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Relatrio Antropolgico de Reviso de Limites da
T.I. Porto Lindo (Jakarey) que resultou na identificao da
TERRA INDGENA GUARANI-ANDEVA
YVY KATU
Portaria N 724/PRES
Fabio Mura - Antroplogo Coordenador do Grupo Tcnico
Rubem F. Thomaz de Almeida Antroplogo Colaborador
VOLUME I
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Relatrio Antropolgico de Reviso de Limites da
T.I. Porto Lindo (Jakarey) que resultou na identificao da
TERRA INDGENA GUARANI-ANDEVA
YVY KATU
Portaria N 724/PRES
Fabio Mura - Antroplogo Coordenador do Grupo Tcnico
Rubem F. Thomaz de Almeida Antroplogo Colaborador
VOLUME II
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Sumrio
VOLUME I
Introduco-----------------------------------------1
Parte I: Dados Gerais
1.1 - Os Guarani andeva --------------------- 4
1.2 - Origem e localizao Guarani ------------------------ 5
1.3 Os Guarani e a realidade colonial ------- 8
1.3.1- ------------------ 91.3.2- "Redescoberta" dos Guarani -------------------------------- 11
1.4 - SPI e FUNAI: indigenismo de integrao ----------------------------- 15
1.5 - Sistemtica de desapropriao de terras Guarani no MS ------- 19
1.6. - Algumas consideraes sobre os fatos histricos e as fontes escritas ---- 20
1.7 - Da criao da reserva indgena Jakarey (Porto Lindo) configurao dotekoha de Yvy Katu ----------------------- 23
1.7.1 - Fontes escritas e depoimento de regionais sobre a terra dos ndios ----- 23
1.7.2A configurao do tekohade Yvy Katu ---------- 28
Parte II: Habitao Permanente
2.1Cosmologia e relao com a terra --------- 33
2.2 - Morfologia social, organizao social e distanciamento espacial ----- 35
2.3 - Tekoha e tekoha guasu:duas importantes categorias nativas na definioterritorial ----------------------------------- 39
Parte III: Atividades Produtivas
3 - Atividades econmicas ------------------------- 50
3.1 - Agricultura ---------------------------- 50
3.2 - Caa, pesca, e coleta ---------------------------------------- 52
3.3 - A relao com o mundo dos brancos, problemas atuais e a necessidade daterra ------------------------------------ 54
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Parte IV: Meio Ambiente
4.1 - Caracterizao regional -------------------------------- 58
4.2 - Impactos ambientais --------------------- 58
4.3 - A situao ambiental no caso de Yvy Katu ----------------------- 59
4.3.1 - Proposta para recuperao de espaos florestais e importncia da reaidentificada ------------------------------------ 64
4.4 - Ocupao da rea ------------------------ 66
4.5 - Intervenes de apoio ---------------------------------- 68
Parte V: Reproduo Fsica e Cultural
5.1 - Situao demogrfica ---------------------- 715.1.1 - Desapropriaes de terra e crescimento populacional ------------- 71
5.1.2 - Diminuio da taxa de mortalidade ----------------------- 73
5.2 - Relevncia da rea identificada para a reproduo fsica e cultural ---- 73
Parte VI: Levantamento Fundirio
6.1 - Levantamento fundirio ---------------------------- 76
Parte VII: Concluso e Delimitao
7.1Concluses ------------------------------------------- 797.2 - Proposta de limites de Yvy Katu --------------------------------- 83
Bibliografia --------------------------------- 85
VOLUME II
Anexo 1Diagramas de Parentesco
Anexo 2Transcrio das Entrevistas
Anexo 3Cpias de Documentos em Microfilme do Museu do ndio
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Anexo 4
Mapa da T.I. Porto Lindo
Anexo 5
Documentao Fornecida pela FUNASA
Anexo 6
Relatrio de Caracterizao Ambiental
Anexo 7
Levantamento Fundirio
Anexo 8
Mapa e Memorial Descritivo de Delimitao da T.I. Yvy Katu
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Parte I
Dados Gerais
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1.1. Os Guarani andeva
Os Guarani fazem parte da famlia lingstica Tupi-Guarani e hoje podem ser
classificados em trs subgrupos: os Guarani-Kaiowa (autodenominam-se Pa-
Tavyter), os Guarani-Mbya e os Guarani-andeva. Seu territrio abarca o Paraguai
Oriental (Kaiowa, andeva, Mbya), norte da Argentina (Mbya) e o sul do Brasil Rio
Grande do Sul (Mbya), Santa Catarina (Mbya), Paran (Mbya e andeva), So Paulo
(Mbya e andeva), Rio de Janeiro, Esprito Santo (Mbya) e Mato Grosso do Sul
(Kaiowa e andeva) (v. Mapa 1). Trata-se de um universo populacional de
aproximadamente 50/55.000 indivduos.
No Mato Grosso do Sul, onde est o maior contingente Guarani, somam perto de
25/28.000 pessoas. Aqui estaremos focando apenas os andeva (perto de 9/11.000
indivduos) e, mais especificamente, aqueles referidos s terras de Yvy Katu (v. Croqui
1; Mapa 2 e 3) que engloba a reserva indgena conhecida na FUNAI como Porto Lindo,
cuja reviso dos limites este relatrio pretende fundamentar. Os ndios, por seu turno, se
referem a ela com o topnimo Jakarey, em decorrncia do crrego homnimo que
determina um de seus limites. Por tal razo nos referiremos sempre a esta reserva com o
nome indgena, acrescentando a denominao oficial entre parnteses, para no gerar
mal entendidos.
O territrio atual dos andeva compreende os rios Jejui Guasu, Corrientes e
Acaray, no Paraguai, e, no Brasil, o Rio Iguatemi e seus afluentes (v. Mapa 1), sendo
encontrados tambm nas proximidades da juno deste com o Paran. Bartolom (1977)
fala de um "habitat histrico" localizado ao sul do Jejui Guasu, ao longo do Alto Paran
e ao sul do Iguasu. H tambm assentamentos andeva no interior do Paran e de So
Paulo, e no litoral deste ltimo.
Estes Guarani-andeva podem ser reconhecidos na literatura etnogrfica por
diferentes nomes. Metraux (1948) os denomina Chiripa; Susnik (1979-80) refere-se a
esse subgrupo como Chiripa Guaraniou Ava Katuete; este ltimo nome tambm
utilizado por Bartolom (1991); Ava Guarani, segundo Cadogan (1959), a
autodenominao utilizada por eles; Schaden (1974) informa que o nome andeva , que
significa "ns todos [os Guarani]", auto denominao de todos os Guarani, porm a
nica forma usada pelas comunidades que falam o dialeto registrado por Nimuendaju
com o nome de Apapukuva" (Schaden, 1974:2) referindo-se s comunidades do
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Iguatemiygua, isto , que pertencem ao Rio Iguatemi, mais especificamente regio
compreendida pela banda direita deste rio, no MS (v. Mapa 2). Os Guarani das aldeias
de Ocoy e Tekoha Aetete, no Paran, so enfticos em afirmarem-se como Chiripa,
termo rechaado pelos que vivem nas aldeias de Bananal e Ararib (So Paulo) e
Jakarey, Pirajuy, Cerrito, Amambai e outras no Mato Grosso do Sul, que se reconhecem
como Ava Guarani. Tanto no Mato Grosso do Sul como no Paran, parecem
desconhecer denominaes como apapukuva ou oguaiuva (v. Nimuendaju, 1987;
Gadelha, 1980).
Em territrio brasileiro no Mato Grosso do Sul onde se concentra o maior
nmero de andeva. Exceo feita aos Postos Indgenas Jakarey (Porto Lindo) e
Pirajuy, onde no h significativa presena Kaiowa, os andeva no MS vivem nasexguas reas dos PIs de Dourados, Amambai, Caarapo, Limo Verde e Ramada, todos
demarcados no incio do sculo passado, com predominncia marcante desse outro
subgrupo Guarani. H ainda reas recentemente ocupadas por grupos macro familiares
andeva, resultado de seu empenho em se reapropriar de terras de onde foram, no
passado, compulsoriamente retirados (v. adiante), tais como Cerrito, Sete Cerros e
Potrero Guasu. Observam-se diferenas entre os andeva localizados no extremo sul do
estado, isto , nas proximidades do Rio Iguatemi (os Iguatemiygua), e os situados mais
ao norte (os Mbarakajuygua), em reas prximas aos rios Amambai, Dourados e
Brilhante. De igual modo, so observadas diferenas entre os andeva do MS e do
Paran.
1.2. Origens e localizao dos Guarani
Os Guarani contemporneos tm origem "nos matos tropicais que recobrem as
bacias do Alto Paran, do Alto Uruguai e a borda do planalto meridional brasileiro"
(Schmitz 1979, 57). Foram encontrados em stios arqueolgicos elementos que revelam
caractersticas distintivas do grupo tnico a partir do sculo V (anos 400 d.C), j
claramente diferenciado dos outros grupos pertencentes ao tronco lingstico tupi-
guarani.
As populaes "proto Guarani" que deram origem aos Guarani (cf. Susnik 1979-
80) realizaram intensos movimentos migratrios. Dados arqueolgicos informam que j
nos anos 1.000/1.200 a.C., expandindo-se ao sul a partir de regies hoje localizadas no
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oeste brasileiro (cabeceira dos rios Araguaia, Xingu, Arinos, Paraguai), esses grupos
indgenas ocuparam extensos territrios que hoje constituem partes do Sul e do Centro-
Oeste brasileiro, do norte da Argentina e da Regio Oriental do Paraguai (Cf. Smith,
1978; Susnik 1979-80).
