UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE ARTES - CEART DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS
TCC
PICHAÇÃO VERSUS O ELITISMO DA LÍNGUA E DO URBANISMO, E CONEXÕES COM MINHA PRODUÇÃO DE LAMBE-LAMBES.
Felipe Ramón Moro Rodriguez
Florianópolis, SC
2015
2
FELIPE RAMÓN MORO RODRIGUEZ
PICHAÇÃO VERSUS O ELITISMO DA LÍNGUA E DO URBANISMO, E CONEXÕES COM MINHA PRODUÇÃO DE
LAMBE-LAMBES.
Trabalho de conclusão de curso
apresentado ao curso de Artes Visuais –
Bacharelado, do Centro de Artes da
Universidade do Estado de Santa
Catarina, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Bacharel em Artes
visuais.
Orientadora Prof.ª Dr.ª Célia Maria
Antonacci Ramos
Florianópolis, SC
2015
3
Dedicado a todos os
pichadores, de maneira especial às
pichadoras. Dedicado aos artistas
mortos, anônimos, jovens e pobres.
A todos que seguram o rojão,
seguram o B.O., seguram as
pontas, seguram nos braços a arte
popular.
4
Agradecimentos
Agradecimento especial à Vitória, a quem devo todas as minhas
conquistas.
Agradecimento à minha família, meus pais, avós, minhas irmãs Fernanda
e Verônica e meus primos.
Agradeço ao Henrique (o Habito, que já se chamou Oito, já se chamou
Pulga, e talvez outros nomes que eu não conheça) pelos vários insights
importantes.
São muitos os amigos que caminham ao meu lado. Agradeço
especialmente aos amigos que fiz na faculdade: Franciele, Francisco, Pamela,
Letícia, Sofia, Isadora, Maitê, Ana e os amigos do grupo F: Matheus, Jorge,
Iandra, Daiane, João. Não posso me esquecer dos moradores do apê das artes
que me acolheram com carinho: o Bruno, a Ester, a Letícia e a Lara.
Agradeço aos professores da Universidade, que fizeram a experiência
acadêmica transformadora. Agradeço ao movimento estudantil em suas várias
formas, por robustecer meu caráter.
Por fim, agradeço à Célia Antonacci (minha prestativa orientadora) pela
pichação; à professora Marta Martins pelo simbólico e pelo misterioso; e à
professora Nara Milioli pela técnica e pelo lambe-lambe.
5
“Arte como crime; crime como arte.”
Hakim Bey
6
Resumo
RODRIGUEZ, F. R. M. Pichação versus o elitismo da língua e do urbanismo, e
conexões com minha produção de lambe-lambes. 2015. Trabalho de Conclusão
de Curso (Artes Visuais – Bacharelado) Universidade do Estado de Santa Catarina,
Centro de Artes, Departamento de Artes Visuais. Florianópolis, 2015.
Este trabalho é motivado pelos estudos na prática e teoria da forma de arte de rua
denominada pichação. A pesquisa revela os mecanismos que se opõe
simbolicamente a esta prática, particularmente os mecanismos presentes no elitismo
da língua oficial e de espaço oficial. Também discorre sobre os mecanismos literais
de assimilação, combate e criminalização dos pichadores. Analisa também o atual
cenário tanto da pichação quanto sua relação com a arte institucional e do mercado
de arte. Analisa a pichação como uma prática performática, expressão pessoal e de
classe. Também faz referências com a produção artística do autor, ao relacionar as
particularidades e simbolismos da pichação com a prática de lambe-lambes. Analisa
essa produção artística e discorre sobre os processos que ela levanta, bem como a
técnica necessária e adquirida para realização do trabalho.
Palavras-chave: Pichação, Língua, Arte Urbana, Urbanismo, Tipografia, Lambe-
lambe, Ocultismo.
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Abstract
RODRIGUEZ, F. R. M. Pichação versus the elitist language and elitist urbanism, and
the connections between the pichação and mine productions of posters. 2015.
Trabalho de Conclusão de Curso (Artes Visuais – Bacharelado) Universidade do
Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Departamento de Artes Visuais.
Florianópolis, 2015.
This academic work is motivated by the studies of the practice and theory in the
street art called "pichação”. The research reveals the mechanisms that oppose
symbolically to this form of art. Particularly the mechanisms in the elitism of the
official language and official space. It also analyzes the current situation of
“pichação” as its relationship with the institutional art and the art market. Analyzes
the “pichação” as a performative practice, a personal expression and a class
expression. It also makes references to the artistic production of the author, relating
the particularities and symbolisms of “pichação” with the poster production. Analyzes
this artistic production and discusses the processes it raises, as well as the
necessary technical to carry out the work.
Key-words: Pichação, Idiom, Language, Urban Art, Street Art, Urbanism,
Typography, Poster, Occultism.
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Resumo
RODRIGUEZ, F. R. M. Pixo: resposta ao elitismo da lingua e do urbanismo, e
suas conexões com minha producao de lambe-lambes. Trabalho de
Conclusao de Curso (Artes Visuais – Bacharelado) Universidade do
Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Departamento de Artes
Visuais. Florianopolis,
Este trabalho eh motivado pelos estudos na pratica e teoria da forma
de arte de rua denominada pixacao. A pesquisa revela os mecanismos que
se opõe simbolicamente a esta pratica, particularmente os mecanismos
presentes no elitismo da lingua oficial e de espaço oficial. Tambem
discorre sobre os mecanismos literais de assimilacao, combate e
criminalizacao dos pichadores. Analisa também o atual cenario tanto
da pixacao quanto sua relacao com a arte institucional e do mercado de
arte. Analisa a pixacao como uma pratica performatica, expressao
pessoal e de classe. Tambem faz referencia com a producao artistica do
autor, ao relacionar as particularidades e simbolismos da pixacao com
a pratica de lambe lambes. Analisa essa producao artistica e discorre
sobre os processos que ela levanta, bem como a tecnica necessaria e
adquirida para realizacao do trabalho.
Palavras-chave: Pixacao, Lingua, Arte Urbana, Urbanismo, Tipografia,
Lambe-lambe, Ocultismo.
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURA 1 – EXEMPLO DE GRAVURA OCULTISTA
12
FIGURA 2 – EXEMPLO DE EDIFÍCIO COM PICHAÇÕES
14
FIGURA 3 – EXEMPLO DE PICHAÇÃO ANTIGA
15
FIGURA 4 – EXEMPLO DE TIPOGRAFIA DE PICHAÇÃO
17
FIGURA 5 – PRÉDIO COMPLETAMENTE PICHADO EM SÃO PAULO
27
FIGURA 6 – VIADUTO COM ARQUITETURA DEFENSIVA
33
FIGURA 7 – CAPA DO LIVRO "TERRA” DE SEBASTIÃO SALGADO
38
FIGURA 8 - CONVITE PARA AÇÃO NA FACULDADE DE BELAS ARTES DE SÃO PAULO.
42
FIGURA 9 - CONVITE PARA PARTICIPAÇÃO NO “ATAQUE” À BIENAL DE SÃO PAULO DE 2008
44
FIGURA 10 – LAMBE-LAMBE "OROBORO",
49
FIGURA 11 -LAMBE-LAMBE OBEY THE GIANT DE SHEPARD FAIREY
51
FIGURA 12 - LAMBE-LAMBE "OROBORO" COM PICHAÇÕES
52
FIGURA 13 - FOTOGRAFIA DE UMA COLAGEM DE LAMBE-LAMBES
53
FIGURA 14 - LAMBE-LAMBE "PIXO - A JORNADA TERMINA ONDE COMEÇOU"
54
FIGURA 15 - ILUSTRAÇÃO DE ELIPHAS LEVI
56
FIGURA 16 – LAMBE-LAMBE "O MAGO DESEJA ATRAVÉS DE RAIOS DE FOGO"
57
10
FIGURA 17 - LAMBE-LAMBE "O MAGO DESEJA ATRAVÉS DE RAIOS DE FOGO"
58
FIGURA 18 – EXEMPLO DE PICHAÇÕES COM GRANDE COMPLEXIDADE
60
FIGURA 19 - LAMBE-LAMBE "IGNES NATURA RENOVATUR INTEGRA"
61
FIGURA 20 ESQUEMA INDICATIVO DO PROCESSO TÉCNICO DE
PREPARAÇÃO PARA A COLAGEM DOS LAMBE-LAMBES.
