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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGCENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTESPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA
RENATA CRISTINA MARQUES BOLONHEIS RAMOS
Comunidades Teraputicas:novas perspectivas e propostas higienistas
Maring2012
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RENATA CRISTINA MARQUES BOLONHEIS RAMOS
Comunidades Teraputicas:novas perspectivas e propostas higienistas
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia do Centro de CinciasHumanas, Letras e Artes da Universidade Estadualde Maring, como requisito parcial para obteno dottulo de Mestre em Psicologia.rea de concentrao: Constituio do Sujeito e
Historicidade.
Orientadora: Prof. Dra. Maria Lucia Boarini
Maring2012
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Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)Ramos, Renata Cristina Marques Bolonheis
R175c Comunidades teraputicas: novas perspectivas e
propostas higienistas / Renata Cristina Marques
Bolonheis Ramos. -- Maring, 2012.
129 f. : il.
Orientador: Prof. Dr. Maria Lucia Boarini.
Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de
Maring, Centro de Cincias Humanas,Letras e Artes,
Departamento de Psicologia, Programa de Ps-
Graduao em Psicologia, 2012.
1. Psicologia. 2. Dependncia qumica. 3. Drogas
- Usurios. 4. Higiene mental. I. Boarini, Maria
Lucia, orient. II. Universidade Estadual de Maring,
Programa de Ps-Graduao em Psicologia. III.
Ttulo.
CDD 21.ed. 150
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RENATA CRISTINA MARQUES BOLONHEIS RAMOS
Comunidades Teraputicas:novas perspectivas e propostas higienistas
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia do Centro de CinciasHumanas, Letras e Artes da Universidade Estadual de Maring, como requisito parcial para aobteno do ttulo de Mestre em Psicologia.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dra. Maria Lucia BoariniPPI/Universidade Estadual de Maring (Presidente)
Prof. Dr. Marcelo Kimati DiasUniversidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN
Prof. Dra. Roselania Francisconi BorgesDPI/Universidade Estadual de Maring
Aprovada em: 19 de novembro de 2012.Local da defesa: Bloco H35, sala 04, campus da Universidade Estadual de Maring.
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Aos meus pais, Marto e Maria Genice, a quemdevo a minha vida e grande parte do que souhoje.Ao Fabiano, cujo amor e apoio facilitaram aminha caminhada. minha irm Simone, minha amiga e meuexemplo.
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AGRADECIMENTOS
Especialmente Professora Dra. Maria Lucia Boarini, pela constante dedicao e
pacincia com que me orientou. Sua amizade e valiosos ensinamentos, que vo muito alm da
academia e que certamente carregarei por toda a vida, fizeram toda a diferena.
Professora Dra. Roselania Francisconi Borges, pelas importantes discusses, apoio e
confiana no decorrer desses anos.
Ao Professor Dr. Marcelo Kimati Dias, pelas fundamentais contribuies e por aceitar
prontamente fazer parte dessa banca.
Aos Professores Dr. Silvio Yasui e Dra. Lucia Ceclia da Silva, por concordarem emserem suplentes.
Aos demais professores e funcionrios do Programa de Ps-graduao em Psicologia
da UEM, que sem o trabalho de cada um, o meu trabalho no seria possvel.
Aos colegas do mestrado, que com eles pude dividir as angstias e multiplicar o
aprendizado.
Aos participantes da Comisso de Sade do Conselho Regional de Psicologia 8 regio
subsede Maring que me ajudaram a entender a importncia da coletividade. Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) pelo
fornecimento de bolsa de estudos.
Assistente Social Katia Cataline Malheiro Curiel e demais funcionrias do CRAS de
Marialva, pela compreenso que sem dvida facilitou a dedicao a este trabalho.
Ao Antonio Carlos Marques, que alm de tio e colega de trabalho, um grande amigo.
Aos meus avs, tios, primos, sogros, cunhados e sobrinhos, cuja existncia, material
ou no, fazem-me perceber o valor de nossas razes e de nossa prpria histria.Enfim, a todos que direta ou indiretamente contriburam para o desenvolvimento deste
trabalho.
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No mostrando que o lcool embrutece emata que se corrigir o brio. O que preciso devolver a esse pobre homem a vontade de
viver.(Penafiel, 1925, p. 15).
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RESUMO
Observamos nos ltimos anos uma retomada das discusses sobre o uso do lcool e outras
drogas, no s no Brasil, mas em diversos pases do mundo. De fato, a questo constitui
atualmente uma grande problemtica, que tem sensibilizado a opinio pblica e chamado a
ateno da mdia, sendo muitas vezes tratada de forma superficial e imbuda de estigmas e
preconceitos. Com isso, inviabiliza-se o debate democrtico e se desvincula o problema de
seu contexto e desenvolvimento scio-histrico. Nesse sentido, queremos dizer que o uso de
substncias psicoativas no uma questo da atualidade, haja vista, por exemplo, a
mobilizao dos higienistas junto Liga Brasileira de Higiene Mental(LBHM) no incio do
sculo XX. Muitos foram os investimentos e as campanhas dessa entidade causa do combate
ao alcoolismo na sociedade brasileira. Assim, o presente estudo tem por objetivo destacar a
relao entre os pressupostos defendidos pelos higienistas na primeira metade do sculo XX
acerca do uso de substncias psicoativas, as atuais polticas pblicas sobre lcool e outras
drogas no Brasil e as propostas de interveno das comunidades teraputicas (CT) na
atualidade. Enfocamos nosso estudo em tais entidades, pois as mesmas, que at o ano de 2010
no faziam parte da cobertura do Sistema nico de Sade (SUS), foram includas na rede de
ateno psicossocial, o que tem alimentado vrias polmicas e discusses por parte de
entidades e categorias interessadas no assunto. Para atender ao objetivo proposto, realizamos
uma pesquisa bibliogrfica e documental com materiais que abordam a questo do lcool e
outras drogas, desde o incio do sculo XX at as discusses atuais, com enfoque nascomunidades teraputicas. No desenvolvimento desse estudo foram realizadas leituras e
anlises inspiradas na vertente do materialismo histrico. Assim, foi possvel identificar
aproximaes entre o tratamento proposto pelos higienistas e pelas comunidades teraputicas
da atualidade.A ttulo de concluso, podemos dizer que quase um sculo se passou desde que
os higienistas iniciaram a sua marcha contra o lcool e o problema parece se agravar
continuamente. Diferentes foras, interesses, necessidades, de cunho poltico, econmico,
social vm tecendo a complexa histria da ateno aos usurios de lcool e outras drogas.E seos problemas so produzidos pelo conjunto da sociedade, desse conjunto que deve partir a
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soluo, embora a histria nos diga que o nus maior tem sido atribudo aos usurios, s
pessoas que os cercam e sade pblica.
Palavras-chave: Comunidades teraputicas. Usurios de lcool e outras drogas. Higiene
mental. Eugenia. Polticas pblicas sobre lcool e outras drogas.
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Therapeutic communities:new hygienist proposals and perspectives
ABSTRACT
Lately, we have observed a retaking of the discussions on the use of alcohol and other drugs,
not only in Brazil, but in several countries of the world. In fact, nowadays the subject
represents a great problem, which has been sensitizing the public opinion and calling the
attention of the media, being a lot of times treated in a superficial way, with lots of prejudice.
With that, the democratic debate is made unfeasible and the problem is deviated from its
context and socio-historical development. In this sense, we want to say that the use of
psychoactive substances is not a subject of the present time, as we can see for instance, the
mobilization of the hygienists along with theBrazilian League of Mental Hygiene(LBHM) in
the beginning of the XX century. Many were the investments and the campaigns of that entity
against alcoholism in the Brazilian society. Thus, the present study has the objective to
highlight the relationship between the presuppositions defended by the hygienists in the first
half of the XX century concerning the use of psychoactive substances, the current publicpolitics on alcohol and other drugs in Brazil, and the proposals of intervention of the
therapeutic communities (CT) at the present time. We focused our study in such entities,
because the same ones which, until the year of 2010 were not under the Basic Health System
(SUS) were then included in the net of psychosocial attention what has caused controversies
and discussions on the part of entities and categories interested in the subject. To reach the
proposed objective, we accomplished a bibliographical and documental research approaching
the subject alcohol and other drugs, since the beginning of the XX century up to the currentdiscussions, with focus in the therapeutic communities. In the development of this study
readings and inspired analyses were accomplished following the historical materialism. It was
possible to identify approaches on the treatment proposed by the hygienists and by the
therapeutic communities of the present time. As a conclusion, we can say that almost a
century has passed since the hygienists began their march against alcohol, and the problem
seems worse. Different forces, interests, needs, of political, economic and social scope, are
weaving the complex history of the attention to the users of alcohol and other drugs. And ifthe problems are produced by the society, it is of that group that the solution should come,
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even though the history tells that the major charges have been attributed to users, to the people
they live with, and to the public health.
Keywords: Therapeutic communities. Users of alcohol and other drugs. Mental hygiene.
Eugenics. Public politics on alcohol and other drugs.
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1 Cerveja com receita mdica. Anncio publicado no jornal O Estado de S.