Em pocas pr-colombianas, a ausncia de povoadores no indgenas, o
ecossistema formado por florestas subtropicais favorveis ao cultivo de roados, a
abundncia de matas, aspectos demogrficos e o relacionamento intertnico com outros
grupos autctones, interferiram diretamente na organizao territorial dos Guarani
histricos (v. Susnik 1979-80).
Quando no havia "fatores perturbadores como superpopulao e a conseqente
diminuio de reas de roa, calamidades naturais que incitavam ao novo oguata("caminhar", "andar") migratrio, ou a presso agressiva do gentio vizinho, reafirmava-
se a estabilidade do gura" (Susnik 1979-80: p.16), isto , a apropriao, por grupos
macro familiares ligados entre si, de uma regio determinada onde se assentam em
carter definitivo; por exemplo, pode-se falar dos gura do Rio Paran, isto , o
conjunto de grupos que esto assentados nas proximidades do rio Paran e seus
afluentes, denominados Paranaygura (cf. Montoya, 1876:130), ou os
Yguatemigurada atualidade, ou seja, os grupos andeva assentados na bacia do RioIguatemi. Ao lado desses fatores, a assimetria introduzida nas relaes intertnicas pelo
domnio colonial exacerbou as atividades ritualsticas, de carter salvacionista, dirigidas
por prestigiosos xams que, em alguns casos, provocaram migraes e traslados (
Susnik 1979-80; Melia 1986).
Nos momentos que antecederam a chegada do europeu, os Guarani estavam
assentados em extensas florestas, espalhados em aglomeraes macro familiares, por
terras compreendidas entre os Rios Paraguai, Miranda, Paran, Tiete-Aemby, Uruguai,Jakui e afluentes (v. Mapa 1), assim como no litoral do sul do pas. (Cf. Susnik 1979-
80). Por sua localizao, ser um dos primeiros povos contatados pelo conquistador
espanhol e portugus. Cabeza de Vaca (1971), indo de Santa Catarina (atual
Florianpolis) a Assuno em 1542, registra sua passagem pelos Rios Iguau, Paran,
ent relugaresdeindiosdel a generacin delos
guaranes -115). No
identificados ncleos populacionais com especificidades e p
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diferenciados, mas com identidades que os tornavam pertencentes ao mesmo povo
Guarani (cf. Susnik 1979-80; Azara 1969; Cabea de Vaca 1971; MCA 1951/1970,
entre outros).
As especificidades da organizao espacial dos Guarani histricos, fator de
extrema relevncia para o presente relatrio de identificao, so descritas
sumariamente nas crnicas da poca. Uma das descries mais expressivas aquela
fornecida em breves linhas pelo padre jesuta Antonio Ruiz de Montoya, em seu livro
Note- ndios que, vi vendo sua antiga usana em selvas,ser ras e vales, junto aarroiosescondidos,em trs,quatro ou seiscasasapenas,separadosunsdos - dos padres a povoaes no pequenas e vida poltica (civilizada) ehumana, beneficiando algodo com que se vistam, porque em geral viviam na
destaque nosso).
Um outro jesuta annimo, contemporneo de Montoya, em uma carta-relatrio
datada de 1620 descreve as atividades econmicas e o modo de habitar dos indgenas
oferecendo-nos detalhes significativos. Eis alguns trechos dessa carta:
labradora, siemp resembra en montesy cada tresaospor lo menosmudanchacara. el modo de hacer sus sementeras es: primero arrancan y cortan losarboles pequeos y despus cortan los grandes, y ya cerca de la sementera como
estan secos los arboles pequeos (aunque los grandes no lo estan mucho) les
pegan fuego y se abraa todo lo que han cortado, y como es tan grande el fuegoquedan quemadas las races, la tierra hueca y fertiliada con la enia y alprimer aguaero la siembran de mais, mandioca y otras muchas races ylegumbresqueellost ienemuy buenos: dasetodo con grandeabundancia .
Habitan en casas bien hechas armadas en ima de buenos horcones
cubiertas de paja, algunas tienen ocho y diez horcones y otras mas o menos
conforme el cazique tiene los basallos porque todos suelen vivir en una casa, no
tiene division alguna toda la casa, esta esenta de manera que desde el prinipio
se vee el fin: de horcon a horcon es un rancho y en cada uno habitan dos
familias una a una banda y otra a otra y el fuego de estambos esta en medio:
duermen en unas redes que los espaoles llaman hamacas las quales atan enunos palos que quando haen las casas dejan a proposito y estan tan juntas y
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entretejidas las hamacas de noche que en ninguna manera se puede andar por lacasa. Tienen por los lados tapia franesa y cada aposento tiene dos puertas una
de cada lado pero no tienen ventanas. no tienen puerta ni caja ni cosa cerrada.Todo esta patente y no ay quien toque a cosa de otro. Suspoblacionesantesdereduirseson pequenasporquecomo siemp resiembran en montesqu ierenestar pocosporque no se les acaben y tambien por tener suspescaderos ycaaderosacomodados (MCA, pp. 166-167, destaques nossos).
A situao de vida indgena apresentada pelas passagens citadas apresentava-se
como antittica s conc
alvo de diversas intervenes coloniais na procura de transformar seus costumes e
mesmo escraviza-los.
1.3. Os Guarani e a realidade colonial
Nos trs sculos seguintes chegada do europeu, a histria dos povos Guarani
ser marcada por uma forte presena cristianizadora missionriajesutica, pelo assdio
de "encomenderos" espanhis e por ataques de bandeirantes portugueses. Para
jesutas, os ndios eram objeto de catequese, almas a serem salvas para Cristo; para
"encomenderos" vindos de Assuno, e bandeirantes, vindos de So Paulo, os ndios
em espec ial os Guarani representavam fora de trabalho escravo, nica riqueza
encontrada nesta regio americana.
A literatura (cf. MCA 1951) permite identificar cinco grandes subgrupos
Guarani na chegada do europeu (v. Mapa 1). Os C A R IO S, localizados nas
proximidades do Rio Paraguai e cidade de Assuno (1537), os TAPES, no atual Rio
Grande do Sul e adjacncias e os P A R A N , assentados nas proximidades do rio de
mesmo nome, foram rapidamente dizimados. Mais ao norte, entre o Rio Mbotetey, atualMiranda, e o Rio Apa, estavam localizados os Guarani da provncia do I T A T I M que
viriam a se constituir nos atuais Pa-Tavyter ou Kaiowa (v. Meli et Alii 1976; Susnik
1979-80; Thomaz de Almeida 1991). Um quinto subgrupo Guarani colonial, que o que
nos interessa aqui, ocupava a Provncia paraguaia do G U A I R A, aqui considerados
" ascendentes " dosatuaisGuarani andeva queconfiguram a comunidadede Yvy
Katu.
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bandeirasA "Provncia del Guair" fazia parte do territrio paraguaio e abrangia os atuais
estados brasileiros de Santa Catarina, Paran, Mato Grosso do Sul e So Paulo.
Localizava-se entre "os rios Paranapanema, Paran, Iguau e a indeterminada linha
demarcatria que dividia as terras portuguesas e espanholas, imposta pelo Tratado de
Tordesilhas, correspondendo, em rea, aproximadamente, 85% do atual territrio
ocupado pelo Estado do Paran" (Blasi, 1977: 150). Antes e depois do europeu, eram
terras ocupadas por populaes Guarani (cf. Blasi 1977: 153; v. Cardoso 1969 e MCA
vol. I) que chegavam, em 1557, a aproximadamente "quarenta mil fogos", (cf. Perasso,
16:1987) alcanando perto de 200.000 indivduos.
Assim como a Provncia do Itatim, o Guair tambm adquiria, na situao
histrica que se configurava no final do sculo XVI e incio do XVII, funo estratgica
e importncia geopoltica de destaque. Para espanhis era via de acesso entre Assuno
e a Europa, assim como para estreitamento das relaes com o Brasil; controlada, a
regio propiciaria defesa contra o avano paulista rumo a oeste, razes pelas quais
colonos espanhis investem na ocupao desses espaos para configurao da nova
colnia e na explorao do trabalho indgena, destacando-se o fato de que era esta a
nica riqueza disponvel em toda a regio sob influncia de So Paulo/So Vicente, de
um lado, e Assuno, de outro. O prprio governador do Paraguai "faria uma excurso
subindo o Rio Paran, ultrapassando o Grande Salto de Iguau [onde] firmou aliana
com os caciques Guarani locais, repartindo-os depois em 'encomiendas' de ndios"
(Gadelha, 1981: 82). No sentido de dominar a regio, os espanhis criam as vilas de
Ontiveros e Ciudad Real, nas proximidades da foz do Rio Piquiri, e fundam (1576) a
Vila Rica do Esprito Santo, na foz do Iva com o Corumbata. Certamente que aspretenses expansionistas dos espanhis no passaram despercebidas aos paulistas. No
segundo quartel do sculo XVII, estes "inquietavam-se com os encomenderos que
chegavam s proximidades da vila (SP) para se servirem de ndios", (Belmonte, 1948:
151) principalmente aps a fundao de Villa Rica.
Os padres jesutas, por sua vez, acompanharo esse interesse pelo Guair. Em
1603 o governador do Paraguai, "renunciando a los medios militares, propuso el envio
de misioneros que redujeran los salvages por la predicacin religiosa" (Garay in
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Gadelha, 1980:30). Esperava-se da Cia. de Jesus o mesmo desempenho de outras ordens
religiosas atuantes na Amrica espanhola. Dentro do modelo econmico hispano-
americano, as redues religiosas deviam facilitar o cumprimento das "encomiendas"
servindo de depositrios de ndios, abastecendo o mercado de fora de trabalho escravo
sobre o qual se apoiava o modelo econmico. Entre 1608 e 1768 a Cia de Jesus
implantou dezenas de redues nas "provncias" do Guair, Paran, Itatim e Tapes.