62
FIGURA 21 LAMBE-LAMBE "LUA"
64
FIGURA 22 - LAMBE-LAMBE "LILLITH"
65
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
Primeira parte: A pichação
19
1 A pichação como resposta ao elitismo linguístico 19
1.1 Uma parcela social 19
1.2 A tomada de poder 28
2 A pichação como resposta ao elitismo urbanístico 30
2.1 A pichação encontra o lambe-lambe na questão do espaço público 30
3 Pichação e arte 37
3.1 Arte política e Arte politizada 37
3.2 O caráter performático da pichação 43
Segunda parte: Minha produção
47
4 Conexões entre os três elementos: Pichação, Lambe-lambe e
ocultismo
47
4.1 As conexões entre o lambe-lambe e a pichação 48
4.2 As conexões entre a pichação e o ocultismo 55
4.3 As conexões entre o ocultismo e o lambe-lambe 60
5 A técnica empregada nesta produção artística 61
CONCLUSÃO
67
REFERÊNCIAS 69
12
Introdução
O presente trabalho acadêmico é dividido em duas partes. Na primeira
discorro sobre o papel político das práticas contemporâneas reconhecidas
como "pichações"; na segunda parte analiso minha própria produção artística
composta por colagem de lambe-lambes, que mesclam uma estética presente
em gravuras contidas em baralhos e livros antigos escritos por alquimistas1 e
monges copistas2 com a tipografia e temas da pichação.
Figura 1 – Exemplo de gravura usada como referência estética. Gravura
presente no livro Steganographia (Escritos Secretos), de Johannes Trithemius, um
monge copista. Publicado primeiramente no ano de 1500.
Exemplar do National Cryptologic Museum, em Fort Meade - Estados Unidos.
1 al·qui·mi·a (árabe al-kimia, pedra filosofal, do grego khumeía, -as, fusão de metais)Química da Idade Média;
ciência oculta medieval tendente a descobrir o elixir da vida e a pedra filosofal. "alquimia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/alquimia [consultado em 28-05-2015].
2 co·pis·ta 1 (francês copiste)1. Pessoa que copia. 2. Pessoa que tinha por função copiar textos manualmente, antes da invenção ou da divulgação da imprensa., in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/copistas [consultado em 28-05-2015].
13
Minha experiência com a pichação não é a de protagonista. Nunca fui,
para todos os efeitos, um pichador. Entretanto, morador de um bairro periférico
de Curitiba, Paraná, me habituei logo cedo à pichação. Aprendi ainda criança a
ler as inscrições e já identificava os diversos grupos de cada bairro, de acordo
com as assinaturas. Também, convivia com esses grupos de maneira bem
próxima: na rua e no colégio. Na condição de observador desse fenômeno,
aprendi a desconfiar da versão generalizada de que eram mais marginais do
que marginalizados, de que a pichação era uma rebeldia juvenil e
despropositada.
A pichação apareceu para mim primeiramente como uma linguagem de
rebeldia, depois, um objeto de estudo, e só recentemente, como uma prática
estética e política. Essa é uma das razões de eu utilizar a pichação dentro de
uma estética e de uma técnica que já domino: a estética do ocultismo e a
técnica do lambe-lambe. Respeito a tradição ainda jovem de pichadores
brasileiros, da qual não faço parte. Trago um olhar de observador sobre o
tema, e acredito que esse distanciamento me permite uma produção alheia a
interesses pessoais nessa área. Tenho um compromisso intelectual com a
pichação. Não me deixo divergir pelo que gostaria de acreditar ou pelo que
penso que traria benefícios às minhas relações sociais.
Este é o motivo, também, para não utilizar, durante este trabalho a
palavra pixação, com a letra x. É assim que os pichadores se referem a eles
mesmos, mas não é assim que a sociedade e a academia se referem a eles.
Escrevi algumas páginas sobre o poder das línguas e suas práticas,
principalmente analisando o livro “A Economia das Trocas Linguísticas” (2008)
de Pierre Bourdieu. Portanto, seria inocência deixar a escolha do principal
termo de estudo (pichação) ao acaso. Situo-me assim, novamente no lugar de
observador do fenômeno da pichação, e não de pichador.
14
Figura 2 – Prédio pichado em São Paulo, Brasil.
Fonte: autor desconhecido
Um breve histórico e panorama atual
Nos anos de 1970-1980, uma nova forma de expressão começou a ficar
conhecida em São Paulo. As palavras: "Cão Fila", que às vezes era
acompanhada de "Km 26", e "Juneca", que depois passou a contar com a
assinatura do parceiro "Pessoinha", eram escritas de maneira rude, em muros,
com tinta preta. Mais tarde, tomamos conhecimento que “Cão Fila" era o nome
de um canil no quilômetro 26 da Estrada do Alvarenga, em São Bernardo do
Campo e, "Juneca", se tornou nos anos seguintes um grafiteiro3 conhecido.
3 Adepto do Grafiti: desenho, inscrição, assinatura ou afim, feito geralmente com tinta de spray, em
muros, paredes e outras superfícies urbanas. "grafíti", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/graf%c3%adti [consultado em 10-06-2015].
15
Esse tipo de intervenção nos muros da cidade de São Paulo foi a precursora
do que se convencionou por pichação. Sendo, portanto, brasileira e atual.
Figura 3 - fotografia mostrando a inscrição "Cão Fila", considerada uma das
primeiras pichações.
Foto de José Roberto Andrade Amaral, década de 70.
Hoje, a pichação é uma forma de escrita feita em paredes e muros,
muitas vezes com caracteres indecifráveis e sempre mutáveis. Causam, em
grande parte da população urbana certo desconforto. Principalmente por não
serem passíveis de compreensão, assimilação ou aniquilação. Esta forma de
expressão, nascida no Brasil, ainda que não assimilada ou apreciada pela
16
maioria da população, faz parte de uma tendência estética coerente, com
códigos e métodos próprios.
Como desenho, a pichação apresenta complexidade de traços, e é
sempre composta de linhas formando primeiramente uma letra de tipografia
exclusiva, e posteriormente uma imagem ou símbolo (ver figura 4). Na maioria
dos casos, são desenvolvidas imagens provenientes de estilização do alfabeto
arábico. Porém outras vezes as imagens são fruto da livre criação dos
pichadores.
17
Figura 4 – Exemplo de tipografia de pichação.
Fonte: produção do próprio autor
18
A pichação é uma prática considerada ilegal pelo Estado brasileiro. A
legislação brasileira, ao tratar da aplicação de sanções penais e
administrativas em decorrência de atividades lesivas ao meio ambiente (artigo
65 da Lei nº 9.605/98), pune aquele que “pichar, grafitar ou, por outro meio,
conspurcar edificação ou monumento urbano”. A pena é de três meses a um
ano e aumenta de seis meses a um ano se o ato for praticado contra
monumento ou coisa tombada em virtude de seu valor artístico, arqueológico
ou histórico.
Além das punições previstas, a pichação costuma ser discriminada,
punida e abordada com severidade pelas forças policiais4. Na mídia, a prática
da pichação encontra forte oposição e desnaturalização, considerada como
uma atitude moralmente reprovável resultado do vandalismo despropositado
da juventude. É considerada vandalismo, pois resulta, dentro do senso comum,
em poluição visual.
4Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2014/01/gaeco- investiga-suspeita-de-tortura-de-pms-pichador-assista-video.html> acessado dia 10/06/2015
19
Primeira parte: A pichação
1 A pichação como resposta ao elitismo linguístico
1.1 Uma parcela social
No meio de vocês ele é o mais esperto, ginga
e fala gíria, gíria não, dialeto. (Racionais
MC´s).
Podemos entender por dialeto5 as variações de pronúncia, vocabulário e
gramática pertencentes a uma mesma língua. Os diferentes dialetos, apesar
do que costumamos pensar, não ocorrem somente em regiões diferentes. Em
uma mesma região existem também as variações dialetais etárias, sociais,
referentes ao gênero e a estilística.