Paulo, em 1929 ............................................................................................... 33
Figura 2 O lcool e o aleitamento ................................................................................. 34
Figura 3 lcool e monstros ............................................................................................ 34
Figura 4 Rainier Beer, 1906 ........................................................................................... 35
Figura 5 Malt Rainier. Publicado no jornal The Argus, em 1909 .................................. 35
Figura 6 Um amor de cerveja. Anncio publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em
23 de abril de 1932 ........................................................................................... 36Figura 7 O alcoolismo e a tuberculose ........................................................................... 37
Figura 8 O lcool e a loucura ......................................................................................... 37
Figura 9 Cocaine toothache drops, 1895 38
Figura 10 Smith Glyco-Heroin. Anncio publicado na International Medical
Magazine,em 1902 .......................................................................................... 38
Figura 11 Colombina inofensvel. Anncio publicado no jornal O Estado de S. Paulo,
em 8 de janeiro de 1922 .................................................................................. 39Figura 12 Remdio para a crise. Anncio publicado no jornal O Estado de S. Paulo,
em 22 de fevereiro de 1936 ............................................................................. 39
Figura 13 Onze prdios iguais ao Martinelli de cerveja. Anncio publicado no jornal
O Estado de S. Paulo, em 17 de junho de 1936 .............................................. 93
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SUMRIO
OS TORTUOSOS CAMINHOS DO MERCADO DA ALEGRIA.......................... 12
1 A TRAJETRIA PERCORRIDA................................................................................ 19
1.1 Quem eram os higienistas e eugenistas ........................................................................ 20
2 QUESTES QUE ATRAVESSAM SCULOS.......................................................... 24
2.1 Da produo artesanal gerao de lucro ................................................................... 24
2.2 Contextualizando a preocupao dos higienistas ......................................................... 26
2.3 O que diziam os higienistas e eugenistas sobre o alcoolismo e as toxicomanias ........ 28
3 LCOOL E OUTRAS DROGAS NA CONTEMPORANEIDADE........................... 413.1 Nmeros sobre o consumo de lcool e outras drogas na atualidade ............................ 41
3.2 Algumas leituras atuais sobre o fenmeno .................................................................. 43
4 O QUE DIZEM OS DOCUMENTOS OFICIAIS........................................................ 47
4.1 Polticas pblicas sobre lcool e outras drogas no Brasil: dcadas de 1970 a 2000 ... 47
4.2 A importncia das Conferncias Nacionais de Sade Mental ..................................... 52
4.3 As atuais polticas pblicas sobre lcool e outras drogas ............................................ 54
4.4 A perspectiva da reduo de danos .............................................................................. 58
5 A CONVERSO INSTITUCIONALIZADA.............................................................. 62
5.1 Consideraes gerais sobre as comunidades teraputicas ........................................... 62
5.2 As comunidades teraputicas junto s polticas pblicas de sade no Brasil .............. 67
5.3 As crticas ao modelo ................................................................................................... 70
5.4 As polmicas em curso ................................................................................................ 73
6 DISCUSSES QUE ATRAVESSAM DCADAS..................................................... 76
6.1 Perspectivas sobre os usurios de substncias psicoativas........................................... 76
6.2 A defesa pela internao prolongada............................................................................ 786.3 Proibio, medida controversa...................................................................................... 80
6.4 Um paralelo entre as comunidades teraputicas e os asylos, colnias e
reformatrios................................................................................................................. 82
6.5 Vislumbrando outras possibilidades............................................................................. 86
6.6 A droga como mercadoria............................................................................................. 88
7 O QUE AVANAMOS AT O MOMENTO... ......................................................... 95
REFERNCIAS............................................................................................................ 104
ANEXO ....................................................................................................................... 125
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OS TORTUOSOS CAMINHOS DO MERCADO DA ALEGRIA
Ao mesmo tempo em que a loucura vai assumindo fisionomiasmais familiares que no justificam seu isolamento social, eis que
surgem prontos para a clausura manicomial os novosprotagonistas.
(Costa-Rosa, 2012, p. 75).
Observamos nos ltimos anos uma retomada das discusses sobre o uso do lcool e
outras drogas. De fato, a questo constitui atualmente, no s no Brasil, mas em diversos
pases do mundo, uma grande problemtica e preocupao de diversos setores, como a sade,
educao, assistncia social, segurana pblica, justia e trabalho. Os problemas decorrentes
do abuso1das substncias psicoativas certamente se manifestam em importantes dimenses.
Segundo o Relatrio Mundial sobre Drogas (United Nations Office on Drugs and Crime
[UNODC], 2012), aproximadamente 200 mil pessoas morrem a cada ano devido ao uso de
drogas ilcitas e 27 milhes apresentam problemas decorrentes desse consumo em todo o
mundo. Os nmeros so ainda maiores em se tratando do lcool, cujo uso abusivo resulta em
cerca de 2,5 milhes de mortes a cada ano (World Health Organization [WHO], 2012).
Como discute Costa-Rosa (2012), as consequncias do uso de drogas, especialmente
do crack, (...) tm chamado a ateno da mdia e sensibilizado como nunca a opinio pblica,
a ponto de demover governos de sua velha inrcia frente ao problema (p. 75). Ocorre que
essa temtica tem sido retratada nos noticirios, jornais, revistas e demais meios de
comunicao em geral de forma superficial e imbuda de estigmas e preconceitos. Tratar o
assunto como uma epidemia grave da atualidade, que, segundo Gomes e Capponi (2012),
deve ser combatida com medidas rpidas e enrgicas, parece-nos no mnimo perigoso, poiscom isso se inviabiliza o debate democrtico e se desvincula a questo do lcool e outras
drogas de seu contexto e desenvolvimento scio-histrico.
Como exemplo de que a preocupao com o uso de substncias psicoativas no
exclusividade dos ltimos anos, temos a mobilizao dos higienistas com as campanhas
1 Os termos abuso ou uso abusivo utilizados nesse trabalho se referem ao consumo excessivo de qualquersubstncia, que acarrete danos fsicos, psicolgicos e/ou sociais para o indivduo (Brasil, 2004). A Organizaodas Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura (UNESCO) estabelece ainda quatro categorias entre os
usurios de substncias psicoativas: experimental, ocasional, habitual e dependente (Instituto de MedicinaSocial e Criminologia de So Paulo [IMESC/SP], 2009). Ressaltamos, contudo, que no focaremos em nossoestudo essa e outras distines nos modos de consumo das substncias psicoativas e nos encaminhamentosdados aos usurios em cada caso.
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antialcolicas, junto Liga Brasileira de Higiene Mental(LBHM)2no incio do sculo XX. A
dedicao dessa entidade causa do combate ao alcoolismo na sociedade brasileira era to
grande que ela era chamada por muitos deLiga Antialcolica. Como dizia Camargo (1944b),
nos dispensrios da Liga Brasileira de Higiene Mental, inteiramente gratuitos, qualquer
pessoa encontrar o conselho e a orientao de que necessite, para o combate do alcoolismo
(p. 89).
Nesse perodo, o crescente processo de industrializao no Brasil, acompanhando a
tendncia do mundo ocidental, trazia riqueza e, paralelamente, desigualdade social, misria e
muitas mazelas, as quais se tornavam motivos de preocupao para aquela sociedade. Dentre
esses problemas estava o aumento do consumo do lcool e a intensificao de suas
consequncias (Caldas, 1930; E. Lopes, 1930b). Vale acrescentar que, embora os higienistasmanifestassem sua preocupao em relao ao consumo de outras drogas, como o pio, a
cocana e a morfina (Bittencourt, 1935; C. Lopes, 1934), elas no constituam o foco de sua
ateno, uma vez que o consumo dessas substncias era muito inferior em relao ao uso do
lcool e, at o incio do sculo XX, muitas delas eram utilizadas para fins teraputicos, como
era o caso do pio e da coca.
Dentre as atividades da LBHM, destacamos as campanhas antialcolicas, por meio das
quais eram realizadas palestras, reunies, conferncias junto imprensa, aos grupos escolares,faculdades, colgios, quartis, indstrias, igrejas e outros ambientes pblicos, no intuito de
promover a educao sobre os males provocados pelo lcool, formas de preveno e
tratamento, alm de discutir medidas de regulamentao e proibio da fabricao,
comercializao e consumo dessa substncia (Kehl, 1931b).
Assim, o trabalho desenvolvido pelos higienistas no incio do sculo XX, no que tange
ao lcool e outras drogas, indica-nos que precisamos avanar nas discusses e no
enfrentamento dessa situao, dado o seu histrico, abrangncia e complexidade. Comodefendido pelo Conselho Federal de Psicologia (2011d), (...) a urgncia do tema no pode
prescindir da amplitude de nossas discusses (p. 12). Isso porque, se por um lado temos as
consequncias desse consumo atropelando o cotidiano de todos, por outro verificamos a
mobilizao descompassada de governos municipais, estaduais e federais e de diversas reas
da sociedade civil em torno da questo, conforme discutem Pitta (2011) e T. M. Andrade
(2011).
2 A LBHM foi fundada em 1923, no Rio de Janeiro, por profissionais de diversas reas, especialmente damedicina, liderados pelo psiquiatra Gustavo Riedel; tinha como objetivo principal a melhoria na assistncia aosdoentes mentais (Liga Brasileira de Hygiene Mental [LBHM], 1925b).
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Segundo Delgado, Macedo, Cordeiro e Rodrigues (Brasil, 2004), a destituio da
responsabilidade do Estado em relao s polticas sobre lcool e outras drogas histrica e
estrutural: as legislaes cedem s presses do mercado e a rede pblica de sade ainda reage
de forma inadequada ao problema, com a manuteno das instituies que promovem a
segregao e isolamento dos usurios.
Frente vulnerabilidade social e s carncias no mbito da sade, educao e
segurana pblica das populaes menos favorecidas economicamente, especialmente
daquelas que fazem uso de drogas ilcitas, as iniciativas de governos federais, estaduais e
municipais, ao lanarem planos, decretos, portarias relativas poltica de lcool e outras
drogas, constituem passos importantes no enfrentamento desse problema. No entanto, como
discute T. M. Andrade (2011), essas polticas vm sendo institudas (...) num contexto depnico social relacionado ao uso de crack e de grande fragilidade estrutural, haja vista a
carncia de aes comunitrias junto aos usurios de drogas (p. 4668).
Podemos complementar essa ideia com Marques (2012), ao defender que o problema
das drogas precisa ser resolvido a partir da parceria entre Municpio, Estado e Unio. A falta
de dilogo entre essas instncias, nos mbitos da sade, segurana pblica e assistncia social,
tem gerado aes caticas, como as observadas nas medidas de combate ao crack iniciadas em
janeiro de 2012, no municpio de So Paulo na chamada Cracolndia, onde a polcia age semcompreender a sua verdadeira funo e os propsitos que se evidenciam so, segundo
Maierovitch (2012), a limpeza do territrio e a disperso dos indesejados para uma periferia
mais distante.
Tomando ento como referncia a sade pblica, que constitui rea de pesquisa do
presente estudo, diante do cenrio brevemente apontado, a ateno aos usurios de lcool e
outras drogas apresenta-se como um dos maiores desafios aos servios pblicos de sade,
tanto em relao oferta como qualidade dos tratamentos disponveis (Raupp, Fefferman, &Morais, 2011).