No Guair fundaram as redues de San Igncio e Nossa Senhora de Loreto, s
margens dos Rios Paranapanema e Tibagi. Juntas, essas misses abrigavam perto de
10.000 Guarani em 1614 (cf. Gadelha, 1980). A partir de Loreto, percorreram bacias e
vales do Tibaxiva (Tibagiba), Pirap e Paranapan (Paranapanema) e encontraram 23
ajuntamentos Guarani, o mais distante a 80 lguas (480 km).Mas os jesutas no corresponderam s expectativas desse modelo econmico e,
"na medida em que as redues foram sendo implantadas, os religiosos revelaram
facetas contrrias ao ideal colonial, despertando sentimentos de averso nos hispanos
paraguaios" (Thomaz de Almeida, 1991:10). O projeto jesuta, apesar de "reduzir e
catequizar", contrariava o modelo colonial ao impedir o fluxo de mo de obra escrava,
minando "a base sobre a qual se estruturava a economia colonial e [colocando] em risco
o futuro dos colonos". (cf. Thomaz de Almeida 1991:10; v. Gadelha 1980; MCA 1951),o que acarretou uma ferrenha oposio de "encomenderos". Em Ciudad Real e Villa
Rica as redues jesutas bloquearam o "descimento" de aproximadamente 40.000
ndios, um potencial econmico respeitvel.
As redues "nasceram a partir da situao de encomienda -
encomienda" (Meli 1986: 119); desempenharam, com efeito, o papel esperado, porm,
no para os colonos espanhis, mas sim, posteriormente, tornando-se tal qual "viveiro
de ndios cevado pelos padres" (Cassiano Ricardo 1970:280), sendo til apenas aosbandeirantes paulistas (cf. Thomaz de Almeida, 1991).
A busca de ndios por "encomenderos" espanhis nas proximidades de So
Paulo, num contexto possessrio de territrio apenas parcamente definido pelo Tratado
de Tordesilhas (1494), teria sido um dos motivos da organizao das bandeiras. Em
1628 Antonio Raposo Tavares e Manuel Preto dirigiro a primeira bandeira destinada
ao Guair contendo 900 paulistas e dois mil ndios (cf. Belmonte 1948); antes de 1630
"los portugueses de So Paulo asoladores de estas tierras destruyeron a la dicha
Provincia del Guair" (MCA 1951, Vol. II: 31).
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Os povos indgenas do Guair foram sensivelmente afetados pela presena
europia, "parte muerto con extraordinarias crueldades a manos de los portugueses, y
sus indios Tupis, parte consumido de hambre, huyendo por los montes, parte llevado en
colleras y cadenas..." (Anais do Museu Paulista, 1925). No Guair, "encomenderos"
teriam apresado entre 200.000 e 1.000.000 de indivduos Guarani; os jesutas teriam
reduzido perto de 50.000 e os bandeirantes levado perto de 60.000 (cf. Meli 1986); s
o "assalto de 1629 [ao Guair] teria custado a liberdade de mais de 50.000" (Taunay
1951, Vol. I: 61).
Ao findar o sculo XVII e com a descoberta de pedras e metais preciosos no
Mato Grosso, os ndios deixam de atender os interesses dos planaltinos. O carter das
expedies paulistas mudar substancialmente, encerrando um "ciclo despovoador"
interessava a predao de ndios, transformando o perfil poltico, administrativo e
econmico da colnia. Os ndios da regio passaro a ser importunados apenas quando
deles se necessita ou quando constituem obstculo aos planos do colonizador (v.
Thomaz de Almeida 1991).
1.3.2. "Redescoberta" dos Guarani
O Tratado de Madrid (1750), entre Portugal e Espanha, operou significativas
mudanas nas relaes entre as duas metrpoles e, conseqentemente, na Amrica
colonizada. Modificou fronteiras e deu condies polticas para a expulso de jesutas,
acarretando intensa mobilizao dos Guarani estruturados nas "redues" e o
redimensionamento da realidade daqueles que no haviam sido "reduzidos". Foi
visando redefinir a fronteira entre Brasil e Paraguai. Embora de carter genrico, essas
expedies permitiram o ressurgimento de informaes sobre os Guarani, depois de
dcadas sem registros conhecidos de sua distribuio territorial. Os dirios da Comisso
mencionam vestgios dos ndios montezes, aqueles habitantes dos "montes" (em
espanhol entendido como floresta), vales e afluentes dos Rios Paran, Iguatemi,
Amambai, Dourados, Brilhante, Apa; todos no MS atual. Nos dirios da expedio
relativos a novembro de 1754 se dizia:
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itante por aqui, so os Montezes, hegente a p, vivem em os bosques, no duvidamos, que seria sua habitao esta
montanha, e assim no tnhamos suspeita deles seno quando se entrava entre os osso).
No ms seguinte, em dezembro, a mesma comisso assim relatava:
havio visto, e relao seguinte. Navegro gua a baixo pelo Aguarahy desde
onde estavamos acampados todo o dia 9, (...) Achro caminhos encontrro
(...)
O dia 12 viero ao acampamento os geografos que havio tomado a
vertente referida acima para por ella sahir ao Rio da Demarcao. (...) seu fundo
ou cho he aspero, e desigual; nestesitio viro rastros de ndios Montezes
frescos, e alguns roados em que tinho postos laos para a caa deanimaes; bem conhecro que no estava longe alguma toldaria ou ranchariadelles, e assim hio com grande cuidado, e maior desejo de colher alguns, para
informar-se do que solicitavo neste labyrinto. O dia 11 o conseguiro: sahro
4 Indios dos bosques visinhos a hum roado (...).
(Academia Real de Cincias, 1841, p. 533, destaque nosso).
pelos sculos seguintes
a denominao mais difusa para indicar as populaes que viviam nas regies limtrofesentre Brasil e Paraguai, sem conseguir perceber as peculiaridades culturais e sociais dos
diferentes subgrupos guarani que habitavam aquelas regies. Esse ndios eram
chamados de Caingua, Ka'aiwa, Kayua, Kayov, Kaiow ou outras equivalncias
fonticas e ortogrficas do termo Guarani ka'a (mato) gua (do, de), "aquelesqueso
ou pertencem ao mato" (v. Fonseca 1937; Bartolom 1977; Thomaz de Almeida
1991).
Quase um sculo depois da demarcao da fronteira, uma expedioencomendadapelo Baro de Antonina com o objetivo de encontrar uma rota apropriada
que comunicasse Mato Grosso com Paran, entrou em contato com os indgenas em
questo. Vejamos a descrio que fornece daquele encontro, ocorrido em 1848, um dos
encarregados daquela viagem, o sertanista Joo Enrique Elliot:
encontrmos muitos vestgios de ndios dobrando uma volta, os avistmos de repente lavando-se no Rio: Seriam
cincoenta, e correram para o mato da barranca, ficando alguns mais corajosos
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por verem smente uma cana com quatro pessas dentro. Confiados na fortunaque nos tm seguido passo a passo em todas estas exploraes, nos
approximmos praia, e saltando em terra os abramos, e os brindmos commantimentos, muitos anzes, facas e alguma roupa que traziamos de resto. Eram
es que encontrmos nas margens do Rio Ivahy
em 1845, tinham o labio inferior furado, e traziam dentro do orificio umbatoque de rezina, que primeira vista [parecia] alambre, cobriam as partes queo pudor manda esconder com panno de algodo grosso; os cabellos eram
compridos e amarrados para traz (...) Suponho que elles tm relaes com agente do estado do Paraguay, porque tendo elles no pescoo e nos braos alguns
-me castilhano eapontaram par o rumo de S.O. (...) Fallei algumas palavras de lingua guarany, e
entenderam-me perfeitamente (...) Estesndiosparec iam deboa ndole,f ce isdereduzir,epodem ser muito teisaosnavegantes: resta queo governo dboas providencias a respeito, para que os no hostilise, matando uns,captivando outros,eaffugentando o resto
Dois anos depois, uma outra expedio encomendada pelo Baro de Antonina e
comandada pelo sertanista Joaquim Francisco Lopes, embrenhando-se no Rio
Iguatemi, fornecia mais informaes sobre os ndios por ele encontrados:
chamado, porque as casas acham-se disseminadas e como por bairros.
Entramos em um rancho coberto de folhas de caet, sendo outros cobertos defolhas de jeriv.
A alda collocada entre as suas roas ou lavouras, que abundam
especialmente em milho, mandioca, abobora, batatas, amendoins, jucutup,
cars, tingas, fumo, algodo, o que tudo plantado em ordem; e toda poca
prpria fora a sementeira (...)
(...) os terrenos que habitam vo at o Iguatemi junto Serra deMaracaj deve seguir sempre pela terra firme e boa, desviando os pantanos; pela margemd
grande agua, mas que encontrando por ahi os indios cavalleiros, de quem se
1850, pp. 320-321, destaques nossos).
As viagens realizadas pelos dois sertanistas forneceram informaes que
despertaram interesses nos governantes da poca, suscitando avaliaes morais e
polticas sobre esses ndios. Em 1848 o Diretor Geral de ndios da Provncia de Mato
Grosso, falando dos indgenas que habitavam as regies banhadas pelo Rio Iguatemi e
seus afluentes, denunciava o pouco conhecimento que se tinhasobre aquela populao e
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a necessidade de com ela realizar contatos duradouros. Em uma passagem do seu
relatrio, ele se exprime do seguinte modo:
Rio Iguatimy; consta com tudo quehebastantenumeroza deindolepacf ica,dada a vida sedentaria e agricola, dotada de constncia , qualidaderarissima ent re os Indigenas. Continuando a irem se povoando os nossosterrenos do Sul de Miranda ho de tomar incremento as nossas relaes com os
Cayvs e hedeesperar quea sua cathequezese ja to fcil como vantajoza(Relatrio de Diretor Geral de ndios da Provncia de Mato Grosso, 1848,
destaques nossos).