Os dialetos mais prestigiados são das classes mais elevadas e o da elite
(grupo dominante na sociedade ou o grupo localizado em uma camada
hierárquica superior em uma dada estratificação social) é comumente tomado
não mais como dialeto e sim como a própria “língua” oficial. A discriminação do
dialeto de classes populares é geralmente baseada no conceito de que essas
classes, por não dominarem a norma padrão de prestígio e usar seus próprios
métodos para a realização da linguagem, “corrompem” a língua com “erros”.
Em seguida, inspirada por noções estéticas e morais, prestigia-se a variação
padrão como modelo ideal a imitar, atribuindo-lhe juízos de valor como
"exemplar", "correta" e "bela".
No livro “A Economia Das Trocas Linguísticas”, o filósofo francês Pierre
Bourdieu discorre sobre a origem das diferenças linguísticas entre grupos
falantes da mesma língua, e a troca dos poderes entre eles. Para Bourdieu, a
5 Do grego διάλεκτος, translit. diálektos: 'conversa, conversação, discussão por perguntas e
respostas; maneira de falar, linguagem própria de um país'
20
língua não é apenas um bem, uma propriedade de determinado grupo, como
uma riqueza de uma nação, não é apenas um tesouro depositado pela prática
de fala nos sujeitos pertencentes à mesma comunidade, mas esse tesouro
simbólico é, também, uma manifestação de poder. As trocas linguísticas, como
uma troca entre moedas, são também trocas de poderes simbólicos entre os
locutores e seus respectivos grupos, ou até mesmo entre grupos diferentes.
(BOURDIEU 2008). E é isto que a pichação evidencia: as diferenças entre
grupos e as trocas de poderes entre eles.
O que circula no que Bourdieu chama de "mercado linguístico" não é a
língua, mas discursos estilisticamente caracterizados, não apenas dialetos,
mas também idioletos individuais, caracterizados por traços comuns a grupos
e coletivos de determinada realidade, mas ainda assim únicos. Sendo assim, o
modo de falar/ouvir e o modo de escrever/ler se transformam em uma
propriedade única, carregados de experiências individuais.
Até a Revolução Francesa, o processo de unificação linguística se
confundia com o processo de construção do Estado monárquico de então:
É no processo de constituição dos estados que se criam as condições da constituição do mercado linguístico unificado e dominado pela língua oficial: obrigatória em ocasiões e espaços oficiais, esta língua de Estado torna-se norma teórica pela qual todas as práticas linguísticas são objetivamente medidas. (BOURDIEU, 2008, Pág.32).
A língua comum que se elabora nos meios cultivados de Paris, e que, promovida ao status de língua oficial é utilizada na forma que os usos eruditos lhe conferiram. Ao mesmo tempo, os usos populares e puramente orais de todos os dialetos regionais assim suplantados são relegados ao estado de "patoá" [...] Entregues aos camponeses, os dialetos são de fato definidos negativa e pejorativamente em oposição aos usos refinados ou letrados. (Ibidem, pág. 33).
Falar de uma língua, sem qualquer outra especificação como classe,
gênero, região geográfica, é aceitar a definição oficial da língua formal de uma
unidade política, que existe em seus limites territoriais. Essa língua é a que se
impõe a todos os que pertencem àquela jurisdição como a única legítima,
quando possível, e como a única em que não é cabível ridicularização ou
21
desprezo. Essa língua, que na prática reside apenas nas prateleiras das
bibliotecas, é sempre produzida por autores com autoridade para escrever,
fixada e codificada por gramáticos e professores. É um código baseado em um
método de manutenção de hierarquias. Não existe, na língua oficial, espaço
para inovações vindas de fora dos circuitos tradicionais de produção de
pensamento. Apenas em raros casos é possível impregnar a língua oficial de
saberes populares e vivências dos que estão fora dos centros de poder. A
língua já evidenciava a disparidade entre o modo de viver periférico e o não
periférico antes mesmo das pichações fazerem esse trabalho.
Assim, a língua não é apenas uma ciência que permite estabelecer
equivalências entre sons e sentidos, mas também é um sistema de normas
que rege as práticas linguísticas e, consequentemente, as atividades
humanas, desde as práticas e mecanismos sociais até o pensamento
individual e a formulação de conhecimento. A língua oficial está enredada com
o Estado tanto em sua gênese como em seus usos sociais. (Ibidem, 2008)
Portanto, em espaços onde existe a ausência do Estado6, também existe
a ausência do seu falar oficial. Como, por exemplo, as favelas paulistas e
cariocas, que contam com uma presença estatal ineficiente, tratando-se de
políticas sociais. Então, quando novamente o Estado tenta entrar em contato
com essa população marginalizada, o faz dispondo de seu material repressivo:
através das forças policiais, do endurecimento das obrigatoriedades nas
escolas e do aparato jurídico. Aliado a isso, a imposição do falar oficial.
Através de um lento e prolongado processo de aquisição, os membros
de comunidades contidas na periferia, tanto a periferia geográfica quanto a
periferia de esferas de tomada de poder, são submetidos a essa intenção
política de unificação em uma só nação e em uma só sociedade. As
consequências desse anseio institucional são claras: o acesso a postos de
trabalho mais cobiçados e de melhor rentabilidade e qualidade de vida é
certamente mais fácil quanto mais próximo está o interlocutor da língua
6.Nação considerada como entidade que tem governo e administração particulares.
(Governo político do povo constituído em nação. (Geralmente com inicial maiúscula.) "estado", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/estado [consultado em 10-06-2015].
22
"oficial", desse dialeto característico dos membros das classes superiores. No
caso específico dos dialetos periféricos das metrópoles brasileiras, essas
variações linguísticas são também características de determinadas zonas
geográficas da cidade. Ao mesmo tempo em que existe a pressão pela
adequação da população a uma língua oficial, também é conveniente que essa
diferenciação linguística seja mantida e percebida como sinal de diferenciação
entre as populações.
Quanto a isso, Bourdieu volta sua análise para os estudos de Saussure,
que pretendia provar que não é o espaço que define a língua, mas a língua
que define seu espaço.
Saussure observa que nem os dialetos nem as línguas conhecem limites naturais, fazendo com que uma dada inovação fonética, acabe por determinar sua área de difusão pela força intrínseca de sua lógica autônoma, através do conjunto dos sujeitos falantes dispostos a ser os portadores dessa mudança. Essa filosofia da história [...] oculta o processo propriamente político de unificação ao cabo do qual um conjunto determinado de "sujeitos falantes" se encontra praticamente levado a aceitar a língua oficial. (Ibidem, Pág. 31).
Para Bourdieu, a língua não se impõe apenas por sua própria força,
devendo seus limites geográficos a um ato político de instituição, ato arbitrário
de determinado poder, além da imposição da própria ciência da língua:
Ninguém pode ignorar a lei linguística que dispõe de seu corpo de juristas (os gramáticos) e de seus agentes de imposição e de controle (os professores) investidos do poder de submeter universalmente ao exame e a sanção jurídica do título escolar o desempenho linguístico dos sujeitos falantes. (Ibidem, Pág. 32).
Contemporaneamente, um papel determinante na desvalorização dos
dialetos e na instauração da nova hierarquia dos usos linguísticos é exercido
pelos meios de educação. Mas o papel mais determinante na opressão dos
dialetos é a instituição de uma relação entre a escola e o mercado de trabalho.
A comprovação de participação em um sistema de ensino regular (vincu lado à
ideia de língua oficial) (ou seja, os diplomas escolares dotados de uma
23
regulamentação nacional) são pré-requisitos para a entrada no mercado de
trabalho. E esses diplomas escolares não tem relação com as propriedades
sociais ou regionais de seus portadores (Ibidem, 2008). Há um distanciamento
natural entre interlocutores e a língua quando esta é, de certa forma, imposta.
É exatamente o mesmo distanciamento que sente o cidadão membro de
classes sociais mais abastadas ao deparar-se com uma pichação. O pichador
também impõe, de maneira mais simbólica do que concreta, seu modo de falar.
E o faz através de uma tipografia exclusiva, que exclui os espectadores não
iniciados.