No entanto, Delgado (2011) nos alerta que, apesar da gravidade da situao, no
podemos usar o terror e o pnico, gerados pela questo do crack, lcool e outras drogas, para
legitimar a internao prolongada, prpria da ultrapassada cultura manicomial. De acordo
com Pitta (2011), pesquisas nacionais e internacionais tm indicado nveis de efetividade
individuais e sociais maiores para os tratamentos comunitrios, quando comparados aos
tratamentos com restrio de liberdade.
Alis, desde o final do sculo XIX, formas alternativas ao tratamento manicomial j
eram defendidas por algumas correntes de pensadores da poca. Para exemplificar, em 1934 o
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mdico italiano Giuseppe Vidoni, em seu artigo Alguns apontamentos sobre a actividade
assistencial paramanicomial, defendia as vantagens das aes da higiene mental fora dos
manicmios, em contato com todos os outros ramos da medicina. No mesmo ano, o vice-
presidente da Liga Paulista de Higiene Mental, Dr. James Ferraz Alvim, publicou nos
Arquivos Brasileiros de Higiene Mental (ABHM) um artigo sobre a eficincia de alguns
servios abertos para doentes mentais no Brasil e em outros pases (J. F. Alvim, 1934).
Apesar de essa luta ser antiga, se a sociedade no dispe de servios de ateno
psicossocial em nmero adequado e que funcionem 24 horas por dia, se essa rede ainda
insuficiente para a demanda levantada pelas consequncias do abuso das drogas lcitas e
ilcitas, a internao e o isolamento acabam encontrando aceitao social junto s instituies
que as promovem, como os hospitais psiquitricos e as comunidades teraputicas (Delgado,2011).
Dando destaque a essas ltimas, sabemos que existem vrios conceitos sobre
comunidades teraputicas, conforme nos lembra De Leon (2003). No Brasil, em geral, elas
so instituies no governamentais que se iniciaram na dcada de 1970 para tratamento de
pessoas que sofrem com a dependncia qumica. Normalmente, esse tratamento ocorre com a
internao do usurio, durante alguns meses, em comunidades organizadas para esse objetivo,
longe das pessoas de seu convvio familiar e social. Os organizadores buscam manter oambiente livre de substncias psicoativas e estruturar uma forma de tratamento em que o
paciente considerado responsvel por sua prpria cura. Nessas instituies, trabalha-se com
regras, limites e funes bem delimitadas (Alves, 2009; Pozas, 1998).
No Brasil, as comunidades teraputicas, at o ano de 2010, estavam ligadas somente
ao Sistema nico de Assistncia Social (SUAS)3, no fazendo parte da cobertura do Sistema
nico de Sade (SUS). Entretanto, tendo em vista o avano do problema das drogas no pas -
especialmente do crack -, a rede de ateno psicossocial incompleta e as presses dasociedade em geral clamando por uma soluo, o Ministrio da Sade estipulou o apoio
financeiro com recursos do SUS a projetos de utilizao de leitos de acolhimento para
usurios de crack e outras drogas nas comunidades teraputicas, conforme estabelecido no
Edital n 001/2010/GSIPR/SENAD/MS. Em 30 de junho de 2011, a ANVISA Agncia
Nacional de Vigilncia Sanitria - aprovou a Resoluo da Diretoria Colegiada (RDC) n 29,
3 A Norma Operacional Bsica NOB/SUAS - orienta sobre as aes da rede socioassistencial de proteo
bsica e especial, na qual se enquadram os servios voltados aos usurios de substncias psicoativas. A relaoentre essas entidades e o SUAS se d atravs do reconhecimento das mesmas, pelo rgo gestor, comoparceiras das polticas pblicas de assistncia social, estando elas inscritas e certificadas pelo ConselhoNacional de Assistncia Social (Brasil, 2005b).
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que veio reforar o apoio a essas instituies, estabelecendo requisitos mais adequados
realidade das mesmas. E em dezembro de 2011, as comunidades teraputicas foram
oficialmente includas na rede de ateno psicossocial, atravs da Portaria n 3.088 (2011).
Alm disso, na busca de soluo para o problema do lcool e outras drogas que se
agrava e ganha cada vez mais visibilidade, o Governo Federal lanou ainda no final de 2011
um novo plano de aes, com o slogan Crack, possvel vencer, que visa fortalecer o Plano
de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, lanado em 2010 atravs do Decreto 7.179
(2010). Tais aes devem estar concentradas em trs eixos - cuidado, autoridade e preveno
(Brasil, 2012a). Conforme relato do Ministro da Sade, Alexandre Padilha, no lanamento
desse novo plano em 07 de dezembro, em meio a essas aes fica prevista a internao
compulsria de usurios de drogas, que devero ser avaliados por uma equipe mdica(Agncia Brasil, 2011).
Municpios como Rio de Janeiro e So Paulo tm aplicado tais medidas, atravs de
projetos que partem do pressuposto de que os dependentes so considerados civilmente
incapazes pela legislao vigente e de que os adolescentes viciados no teriam capacidade
para decidir o que fazer sobre suas vidas (Gallo & Hashimoto, 2011).
O apoio e financiamento s comunidades teraputicas, bem como os encaminhamentos
de usurios para internao compulsria4
, tm alimentado vrias polmicas e discusses porparte de entidades e categorias interessadas no assunto, das quais fazem parte profissionais,
estudiosos e autoridades, principalmente das reas da sade, justia e assistncia social. Tais
discusses, inclusive, levantam que, em algumas situaes, as medidas que vm sendo
tomadas em torno dos usurios de drogas constituem aes de carter higienista (Maierovitch,
2012; Sadi & Nublat, 2011), reforando o quo atual a relao desse iderio com a questo
do lcool e outras drogas.
Considerando o exposto, o presente estudo tem por objetivo apontar a relao entre ospressupostos defendidos pelos higienistas na primeira metade do sculo XX acerca do uso de
substncias psicoativas, as atuais polticas pblicas sobre lcool e outras drogas no Brasil, e as
propostas de interveno das comunidades teraputicas (CT) na atualidade.
O presente estudo se justifica pela importncia de se organizar e sistematizar as
informaes concernentes a essa polmica, analisando-as em conjunto com a literatura que
expressa a forma como o uso do lcool e outras drogas, juntamente com os aspectos
decorrentes, eram pensados no incio do sculo XX. Entendemos ser fundamental esse resgate
4 A internao compulsria ser pontuada em alguns momentos nesse trabalho, mas no constitui foco dopresente estudo.
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histrico, na medida em que nos possibilita observar e discutir possveis avanos, limitaes e
repeties sobre como o Estado e a sociedade contempornea tm enfrentado essa
problemtica.
De modo mais amplo, pretendemos que essa pesquisa possa servir como recurso para
reflexo sobre as prticas em torno da questo do lcool e outras drogas, especialmente as
aes inseridas dentro do campo de conhecimento da Psicologia. Tendo em vista a expanso
do abuso das drogas lcitas e ilcitas, parece-nos ser uma exigncia deste momento repensar
esse fenmeno e as estratgias de enfrentamento dos problemas dele decorrentes.
Utilizamos as consideraes ainda atuais de Cruz e Ferreira (2001) para apontar a
importncia da formao de profissionais de sade, especialmente voltados sade mental,
que cada vez mais se deparam no seu cotidiano de trabalho com pessoas envolvidas comproblemas relacionados ao uso abusivo de lcool e outras drogas. Atualmente, a insuficiente
formao dos profissionais de sade privilegia os aspectos biolgicos como ocorre nas
escolas mdicas ou os psicodinmicos como acontece na formao dos psiclogos
deixando uma lacuna que impede a compreenso da dimenso sociocultural da questo (p.
95).
A presente dissertao faz parte do Programa de Ps-graduao em Psicologia da
Universidade Estadual de Maring e integra os estudos realizados pelo Grupo de Estudos ePesquisas sobre o Higienismo e Eugenismo (GEPHE), cujo objetivo principal pesquisar o
iderio da higiene mental e da eugenia, significativamente presentes no incio do sculo XX
no Brasil, e seus desdobramentos, especialmente nos campos da Sade e da Educao
(GEPHE, 2011).
Tendo em vista o objetivo proposto, realizamos uma pesquisa bibliogrfica e
documental com materiais que abordam a questo do lcool e outras drogas, desde o incio do
sculo XX at as discusses mais atuais, com enfoque nas comunidades teraputicas.Organizamos o trabalho em seis captulos, alm da introduo e das consideraes finais, com
os assuntos divididos da forma como se segue.
Na Seo 1 apresentamos a metodologia utilizada para o desenvolvimento desse
estudo, descrevendo brevemente o material utilizado e apontando os temas que identificamos
por meio da leitura e anlise desse material, realizada sob inspirao da perspectiva terica do
materialismo histrico. Nesse mesmo captulo fizemos uma apresentao inicial sobre quem
eram os higienistas e eugenistas, seus iderios, objetivos e aes defendidas.
Na Seo 2 levantamos alguns pontos sobre o uso de substncias psicoativas na
histria da humanidade, considerando o modo como esse consumo, que em sculos anteriores
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era relativamente limitado a rituais festivos e religiosos, passou a ser frequente e abusivo. Em
seguida, destacamos as propostas de interveno por parte dos higienistas na primeira metade
do sculo XX no Brasil sobre o uso dessas substncias, especialmente o lcool, que na poca
tinha uma abrangncia e consequncias muito mais srias se comparado s outras drogas.
A Seo 3 traz alguns dados atuais e consequncias do uso/abuso das substncias
psicoativas, como forma de observarmos a amplitude e gravidade desse fenmeno. Nessa
parte tambm discutimos brevemente os desafios que se impem aos servios de ateno em
sade mental, para atender demanda levantada por essa problemtica.
Na Seo 4 consideramos fundamental fazer um breve retrospecto sobre as polticas
pblicas sobre lcool e outras drogas desenvolvidas no Brasil, mais especificamente a partir
da dcada de 1970 at as propostas atuais, incluindo a perspectiva da reduo de danos comoestratgia adotada pelo Ministrio da Sade frente s aes de ateno aos usurios.