1870 proclamando a derrota do Paraguai, dando lugar a uma ulterior reviso das linhasde fronteira. Em uma situao ps-belica, que instaurava um clima de claro controle
territorial na faixa de fronteira, o presidente da provncia de Mato Grosso assim se
exprimiu sobre a presena dos indgenas naquelas regies:
habito o territrio inculto da Provncia, entretanto, creio que no haver
exagerao em elevar esse nmero de 50.000, porque s as numerosas tribus
dos Caiugus, Coroados e Guaranys, provvel que excedo aquellacomputao.
No estado, porm, em que vivem, so completamente inuteis eprejudiciaes sociedade pelas suas frequentes correrias, trazendo
continuadamente em sobressalto os lavradores do interior da Provncia.
C reio que o nico meio de chamal-os civilisao ser o dapersuao, procurando se modificar os seos habitos por intermedio deM issionrios que possuidos da verdadeira f christ , se internem nossertes com o fim de aldear e catechisar esses infeli zes Presidente da Provncia de Mato Grosso, 1879, p. 33, destaque nosso).
Finda a Guerra do Paraguai e aps a redefinio dos limites internacionais com
aquele pas, o governo federal ofereceu, em regime de concesso, imensas pores de
terra para a explorao da erva-mate ao provisionador da comisso de demarcao, o Sr.
Thoms Larangeiras, que funda, em 1892, a Companhia Matte Laranjeiras (v. Correa
Filho, 1969). As regies onde a Cia. operava coincidiam com os lugares onde os ndios
Kaiowa e andeva habitavam. A Cia., no tendo como objetivo a posse da terra, no
tentou expulsar os ndios; muito pelo contrrio, estabeleceu com estes relaes detrabalho, haja vista tambm os conhecimentos disposio do grupo indgena sobre o
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manejo dos ervais. Nas primeiras dcadas do sculo XX a Cia. perdeu o monoplio
sobre essas terras, sendo que muitos ervateiros passaram a trabalhar por conta prpria,
muitas vezes estabelecendo parcerias com a prpria Matte Laranjeiras, que lhes garantia
a distribuio da erva fora do mercado regional.
O fim do monoplio acarretou a perda dos poderes conferidos Cia. que, por
dcadas, obstruiu a entrada e impediu a permanncia de colonos ou concorrentes nas
reas exploradas (cf. Thomaz de Almeida, 1991). Deste modo, nas primeiras dcadas do
sculo XX, paralelamente a essa transformao das atividades extrativistas, e de modo
significativo, a regio foi palco de uma incipiente imigrao de colonos provenientes do
sul do pas, que passaram a ocupar parcelas de terra implementando progressivamente a
pecuria. Foi assim que o cone sul do Mato Grosso do Sul, que por longo tempo foihabitado unicamente pelos ndios Guarani, constituindo seu territrio, passou a ser
sistematicamente desapropriado pelos brancos, seguindo uma lgica neocolonial
favorecida pelas polticas de estado atravs das prticas indigenistas oficiais.
1.4. SPI e FUNAI: indigenismo de integrao
Trabalhando especificamente sobre as polticas indigenistas, Lima (1987) assim
se exprime a respeito das aes efetuadaspelo estado em face dos ndios:
projetos indigenistasvisavam, ainda, atingir trs objetivos:(a) abrir terras colonizao do interior, no sentido de viabiliza-la, ao pr fim
aos atritos entre os ndios e brancos; (b) realizar, tomando a expresso de Jorge
conferir- -175).
Em um outro trabalho (1995), o autor coloca em evidncia como o primeiro dos
objetivos citados justificava plenamente as ltimas trs letras da sigla original adotada
pelo rgo tutelar, que era SPILTN (Servio de Proteo aos ndios e Localizao de
Trabalhadores Nacionais). Logo aps (1918), o Servio tornou-se apenas SPI.
Para pr em prtica este primeiro objetivo, o SPI devia, portanto, territorializar
os ndios. Como justamente define Oliveira, terr itorializao
insofismvel) um territrio bem determinado a um conjunto de indivduos e
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No caso dos Guarani do atual Mato Grosso do Sul, estas prticas levaram ao
aldeamento dos ndios, obrigando-os a residir em espaos restritos com fronteiras fixas,
seguindo a lgica ocidental e neocolonial.
Uma das primeiras medidas do SPI foi criar a 5 Inspetoria Regional, com sedeem Campo Grande, para atender populaes indgenas do sul dos estados do ento Mato
Grosso e de So Paulo. Relatrios das primeiras dcadas do sculo XX revelam que
entre Ponta Por e Guair (extenso de mais de 600 km), havia, "espalhados pelos
ervais, semresidncia fixa, uma quantidade imensa de indivduos Caius" (Estigarribia
1928)
Apesar do esforo do SPI em reservar e garantir terras para essa populao, a
viso positivista de integr-los sociedade nacional definiu procedimentos geradoresdos problemas fundirios que vive hoj
apropriado. As terras reservadaspelo Estado e que depois se tornariam
os Postos Indgenas, eram entendidos como o lugar onde pudessem tornar-se produtivos
(Idem). Havia, assim, a suposio de que os ndios assentados "evoluiriam" at a
"assimilao" total "civilizao". A "aldeia" como concebida pelo SPI no era "umlugar ocupado por ndios", seu habitat ou lugar de assentamento tradicional, mas sim
uma rea escolhida por funcionrios (Relatrio de Inspetoria 1924) que podia ou no
coincidir com a ocupao dos ndios. A "aldeia" concebida pela poltica indigenista
oficial constitui-se, assim, numa unidade administrativa, sob controle de funcionrios de
governo. Os critrios para sua escolha (cf. idem) eram: qualidade da terra, salubridade
da regio e vias de comunicao, e, como dito, o lugar era definido por funcionrios,
sem consulta aos ndios.Os resultados dessa poltica revelaram-se insatisfatrios, pois a "prostituio que
se nota em to alta escala nas aldeias fundadas por ns, a conseqncia forosa do
aldeamento, que (traz) vida sedentria (...) homens que no tm as artes necessrias
para viver nela" (Magalhes 1913:142). Apesar dessa constatao, a ao indigenista de
Estado, inclusive aps 1967 com a FUNAI, persistiu na mesma linha desfavorvel aos
ndios, que consistiu em no reconhecer ocupaes e concepes territoriais tradicionais
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Acreditava-se que as oito reas reservadas pelo SPI at 1928 respectivamente
Amambai (Decreto n 401 de 10.05.1915), Dourados (Decreto n 404 de 03.09.1917),
Caarapo (Decreto n 684 de 20.11.1924), Jakarey (Porto Lindo), Pirajuy, Ramada
(Sassor), Takuapiry e Limo Verde (Decreto n 835 de 14.11.1928) , para os Kaiowa
e andeva do extremo sul do Mato Grosso, seriam suficientes para solucionar questes
fundirias. Alm disso, apesar dos decretos reservarem 3.600 ha (cf. Correa Filho,
1924) para cada uma das reas indgenas reservadas pelo SPI, j no procedimento de
demarcao excetuando-se os casos de Dourados e Caarap todas sofreriam
drsticas redues em funo de arranjos entre agentes de governo e interesses de
colonos e empresas regionais.
Para os andeva localizados no extremo sul do MS aqui focados, foram criadasas reserva de Pirajuy, com um total de 3.600 ha, demarcada, porm, em 1930, com
2.188 ha, e Jakarey (Porto Lindo), tambm identificada com 3.600 ha, demarcada com
2000 ha, e atualmente medindo 1648 ha. Ambas foram escolhidas por Pimentel
Barboza, funcionrio do SPI, em viagem de reconhecimento da regio, em 1927. Em
seu relatrio dirigido ao inspetor interino da 5 Inspetoria Regional do SPI, o Sr.
Estigarribia, assim se pronunciava Barboza sobre Pirajuy:
Escolhi, tambem, na regio de Ipehum, outra area de terras destinadasaos indios, que em numero superior a quinhentos, vivem nas margens dos riosPirajuy, Taquapery, Aguar e outros.
Esses indios esto em servios de herva de Marcellino Lima e no tmalda propriamente dita. Formam pequenos nucleos, espalhados, quereunidos em uma s propriedade formaro um numero elevado talvez amaisdemi l,ser eunidosforem todos.
So limites dessas terras escolhidas: Ao Nascente uma matta devoluta;
ao Norte terras de matta devoluta; ao Poente da cabeceira do Corrego Pirajuy,onde foi ter o limite Norte, uma linha recta que v ter linha divisoria da
republica do Paraguay; ao Sul pela linha divisoria da republica do Paraguay.
As terras acima constam de matta de cultura e herval, e devem ter a
7, p. 24, destaques nossos).
Com relao reserva de Jakarey (Porto Lindo) a passagem que segue nos
interessa aqui, sobremaneira; trata-se de fonte documental que explicita como esta rea
teria sido concebida pelo Estado brasileiro, e que, aliada s descries e fontes orais de
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indgenas e regionais, torna irrefutvel a ocupao andeva do atual tekoha do Yvy
Katu:
j disse, h muitos ndios dispersos pelos hervaes e que necessitam de terrasonde possam se localisar e cuidar de suas lavouras.