Para que um modo de expressão, ou uma determinada utilização da
língua (no caso de uma sociedade dividida em classes) se imponha como
único legítimo, é preciso que esse mercado linguístico seja unificado e que os
diferentes dialetos (classistas, regionais ou étnicos) sejam referidos à língua
ou ao uso legítimo dela como corruptelas, mesmo não sendo originadas pela
má compreensão/audição das palavras da língua oficial. Os dicionários, por
exemplo, demonstram os artifícios de exclusão e desvalorização dos modos de
expressão populares. A maioria das palavras que estão em uso corriqueiro,
mas não existem na norma oficial da língua são categorizadas como Vx. /
Arcaico, Pop. /Popular, Gír. /Gíria, entre outros.
Enquanto produto da dominação política incessantemente reproduzida por instituições capazes de impor o reconhecimento universal da língua dominante, a integração numa mesma "comunidade linguística" constitui condição da instauração de relações de dominação linguística. (Ibidem, Pág. 32).
Esse poder dominante da língua não se encontra apenas em suas
palavras, como no caso das incompreensíveis escolhas dos ordenamentos
jurídicos brasileiros, mas nas condições institucionais de sua utilização.
Em oposição ao dialeto, a língua se beneficiou das condições institucionais necessárias à sua codificação e à sua imposição generalizadas […] Ela contribui para reforçar a autoridade que fundamenta sua dominação. (Ibidem, Pág. 31).
24
Assim sendo, investidos de ritualísticas inerentes às instituições, os
defensores da língua oficial que perpetuam a existência desse par língua-
nação, através de posições de evidência social, representam o limite de todas
as situações de imposição, por meio do exercício dessa competência de
locutor legítimo, autorizado a falar e a falar com autoridade. (Ibidem, 2008).
O discurso jurídico, tanto o regular, do direito, quanto o jurídico da
língua (normas, gramáticas e autores) é um discurso criativo, que faz existir o
que ele enuncia. Os estados de direito dependem da burocracia, e a
burocracia depende que a língua oficial, exposta por meios oficiais, seja
criadora, funcione como documento, decrete. Mas, como diz Bourdieu:
Jamais se deveria esquecer que a língua, em razão da infinita capacidade geradora, mas também, originária, no sentido kantiano, que lhe é conferida por seu poder de produzir para a existência produzindo a representação coletivamente reconhecida, e assim realizada, da existência, é com certeza o suporte por excelência do poder absoluto.(Ibidem, Pág. 28).
Não há melhor exemplo da disparidade entre a linguagem popular (e
mais ainda, a linguagem suburbana) e a norma culta que o próprio conjunto
das leis a que somos submetidos. No artigo 65 da Lei de Crimes Ambientais,
Lei 9605/987, utilizado para condenar a maioria dos pichadores, lê-se a palavra
"conspurcar", que, de acordo com os dicionários8, significa "sujar".
Um jovem, acusado de pichar um muro em Fortaleza, Ceará, recebeu a
seguinte advertência:
Como incurso (a) nas sanções do Art. 65, da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), nos autos do processo em epígrafe, pelo que, nos termos do Art. 361, combinado com o Art. 365, parágrafo único do Código de Processo Penal, expediu-se o presente edital, com o prazo de 15 (quinze) dias, pelo qual o (a)
7 LEI Nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm> Acessado em 10/06/2015 8 cons.pur.car (lat conspurcare)2 Sujar. vtd e vpr3 Macular(-se), manchar(-se) CONSPURCAR. In:
Michaelis. Editora Melhoramentos. Disponível em:<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=conspurcar > Acessado em 10/06/2015
25
denunciado (a) fica citado (a), conforme a nova redação do art. 396 daquele diploma legal, a responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias, para se ver processar até o julgamento final, sob pena de revelia, ficando, ainda, ciente de que, não apresentando resposta no prazo legal, ser-lhe-á nomeado (a) defensor público para atuar em sua defesa. CUMPRA-SE, observadas as formalidades legais. Fortaleza/CE, em 27 de agosto de 2014. (Diário de Justiça do Estado do Ceará).9
(Esse texto é, na realidade, um aviso do Poder Judiciário dando ciência
ao acusado de que corre contra ele uma ação penal, e, portanto o acusado
deve procurar um advogado para que seja feita sua defesa legal.)
Nada mais natural do que supor que uma grande parte da população não
consiga compreender essa linguagem, apesar da importância dela em sua
vida. Esse tipo de discurso coloca o receptor em uma posição claramente
submissa. Em relação a esse pensamento, o filósofo francês Roland Barthes
(2013) alegou que a linguagem é um instrumento "intrinsecamente fascista",
não por impedir de dizer, mas por "obrigar a dizer"10. Na medida em que o
status quo e o ambiente exercem influência em quem fala ou escreve.
Interessante notar como as questões suscitadas por Barthes nos levam
a pensar que o que pode ser opressivo na lei, não é a lei em si, mas as formas
discursivas por meio das quais ela é proposta. A linguagem jurídica
especificou-se para segregar. Segregar conhecimento, o acesso à justiça, bem
como ao judiciário, o “modo de vida” dos indivíduos, as relações interpessoais
e, assim, definir-se como forma de dominação.
Há uma sentença de Publius Iuventius Celsus (um jurista romano da
antiguidade) que os juristas atuais parecem ignorar, sempre que privilegiam as
palavras extravagantes e rebuscadas em detrimento das palavras simples e
diretas:
9 Judiciário. Diário de Justiça do Estado do Ceará (DJCE) de 08 de Setembro de 2014, Pág. 392 10 "Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem ....progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é ....obrigar a dizer." (BARTHES, 2013, P.15)
26
Saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, mas sim, conhecer a sua força e seu poder (scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem). (JUSTINIANO, Digesto de Justiniano apud Luiz Fernando Coelho, 2004)
A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e cominação. {...} um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga a dizer [...] assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada frequência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada (BARTHES, 1996, pág. 13).
Algo semelhante diz Foucault, quando revela o papel do discurso na
reprodução da dominação entendida como o exercício do poder pelas elites,
instituições ou grupos e de que resulta, dentre outras coisas, na desigualdade
social. Foucault trata o discurso como desejo e não objeto de desejo, capaz,
portanto de “agir” e mudar quadros sociais. (FOUCAULT, 2003) .
Em oposição às belas frases, à linguagem metaforizada e sugestiva de uma literatura considerada de bom nível, aceita e prestigiada, seja pela consagração de um Nome, a assinatura do autor inscrita na capa, conferindo um certificado de origem, uma filiação, uma legitimação, bem posta, bem colocada, seja pela mitificação do livro-objeto totalizante - lugar, por excelência, da publicação, o grafito, escrita coletiva e sem estilo, sem marca pessoal do autor, sem grife, publicado na porta ou na parede do banheiro, quer, sobretudo, tornar pública a intimidade" (COUY, 1967, pág. 65).
27
Figura 05 – Prédio completamente pichado em São Paulo, Brasil.
Fonte: autor desconhecido
28
1.2 A tomada do poder
Estamos vivos, irmãos, estamos vivos.
(KL Jay, dos Racionais MC's).
Diante da incapacidade dos membros das classes populares de
compreender o dialeto falado pelas elites, a pichação mostra-se como uma
engenhosa ferramenta de empoderamento11 cultural. Cria-se, para um dialeto
diferente, uma tipografia12 diferente. Assim, essa tipografia e seu respectivo
dialeto, utilizados pelos jovens de uma determinada classe social, não são
compreendido pelos membros de outras classes, de localizações antagônicas
no gráfico de renda.
No filme "Pixo" (2009), de João Wainer e Roberto T. Oliveira, vemos, aos
26 minutos, um depoimento interessante. Um jovem anônimo afirma que não
sabe ler nem escrever em português corrente. Isso o torna, tecnicamente, um
analfabeto. Mas esse jovem sabe ler a pichação. Ele compreende os
caracteres dos muros, mas não os caracteres dos livros.
Para Barthes (1988, pág.65), “a unidade do texto não está em sua
origem, mas no seu destino. [...] o nascimento do leitor deve pagar-se com a
morte do Autor”. Entretanto, para uma parcela da sociedade onde,
historicamente a morte do autor tem um sentido literal, em um país onde o
apagamento de memórias, culturas e saberes de determinada classe é
institucional, os pichadores invertem a lógica: ao invés de 'o nascimento do
leitor deve pagar-se com a morte do Autor" gritam com seus grafismos
indecifráveis: "o nascimento do autor deve pagar-se com a morte do leitor".