Para a Seo 5, so apresentados alguns estudos j realizados sobre as comunidades
teraputicas, no que se refere ao seu modelo de interveno para tratamento dos usurios de
lcool e outras drogas. Destacamos alguns pontos da legislao brasileira que incluem as
comunidades teraputicas como parte das aes em sade pblica. Alm disso, abordamos
algumas crticas a esse modelo, bem como as polmicas atuais em torno do financiamento
dessas instituies pelo Sistema nico de Sade.Na Seo 6, conduzimos nossa anlise propriamente dita para o apontamento da relao
entre as propostas de interveno das comunidades teraputicas, o modelo de ateno aos usurios
de lcool e outras drogas, preconizado pelas polticas pblicas atuais, e os pressupostos
defendidos pelos higienistas na primeira metade do sculo XX acerca da produo,
comercializao e consumo das substncias psicoativas, bem como do tratamento dos usurios.
Por fim, a Seo 7 destinada s consideraes finais deste estudo, momento em que
pontuamos as questes que consideramos relevantes na relao dos pressupostos higienistascom as polticas pblicas atuais e as comunidades teraputicas. Damos destaque s relaes
de mercado que permeiam as drogas, lcitas e ilcitas, as quais abrangem o trfico de drogas, a
comercializao de bebidas alcolicas, a prescrio indiscriminada de medicamentos, dentre
outras questes. Tambm buscamos nesse captulo analisar rapidamente as condies
histricas que em parte contextualizam a incluso na rede pblica de sade das comunidades
teraputicas, cujo modelo de ateno no demonstrou, no decorrer da histria, ter resolvido os
problemas de que se ocupou.
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1A TRAJETRIA PERCORRIDA
Para o desenvolvimento desse estudo, realizamos uma pesquisa bibliogrfica e
documental, utilizando referenciais que abordam a questo do lcool e outras drogas, no que
se refere a diferentes perspectivas sobre a produo, comercializao e consumo dessas
substncias, bem como os encaminhamentos que a sociedade oferece aos usurios.
Fazendo uso das palavras de M. M. Oliveira (2008), entendemos a pesquisa
bibliogrfica como uma modalidade de estudo e anlise de materiais de domnio cientfico,
como livros, peridicos, dicionrios e artigos cientficos, e a pesquisa documental como a
busca de informaes em documentos que no receberam tratamento cientfico, comorelatrios, reportagens de jornais e revistas, cartas, filmes, fotografias e outros materiais de
divulgao.
De acordo com Chizzotti (2000), a pesquisa documental constitui aspecto
predominante em trabalhos cujo objetivo mostrar a situao atual de um determinado
assunto e/ou traar a evoluo histrica de um problema. Pela coleta de informaes
documentadas possvel conhecer o que j foi bem investigado, o que falta investigar, os
problemas controversos e os que demandam novos estudos.Na investigao das propostas dos higienistas diante do fenmeno do consumo do
lcool, trabalhamos com fontes primrias relativas primeira metade do sculo XX, como o
Boletim de Eugenia (1929 a 1931) -um dos principais meios de divulgao do movimento
eugenista no Brasil - e os Arquivos Brasileiros de Higiene Mental (1925 a 1947) - peridico
publicado pela Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM). A escolha desses materiais se
deve ao destaque que esse grupo de pensadores do incio do sculo XX dava s questes que
envolviam o uso de substncias psicoativas, especialmente o lcool, como observado nasinmeras campanhas antialcolicas organizadas por eles (Maestri, 2011). Alm disso, tambm
fizemos uso de fontes secundrias, produzidas por estudiosos do assunto em questo.
Utilizamos ainda legislaes e outros documentos oficiais que tratam das polticas
sobre lcool e outras drogas no Brasil, desde o incio do sculo XX at as fontes atuais, alm
da literatura produzida atualmente acerca da temtica, especialmente a que trata sobre as
comunidades teraputicas.
Aps a leitura criteriosa do material nomeado anteriormente, pudemos identificar
alguns temas que so apresentados no Captulo 6, quando discutimos a relaoentre o modelo
de interveno das comunidades teraputicas, as polticas pblicas sobre lcool e outras
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drogas e os pressupostos defendidos pelos higienistas no incio do sculo XX acerca do uso
de substncias psicoativas.
Os temas identificados e analisados foram: a) as perspectivas em relao ao usurio de
substncias psicoativas, ao qual geralmente atribudo algum tipo de desvio, desajustamento,
conflito, pobreza ou inutilidade; b) a nfase na internao prolongada aos adoecidos pelo
consumo dessas substncias; c) a perspectiva proibicionista na ateno aos usurios e as
crticas a esse modelo; d) o paralelo entre o tratamento proposto pelos higienistas e pelas
comunidades teraputicas atuais; e) a defesa de alguns higienistas pelo tratamento
ambulatorial; f) e a relao do lcool e outras drogas com o mercado.
importante considerar que a relao que estabelecemos entre as comunidades
teraputicas atuais e as instituies do incio do sculo XX esto circunscritas ao seu modelode ateno, a algumas de suas caractersticas e s concepes de alguns autores sobre as
mesmas. At porque no encontramos o termo comunidade teraputica nos documentos
elaborados naquele perodo e, como sugere De Leon (2003), esse termo parece ter sido
popularizado somente a partir da dcada de 1960, nos Estados Unidos.
Destacamos ainda que as leituras e anlises que realizamos para o desenvolvimento
desse estudo foram inspiradas na vertente do materialismo histrico. Assim, pretendemos
esboar em nossa discusso o entendimento do uso/abuso de substncias psicoativas como umfenmeno datado historicamente e construdo socialmente. Por essa perspectiva, qualquer
tentativa de superao dos problemas decorrentes do consumo do lcool e outras drogas s
pode ser vislumbrada se perpassarmos nossas discusses pelo modo como se configuram as
relaes sociais no bojo da sociedade capitalista. Caso contrrio, ao que nos parece, estaremos
apenas reproduzindo e reinventando debates, propostas e aes que a histria j mostrou no
serem resolutivas.
1.1Quem eram os higienistas e eugenistas
Primeiramente importante lembrar que os movimentos higienista e eugenista
aconteceram no s no Brasil, mas em diversos pases do mundo. De modo geral, esses
grupos buscavam explicaes e propostas para combater problemas que estavam na ordem do
dia, baseando-se no conhecimento cientfico desenvolvido at ento.
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Considerados em sua amplitude, o higienismo e eugenismo, que no Brasil tiveram
maior repercusso na primeira metade do sculo XX, aludiam a uma srie de normas e
concepes, que implicaram, dentre outras questes, na reorganizao de reas urbanas, em
saneamento ambiental, em prticas de sade e higiene, instituindo-se, com isso, um
paradigma de gesto social e - importante lembrar - de dominao, aportado nos valores da
cincia e da racionalidade tcnica (Reis, 1994).
Como forma de exemplificar a relevncia atribuda s medidas higienistas e eugenistas
nesse sentido, vejamos os escritos do Conde Afonso Celso (1929), ao defender que s uma
poltica sanitria, s uma poltica eugnica poder melhorar a situao econmica, poltica e
social do Brasil, operando a regenerao racial5 (p. 6). As condies histricas que levaram a
tal situao sero, na medida do possvel para os limites desta pesquisa, exploradas noscaptulos seguintes.
Para entender a diferena entre a eugenia e o higienismo, bem como o seu principal
desdobramento - a higiene mental - fizemos uso das palavras do Dr. Mirandolino Caldas, que
em 1932 era o Diretor da Clnica de Euphrenia e Secretrio Geral da Liga Brasileira de
Higiene Mental. Para ele, o higienismo era um conjunto de dados e conhecimentos advindos
das cincias fsicas, naturais e mdicas, com o objetivo primordial de ensinar aos homens os
preceitos indispensveis conservao da sade. No que se refere higiene mental, o mesmoautor aponta que da mesma forma que a higiene geral, a higiene mental tem tambm a sua
funo, mais ou menos bem delimitada que , justamente, aplicar os mtodos profilticos
especiais, tendentes a prevenir os distrbios psquicos (p. 30). eugenia, por sua vez, cabia
o estudo sobre os meios de formar o tipo morfologicamente perfeito e, no mbito mental,
encaminhar a psique para a perfeio desejada atravs das geraes (Caldas, 1932).
Segundo Ramos (1941), diferentemente dos eugenistas, cujo foco era a hereditariedade
e os aspectos genticos, os adeptos da higiene mental entendiam que as influnciasambientais, junto com a formao dada pelos pais aos filhos, eram fundamentais na formao
da personalidade humana. Ento, se na concepo da eugenia a gentica determinava aquilo
que seria o ser humano, pelo higienismo era sempre possvel aperfeioar aquilo que se tinha.
Como nos lembra Reis (1994), frente ao fracasso do tratamento moral e do modelo
asilar de internao no controle de casos de doenas mentais, os psiquiatras europeus, j em
meados do sculo XIX, resolveram ir alm dos muros dos asilos e intervir no espao social
mais amplo por meios higinicos, os quais, no entendimento da poca, poderiam prevenir tais
5As citaes esto apresentadas neste trabalho com a devida atualizao ortogrfica.
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enfermidades. Cumpre lembrar, segundo Boarini (2003b), que a higiene foi e ainda
imprescindvel enquanto circunscrita manuteno da sade fsica, mas adquire carter
ideolgico medida que adentra a sade mental e busca propor solues para problemas do
mbito poltico-social.
No Brasil, um dos disseminadores da eugenia foi o mdico Renato Kehl (1889-1974),
autor de vrias obras relacionadas ao assunto e editor do Boletim de Eugenia, que utilizamos
como referncia nesta pesquisa. De acordo com esse estudioso (1929c, 1931a), a eugenia,
estudando as leis da hereditariedade, preocupava-se com a melhoria da qualidade da
populao e aperfeioamento da raa humana. Uma das formas para tanto era evitar a
procriao daqueles considerados degenerados, como os alcoolistas, os fracos de esprito,
alienados, epilticos, criminosos e portadores de doenas hereditrias.Assim, Kehl e outros pensadores da poca, como Varigny (1931), defendiam os
atestados mdicos pr-nupciais, bem como os mtodos anticoncepcionais e esterilizao
daquelas pessoas que poderiam transmitir pela hereditariedade essas caractersticas
indesejveis. Outra preocupao dos eugenistas era a imigrao de povos no europeus
(japoneses, africanos, brasileiros do norte e nordeste em direo ao sudeste), que tambm
comprometiam o objetivo de formao de uma populao mais forte e saudvel.