Por isso,escolhi, tambm,na margem direita do Iguatemy uma areade 3.600 hec ta res, com os seguintes limites: ao Nascente pelo cr rego o doporto desse nome; ao Norte pelo rio Iguatemy; no Poente pelo Corrego (idem: p. 71, destaques nossos)
O relatrio de Pimentel Barboza e do Inspetor do SPI Estigarribia (1928), que
nele se baseava, relatam a presena de ndios tidos como dispersos. Na tentativa de dar
tutor no respeitou nem considerou padres tnicos de ocupao do habitat tradicional
(v. parte II), e seguindo a "ideologia indigenista de aldeamento", mobilizou as famlias
indgenas "dispersas" sobrepondo-as nas nicas duas reas reservadas para toda a
regio.
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1.5. Sistemtica de desapropriao de terras Guarani no MS
Com o fim do monoplio de explorao do mate pela Cia. Matte Larangeira a
partir da metade da dcada de 1910, tem incio uma sistemtica dedesapropriaode
terras ocupadas pelos Guarani no sul do atual MS, concomitante ao aumento no nmero
de colonosos primeiros ttulos de propriedade so concedidos a partir de meados dos
anos 1920. Os Guarani, uma vez mais em sua histria, procuram distanciar-se do karai
(branco) e "esconder-se" nas matas existentes em seu territrio; com a implantao de
empresas agro-pecurias, estas florestas sero derrubadas e os Guarani paulatinamente
"redescobertos". Os Guarani so apreciadores das florestas (), tudo o que estas
representam e contm, seu entorno e suas representaes simblicas. Tanto a literatura
como a experincia prtica junto a eles revelam uma tendncia permanente e contumaz
na busca do isolamento e distanciamento tanto quanto possvel do karai(branco). So
inmeros os exemplos, contemporneos e histricos, do surpreendente que ao karai
(branco) encontrar Guarani onde supunha no existir. Os que se tornam proprietrios
podem mesmo reconhecer que a regio territrio indgena, mas argumentam,
invariavelmente, que em suas terras "nunca houve ndios" (v. Thomaz de Almeida,
1984, 1985, 1985a). A "descoberta" constatada com a derrubada da mata. Os
fazendeiros, ao encontrar ndios, ou os expulsam de imediato ou utilizam sua fora detrabalho em atividades no especializadas e mal remuneradas como derrubadas de
matas, corte de postes, plantao de pastos e outras atividades no especializadas que, a
rigor, beneficiariam apenas as terras indgenas que se tornaram fazendas.
Verificam-se diferentes modalidades para retir-los de terras literalmente
ocupadas h sculos. O espectro dessa sistemtica abrange de aes no beligerantes e
oficiais de despejos e traslados, at expulses violentas com homens e armamentos. A
expulso pode vir precedida de avisos para que os ndios saiam, e de ameaas de quesero retirados fora. Se ineficazes, seguem-se atos de violncia, como visitas de
homens armados e eventuais espancamentos ou humilhaes para demonstrar a
veracidade das intenes. Muitas vezes os ndios perambulam dentro dos espaos de
ocupao tradicional que, no entanto, se tornaram fazenda (v. item 2.3), mudando-se de
um lugar para o outro na tentativa de driblar o fazendeiro e permanecer na terra. Diante
da resistncia dos ndios procede-se expulso: indivduos remunerados pela fazenda e
no raro armados, constrangem ou foram, homens, mulheres e crianas a subir emcaminhes que os despejaro nas proximidades de algum Posto Indgena ou na beira de
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estradascomo ocorreu com os Kaiowa do Yvykuarusu, antiga Fazenda Paraguasu, os
quais foram literalmente despejados dos caminhes de gado que os havia transportado
beira da estrada que liga Pedro Juan Caballero a Assuno, no Paraguai (v. Thomaz de
Almeida, 1984).
O Estado brasileiro participou dessa sistemtica ao pretender "aldear ndios
dispersos". A FUNAI, at no muito tempo, ao deparar-se com ndios "desaldeados",
invariavelmente se prontificava a convenc-los a mudarem-se para Postos Indgenas,
sem questionar a origem das famlias encontradas, subtraindo seus direitos terra,
corroborado com os despejos de comunidades, construindo e legitimando uma
sistemtica de desapropriao de terras Guarani.
Segundo o senso comum na regio, o direito dos ndios se reduz s minsculas"terras reservadas", nas "aldeias" ou PIs da FUNAI. Esta barreira, construda pelo
pensamento regional, at pouco tempo inibia intentos dos ndios procurarem seus
direitos. Valia o argumento de que "no era terra indgena" e que ndios deveriam
dirigir-se aos PIs.
Esta dinmica, contudo, vem sendo rompida pelos ndios. De 1977 para c (cf.
Thomaz de Almeida, 1984, 1985, 1985a, 1991) constata-se uma pertinaz disposio dos
Guarani em garantir suas terras, no s relutando em sair de onde esto como tambm
mobilizando-se, a partir de onde esto, para recuperar terras que foram obrigados a
abandonar no passado. O acompanhamento desse processo tem possibilitado desvendar
conceitos Guarani de "terra", "comunidade", "territrio", "mato" e outros, bem como
conhecer melhor suas atuais formas de organizao social, abrindo, por sua vez, a
possibilidade de reconsiderar procedimentos de agncias indigenistas, oficiais ou no,
frente temtica fundiria desta populao. Nos ltimos vinte anos, doze reas
tradicionais Guarani foram recuperadas.
1.6. Algumas consideraes sobre os fatos histricos e as fontes escritas
No correr desta primeira parte do relatrio foram apresentadas informaes
procedentes, em sua maioria, de fontes documentais histricas muito heterogneas. As
fontes escritasespecialmente aquelas produzidas por viajantes ou agentes missionrios
e de governo que no passado transitaram pelos territrios indgenas , antes de serem
utilizadas, devem ser cuidadosamente analisadas. Como foi possvel ver,
freqentemente nas crnicas das viagens se descrevem as populaes indgenas
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encontradas com a lente da poca e a partir dos interesses dos organismos que
financiaram as expedies. Missionrios, militares, exploradores, sertanistas e
indigenistas, exprimem com freqncia juzos e consideraes analticas sobre o objeto
das suas observaes, que manifestam uma clara viso etnocntrica, projetando as
prprias categorias sobre a realidade social e cultural observada. A propsito, so muito
teis as seguintes advertncias de Oliveira:
etnografia moderna (e no corresponda a uma induo do prprio cronista ou do
pesquisador atual), necessrio que ela seja localizada em um eixo que abranja
tempo e espao. Isso requer efetivamente deixar o material falar sobre aquilo
que est sendo observado, as situaes sociais concretas, deixando de lado tanto
as generalizaes duvidosas feitas pelos prprios cronistas, quanto a pretensodo antroplogo de reunir informaes procedentes de diferentes tribos e
diferentes momentos num monstro mecnico e artificial (a sociedade ou a
-89)
Considerando tais advertncias, procuramos oferecer ao longo da argumentao
uma seleo de trechos1que reputamos significativos para salientar as descries feitas
em vrias pocas do modo de distribuio espacial e as atividades desenvolvidas pelos
Guarani, assim como, paralelamente, sobre as atitudes manifestadas pelos narradores
sobre aqueles indgenas.
Finalizando esta parte histrica, nos parece oportuno sumarizar as caractersticas
das atividades e dos modos de habitar relativos a esses ndios, colocando em evidncia,
atravs de uma viso de conjunto, suas importantes implicaes.
As passagens selecionadas e aqui apresentadas ilustram com uma certa clareza a
continuidade temporal de ocupao guarani nas regies limtrofes entre os atuais
estados-naes Brasil e Paraguai. Seguindo simplesmente as descries feitas pelosautores daquelas viagens (como aconselhado por Oliveira, citado anteriormente),
emergem as seguintes caractersticas:
1) Estes eram sedentrios e agricultores. Utilizavam o mtodo da coivara, que
consiste em abater as rvores, queim-las, e com as prprias cinzas fertilizar o solo.
Uma vez que a fertilidade do solo diminui em decorrncia do seu uso, d-se um
1 Parte das passagens selecionadas so apresentadas tambm por Monteiro (1981), numa rica e
interessante coletnea de fontes histricas sobre os Guarani do Mato Grosso do Sul.
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deslocamento para outro lugar, deixando-se aquele campo em repouso por alguns anos
para que recupere as suas caractersticas originrias atravs do seu reflorestamento
espontneo. Assim, posteriormente se o reocupa, recomeando o ciclo descrito antes.
Esta atividade agrcola ainda a base da subsistncia dos Guarani, embora geralmente
seja aplicada com variantes devido impossibilidade de cultivar em reas florestais
como no passado. No obstante isto, a lgica da rotao permanece a mesma.
2) Os Guarani viviam em grandes casas onde se alojava toda uma famlia
extensa. Estas casas distanciavam-se umas das outras, uma, duas ou mais lguas2. No
caso das descries mais recentes, a caracterstica da habitao grande j no aparece
como distintiva de um modo de habitar. Na passagem de Lopes anteriormente citada
(1950: pp. 320- casas acham- parece indicar uma forma de distribuio similar atual. Neste caso, as habitaes das
famlias nucleares distribuem-se em torno da residncia do chefe da famlia extensa,
ocupando uma determinada regio ou parte desta.
No item 2.2. dedicaremos a ateno a explicitar as caractersticas e as
implicaes do modo de distribuir-se no espao, fato fundamental para compreender
como a comunidade indgena em questo concebe o territrio.
