uma sinfonia com que a noite coroou
a estrela mais longínqua
de uma para outra
o perfume de uma para uma
no cálice sôfrego da maresia
Fátima Murta, Com perfume de limão
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
AO DESCONCERTO DO MUNDO
Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.
Luís de Camões
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
O VAGABUNDO DO MAR
Sou barco de vela e remo
sou vagabundo do mar.
Não tendo escala marcada
nem hora para chegar:
é tudo conforme o vento,
tudo conforme a maré…
Muitas vezes acontece
largar o rumo tomado
da praia para onde ia…
Foi o vento que virou?
Foi o mar que enraiveceu
e não há porto de abrigo?
ou foi a minha vontade
de vagabundo do mar?
Sei lá.
Fosse o que fosse
não tenho rota marcada
ando ao sabor da maré.
É por isso, meus amigos,
que a tempestade da Vida
me apanhou no alto mar.
E agora,
queira ou não queira,
cara alegre e braço forte:
estou no meu posto a lutar!
Se for ao fundo acabou-se,
Estas coisas acontecem
Aos vagabundos do mar.
Manuel da Fonseca
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.
Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d'alva
Rainha do mar.
Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.
Manuel Bandeira
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
PAVOROSA PAISAGEM APARENTE
Mais longe do que os meus pés a aparência
Azul do mar. Na verdade o pavor do de
Clive da cor da terra barrenta. Não é
Reconhecível sem a figura de mar do vocá
Bulo. Azul sem ruído. Não-versátil
E pavoroso na imagem aparente
Fiamma Hasse Pais Brandão, F de Fiamma
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
Esta vista de mar, solitariamente
dói-me. Apenas dois mares,
dois sóis, duas luas
me dariam riso e bálsamo.
A arte da Natureza pede
o amor em dois olhares.
Fiamma Hasse Pais Brandão
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
MANHÃ CINZENTA
Ai madrugada pálida e sombria
em que deixei a terra de meus pais…
e aquele adeus que a voz do mar trazia
dum lenço branco a acenar no cais…
O meu veleiro – era de espuma fria –
levava-o o fervor dos vendavais.
À passagem gritavam-me: onde vais?
Mas só meu veleiro respondia.
Cruzei i mar em direções diferentes.
Por quantas terras fui, por quantas gentes,
Nesta longa viagem que não finda.
Só uma estrela resta – mais nenhuma:
na Ilha que o passado envolve em bruma,
um lenço branco que me acena ainda…
Natália Correia, Poesia completa
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
Eu venho do sonho e fujo da vida
Errei no caminho para a paz prometida.
Só sei que me chama um canto do mar.
E a nau dos sonhos no céu a voar.
Ó meu capitão da barca perdida
A errar entre o sonho e o engano da vida
Natália Correia, Poesia completa
Semana da Leitura 2013 – 11 a 15 de Março
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L E R N A E S C O L A T O D A
INTOXICAÇÃO
Poetas do mar vinde trazer-me as vossas ondas.
Sou cidade. Onde bichos e anjos se devoram
por uma côdea de imortalidade.
Vinde trazer-me a espuma onde as auroras
balbuciam o princípio dum segredo
guardado pelas bocas luminosas
que a noite fende nos últimos rochedos.
Natália Correia, Poesia completa
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