No Brasil, em determinado momento, os movimentos higienista e eugenista searticularam de tal forma que um era visto como parte do outro. Apesar de algumas
divergncias ideolgicas e epistemolgicas, ambos concordavam nas explicaes dadas aos
problemas sociais, os quais, para eles, eram entraves sociedade capitalista. Esses grupos
desconsideravam, portanto, o fato de que muitos desses problemas eram na realidade
resultado das contradies geradas por essa mesma organizao social (Boarini, 2003a;
Moura & Boarini, 2012).
Em outras palavras,
ao tentar resolver problemas de natureza coletiva, atravs da
higiene do corpo ou da eugenizao da raa, ainda que esses
problemas sejam inerentes sade, (...) as propostas higienistas
e eugenistas escamoteavam contradies postas pela
organizao social do trabalho. Ao no considerarem a sade
como expresso das condies sociais de existncia, mas nica e
exclusivamente responsabilidade do indivduo, naturalizavam-se
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os antagonismos, os conflitos e as diferenas estabelecidas pelas
relaes sociais (Boarini, 2003a, p. 15).
Para disseminar suas ideias, os higienistas e eugenistas se organizavam em associaes
e agremiaes, formadas principalmente por profissionais da rea mdica, juntamente com
pesquisadores, intelectuais, educadores, e buscavam constantemente apoio poltico e da
populao em geral, como forma de obter maior alcance em suas aes. A Liga Brasileira de
Higiene Mental foi uma dessas organizaes, que teve repercusso e influncia na primeira
metade do sculo XX no Brasil.
Como citado anteriormente, essa foi uma entidade civil, fundada no Rio de Janeiro em
1923, quando foi reconhecida de utilidade pblica pelo Decreto n 4.778, e composta pormdicos, juristas, professores, dentre outros profissionais, liderados pelo psiquiatra Gustavo
Riedel (LBHM, 1925b; Riedel, 1925).
De acordo com Reis (1994), a composio da LBHM nesse perodo no ocorreu ao
acaso e de forma isolada; mas se deu em um contexto poltico de reavivamento do
nacionalismo, verificado no mbito da Primeira Guerra Mundial, paralelamente ao surgimento
de outras entidades, como a Liga de Defesa Nacional, em 1916, Liga Nacionalista de So
Paulo, em 1917, Programa Nativista, em 1919, Ao Social Nacionalista, em 1920, dentreoutras. Esses movimentos buscavam propor solues originais e autnomas aos diversos
problemas que assolavam o pas, quando setores urbanos passaram por significativo
crescimento.
Para obter xito em seus objetivos, os fundadores da LBHM buscavam o apoio do
governo por meio de subvenes e da populao em geral (Melo Neto, 1934). A entidade
tinha como principais objetivos: o combate s causas das doenas mentais pelos recursos da
cincia; a proteo e amparo social das pessoas predispostas s psicopatias, para que nochegassem a adoecer, e dos ex-doentes mentais, para evitar a recada; e a realizao de um
programa de higiene mental e de eugenia, para engrandecimento do pas e melhoria da raa
(LBHM, 1934).
Para Ramos (1941), a higiene mental cumpria um papel fundamental na civilizao do
incio do sculo XX, quando (...) a angstia, de individual, se tornou coletiva, precipitando
os homens (...) uns contra os outros, separando-os em concepes, credos, convices
diversas e irreconciliveis (p. 7). Procuramos mais adiante contextualizar o que estava
acontecendo nesse perodo, o que pode explicar a preocupao manifestada por Ramos nesse
sentido.
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2 QUESTES QUE ATRAVESSAM SCULOS
(...) o problema do alcoolismo no tem soluo sombra doregime atual, pois o estado capitalista vive do imposto sobre olcool e os capitalistas tm interesse em embrutecer as massas
laboriosas, por meio do lcool, para continuarem dominando-as.(Octavio Brando, citado pela LBHM, 1929, p. 14).
2.1Da produo artesanal gerao de lucro
Em rpido percurso pela histria, possvel observar que o uso de substncias
psicoativas acompanha a humanidade desde a Antiguidade, como j observado por Ayrosa
(1934), Cunha (1934) e Camargo (1944a). Segundo MacRae (2001), j na pr-histria o
homem utilizava plantas e substncias de origem animal para provocar alteraes do estado de
conscincia, com os mais variados objetivos. Estimulantes como a coca, guaran, mate, caf e
noz de cola eram utilizados em diferentes culturas, de forma regular e vrias vezes ao dia,
para fornecer energia e diminuir a fome.O uso de bebidas alcolicas apresenta registros desde a pr-histria, em rituais e
festas, alm de servir como medicao. Na Grcia Antiga j se entendia que o resultado da
ao das drogas, como o pio, dependia da sua dosagem, podendo a mesma curar ou matar.
Na civilizao romana, os efeitos do uso das drogas tambm eram vistos de forma semelhante
e as bebidas alcolicas eram bastante apreciadas pelos homens, como forma de relaxamento e
autoconhecimento (MacRae, 2001).
Para o mesmo autor, com a cristianizao do Imprio Romano, as drogas passaram aser estigmatizadas e o seu uso considerado heresia. Isso porque o consumo de substncias
psicoativas era associado a cultos pagos e o seu uso teraputico aliviava a dor e o sofrimento,
os quais eram formas de se aproximar de Deus, na concepo crist.
O uso das drogas foi gradualmente retomado ento na civilizao europeia durante o
Renascimento, com o desenvolvimento cientfico e a aproximao com as culturas orientais e
indgenas americanas, que preservavam antigos conhecimentos farmacolgicos. Tanto que,
no sculo XVIII, o pio tornou-se a principal mercadoria exportada dos pases europeus para
o mercado chins. Mas no final do sculo XIX, quando a China conseguiu abastecer o seu
mercado interno com produo prpria e estava prestes a dominar o comrcio do pio em
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todo o mercado asitico, o Parlamento Britnico passou a considerar o trfico da substncia
moralmente injustificvel e resolveu combat-lo (MacRae, 2001).
Questes econmicas parte, ao longo da histria, como verificamos em Alves
(2009), o consumo das substncias psicoativas normalmente esteve regulamentado dentro de
contextos socioculturais especficos, condicionando esse uso a normas e convenes
socialmente compartilhadas. O consumo dessas substncias no representava ameaas
sociedade, uma vez que esse uso era reconhecido por ela prpria como expresso de seus
valores. O vazio comum poca da passagem do jovem para a vida adulta era preenchido
pelas grandes estruturas de sentido como a religio, as tradies familiares, crenas, valores
etc.
O problema estaria, segundo Espinheira (s/d, citado por M. G. P. N. Oliveira, 2009),quando essas substncias passaram a circular como bens de consumo produzidos
industrialmente, quando elas se tornaram mercadorias altamente lucrativas, abrindo espao
para a entrada de outras questes mais complexas. Com o fcil acesso e disponibilidade das
drogas lcitas e ilcitas, que se tornaram mercadorias altamente lucrativas, o consumo tornou-
se ainda maior, especialmente em um contexto marcado por grandes mudanas sociais no
mundo ocidental nos sculos XVIII e XIX.
Conforme discute Marques (2001), com a Revoluo Industrial, as bebidas alcolicasque antes eram produzidas artesanalmente passaram a ser produzidas em srie. Esse aumento
considervel da produo, dentro do contexto social e econmico da poca, contribuiu para
que o consumo de bebidas alcolicas, que anteriormente se dava em meio a rituais festivos ou
religiosos, passasse a ser frequente e abusivo. A partir do final do sculo XVIII, o consumo
do lcool e mais ainda os problemas decorrentes de seu abuso comearam a gerar interesse e
preocupao por parte de diferentes setores da sociedade e em diversos pases.
No decorrer dos sculos XVIII e XIX, o modelo moral e o modelo religiosoconstituram as primeiras tentativas da sociedade de enfrentar os problemas relacionados ao
uso abusivo de lcool. O beber exageradamente passou a ser considerado pecado e fraqueza,
sendo esse conceito incorporado s regras morais de vrias culturas (Marques, 2001). Nos
Estados Unidos, o uso disseminado de lcool e outras drogas, com suas implicaes sade,
economia e poltica, incentivou o surgimento de campanhas populares de cunho religioso
contra o uso dessas substncias. Associando-as violncia e criminalidade, esses
movimentos tinham implcitos objetivos polticos de estigmatizar grupos de imigrantes, como
os chineses, africanos e irlandeses, considerados, respectivamente, grandes consumidores de
pio, cocana e lcool (MacRae, 2001; Sad, 2001).
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Segundo Marques (2001), tambm durante a primeira metade do sculo XIX, o
entendimento do alcoolismo como doena foi consolidado e tentativas de se abolir o estigma
social e a vergonha, que dificultavam a busca de tratamento por parte dos usurios, foram
observadas.
2.2Contextualizando a preocupao dos higienistas
Para entender as bases histricas do iderio higienista, reconhecemos a relevncia de
se contextualizar, mesmo que brevemente, o incio do sculo XX, perodo de maior atividadedo movimento da higiene mental no Brasil, ainda que cientes dos limites impostos por esse
recorte temporal.
Segundo Basbaum (1997), o final do sculo XIX havia sido um perodo de relativa
tranquilidade social para os pases mais ou menos desenvolvidos da Europa e Amrica. A
burguesia havia conquistado uma posio de destaque ante o desejo dos homens de se atingir
a perfeio das sociedades humanas. No entanto, pelo movimento do prprio capitalismo, os
mercados internos europeus ficaram saturados e as naes mais desenvolvidaseconomicamente precisaram avanar no domnio dos mercados e das fontes de matrias-
primas.
Acrescido a esse, outros acontecimentos nesse perodo influram de forma marcante
nos rumos da Histria: a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que massacrou milhes de
vidas pela Europa e parte da Amrica; a Revoluo Russa (1917), que possibilitou ao mundo
ver uma nova classe - o proletariado - tomar o poder econmico e poltico; a crise mundial de
1929/1930
6
, que comeou nos Estados Unidos e, por uma reao em cadeia, atingiu quasetodas as naes do mundo com o desemprego e a fome; e a transferncia do domnio mundial
capitalista da Inglaterra para os Estados Unidos. Todos esses acontecimentos trouxeram como
principais consequncias um grande desenvolvimento industrial, o acirramento das lutas de
classe e o despertar nacionalista dos povos coloniais (Basbaum, 1997).