Existem ainda outros dois elementos significativos que emergem das fontes
citadas, provenientes dos juzos manifestados pelos narradores. O primeiro refere-se
quilo que descrevem como no correspondendo imagem de aldeia presente em seus
pensamentos. De fato, tanto Lopes em 1850, quanto Pimentel Barboza em 1927
conforme citado acima
O segundo elemento, ligado de certo modo ao primeiro, constitudo por uma
prtica colonial e neocolonial que pretende, ao colocar os indgenas todos juntos,
obrig-los a assumir modos de vida e de distribuio espacial que so prprios aos
povos ocidentais. Nas passagens de Montoya (1639), Elliot (1848), do Relatrio de
Diretor Geral de ndios da Provncia de Mato Grosso (1848), do Relatrio de Presidente
da Provncia de Mato Grosso (1880) e de Pimentel Barboza (1927), v-se claramente
expressas estas intenes.
2Uma lgua corresponde a 6 km.
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A ocupao sistemtica das regies de fronteira aqui em jogo, a interveno do
rgo indigenista oficial do estado brasileiro do qual Pimentel Barboza era um
representante, e as atividades missionrias implementadas naqueles lugares trazem luz
uma tentativa de reduzir aqueles indgenas a modos de vida diversos. Embora os xitos
nesta direo tenham sido escassos, os efeitos sobre os Guarani foram significativos, j
que favoreceram elaboraes culturais especficas dos mesmos como fruto dos
processos de terr itorializaopelos quais passaram, elaboraes estas que sero objeto
de ateno da segunda parte do presente relatrio.
No prximo item nos dedicaremos ao caso especfico das famlias andeva que
reivindicam os espaos por elas ocupados tradicionalmente e que so considerados
exclusivos atravs da categoria nativa detekoha
3
1.7. Da criao da reserva indgena Jakarey (Porto Lindo) configurao
do tekoha de Yvy Katu
1.7.1- Fontes escritas e depoimento de regionais sobre a terra dos ndios
Entre os espaos escolhidos por Pimentel Barboza (v. item 1.4) para reservas
indgenas havia, como vimos, um localizado na margem direita do Rio Iguatemi.
Confrontando a descrio daquele indigenista com o Croqui 1 e o mapa da A.I. Porto
Lindo (v. Anexo 4), verifica-se que os limites definidos por ele no correspondem aos
que cercam a atual reserva. Constata-se que os procedimentos demarcatrios realizados
posteriormente no se orientaram pelas informaes e limites apresentados por PimentelBarboza, ocasionando no s uma reduo drstica na superfcie da rea Indgena, mas,
principalmente, provocando o afastamento dos grupos familiares que residiam nas
cabeceiras e ao longo dos crreg
mencionados pelo indigenista em suas primeiras intenes. Calculando-se que a terra
devia medir, segundo os padres do SPI, 3600 ha, tendo como limites a oeste o corrego
Guasori, a sul terras devolutas e a norte o Rio Iguatemi, para obter essa superfcie, o
3Sobre esta categoria nativa e sobre seu uso contemporneo como categoria que expressa espacialidade
ver o item 2.3.
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corrego indicado por Pimentel Barboza como limite leste, no podia que ser o que os
ndios indicam como Naranjaty, que desemboca num lugar por eles denominado de
Para poder entender a mudana de posio na formao da reserva indgena, nopodemos limitar-nos a considerar as arbitrariedades na escolha dos lugares e sobre as
dimenses que estes deveriam ter segundo a tica do SPI. No caso da reserva de Jakarey
(Porto Lindo) incidiu tambm outro fator: a presena na regio de ricos ervais e do Rio
Iguatemi. Estas terras, ento consideradas devolutas, eram objeto de explorao da erva
mate por parte de ervateiros do Brasil e do Paraguai, coincidindo com o declnio da
Companhia Matte Laranjeira, que perdia o monoplio sobre a regio. Trata-se, a rigor,
de ex-funcionrios da Cia. que passaram a explorar a erva por conta prpria. Dadoimportante a ser considerado o fato de que o escoamento da produo de erva-mate
era feito, em grande medida, atravs dos cursos fluviais que se tornavam, como no
poderia deixar de ser, relevantes para a economia regional. Nesse sentido, controlar as
margens e os portos4desses escoadouros era importante.
A explorao da erva mate na regio onde foi constituda a reserva Jakarey
(Porto Lindo) era conduzida pelo Sr. Ataliba Viriato Baptista, ex-funcionrio da Cia.
Matte. Este ervateiro comeara a explorar os exuberantes ervais das proximidades doPorto Lindo anos antes da formao da reserva indgena, e teve participao ativa na
definio do local, estabelecendo gestes junto ao SPI e na defesa de seus interesses. No
intuito de controlar espaos convenientes explorao dos ervais prximos ao Rio
Iguatemi, Ataliba arquitetoucomo afirmam veementes os ndios para que a reserva
indgena pretendida fosse delimitada a aproximadamente 5 km de distncia da margem
do rio, localizando-se mais ao sul do que fora sugerido por Pimentel Barboza. A rea
escolhida banhada principalmente pelo crrego Jakarey (ver Croqui 1), razo pela qualos ndios referem-se a ela com este nome.
Apesar da existncia da reserva oficial destinada aos ndios, por dcadas grupos
macro familiares andeva permaneceram em seus lugares de origem, de onde foram
sendo progressivamente expulsos.
4Alm do Porto Lindo, conforme depoimentos dos ndios, entre os crregos Guasori e Jakarey, haviaainda outros dois portos: Porto Novo e Porto Moreno (v. Croqui 1).
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Segundo depoimentos do regional Fabiano Pereira5, nascido em Iguatemi no
ano de 1923, nas terras exploradas por Ataliba existiam numerosas famlias indgenas
vivendo, inclusive aps a sada do ervateiro, ocorrida na dcada de 1950. Quando jovem
este regional, junto com seu pai, transportava boiadas entre o Iguatemi e o Paran para a
Cia. Matte Laranjeiras, atravessando esses lugares. Durante essas viagens o Sr. Pereira
constatou a ocupao, por parte dos nativos, das regies que iam do crrego Guasori ao
Remanso Guasu (v. Croqui 1), escolhendo os ndios, sempre segundo o regional,
lugares que pudessem garantir caa e pesca. Segundo o Sr. Pereira, quando saiu do local
o ervateiro Ataliba Viriato Baptista, as famlias indgenas restantes ainda eram
numerosas, sendo que muitas delas distribuam-se no muito longe da atual ponte no rio
indicaram ser o Porto Novo (ver Croqui 1). Um documento relativo implementao
de projetos de desenvolvimento rural em reas indgenas, datado de 1963, enumerando
no oramento as comunidades Guarani a serem beneficiadas, menciona, alm de Porto
Lindo, aquelas de Porto Novo e Iguatemi (v. Anexo 3), sendo a primeira
presumidamente referida justamente aos lugares expostos pelo Sr. Fabiano Pereira (cf.
Croqui 1).
Ocorre que, alm dos moradores da reserva instituda pelo SPI, uma enorme
quantidade de ndios vivia no ento distrito de Iguatemi. No relatrio do funcionrio do
SPI, Joaquim Fausto Prado, de 1948, consta que, de fato, existiam, na poca, numerosas
rapidamente ocupadas, sendo os
de Mato Grosso, que vive fora dos Postos, em terras tidas como devolutas, em reservas
sem instalaes do SPI e em fazen
distrito) a estimativa era 1500 ndios. Progressivamente estes ndios foram sendo
duo dessas famlias indgenas para as reservas
5A transcrio da entrevista encontra-se em Anexo 2.
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da regio, forando-as a se mudarem no s para Porto Lindo como tambm para o PI
Sassor ou, como conhecida pelos ndios, aldeia Ramada6.
A prtica de aldeamento compulsrio nessa regio foi, assim, procedimento
corriqueiro, como apresentado tambm pelo testemunho de outro regional, o Sr.Alexandre Dias7. Este regional trabalhou em Cerrito (v. Mapa 2) contribuindo no
desmatamento dessa regio. Nesse local, segundo seu depoimento, existiam vrias
famlias indgenas que depois, na dcada de 60, foram expulsas pelos fazendeiros e
conduzidas a Jakarey (Porto Lindo), o que contribuiu para o aumento populacional
dessa exgua reserva. Quando mais jovem o Sr. Alexandre trabalhou tambm como peo
de Ataliba V. Baptista, e na sua entrevista nos oferece alguns pequenos mas importantes
detalhes sobre a vida dos ndios nas terras exploradas por esse ervateiro. Segundo oregional, os ndios prestavam servio nos ervais e, ao mesmo tempo, mantinham suas
prprias atividades agrcolas. Com relao aos locais de moradias dos andeva, nos
oferece uma descrio similar quela relatada pelo Sr. Fabiano, com os ndios vivendo
-se a residir apenas
nos limites da A.I. Jakarey (Porto Lindo). Segundo informao do prprio regional, uma
das causas da no permanncia de numerosos andeva nesses limites era devida ao fato
de que a reserva carecia de fontes de gua, indispensveis ao assentamento das unidades
domsticas .
De fato, como aconteceu em muitas outras situaes, as tentativas de reduziros
Guarani a espaos limitados no apresentaram os resultados esperados, j que muitas
famlias indgenas se mantiveram por muitos anos em seuslugares, seguindo parmetros
da prpria organizao social e distribuio espacial8.
Como foi possvel ver, as fontes documentais e os depoimentos de regionais
deixam clara a massiva presena indgena no antigo distrito de Iguatemi e de modoespecfico nos espaos adjacentes reserva Jakarey (Porto Lindo), reserva esta criada
justamente para concentrar os indgenas em um s local, com o intuito de liberar as
6
N 18 de
e Santa Ceclia, 7A transcrio da entrevista encontra-se no Anexo 2.8Ver mais adiante item 2.2.