11 "Embora a palavra Empowerment já existisse na Língua Inglesa, significando "dar poder" a alguém
para realizar uma tarefa sem precisar da permissão de outras pessoas, o Educador Paulo Freire definiu ricamente esta expressão em português. Para ele, a pessoa, o grupo ou a instituição empoderada é aquela que realiza, por si mesma, as mudanças e ações que a levam a evoluir e se fortalecer." VALOURA, Leila de Castro 2005.
12 Do gregos typos — "forma" — e graphein — "escrita") é a arte e o processo de criação na ....composição de umtexto, física ou digitalmente. Assim como no design gráfico em geral, o ....objetivo principal da tipografia é dar ordem estrutural e forma à comunicação impressa.
29
Renegados a viverem o modo de vida da pobreza, é evidente para os
cidadãos da periferia o distanciamento com o outro modo de vida, o das
classes superiores. O cidadão da periferia é obrigado a rumar ao centro para
tratamento médico, é obrigado a assistir o modo de vida burguês nas novelas.
Mas, o contrário não se aplica: o cidadão que não faz parte dessa comunidade
política não conhece a periferia. A periferia é descrita como um local ermo,
perigoso, e o máximo de experiências suburbanas que os membros das
classes superiores adquirem é através de experiências trazidas por terceiros,
histórias das páginas policiais ou por uma arte que retrata a pobreza com
misticismo e exotização.
Assim, clamando da sociedade a atenção necessária para a existência
política dessa comunidade, o pichador evidencia essas diferenças. A pichação
é uma ríspida advertência da existência do outro; é impossível ignorá-la. A
oposição a essa nova forma de arte é natural. Respeitar diferenças que jamais
aparecem enquanto tais é fácil. Para tolerar a diferença, é preciso que ela se
mostre. E a arte é, sobretudo, produção de diferenças. Daí que a vocação do
juízo estético sobre a arte tenha, desde a partida, sentido político.
Evidencia-se, portanto, a linha histórica que se inicia nas paredes das
cavernas e chega agora às paredes das cidades: a arte, como artifício humano
é essencialmente uma manifestação da vida. Mais uma vez aparece aqui a
defesa de uma comunidade política convocada pela experiência estética. A
pichação aparece, antes de tudo, como manifestação de existência dessa
comunidade política. O cidadão da periferia, através de toda a nossa história,
é um cidadão negligenciado, afastado das esferas de poder e afastado
também da história corrente de criação artística. Assim, como o dialeto
suburbano é considerado um ruído da linguagem, a arte popular é considerada
um corrompimento da arte oficial.
30
2 A pichação como resposta ao elitismo urbanístico
2.1 A pichação encontra o lambe-lambe13 na questão do espaço público
Há uma rachadura em tudo. É assim que a luz entra.
Leonard Cohen
Minha produção de lambe-lambes encontra ressonância com a ideia de
reapropriação de espaços públicos.
O espaço público, ao contrário do que possa parecer, não é o espaço de
livre uso do coletivo de cidadãos que residem ou utilizam a cidade. Mas sim é
o espaço de propriedade e domínio da administração pública, a qual
responsabilizada pelo Estado com seu cuidado. Atualmente, a diferença de
interesses entre as forças reguladoras e algumas parcelas da população se
evidencia no manejo e controle dos espaços públicos. Destacando-se como
fruto das tensões e disputas que emergem no processo de produção desse
espaço urbano (como formas estéticas de resistência ao poder) estão as
formas de arte de rua14. Entre elas o lambe-lambe e a pichação.
A cidade representa um lugar – um “próprio” – que pode ser circunscrito, e que desta forma serve de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta – os seus “outros” (De Certeau, 1994). Como bem lembra Kasper (2006), “próprio”, em francês (propre), tanto significa “próprio”, como “limpo”, resgatando a dimensão da “pureza”, ou antes, da “ordem”. A cidade, como local onde (e de onde) o poder se exerce, foi construída segundo esse modelo discursivo. Nenhum outro gesto exprime tão bem a qualidade do esforço empregado na sua construção quanto o de “varrer”. Não é este o ato territorial por excelência? Não é para o ordenamento do ambiente que levam todos os caminhos da história da cidade? (MELO, 2011).
13 Os lambe-lambes são pôsteres artísticos de tamanhos variados que são colados em espaços
públicos. Podem ser pintados individualmente com tinta látex, spray ou guache. Geralmente são colados com cola de polvilho ou de farinha devido ao seu custo reduzido. Os lambe-lambes fazem parte das novas linguagens da arte de rua contemporânea.
14 é a arte criada e pensada para estar nas ruas, não em museus ou espaços fechados.
31
Assim como na língua, o poder vigente também impõe uma espécie de
espaço oficial, através de medidas urbanísticas. Esse urbanismo vai desde a
coreografia cotidiana dos trajetos executados pelos cidadãos, controlada por
aparatos policiais, passando pela gentrificação15 dos centros, com o
afastamento de populações de baixa renda de pontos de exercício de
cidadania, e o espraiamento16 dos lotes para favorecer o mercado imobiliário.
Também modificam arbitrariamente a disposição dos objetos e prédios nas
zonas centrais da cidade. Essas zonas centrais, normalmente, traduzem
esteticamente essa visão elitista de urbanismo através de esculturas artísticas
de médio e grande formato e monumentos comemorativos. Qualquer
intervenção espontânea nessa ordem regular será reprimida, pois esse modelo
de cidade tende a omitir a realidade imperfeita das nossas sociedades.
Identificamos aqui a emergência das várias formas de
reapropriação/reinvenção do espaço, para aproximá-lo de sua função
primordial: de espaço realmente público.
Tudo o que ofende a ordem, que não está em conformidade com a imagem que se deseja construir, é tomado como sujo. E como não pode ser eliminada, pois é um subproduto imanente do esforço ordenador, a sujeira tenderá a compartilhar o espaço dos amantes e de todos aqueles cuja vergonha e/ou a indiferença impõe uma vida de sombra e segredo. Tal qual o indivíduo estigmatizado (Goffman,1975), a cidade busca esconder os seus símbolos de estigma, (ao mesmo tempo em que evidencia os seus símbolos de prestígio). Assim, o duplo movimento que caracteriza as relações de lugar e de visibilidade no processo de produção do espaço: excluir para esconder/esconder para excluir. (MELO, 2011).
Assim como a pichação, o lambe-lambe é tomado como sujo, impróprio.
Exatamente por questionar determinado espaço vazio para si, por não estar
15 O termo é derivado de um neologismo criado pela socióloga britânica Ruth Glass em 1963, ...em um artigo onde ela falava sobre as mudanças urbanas em Londres (Inglaterra). Ela se ...referia ao “aburguesamento” do centro da cidade, usando o termo irônico “gentry”, que pode ...ser traduzido como “bem-nascido”, como consequência da ocupação de bairros operários ...pela classe média e alta londrina. 16MICHAELIS. Dicionário Português.Editora Melhoramentos, 1998-2009: vtd 4 Alastrar, estender-se:
32
em conformidade com a noção de cidade imposta pelo poder público. Quando
a cidade está "limpa", ou seja, quando está livre de manifestações de livre-
arbítrio estético dos seus cidadãos e sim subordinada a um plano decidido em
"esferas superiores", qualquer mínimo desvio se sobressairá. Em contraste
com a limpeza de todo o redor, qualquer mínima intervenção urbana saltará
aos olhos e, assim, será mais fácil identificá-la e possivelmente destruí-la.
Os chamados espaços públicos também contêm aquilo que se chama de
“mobiliário urbano”, isto é, equipamentos que facilitam o uso dos espaços:
luminárias, bancos, lixeiras, pontos de ônibus, sinalização de trânsito e de
informação em geral, mas também compreende os objetos de imposição da
ordem e de fiscalização, como as câmeras de segurança, os guichês policiais,
os bancos projetados para evitar o sono de moradores de rua, e os espinhos
de cimento ou pedras pontiagudas sob os viadutos, com o mesmo fim. É uma
lógica de criminalização da pobreza. Este tipo de planejamento tem sido
chamado de arquitetura defensiva17.