6Essa crise foi resultado de uma superproduo e supersaturao do mercado interno americano, que funcionava
em um regime de livre concorrncia, prprio do sistema capitalista, e obviamente afetou vrios pases domundo, que de alguma forma dependiam da economia americana. No Brasil, a crise foi um reflexo dacontradio existente na prpria estrutura econmica do pas, somada s tenses da produo ecomercializao do caf e crise mundial do capitalismo (Basbaum, 1997).
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O Brasil, influenciado por esses acontecimentos de abrangncia mundial,
experimentava algumas mudanas sociais, dentre elas a transio do trabalho escravo para o
trabalho livre, a mudana da sociedade rural agrria para a urbano-industrial e o processo
imigratrio, que culminou num aumento progressivo dos centros urbanos, resultando em
srios problemas sociais e sanitrios.
Como apontado por Basbaum (1997), as condies sanitrias das grandes cidades,
como o Rio de Janeiro e So Paulo, eram as piores possveis; a varola e a febre amarela
dizimavam a populao e medidas sanitrias se faziam urgentes. Isso sem falar do absoluto
desconhecimento dos hbitos de higiene dos residentes das zonas rurais, ou da
impossibilidade de coloc-los em prtica (andar descalo, ausncia de fossas, defecar no cho
ou nos rios onde se banhavam ou pescavam). Diante dessa demanda, as propostas doshigienistas funcionavam como blsamo. Suas intervenes nesse sentido possibilitaram
importantes avanos em termos de sanitarismo e sade, ainda que entender a historicidade
dessas questes no fosse o forte desse grupo.
Paralelamente a esses problemas, as mudanas sociais que estavam ocorrendo tambm
contribuam para projetar o Brasil no mundo como nao civilizada.
Se a extino do trfico deu ao pas o seu primeiro impulsoindustrialista, a abolio foi responsvel pelo segundo. O
terceiro impulso, que j encontraria uma base social para se
firmar a imigrao e um mercado interno em crescimento ,
foi provocado pela guerra de 1914/18 (Basbaum, 1997, p. 91).
Pela abolio, mais de 750 mil ex-escravos ficaram disposio do capitalismo,
particularmente da indstria, levando ainda ao barateamento dessa mo de obra que j eraento excedente. Com escravos passando a assalariados, aumentava a porcentagem de
consumidores, o que contribua para o crescimento do mercado interno. Com a guerra, boa
parte do capital nacional que antes era investido na Europa acabou sendo aplicado
internamente na criao e desenvolvimento de indstrias brasileiras.
Por outro lado, os entraves ao desenvolvimento capitalista no Brasil eram
comparativamente ainda mais fortes, fundamentados, dentre outros fatores, na ausncia de
uma indstria de base, que deixava o pas dependente da importao de bens de produo
(maquinrio, transporte, etc.), e nos interesses de uma burguesia agrria, que desejava a
manuteno de seus antigos latifndios, onde permaneciam relaes de produo com
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caractersticas feudais (Basbaum, 1997). De acordo com Montao (2010), a implantao do
capitalismo no Brasil, bem como em outros pases da Amrica Latina, no teve um carter de
revoluo democrtico-burguesa como ocorrera na Europa; mas, principalmente entre o final do
sculo XIX e incio do sculo XX, esteve baseado no latifndio tradicional e em um esquema
colonial de exportao de matrias-primas e importao de produtos industrializados,
constituindo-se inicialmente como um sistema desindustrializado (p. 31).
Alm disso, o aumento populacional, que de modo geral constituiu um elemento de
progresso, em outro sentido tambm implicou barreiras a esse desenvolvimento, ao
considerarmos o barateamento da mo de obra e o aumento da misria das classes mais pobres
dos centros urbanos (Basbaum, 1997).
Assim, eram justamente a misria, ao lado da loucura, do alcoolismo, davagabundagem, criminalidade e outros fatores de degenerao da raa, as causas
fundamentais atribudas pelos higienistas ao subdesenvolvimento nacional do capitalismo.
Com isso, no se trabalhava a possibilidade de tais fatores serem produto dessa organizao
econmica, mas sim consequncia de uma crise moral da sociedade.
2.3O que diziam os higienistas e eugenistas sobre o alcoolismo e as toxicomanias
Nas publicaes pesquisadas, foi possvel identificar vrias referncias dos higienistas
e eugenistas em relao a esses fenmenos, especialmente no que se refere ao alcoolismo.
De acordo com Penafiel (1923, citado por E. Lopes, 1925), para se fazer alguma coisa
por essa situao, era preciso reconhecer que o alcoolismo no significava meramente um
acidente, mas (...) consequncia de nossa grande crise moral e social (p. 150). O mesmoautor defendia que, enquanto uma doena moral, o remdio para o alcoolismo estaria na
educao; e enquanto uma doena social, a soluo estaria na ordem, (...) uma vez que o
pessimismo reinante, que leva o homem a embriagar-se, procede da angustia de uma
transio, fruto da anarquia mental dos tempos que atravessamos (p. 151).
Entendemos que a crise de que fala Penafiel se referia s mudanas sociais que
estavam ocorrendo no Brasil, resultantes em boa parte do crescimento das cidades, da
miscigenao dos costumes, com a circulao de estrangeiros e ex-escravos nos centros
urbanos, e da instabilidade social e econmica gerada com a Primeira Guerra Mundial.
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Bicudo (1944) discute a influncia de uma guerra na organizao social de um pas e,
consequentemente, na sade mental das pessoas.
A guerra acarreta uma desorganizao social pela drenagem de
toda a economia para o esforo da guerra, pela mobilizao, em
massa, da populao. (...) pelas mudanas nas condies de vida,
a guerra atinge a organizao social. As instituies, no
podendo satisfazes as necessidades dos indivduos, afrouxam os
controle social por elas condicionado. (...) A guerra, suprimindo
as formas comuns de satisfao das necessidades vitais, pode
desenvolver conflitos mentais e distrbios afetivos expressos emsintomas neurticos (p. 63).
Nesse contexto, o consumo de bebidas alcolicas, que at o incio do sculo XX era
considerado um hbito normal, adquiriu crescente relevncia pela sua abrangncia. Segundo o
noticirio sobre a Conferncia de Genebra sobre txicos, publicado nos Arquivos Brasileiros
de Higiene Mental em 1925, aps a Primeira Guerra Mundial as toxicomanias tomaram
propores extraordinrias em todo o mundo.
A exaltao permanente em que viviam os povos, a expectativa
diria da morte, as viglias continuadas, a insnia pelo terror ou
pela excitao nervosa natural naquela poca, a ansiedade
permanente, a tristeza, os momentos de angustia, levaram os
homens a procurar alguma coisa que pudesse mitigar-lhes de
qualquer sorte o sofrimento moral, e foi aos estupefacientes queeles recorreram (LBHM, 1925a, p. 138).
Recorremos s palavras de Moraes (1921) para expressar o entendimento de boa parte
da sociedade sobre a relao do alcoolismo com o cenrio da poca. Para o autor, tal
problema era resultado da desorganizao social e econmica e da imoralidade individual,
fruto das falhas na educao e da dissoluo da famlia. Ento, o combate a esse mal
implicaria melhorar tais condies de vida e esclarecer moralmente o ser humano.
Torres (1933) apresentou um cenrio bastante comum, no incio do sculo XX no
Brasil, ao apontar a falta de trabalho regular, a criminalidade, ociosidade, falta de garantias
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populao, o vcio, o alcoolismo, a desordem e anarquia por ausncia completa de cultura,
educao, assistncia social e legal.
Nesse contexto, a presena de um nmero cada vez maior de pessoas perambulando
pelas ruas, devido em parte7ao uso abusivo do lcool e outras drogas, passou a ser vista como
um entrave para um pas que se pretendia em desenvolvimento. Essas pessoas, alm de
representarem uma ameaa ordem social e um nus aos cofres pblicos na assistncia
sade, pelas doenas resultantes daquele vcio, no podiam servir como mo de obra
disponvel para a indstria que necessitava de indivduos trabalhadores e sadios para se
desenvolver. Com isso, o alcoolismo e as toxicomanias, assim como a loucura e a ociosidade,
passaram a ser objetos de interveno por parte de alguns setores da sociedade, como os
representantes dos movimentos higienista e eugenista.Como resultado, em boa parte, dos ideais defendidos por eles, em 1921 foi
promulgado o Decreto n 4.294 (1921), que autorizava o Poder Executivo a regulamentar a
entrada de substncias txicas no pas, como o pio, seus derivados e a cocana; estabelecia
multas e sanses para os estabelecimentos comerciais que vendessem bebidas para pessoas
embriagadas; previa internaes e multas para aqueles que se embriagassem a ponto de
ameaar a ordem pblica e pr em risco a sua segurana e a de outros; e defendia a criao de
um local de tratamento mdico correcional para alcolatras e toxicmanos.Segundo E. Lopes (1930c), no era possvel pensar em combater o alcoolismo sem a
interveno dos poderes pblicos. Sendo assim, o papel dos higienistas seria o de apresentar
aos legisladores ideias que pudessem os orientar na elaborao das leis. Em Anexo A
apresentamos a sugesto da LBHM (1931b) para a Lei-antialcolica.
Grande tem sido a atividade desta seo que, em reunies
sucessivas, vem estudando o assunto sob os seus mltiplosaspectos, tendo particularmente se esforado para conseguir dos
poderes pblicos a votao de medidas restritivas, ou melhor, de
uma legislao antialcolica, de acordo com as nossas
possibilidades atuais (LBHM, 1929, p. 12).
7Como vimos em Basbaum (1997), a abolio da escravatura, o processo de imigrao europeia e a sada daspessoas do meio agrrio, num contexto que inviabilizava emprego e oportunidade de ganhar a vida para todos,contriburam para formar uma massa de marginais e desempregados no seio das populaes urbanas.