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terras tradicionalmente por eles ocupadas, a fim de que fossem tomadas em posse pelas
frentes coloniais.
O testemunho dos regionais Fabiano Pereira e Alexandre Dias colocam em
destaque tambm o fato de que os ndios costumavam viver em todos os lugares ondefosse possvel ter acesso caa, pesca e coleta, assim como a fontes de guas e terras
aptas para agricultura caractersticas estas de fundamental importncia para se
entender como esses ndios concebem e se distribuem no espao, bem como
desenvolvem suas atividades econmicas. Na segunda e terceira partes deste relatrio
explicaremos em detalhe a importncia dessas caractersticas.
As descries dos regionais, porm, nos oferecem informaes sobre famlias
indgenas genricas, no chegando a precisar nomes e lugares onde estas estavamassentadas. Como ocorre normalmente, os regionais, inclusive os que trabalharam junto
com indgenas (caso do Sr. Alexandre), mantm com estes ltimos, quando muito,
relaes individuais superficiais. No horizonte cultural destas pessoas, as caractersticas
da organizao social Guarani no so percebidas, nem de interesse chegar-se a tal
conhecimento. Por esta razo, as redes de relaes que ligam as diversas famlias
indgenas, assim como o vnculo que cada uma delas estabelece com a terra, no so
percebidas, fatos que, ao contrrio, nos interessam aqui sobremaneira. Neste sentido,para poder reconstruir as relaes que se estabeleciam e se estabelecem ainda entre as
famlias indgenas com os lugares de ocupao tradicional, temos necessariamente que
nos apoiar nos depoimentos dos prprios andeva, legtimos depositrios da memria
histrica que lhes diz respeito e sobre as lgicas por eles utilizadas na construo de
seus espaos territoriais.
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1.7.2.- A configurao do tekohaYvy Katu
Segundo os depoimentos dos indgenas, existiam, antes da formao da reserva
de Jakarey, numerosas famlias que se distribuam em diversos lugares nas cabeceiras e
ao longo dos crregos da regio. Por comodidade descritiva denominaremos esses
lugares de micro-regies, cada uma com caractersticas ecolgicas e recursos naturais
especficos9. A amplitude dessas micro-regies depender, assim, mais dos limites
impostos pela natureza (rios e crregos) do que das atividades humanas nelas
desenvolvidas. Durante o trabalho de campo foram identificadas 12 micro-regies, cada
uma delas objeto de ocupao tradicional. Entretanto, nem todas elas configuram o
tekohade Yvy Katu. Vejamos-las na seqncia:
Micro- - Vivia neste local um importante lder
religioso (anderu) chamado Gregrio Martins10. Um dos mais antigos do lugar, estava
cercado de enorme famlia extensa e construra sua casa a aproximadamente 2 km da
ponte que atualmente cruza o Rio Iguatemi (v. Croqui 1). Parente de Gregrio,
de descendncia encontra-se reconstruda no Diagrama de parentesco 1. Junto com ela
moraram nesse local os filhos Eduardo Martins e Maria Luza Martins, esta com seu
esposo, Fernando Fernandes. Moradores antigos dessa micro-regio eram tambm os
ascendentes, por via materna, da esposa de Eduardo, como a me, Leonora Benites, o
pai, Remisio Recarte, que tambm era um importante xam, e o pai da me, Mateo
9Como ser argumentado na segunda parte deste relatrio, antigamente os ndios no tinham necessidade
de constituir espaos territoriais bem delimitados e etnicamente exclusivos. Somente a partir das
condies impostas pela ocupao neocolonial e pela lgica ocidental de subdiviso da terra os ndios
passam a conceber os espaos onde se estabelecem as relaes comunitrias como espaos fechados,
embora com dimenses variveis. Este processo de construo territorial leva os ndios progressivamente
a incorporar essas micro-
fechados que constituem os atuais tekoha.Estes espaos, uma vez que se encontram numa rea delimitada
com usos tnico e familiarmente exclusivos, tornam-
conforme foi definido por Thomaz de Almeida (1991).10Como todo xam Guarani, possua em sua residncia um espao cerimonial (jeroky hpe) para danas
rituais (jeroky) e outras relevantes manifestaes religiosas. Como se poder ver na segunda parte deste
relatrio, as cerimnias religiosas desempenham um papel central no processo de integrao social do
grupo tnico em pauta.
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Urquiza, sendo que este ltimo morou, no fim de sua vida, na micro-regio 5,
denominada Limaty.
Micro-regio 2, denominada Potrerito - Era habitada principalmente pelos
Rodriguez. No Diagrama de parentesco 2, reconstrumos a descendncia de EliRodriguez, que pertencia quele lugar. Junto com ele chegou a morar o filho, Celestino
Rodrigues, e os netos, Dominga Rodrigues e Julio Rodrigues.
Micro-regio 3, denominada Naranjaty - Era um lugar onde estavam
assentados os Tapari. Quase na desembocadura do crrego, num local definido
da rea delimitada, antes que fosse instituda a reserva Jakarey (Porto Lindo). Em
Naranjaty, viveram tambm os irmos Eusbio e Gervsio Tapari, parentes de Alperes,cujas linhas genealgicas reconstrumos no Diagrama 3. Junto com Eusbio chegou a
residir em Naranjaty seu filho com sua esposa, respectivamente, CaetanoTapari e Rita,
cujo sobrenome no foi lembrado pelos informantes. Com Gervsio moraram nesse
local sua esposa, Luza Riberto, e seu filho, Geraldo Tapari.
Micro-regio 4,denominada Remanso Guasu- No foi lugar onde estiveram
assentadas famlias. Constitudo essencialmente por floresta estacional, este lugar foi, e
ainda , importante para a prtica da caa, da coleta e, na beira do rio Iguatemi, da
pesca. Sendo adjacente a Naranjaty, a micro-regio Remanso Guasu fazia parte, mais
que tudo, do raio de ao dos Tapari, que nela desenvolviam parte significativa das
atividades de subsistncia. Este local, porm, era alvo tambm das atividades dos
moradores de Limaty, Yvu e Kaxikue que, no tendo disposio grandes cursos de
gua, podiam ocasionalmente dirigir-se ao Remanso descendo o crrego Jakarey,
procura de antas e lugar onde realizar pescarias significativas.
Micro-regio 5, denominada Limaty, e micro-regio 6, denominada Yvu -
Foram reas de ocupao sobretudo dos Recarte (v. Diagrama 4), que ainda esto a
assentados. Esses lugares encontram-se no interior da reserva Jakarey (Porto Lindo),
sendo que hoje os Recarte dividem o exguo espao disposio com outras famlias
indgenas procedentes das micro-regies internas rea objeto de delimitao ou de
outros antigos tekoha da regio dos quais foram expulsas ou de onde migraram,
incorporando-se em Jakarey (Porto Lindo). Em Limaty, por exemplo, est assentada
grande parte dos descendentes dos Tapari, alm de um bom contingente do antigotekoha de Sombrerito. Por outro lado, no Yvu encontram-se representantes dos Villalba,
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procedentes de Cerrito (bem antes de que este fosse demarcado), e outras famlias de
Sombrerito. Entre o Yvu e a cabeceira -se famlias de Garcete
Kue (tekoha
nas proximidades da desembocadura do rio Iguatemi), bem como de Potrerito e do
-regies que compem a reserva de Jakarey (Porto
Lindo), encontram-se tambm famlias que procedem de reas indgenas situadas em
territrio paraguaio, especialmente de Guavira Poty, Bajada Guasu e Fortuna,
localizadas na proximidade da fronteira. No Mapa 2, com um crculo vermelho
indicamos as reas de origem das famlias mais relacionadas com aquelas de Yvy Katu.
A micro-regio 7,denominada Kaxi Kue- Era rea ocupada pelos Jara, cujo
topnimo deve-se justamente ao nome de um antigo morador pertencente a essa famlia,o Sr. Cassimiro (Kaxi) Jara. Depois de sua morte, a maior parte dos parentes de Kaxi
migraram para reas localizadas no Paraguai, sendo que no local permaneceu o irmo,
Otcio Jara, do qual foi possvel reconstruir a genealogia (v. Diagrama 5).
As micro-regies 8 (ngela Kue), 9 (Pakova), 10 (Sanja Hu), e 11 (Avelina
Kue), so tambm indicadas pelos ndios como de antiga habitao por parte de famlias
indgenas. A micro-regio 12, sendo adjacente a Avelina Kue, constitua-se em rea de
explorao econmica dos moradores dessa micro-regio.
Das famlias que ocupavam estas ltimas micro-regies, contudo, no existem
hoje descendentes localizveis. So locais de ocupao mais antigos com relao aos
configurados no interior do permetro da identificao, de cujos moradores no se pode
estabelecer uma relao direta com os atuais habitantes de Jakarey (Porto Lindo). Nesse
sentido, os prprios ndios indicando essa distncia temporal e social para com os
ocupantes desses lugares, no manifestaram interesses para uma eventual incluso
dessas terras na rea identificada.
Cabe observar que as demandas pela terra, sendo conduzidas pelas famlias
extensas (emoare) por linha genealgica vinculadas a lugares especficos, pretendem
recuperar, em primeiro lugar e de modo imprescindvel, os espaos antigamente
ocupados pelos prprios antepassados. Por outro lado, h que se levar em conta as
condies impostas pela dominao neocolonial que, como foi visto mais acima, no
correr de dcadas tem constrangido os andeva a espaos cada vez mais reduzidos.