17Disponível em: http://www.theguardian.com/society/2015/feb/18/defensive-architecture-keeps-
poverty-undeen-and-makes-us-more-hostile?CMP=fb_gu Acessado em 10/06/2015
33
Figura 6 - Viaduto em Belo Horizonte com pedras pontiagudas para evitar o pernoite de moradores de rua.
Fonte: Portal Conexão Jornalismo
A arquitetura defensiva contribui com os anseios das forças do governo
de empreender uma heterogeneidade controlada e uma sensação de
segurança. Não combatendo a insegurança, mas afastando ainda mais dos
centros urbanos as populações consideradas de risco, as populações
relacionadas com a origem da criminalidade. Essa cidade, prevista, depende
que a população se entregue a essa sensação de bem-estar, essa harmonia
que existe no fato de ignorarmos os problemas e criarmos um ambiente sem
sobressaltos. A população também é levada a uma espécie de admiração pela
cidade: ela é seduzida pelas constantes melhorias, pelos grandes
empreendimentos imobiliários, pelas obras megalomaníacas de revitalização.
Essa produção artificial do espaço, numa ordenação mediada pela interação criador/criatura, constrói um citadino
34
despolitizado do significado de cidadania e de seu papel político enquanto agente da produção do espaço, naturalmente pacífico, dotado de um inabalável amor cívico pela sua própria cidade. Enquanto os cidadãos se dividiriam quanto a visões ideológicas, projetos de sociedade e prioridades nacionais, os citadinos estariam acima (ou além) destas pugnas. (MOURA 2006).
Servindo a esta lógica de espaços oficiais, a cidade criou ambientes
assépticos, lugares sem história, sem passageiros, lugares onde
aparentemente nada acontece: um banco que é construído para parecer que
nunca ali ninguém sentou; ou uma rua com elevado barulho de automóveis e
absoluto silêncio de conversas humanas. Esses espaços são repletos de
máquinas que eliminam a possibilidade de diálogo, e são replicados por vários
pontos da mesma cidade e até mesmo do planeta. Todos conhecemos esses
lugares: sem identidade, poderiam estar em Hong-kong ou Florianópolis. São,
geralmente, cheios de objetos comuns voltados ao consumo, trazidos por
empresas multinacionais. Eles são espaços sem memória urbana, sem hábitos
comunitários. Tenta-se, a todo custo, eliminar a “feiura” do real, do que é vivo,
do que pulsa de humanidade. No Brasil, muitos condomínios residenciais de
luxo seguem nessa lógica, e recriam um ambiente segregado, alheio ao mundo
exterior, separado, obviamente, por grandes muros.
A relação incluídos/excluídos, exposta pelas fronteiras físicas
defendidas por esses muros é também exposta de maneira simbólica pelas
pichações que são feitas em suas faces externas. É provocado um confronto
estético que evidencia essa tensão urbana.
Os crescentes contingentes de excluídos assustam, são uma ameaça ao conforto dos que usufruem a modernidade urbana. Em substituição à adoção de políticas públicas de enfrentamento à pobreza, à segregação sócio-espacial e de integração comunitária, o Estado opta pelo estímulo à emergente indústria da segurança privada, autorizando a intimidação de lugares, de jovens, de tipos “inferiores” em movimento. Sem cidadania, as classes ditas “subalternas são e carregam os estigmas da suspeita, da culpa, da incriminação permanente” (CHAUÍ, 1989, p.57). O outro tornado inimigo legitima o controle indiscriminado, fazendo romper a possibilidade da cidade como o espaço da produção de relações. Conforme Zukin (apud BAUMAN, 2001, p.110),
35
promove um modo de separação territorial, “o direito a um ‘espaço defensável’ separado, espaço que precisa de defesa precisamente por ser separado”, restritivo às pessoas que não tenham a mesma identidade. Seja étnica, seja de classe. Moura (2006).
Mas é nos espaços públicos centrais que encontramos os pontos de
contato entre o Estado (ou a administração pública) e a população: hospitais,
escolas, secretarias, guichês de emissão de documentos, entre outros. O
espaço público possui a característica de conectar lugares e pessoas, de
facilitar o intercâmbio de vivências, atividades de cidadania, expressões
pessoais e coletivas, e tudo aquilo que seja do fazer político dos cidadãos.
Por isso, os esforços diuturnos de determinar os usos dos espaços de
acordo com uma ordem estabelecida são insuficientes para manter essa
mesma ordem. Ainda que escondidos, os conflitos e tensões sempre voltam à
tona na figura de quebras de padrões, de mudanças de fluxo. Por mais que se
tente ordenar a cidade, esse grande coletivo de pessoas encontra, vez ou
outra, por entre as brechas para decidir por conta própria os usos do espaço
público. A ideia de que as ruas são espaços inseguros e ermos não consegue,
em todos os casos, manter as pessoas afastadas da livre expressão e
utilização do espaço externo.
Entretanto, essas atitudes, que tomam o poder espontaneamente sobre
esse espaço controlado, sofrem sempre uma reação, geralmente no sentido de
torná-las invisíveis. Assim, o caráter iconoclasta de determinadas expressões
artísticas encontra uma importância fundamental, a de alertar a sociedade de
que o espaço público não pressupõe, em sua atual concepção, nem a
liberdade de uso, muito menos a liberdade artística. Pelas práxis18 do
enfrentamento da ordem pelo caos, as atividades artísticas marginais
requerem o lugar público, subvertem a noção de espaço oficial, assim como as
pichações subvertem também a noção de língua oficial.
São notórios os casos de censura a que são submetidos os grafites,
principalmente os que trazem algum posicionamento político. Para eles, a
18 [Do gr. prâxix,'ação'.]S.f.2 n.1. Atividade prática; ação exercício, uso. Disponível em:
.<http://www.dicionarioinformal.com.br/pr%C3%A1xis/> Acessado em 10/06/2015.
36
censura é também concretamente política. Como no caso das intervenções do
grupo ETC, na cidade de Florianópolis, que, após grafitarem a frase " Cidade à
venda" em vários pontos da cidade, receberam como resposta a seguinte nota
da Prefeitura Municipal:
Conforme a secretaria de Comunicação da Prefeitura da Capital, “a interferência "Cidade à Venda" não é considerada artística por conter cunho político e manifestação clara contra a gestão municipal." (divulgada na matéria “Arte ou Pichação?” do jornal Notícias do Dia, de Florianópolis, em 29/04/201419).
Os grafites foram apagados e as integrantes do grupo condenadas a
prestar serviço comunitário. Mas, quando esse posicionamento político não
está expresso literalmente nas intervenções, mas situado no caráter simbólico
de cada prática, como é o caso de alguns grafites e lambe-lambes, e como é o
caso de praticamente todas as pichações, a censura é também simbólica,
através do estímulo da noção generalizada de ilegalidade e da reprovação
moral. Além, é claro, da severa criminalização.
Removemos os dejetos da maneira mais radical e efetiva: tornando-os invisíveis, por não olhá-los, e inimagináveis, por não pensarmos neles. (Baumann, 2005, p. 38).
19Disponível em: < http://ndonline.com.br/florianopolis/noticias/162767-arte-ou-pichacao.html >
acessado em 05/05/2015.
37
3 Pichação e Arte
3.1 Arte política e Arte politizada
Fiat ars – pereat mundus
Que a arte se realize, mesmo que o mundo deva perecer.
O atual panorama internacional de arte permite que se vendam, e se
comprem, obras que evidenciam as desigualdades sociais (como exemplo, os
sem-terra de Sebastião Salgado (figura 7) que evidenciam a questão da má
distribuição de renda e terra). No observador, esse tipo de obra estimula a
sensação de solidariedade com aqueles que estão ali retratados. O público é
conduzido a uma postura de compaixão e é essa a única postura que se cobra
dele. Por se solidarizar e reconhecer a existência dessa desigualdade, o
espectador coloca-se fora do espectro da sociedade, que deveria sentir-se
culpada por ela. Assim, o cidadão pobre é geralmente retratado como alguém
subserviente, derrotado pela sociedade, alguém sem perspectiva de mudança.
É o que se espera de obras de arte que dialoguem com a pobreza e a falta de
representatividade. É a estética dessa política20 hegemônica atual, díspar e
opressora. Se isso é o que se passa com a arte dessa política, os pichadores,
na contramão, politizam a arte.