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Aes de controle da industrializao, comercializao e consumo do lcool, enquanto
bebida, eram algumas das solicitaes da LBHM, seguindo tendncia adotada em outros
pases, especialmente nos Estados Unidos. importante ressaltarmos que, em prol da
economia, a Liga fazia campanhas a favor do uso industrial do lcool, principalmente como
possibilidade de servir de substituto da gasolina (Kehl, 1931b).
Dentre as medidas de controle sugeridas pelos higienistas, estavam o aumento dos
impostos sobre o lcool; a proibio da sua industrializao e venda aos domingos e feriados;
medidas punitivas para aqueles que se embriagassem publicamente; proibio da propaganda
para bebidas alcolicas destiladas; educao preventiva nas escolas, em todos os nveis de
ensino, e nos locais de trabalho; criao de reformatrios e asilos-colnias para a correo dos
dependentes (Cunha, 1934; E. Lopes, 1930a).Alis, j em 1908, o Dr. Mello Matos, cujo estudo foi citado por Moraes (1921),
defendia a necessidade de se substituir a pena de priso dos alcoolistas por tratamento em
estabelecimentos destinados para tal, para se evitar que esses dependentes tivessem contato
com os mais terrveis criminosos. Como dizia Camargo (1944a), o alcoolismo uma doena
e no um caso de polcia: como tal, deve o indivduo embriagado ser conduzido a um hospital
e no cadeia. (p. 95).
Nesse sentido, o tratamento prioritrio para os j adoecidos pelo consumo do lcool eoutras drogas eram as internaes em manicmios, o que tambm passou a ser objeto de
discusso por parte dos psiquiatras, que questionavam qual seria o tempo de internao
suficiente para o tratamento, se o mesmo deveria ocorrer em instituies especficas,
separadas dos hospcios, dentre outros aspectos apontados por Santos e Verani (2010). O Prof.
Lopes Rodrigues, por exemplo, em 1933 dizia que (...) no justo que se conduza para casas
de loucos, crnicos e agudos, os que bebem, porque, de degenerados, entre loucos, acabaro
plasmados na loucura definitiva (L. Rodrigues, 1933, p. 302).Nesse contexto, apesar da medicina se preocupar com as consequncias do uso do
lcool sade como um todo - como os problemas gastrointestinais, hepticos, renais -, o
foco das discusses sobre esse consumo eram os distrbios mentais e os comportamentos
morais considerados anormais (Souza, 1939; Botelho, 1944; Cavalcanti, 1947; Santos &
Verani, 2010).
Segue as palavras de Porto-Carrero em entrevista ao jornal O Globo, em 1932:
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A herana da sfilis, da tuberculose, do alcoolismo, constitui,
pelo menos, excelente terreno para a germinao das perverses,
das doenas nervosas, das falhas de carter, sem contar que so
responsveis pelos tipos incapazes de ligar duas ideias, de
adquirir instruo, de assimilar as normas de moral toda essa
longa escala de idiotas, imbecis, dbeis e degenerados que
formam o peso morto da civilizao. (Porto-Carrero, 1932, p.
92).
Assim, como os psiquiatras da poca entendiam que o alcoolismo era uma das
possveis causas das doenas mentais, era fundamental que esse problema fosse tratadoatravs de campanhas educativas e da regulamentao do consumo do lcool (LBHM, 1934).
Cabe aqui acrescentar as palavras da Presidente Honorria da Unio Brasileira Pr-
Temperana, Miss Flora Strout, ao declarar, em 1935, que, se a sociedade no estivesse
preparada atravs de um racional processo de educao sobre os males causados pelo lcool,
as medidas de restrio e proibio dessas bebidas no teriam efeito algum. Ela tambm
ressaltou que tais medidas educativas deveriam ser iniciadas nas escolas, j nas classes das
crianas mais novas (Strout, 1935).Como verificado em Bittencourt (1935) e Moreira (1933), nesse perodo, uma das
discusses com que se ocupava a psiquiatria era se o lcool seria responsvel pela
manifestao da loucura ou se funcionaria apenas como fator desencadeador de uma patologia
j existente.
No entendimento dos psiquiatras, o hbito de consumir bebidas alcolicas teria como
consequncia prejuzos organizao psquica do indivduo, capacidade de convivncia
social e familiar e ao desempenho no trabalho, podendo ter como desfecho o fim da espciehumana, caso no houvesse intervenes necessrias (Melo Neto, 1934). Porm, de acordo
com anncio publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 21 de julho de 1929, tal
posicionamento no parecia unanimidade entre a classe mdica.
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Figura 1 Cerveja com receita mdica. Anncio publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 1929.Fonte: Scholz (2010a).
Fundamentadas na teoria da degenerescncia, eram comuns as explicaes queatribuam ao fator hereditrio o desenvolvimento da dependncia ao lcool, assim como de
outras caractersticas mentais. Cumpre lembrar que o conceito de degenerescncia foi
introduzido por Benedict-Augustin Morel, em 1857, o qual, assim como outros psiquiatras da
poca, entendia que as doenas mentais tinham componentes biolgicos e genticos e, com
isso, tendiam a piorar medida que eram transmitidas de gerao a gerao, levando
degenerao progressiva da populao (Morel, 2008).
Para Kehl (1930a), o desenvolvimento de uma criana dependia da hereditariedade,
bem como da sade dos pais no momento da concepo e da sade da me durante a gestao.
Com isso, o alcoolismo feminino, em ascenso j no incio do sculo XX, tornou-se motivo
de preocupao ainda maior para as autoridades mdicas, em funo da possibilidade de
transmisso gentica da dependncia ao lcool, ou atravs do aleitamento materno ou se a
mulher estivesse intoxicada no momento da concepo (Bittencourt, 1935; Britto, 1930;
Souza, 1939). Tal preocupao pode ser exemplificada pelas figuras a seguir, difundidas pelos
higienistas no incio do sculo XX.
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Figura 2 O lcool e o aleitamento.Fonte: Moncorvo Filho (1928, p. XIV).
Figura 3 lcool e monstros.Fonte: Moncorvo Filho (1928, p. XVI).
Paralelamente a essa preocupao, anncios publicitrios da poca estimulavam as
mulheres que amamentavam e as crianas a consumirem bebidas alcolicas, como licor e
cerveja, considerados tnicos nutritivos, sem distino de sexo nem de idade (Figura 5),como vemos nas seguintes imagens.
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Figura 4 Rainier Beer, 1906.Fonte: Digital Collections (2008).
Figura 5 Malt Rainier. Publicado no jornal The Argus, em 1909.Fonte: Cliffe (2008).
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Figura 6 Um amor de cerveja. Anncio publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 23 de abril de1932.Fonte: Scholz (2010b).
Em 1939, o Dr. Nelson Bandeira de Mello apontou que, embora at aquele momento
as pesquisas genticas no tivessem fornecido concluses definitivas sobre a influncia do
alcoolismo sobre a descendncia, a literatura demonstrava com frequncia casos de
perturbaes mentais em progenitores e filhos de alcoolistas (Mello, 1939). Tambm no era
rara a associao entre o crime e as alteraes de comportamento resultantes do abuso dolcool. Kehl (1929a, 1929b, 1930b) aponta para a relao do lcool com o grande nmero de
acidentes automobilsticos (nos Estados Unidos), com a criminalidade e a ocorrncia de
suicdios. Exemplos de malefcios do lcool, na poca divulgados pelos adeptos da higiene
mental junto imprensa, nas escolas, empresas, dente outros estabelecimentos, so
representados nas figuras a seguir.
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Figura 7 O lcool e a tuberculose.Fonte: Moncorvo Filho (1928, p. V).
Figura 8 O lcool e a loucura.Fonte: Moncorvo Filho (1928, p. XI).
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No tocante s drogas ilcitas atuais, importante destacar que at o final do sculo
XIX e incio do sculo XX grande parte delas era utilizada para fins teraputicos, alm do uso
recreacional, como era o caso do pio e da coca. Com isso, no eram raras as propagandas
norte-americanas e europeias, desse perodo, de compostos teraputicos que continham essas
substncias, como constam nas seguintes figuras.
Figura 9 Cocaine toothache drops, 1895.Fonte: Addiction Research Unit (2001).
Figura 10 Smith Glyco-Heroin. Anncio publicado naInternational Medical Magazine,em 1902.Fonte: Addiction Research Unit (2001).
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Mesmo no Brasil, o lana-perfume, cuja venda e consumo atualmente so proibidos, j
figurou no jornal O Estado de S. Paulo no incio do sculo XX.
Figura 11 Colombina inofensvel. Anncio publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 8 dejaneiro de 1922.
Fonte: Scholz (2011a).
Figura 12 Remdio para a crise. Anncio publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 22 defevereiro de 1936.
Fonte: Scholz (2012).
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Entendidas por grande parte dos higienistas como toxicomanias menos comuns, eles
tambm apresentavam suas consideraes em relao ao consumo de algumas dessas
substncias, ainda que elas no fossem o foco de sua ateno.
Segundo Bittencourt (1935), o pio, a morfina, a cocana, o ter e o haxixe eramresponsveis pelos distrbios mentais das denominadas toxicomanias. C. Lopes (1934, p. 112)
descreveu os efeitos relatados do consumo do cnhamo (maconha) como potencial
desencadeador da loucura e de aes criminosas, efeitos estes dependentes do nvel intelectual
e do fundo mental do indivduo. O mesmo autor falava sobre a coca e como o seu uso
teraputico foi amplamente disseminado em um curto perodo de tempo, alm de outras
substncias como a kava-kava, cogumelos e outras ervas alucingenas utilizadas em rituais
indgenas e cerimnias religiosas.Na Europa e nos Estados Unidos, a proibio do uso de substncias psicoativas como
a coca, o pio, a herona, foram acontecendo gradativamente a partir do incio do sculo XX,
quando problemas relacionados ao uso habitual dessas substncias foram aparecendo
(Addiction Research Unit, 2001) e, provavelmente, tambm devido s questes econmicas
envolvidas nesse processo, como apontamos anteriormente (MacRae, 2001).
O Brasil foi seguindo essa tendncia em relao proibio de algumas substncias
psicoativas e, no final da dcada de 1930, foi promulgada a Lei de Fiscalizao de
Entorpecentes, pelo Decreto-Lei n 891 (1938), a qual posteriormente foi incorporada ao
Cdigo Penal de 1940. Esse decreto criminalizava o porte de drogas ilcitas, independente da
quantidade apreendida, prevendo a mesma penalizao para casos de trfico e consumo
prprio, numa perspectiva claramente proibicionista.