20 "conjunto dos princípios e dos objetivos que servem de guia a tomadas de decisão e que
fornecem a base da planificação de atividades em determinado domínio" política in Dicionário da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2015. [consult. 2015-03-31 00:10:56]. Disponível na Internet: <http://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/política> Acessado em 10/06/2015
38
Figura 7 - Capa do livro "Terra” de Sebastião Salgado publicado em 1997 pela
Companhia das Letras.
Fonte: Companhia das Letras e MST.21
Banksy (2012), aproximando o grafite europeu à nossa pichação,
reafirma o distanciamento entre o status-quo e, consequentemente, a arte do
status-quo e as intervenções urbanas marginais:
“Quem realmente desfigura nossos bairros são as empresas que rabiscam slogans gigantes em prédios e ônibus tentando fazer com que nos sintamos inadequados se não comprarmos seus produtos. Elas acreditam ter o direito de gritar sua
21 Joceli Borges, a menina retratada na capa deste livro, ainda vive em situação de pobreza. Em
entrevista ao jornal Folha de São Paulo, diz ter dois sonhos: um lote de terra e dois exemplares do livro, um para si e outro para seu pai. FARIAS, Paulo César. Menina eternizada em foto de Sebastião Salgado ainda é sem-terra. Folha de São Paulo, Quedas do Iguaçu, PR. 28/08/2012 Folha Poder.
39
mensagem na cara de todo mundo em qualquer superfície disponível, sem que ninguém tenha o direito de resposta. Bem, elas começaram a briga e a parede é a arma escolhida para revidar.(Guerra e Spray, BANKSY, 2012).
Essa guerra imagética é entre a imagem que está sendo colocada nos
centros urbanos pelo aparato de propaganda e pelo Estado contra a imagem
da própria cidade, como ela se apresenta para quem a vive, com todas as suas
contradições, remoções, gentrificações, paredes e sarjetas. A decoração, as
revitalizações e a própria publicidade urbana existem para tapar, para
esconder essa aparência considerada desagradável.
A pichação (inclusive por se tratar de uma agressão) conversa não
apenas com o muro, mas com o que um muro representa. O muro é uma
superfície erguida exclusivamente para excluir. O que se encontra dentro dos
limites desse muro é meu, e você não é bem-vindo. É uma agressão
arquitetônica para todo o resto da cidade. Especialmente para quem vive a
cidade e não apenas vive na cidade. Então, a pichação é sintoma também
dessa concepção segregadora do espaço urbano.
Com facilidade, a arte urbana que não conversa diretamente e
politicamente com seu entorno escorrega para dentro de galerias
tradicionais22. Como uma forma de grafite decorativo e figurativo, cada vez
mais comum nos grandes centros urbanos. Ele é facilmente descontextualizo
por já nascer descontextualizado, apesar de estar no muro, no prédio, na rua.
Em entrevista ao portal Catraca Livre23, Djan Ivson (ou Cripta Djan), um
importante pichador da cidade de São Paulo, afirma:
Acho íntegro o cara que tem um trabalho na rua ter também um trabalho no mercado da arte. Mas o grande erro dos grafiteiros não foi quando o grafite entrou para o circuito das galerias, foi quando eles fizeram o contrário, transformaram a rua em galeria. Foi quando eles começaram a ganhar para pintar na rua. Aí você tá abrindo mão
22 No currículo da dupla de artistas visuais e grafiteiros Os Gêmeos, exposto no site pessoal da dupla,
vemos 22 exposições individuais em galerias e museus espalhados pelo mundo. Disponível em <http://www.osgemeos.com.br/wp-content/uploads/2012/12/CV-Bilingue-OSGEMEOS.pdf >acessado em 05/05/2015
23 Disponível em < https://catracalivre.com.br/sp/design-urbanidade/indicacao/o-pixo-e-o-que-tem-de-mais-conceitual-na-arte-contemporanea-hoje/ > Acessado em 10/06/2015
40
do que legitima seu trabalho, que é pintar na rua de forma ilegal, transgressora. É por isso que o que tem de mais conceitual na arte contemporânea hoje é o pixo.”
Até os legisladores brasileiros, atentos à diferenciação entre pichação e
grafite, introduziram este último no rol de condutas lícitas, decretando, sua
descriminalização pela Lei nº 12.408, de maio de 2011:
Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.
De muito mais fácil assimilação, o grafite é muitas vezes esvaziado
(quando não originalmente vazio) de noção política, de conjuntura social.
Vemos, no texto "Pichação é crime. Grafitagem é arte" do Dr. Eudes Quintino
de Oliveira Junior, publicado no portal de textos jurídicos Jus Brasil, um
exemplo do senso comum aplicado aos estudos das artes de rua. Aproximando
o trabalho dos grafiteiros aos trabalhos expostos nas "vernissages" das
galerias, e opondo o trabalho dos pichadores, o autor recorre à noção
romântica do belo para basear suas conclusões e defender a
descriminalização apenas do grafite:
A arte popular, desta forma, recebe licença para fazer seu vernissage nas ruas, exibir o conteúdo de suas belas-artes e demonstrar que a estética está diretamente relacionada com a filosofia do belo. Aquilo que é prazeroso para os olhos e que tem aptidão para encantar as pessoas, transportando-as para um ambiente harmônico onde poderá fazer livremente suas incursões no imaginário oferecido, não merece ser reprimido penalmente. Arte não combina com proibição.
No lugar de um muro branco, envelhecido pelo tempo, sem qualquer atrativo, imagine-se diante de um trabalho de grafite retratando uma cena do amanhecer do pantanal mato-grossense, com seus pássaros coloridos e seu céu de um azul
41
inconfundível. Eleva o espírito e o transporta para o estado de graça. Bem melhor do que a pichação, principalmente quando se aproxima a época de propaganda eleitoral." (Oliveira Junior, E. Q.24).
Mesmo a ubíqua postura de rebeldia autoproclamada dos artistas visuais
contemporâneos (alguns "ex-grafiteiros") não dá conta de abarcar, ao mesmo
tempo, a rebeldia irônica de se fazer arte institucionalizada contra a própria
instituição e a rebeldia da oposição violenta e iconoclasta. A rebeldia, portanto,
manifesta-se nos circuitos tradicionais da arte como uma busca por
originalidade e intuito de surpreender o espectador, e não no enfrentamento
dos mecanismos de injustiça na sociedade. Exceto quando nos situamos
externamente ao discurso da arte é que a arte pode encontrar um novo
discurso.
Em 2010, ocorreu uma ação de protesto liderada artista Rafael Guedes
Augustaitiz, conhecido como PixoBomb. Tratou-se de um ataque, ou seja, um
grupo de pichadores reuniu-se e preencheu as paredes do local com
pichações. O alvo foi a Faculdade de Belas Artes de São Paulo, e tinha por
objetivo escancarar os abismos entre a arte institucional e acadêmica e as
novas formas de arte urbana; e também, dar visibilidade formal à prática da
pichação. A ação recebeu dura repressão e posterior criminalização.25
24 Disponível em: <http://eudesquintino.jusbrasil.com.br/artigos/133226868/pichacao-e-crime-
grafitagem-e-arte> Acessado em 05/05/2015. 25 Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1306200820.htm> Acessado em 10/06/2015
42
Figura 08 – Convite para ação na Faculdade de Belas Artes de São Paulo.
Fonte:autor desconhecido
Na imagem, podemos ler o seguinte texto:
“Atack Pixação”
Artistas e arteiros, no dia 11 de junho, quarta-feira, reuniremos no terminal urbano ao lado do metro “Vila Mariana”, às 9 da noite, para levantar a bandeira da pixação, marcando historia e envadindo (sic) o circuito artístico.
Devastaremos no pixo o centro acadêmico renomado, e o mais antigo de São Paulo.
Se possível resgatem frases de protesto.
Viva a pixação, A arte como crime, o crime como arte!”
43
Djan Ivson, ainda em entrevista ao portal Catraca Livre,26 comenta:
Depois que nós atacamos a Belas Artes, a Choque Cultural (galeria de arte de São Paulo) disse que não tinha preconceito com nenhum tipo de expressão urbana. Aí a gente descobriu que eles estavam vendendo uns quadros com a estética do pixo, usando grafiteiros que pagavam de pixador, mas que nunca pixaram. Aí o Rafael (PixoBomb) falou “Se o cara tá gozando com nosso pau, vamos dá uma batida lá”. Nós pixamos o muro do cara e ele chamou a polícia. Aí é fácil, né? “Pixação é legal, mas não no meu muro.” O Rafael (PixoBomb) desmascarou a Belas Artes e depois ele desmascarou a Choque Cultural. Ele virou pra mim e falou: “O grafite virou um antídoto contra a pixação, Djan. É a cura do pixo!”.
Os ataques à Faculdade de Belas Artes e à galeria Choque Cultural, a
que se referiu Djan, foram ações que culminaram nas intervenções realizadas
à Bienal de São Paulo, analisada a seguir.
3.2 O caráter performático da pichação
Eu tenho uma missão e não vou falhar. Racionais MC's
O distanciamento entre a arte tradicional e a pichação fica evidente
quando analisamos os acontecimentos da 28ª e da 29ª Bienais Internacionais
de Arte de São Paulo. Djan Ivson (do grupo de pichadores Cripta), e outros
jovens marginalizados membros dos grupos Susto, 4 e Secretos, entre outros,
idealizaram "ataques" com pichações. Esses episódios, que obtiveram grande
repercussão, trouxeram a pichação como arte e como conceito ao centro das
atenções. Durante a ação na 28ª Bienal, uma jovem pichadora foi presa.
Nessa edição da mostra, o segundo piso do prédio da Bienal foi mantido
propositalmente vazio pelos curadores. A Bienal ganhou, antes mesmo da
inauguração, o apelido de “Bienal do Vazio. Os pichadores aproveitaram-se
26 Disponível em: <https://catracalivre.com.br/sp/design-urbanidade/indicacao/o-pixo-e-o-
que-tem-de-mais-conceitual-na-arte-contemporanea-hoje/> Acessado em 10/06/2015
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desse fato e preencheram as paredes com frases, como por exemplo, " isso
que é arte". A jovem detida afirmou, na delegacia, que a pichação "é o protesto
da arte secreta"27.
Figura 09 – Convite para participação no “ataque” à Bienal de São Paulo de
2008.
Autoria desconhecida
27Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL838101-5605,00-
GRUPO+DE+PICHADORES+ATACA+PREDIO+DA+BIENAL+EM+SP.html > Acessado em 10/06/2015.
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Na imagem, podemos ler o seguinte texto:
“Atack Bienal” 2008. Nada do que suposto o natural, a simbólica e singular Pixação Paulistana, espancar na tinta Galerias e Museus de Arte, transcendendo "ALÉM DO BEM E DO MAL", prestando seu papel aos "Confortáveis", contribuindo com a Arte e a Humanidade. PROGRESSO.
Espancaremos na Tinta a Bienal de Arte esse ano conhecida como Bienal do Vazio.
[...] Submeteremos e ao mesmo tempo protestaremos, resgatem frases pelo povo. HUMANISMO.
Contamos com a presença de todos os Pixadores.
TODOS PELA PIXAÇÃO”
A estética do confrontamento fica clara, não só na própria pichação, no
resultado obtido com ela, mas também na forma como ele é obtido.
Richard Schechner (2003, p.3928) atribui sete funções para a
performance: “entreter; fazer alguma coisa que é bela; marcar ou mudar a
identidade; fazer ou estimular uma comunidade; curar; ensinar, persuadir ou
convencer; lidar com o sagrado e com o demoníaco”.
Por fim, afirma que “qualquer comportamento, evento, ação ou coisa
pode ser estudado como se fosse performance e analisado em termos de
ação, comportamento, exibição.
A pichação é, claramente, uma atividade performativa. Não se trata,
como comumente é resumida, de um método de desenho ou tipografia. Na
cidade de São Paulo, os pichadores têm buscado cada vez mais os prédios
mais altos, os pontos mais distantes e difíceis, o maior espaço possível.
Estar ali, sujeito a intempéries muito sérias, como a morte e a prisão,
colocando-se totalmente à disposição de seu ofício, é uma atitude e uma
experiência que não podem ser ignoradas.
28 Richard Schechner (23 de agosto de 1934) é professor de Estudos da Performance (Performance
Studies) na Tisch School of the Arts da Universidade de Nova Iorque.
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Nesse contexto social, político e artístico é que a pichação encontra o
lambe-lambe, e foi por isso que as duas expressões se juntaram e dei início à
minha produção analisada a seguir.
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CONCLUSÃO
A pichação encontra-se marginalizada e criminalizada, mesmo sendo uma
expressão artística caracterizável, regular. Isso se deve, além de todo o preconceito
inerente às tensões sociais, à postura desafiadora e iconoclasta dos seus
praticantes.
Como resposta ao preconceito linguístico, a pichação encontra oposição de
várias esferas simbólicas da língua do status quo. Esta língua, abordada neste texto
como língua oficial, não pressupõe as necessárias relativizações que são inerentes
à vida plural dos grandes centros. Não há espaço, nesta língua oficial, para as
expressões de livre-arbítrio dos seus falantes. Livre arbítrio linguístico é, portanto,
necessário para a democracia linguística. Os pichadores, desta forma, ocupam um
papel de enfrentamento desta língua oficial, negando ao outro o que foi negado a si.
Através da adoção de seu próprio dialeto através de uma tipografia exclusiva, as
pichações servem como decreto desta lei. São códigos gramáticos e linguísticos
próprios, adequados à realidade suburbana.
Eles também escancaram as discrepâncias sociais da cidade contemporânea.
No muro, esse enfrentamento ganha também características de marcações de
territórios. O pichador requer, além de uma valorização de seu dialeto, uma
valorização de seu espaço. A atual concepção das cidades não prevê a expressão
de livre arbítrio dos seus cidadãos. Trata-se, portanto, da imposição de uma noção
de espaço oficial.
O espaço oficial e a língua oficial são facetas do mesmo exercício de poder
por parte das elites intelectuais, sociais e políticas. Assim como a língua oficial
dispõe de seu próprio corpo de autoridades investidas de poder de definir o que é
correto e o que não é, o espaço oficial dispõe de regras simbólicas, concepções
estéticas e noções morais para definir o que é permitido e o que não é. Então, a
língua oficial dispõe de seus gramáticos, professores e juristas para executar e
fiscalizar esta noção de oficialidade, e o espaço oficial dispõe de suas edificações,
seu urbanismo e até mesmo da força policial para manter esta noção de oficialidade.
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O mercado da arte não dá conta de abarcar esse fenômeno, mesmo a
pichação sendo praticamente onipresente nos grandes centros urbanos do Brasil. Ao
invés disso, o mercado da arte continua dispondo e sugerindo uma arte feita sobre
as populações marginalizadas, e não das populações marginalizadas. Essa tarefa
compete à atual corrente de artistas que utilizam as artes de rua não apenas como
forma, mas também como conteúdo, falando de tensões sociais através de suas
próprias vivências e processos.
A produção de lambe-lambes é, portanto, uma técnica intensamente ligada ao
valor político das formas de arte urbanas. A produção analisada na segunda parte
deste trabalho reflete as tensões e digressões contemporâneas de maneira não
óbvia, mas simbólica. A adoção da tipografia das pichações dentro dessas imagens
vem para reestabelecer o vínculo formal com a iconoclastia de práticas de arte
urbana e também o vínculo simbólico com a noção de mistério que ambas as
estéticas (tanto das pichações quanto das imagens e símbolos ocultistas) suscitam.
Cada símbolo escolhido depende de um estudo específico para compor uma
imagem com sentido oculto, porém existente. Este sentido pode, assim, variar
livremente de acordo com as experiências e concepções do espectador,
transformando uma imagem aparentemente vazia de sentido em uma imagem com
infinitos sentidos.
A aplicação prática dessa produção mostrou-se desafiadora, porém
gratificante. Não apenas na percepção de que as imagens têm uma recepção ativa
por parte da população em geral, mas gratificante também nas experiências
adquiridas com o processo de colagem destas imagens pela cidade. A vivência
subversiva é uma forma de emprestar humanidade aos sóbrios e rígidos
monumentos públicos, mas também de adquirir consciência social e cultural do meio
ambiente urbano.
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