No geral, para MacRae (2001), as legislaes e polticas nacionais do sculo XX eram
derivadas na maioria de tratados internacionais sobre as drogas, com influncia predominantemente
norte-americana8 e sua concepo proibicionista. Entendemos que por essa perspectiva
normalmente so ignoradas a grande heterogeneidade dos modos de consumo das substnciaspsicoativas, as razes, crenas, valores, estilos de vida e viso de mundo que os embasam.
Podemos dizer que essa forma de entender e abordar o consumo de drogas teve terreno
frtil para fincar suas estruturas, propiciado em boa parte pela disseminao do iderio
eugenista e higienista. Por essas lentes, os problemas da sociedade eram atribudos em boa
parte hereditariedade, ao mbito natural e ao indivduo, sendo, portanto, diminudas ou at
mesmo ignoradas as suas bases histricas e a sua construo social.
8 A influncia dos Estados Unidos no Brasil foi incrementada no final na Primeira Guerra Mundial, quandoaquele pas precisava abrir mercados para receber seus dlares e produtos, projeto este que j era uma daspremissas da Doutrina de Monroe, de 1823, na qual estavam traados planos de ocupao de todo o continenteamericano pelos Estados Unidos (Basbaum, 1997).
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3LCOOL E OUTRAS DROGAS NA CONTEMPORANEIDADE
Se estudarmos as causas sociais do alcoolismo, verificaremosque, sem a sua remoo, se torna impossvel vencer o efeito.
(Moraes, 1921, p. 87).
3.1Nmeros sobre o consumo de lcool e outras drogas na atualidade
Segundo dados fornecidos pelo Observatrio Brasileiro de Informaes sobre Drogas,por meio do II Levantamento Domiciliar sobre o uso de drogas psicotrpicas no Brasil
(Brasil, 2005a), estima-se que cerca de 23% da populao brasileira tenha feito uso de alguma
droga (sem considerar lcool e tabaco) pelo menos uma vez na vida. A mesma pesquisa
presume que aproximadamente 75% da populao analisada, entre 12 e 65 anos de idade,
tenham feito uso do lcool ao menos uma vez na vida, sendo 12% destes considerados
dependentes; ao passo que aproximadamente 44% dessa populao analisada j fez uso do
tabaco, sendo 10% classificados como dependentes. A idade de incio de consumo do lcoolestaria por volta dos 14 anos.
De acordo com a Organizao Mundial de Sade, cerca de 50% dos danos
relacionados ao lcool esto associados ao uso crnico, que resultam em problemas de sade,
de relacionamento e no trabalho; enquanto os outros 50% se devem embriaguez aguda de
pessoas que se envolvem em brigas, sexo sem proteo, acidentes de trnsito, quedas,
ferimentos, envenenamentos, suicdio etc. (Brasil, 2004).
O 1 Levantamento Nacional sobre Padres de Consumo de lcool na PopulaoBrasileira (Laranjeira, Pinsky, Zaleski, & Caetano, 2007) apresenta que cerca de 52% da
populao brasileira adulta faz uso do mesmo, sendo 24% das pessoas classificadas como
consumidores frequentes e, dentre estas, 9% encontram-se na categoria de consumo pesado e
perigoso.
Segundo levantamento da pesquisa Vigilncia de Fatores de Risco e Proteo para
Doenas Crnicas por Inqurito Telefnico (Brasil, 2010a; Brasil, 2012b), realizada pelo
Ministrio da Sade entre os anos 2006 e 2011, possvel constatar um aumento significativo
no consumo abusivo do lcool. De acordo com as informaes levantadas por essa pesquisa,
em mdia 17% das pessoas entrevistadas nas 27 cidades pesquisadas consumiram um volume
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excessivo de lcool num curto perodo de tempo (binge9), pelo menos uma vez em 30 dias
(Brasil, 2012b), e cerca de 23% da populao adulta pesquisada afirmaram que tiveram algum
problema relacionado ao uso do lcool entre os anos de 2004 e 2005 (Brasil, 2010a).
De acordo com o Relatrio Mundial sobre Drogas do ano de 2010 (UNODC, 2010), o
Brasil constitui o maior mercado de cocana da Amrica Latina em nmeros absolutos (900
mil usurios). O uso de opiceos no Brasil e no Chile considerado o maior na Amrica do
Sul, especialmente em funo da prescrio de medicamentos base de morfina, abrangendo
em torno de 0,5% da populao.
Em se tratando do consumo do crack, consta no Relatrio Brasileiro sobre Drogas
(Brasil, 2009), pelos dados reunidos entre os anos de 2001 e 2007, um consumo discreto e
estvel na populao brasileira entre os anos de 2001 e 2005. No entanto, verifica-se que apartir de 2007 foi se tornando mais frequente o consumo dessa substncia, bem como a sua
associao a diversos agravos sade, criminalidade e violncia.
De acordo com Collucci e Pagnan (2012), vrios estudos, especialmente nas trs
ltimas dcadas, tm se ocupado do impacto do crack na gestao. No entanto, ainda existem
controvrsias sobre os efeitos a longo prazo na criana, uma vez que bastante difcil separar
as sequelas da droga de outros fatores que tambm esto presentes na vida da gestante
dependente, como alcoolismo, tabagismo e desnutrio.O Relatrio Brasileiro sobre Drogas (Brasil, 2009) indica que cerca de 1,2% do
nmero de internaes registradas pelo SUS entre 2001 e 2007 decorrente do consumo de
drogas. Dessa porcentagem, as internaes por transtornos mentais e comportamentais
decorrentes do uso do lcool respondem por cerca de 69% dos casos.
Observa-se ainda que 0,7% do nmero total de bitos registrados no Brasil nesse
perodo foram associados ao consumo de drogas, sendo 90% destes relacionados ao uso do
lcool. O mesmo documento (Brasil, 2009) tambm levanta dados que apontam o consumo dolcool como responsvel por grande parte dos acidentes de trnsito envolvendo vitimas; e
destaca que no perodo entre 2001 e 2007 foram registrados no Brasil 56.561 casos de
afastamentos do trabalho e 5.024 aposentadorias pelo uso de substncias psicoativas.
De acordo com informaes apresentadas pelo Governo Federal (Brasil, 2004), mais
da metade dos acidentes automobilsticos envolvendo vtimas apresentam concomitncia com
o uso do lcool pelo motorista. A mesma proporo de consumo observada para as vtimas
de atropelamento.
9A quantidade que define esse tipo de consumo de cinco doses para homens e quatro doses para mulheres,ingeridos em uma s ocasio (Laranjeira et al., 2007).
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3.2Algumas leituras atuais sobre o fenmeno
Segundo dados explicitados na Poltica do Ministrio da Sade para a Ateno Integral
a Usurios de lcool e outras Drogas (Brasil, 2003), normalmente o perodo mdio entre o
primeiro problema decorrente do uso do lcool e a primeira interveno voltada para esse
problema de 05 anos. Dentre os vrios fatores que influenciam nessa demora esto a
ineficcia da assistncia disponvel, a crena errnea de que esses pacientes tm poucas
chances de recuperao, e a deficincia na formao de profissionais de sade voltados para a
questo de lcool e outras drogas.
Padilha e Tykanori (2011) destacam algumas razes pelas quais as pessoas fazem usode drogas na atualidade, especialmente o crack, como as crianas nas ruas que iniciaram o
consumo para aguentar a fome e o frio; os trabalhadores rurais por acreditarem que a pedra
lhes possibilita suportar mais as atividades na cana-de-acar; profissionais liberais
pressionados por apresentar resultados no trabalho; e jovens que buscam a todo custo se
sentirem inseridos em um grupo.
No entendimento de Cruz e Ferreira (2001), como panorama poltico e econmico das
ltimas dcadas no Brasil, temos um acirramento da competitividade, aumento daterceirizao dos servios, com poucas garantias trabalhistas, desemprego e concentrao de
renda. Essa chamada economia poltica da incerteza (p. 97) por um lado nos d a iluso de
que somos livres, descompromissados; por outro transmite a mensagem de que somos
potencialmente desnecessrios ao mercado de trabalho. Com isso, projetos de vida e
constituio de identidades, que na sociedade ocidental so fortemente ligados vida
profissional, no se tornam possveis. Nesse cenrio, emergem os marginalizados, os
desafiliados, desprendidos do trabalho e da insero relacional, dentre os quais esto includosos dependentes de drogas, a populao de rua, indivduos mental ou fisicamente
incapacitados.
O abandono dos valores tradicionais, engolfados pelas
modificaes rpidas das relaes sociais, num contexto de
crescimento de valorizao das foras de mercado, do
consumismo, do imediatismo e do individualismo, tem
produzido, entre outras consequncias perversas, uma ausncia
de referncia social (Cruz & Ferreira, 2001, p. 109).
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Com isso, a droga acaba surgindo como opo de vida, principalmente para os mais
jovens e menos privilegiados economicamente.
Conforme apontado por Silveira (2012), o crack uma substncia que pode causar
dependncia assim como acontece com outras drogas, como o lcool. No entanto, os efeitos
devastadores dos quais a mdia tem se ocupado na atualidade so agravados pela
miserabilidade na qual vive boa parte de seus usurios. O crack tem um preo relativamente
baixo se comparado cocana, por exemplo. Assim, o abandono social em que esto os seus
usurios normalmente vem antes do uso do crack. A vulnerabilidade social, portanto, no
consequncia desse consumo, mas provavelmente causa.
Sendo assim, qualquer poltica de combate ao uso da droga tende ao fracasso se no
for precedida de uma poltica social bem estruturada (Silveira, 2012). Nas palavras do mdicoEvaristo de Moraes (1921), que se ocupava da questo do alcoolismo no incio do sculo XX,
se estudarmos as causas sociais do alcoolismo, verificaremos que, sem a sua remoo, se
torna impossvel vencer o efeito (p. 87).
Outro ponto que a compreenso sobre o avano do consumo do crack e outras drogas
ilcitas deve passar pelo entendimento sobre o aumento de sua ofert