Recuperar os espaos de antiga ocupao no tarefa fcil considerando-se a
hostilidade poltica a nvel regional manifestada para com os ndios especialmente
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quando esto em jogo as terras que foram ocupadas pelas frentes coloniais , e a
lentido burocrtica e jurdica que caracteriza os processos que levam demarcao de
terras indgenas, especialmente no MS. Todas estas dificuldades no so despercebidas
pelos Guarani, inclusive pelos de Yvy Katu. Assim sendo, os ndios proporcionam as
prprias demandas fundirias em funo das situaes histricas, de modo que estas
possam ser minimamente atendidas.
As consideraes feitas at aqui nos ajudam a compreender as motivaes
histricas que levaram configurao do tekohade Yvy Katu. Na prxima parte nos
dedicaremos especificamente s caractersticas cosmolgicas e aos elementos de
organizao social dos Guarani contemporneos, salientando os processos de construo
das categorias de espacialidade entre esses ndios, fato que nos permitir contextualizare compreender as caractersticas organizativas que do um sentido social, histrico e
religioso rea objeto desta identificao.
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Parte II
Habitao Permanente
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2.1Cosmologia e relao com a terra
Os rituais Guarani constituem formidvel elemento de organizao social e
integrao desse grupo humano. Entre os mais importantes figuram aqueles daconsagrao do milho e das plantas novas (emongarai, avatikyry), enquanto cultos
agrrios, e, fora do perodo da colheita, tambm os jeroky, cerimnias estas prepostas
em grande medida manuteno do equilbrio csmico. Manter em equilbrio o mundo
para os Guarani significa criar os pressupostos ticos e morais positivos (teko por) que
possibilitam a manuteno de uma conduta sagrada (teko marangatu), expressa atravs
das aes e atividades humanas, para que a terra (yvy) no sofra males que, em ltima
instncia, poderiam vir a dar-lhe fim.A yvy11 deve ser entendida como a parte do cosmo criada e destinada aos
cuidados dos ndios por ande Ru Guasu (Nosso Grande Pai), a entidade suprema do
panteo indgena. Segundo os andeva, a entidade suprema realizou este ato
cosmognico jogando sobre uma tarimba de bambu ( takuara) um punhado de terra
(entendida neste caso como matria inorgnica). A ampliao do espao ocupado por
esse punhado de terra foi obra do kyvu kyvu, um inseto que, num continuado movimento
para dar a forma atual da yvy(terra). ande Ru Guasu criou tambm os prprios Ava
(Homem Guarani), que emergem das primeiras sementes por ele plantadas nessa terra,
ato este que institui a relao entre os ndios e o solo, como relao telrica que serve
como base para a construo do sentimento de autoctonia.
Dessa forma, a terra assume sentido especial para os ndios e, diferentemente de
uma concepo ocidental, esta no pode ser considerada como parcela ou como
propriedade cuja posse estaria nas mos de um indivduo ou conjuntos destes. Aocontrrio, os Guarani indicam com insistncia que so eles que pertencem terra, sendo
a prpria ao fator central para a sua conservao (da terra). Assim sendo, as atividades
11Para os Guarani,yvy contemporaneamente terra (matria inorgnica), mundo e solo. A distino entre
uma ou outra caracterstica se faz atravs da contextualizao lingstica da palavra yvyou, no caso do
solo, atravs da adjetivao que permite diferencia-los; por exemplo, yvy morot (terra branca), yvy pyt
(terra vermelha), yvy h (terra preta) e yvy sayju (terra amarela), cada um com propriedades especficas
para a agricultura, atividade esta que permite e d sentido a essa classificao.
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xamnicas e ritualsticas sintetizam, de algum modo, as condies que cada comunidade
vive e as prprias dificuldades em manter tal equilbrio csmico.
O risco eminente de uma catstrofe apocalptica, denominada ,
mancomuna os diversos grupos guarani em torno da necessidade de conservar umaordem moral cuja base organizativa encontra sua razo de ser numa concepo cultural
que cria um vinculo osmtico entre os seres humanos prediletos (os prprios Guarani) e
a terra, entendida no simplesmente como espao fsico, mas como um ser vivente.
As metforas utilizadas pelos Guarani para indicar as caractersticas da terra so
geralmente ligadas ao corpo humano, onde as funes primrias de comer, descansar e
alimentar passam a ser atributos importantes para sua fisiologia. Nesse sentido, os
ndios permitem que a terra se alimente durante o descanso previsto nas tcnicas decoivara, mediante o qual haver um reflorestamento espontneo (denominado pelos
ndios de omboka'aguyjevy: que o mato se refaa por ele mesmo), enquanto no lugar
plantado ser a prpria terra que alimentar os ndios. Os rituais (como os emongarai e
os jeroky),por sua vez, permitiro que a terra no adoea, mantendo o equilbrio nessa
relao osmtica. As plantas, como o milho, que para eles sagrado, so tratadas como
crianas, colocando-se mais uma vez em destaque a viso antropomorfa dos elementos
da natureza.
Outro fator importante a ao xamnica dirigida a estabelecer contatos
constantes com mundos meta-histricos, aes com vistas muitas vezes a superar os
impasses da vida cotidiana, incluindo tambm os que so atribudos ao enfraquecimento
da relao osmtica com a terra e, por conseqncia, do ande reko
Guarani. Pode-se dizer que em proporo s condies vividas pelos ndios em cada
situao local (possibilidade ou no de: acessar a terra, manter e/ou implementar as
atividades agrcolas, de caa, de pesca e de coleta, respeitar as relaes de reciprocidadeentre os grupos macro-familiares, etc.) podem ser ativadas manifestaes rituais
prolongadas visando alcanar outros mundos, considerando a iminente destruio da
superfcie da terra atravs de fenmenos metericos (na seqncia, vento, fogo e gua)
ou, no sentido contrrio, exercer fortes presses para que esta se conserve atravs da
repetio constante e extenuante de oraes () e cantos evocativos (mborahei).
Embora o fim do mundo (enquanto destruio da superfcie da terra) seja
continuamente esperado, na maioria dos casos o que mais se procura manter o
equilbrio csmico, tendo o risco da catstrofe como advertncia moral a partir da qual
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articular a prpria tica e modo de ser (ande reko). Estas advertncias morais
enunciam com muita nfase algo que pode ser exposto sob forma de uma equao que
se demonstra muito significativa: a terra reduzida /modo deser (teko)enfraquec ido.
Por conseqncia, um teko (modo de ser) enfraquecido no pode contribuir
adequadamente manuteno do equilbrio csmico. Neste sentido, a perda de acesso
terra devido s condies da dominao colonial que tm constrangido os Guarani,
implica um risco crescente de catstrofe. A luta para recuperar terras tradicionais leva
consigo, desta forma, a necessidade de continuar ou manter relacionamento constante
com este ser vivo e que deve ser bem tratado para que no adoea, procurando
restabelecer, na medida do possvel, as condies da sua morfologia social que
neste caso, de Yvy Katu.
O fato de os ndios, para obter essas condies, procurarem uma distribuio
sarambi) das famlias, coloca em evidncia a peculiaridade
morfolgica das relaes sociais dos Guarani, como veremos no seguinte item.
2.2. Morfologia social, organizao social e distanciamento espacial
A morfologia social (a forma que a sociedade assume fisicamente no espao) de
um grupo humano no algo definitivamente dado e imutvel. Sua formao um fato
histrico, em contnua transformao e adaptao s condies do contexto territorial
onde tal grupo desenvolve suas atividades. de se destacar a importncia que revestem
neste processo os princpios de organizao social como elementos bsicos para a
agregao dos indivduos e a fixao dos traos culturais necessrios para a
consolidao de um determinado sentido de pertencimento (familiar, comunitrio,
tnico, nacional, etc.) e de uma determinada viso do mundo.
Os aspectos sociais e a viso do mundo (cosmologia) de um determinado grupo
humano, que vo se constituindo historicamente, podem, portanto, ser sublimados de
determinadas caractersticas culturais que discriminam outras formas de organizar as
relaes entre indivduos e indivduos, entre famlias e famlias e entre os grupos
sociais. Criam-se, assim, formas especficas de distanciamento (e aproximao) social
que vm determinar o que denominado espao social. Este no construdo
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abstratamente; encontra as condies da sua expresso em um espao fsico a partir das
condies ecolgicas e geogrficas, das caractersticas das atividades econmicas
adotadas pelo grupo, e das limitaes ou possibilidades oferecidas pelo eventual contato
intertnico (guerra, comrcio e/ou troca, relaes de trabalho, de dominao, etc.).
No caso dos Guarani temos uma morfologia social baseada na disperso das
reas residenciais em espaos territoriais considerados passveis de serem percorridos
pelos indivduos para desenvolver as suas atividades econmicas e efetuar as visitas
cotidianas e peridicas aos parentes, estabelecendo alianas matrimoniais e polticas
necessrias construo do sentimento comunitrio e intercomunitrio. Na base da
organizao social destes indgenas est a famlia extensa12, denominada (termo
utilizado pelos Kaiowa) ou em
oare (como a denominam os andeva), que,dependendo da coeso social e do contexto histrico, pode encerrar em seu interior at
cinco geraes. Com a morte do tami, lder da famlia extensa, diminui o vnculo entre
os filhos do falecido, favorecendo a formao de novas famlias extensas espacialmente
independentes.
Antigamente os integrantes das famlias extensas viviam sob um mesmo teto,
numa habitao denominada ogajekutuou oygusu(Schaden 1974; Thomaz de Almeida
1991; Mura 2000). Susnik (1979-80) considera que a organizao entre os Guarani dopassado era expressa por uma unidade poltico-territorial, o gura, um amplo espao
territorial onde relacionavam-se unidades formadas por famlias extensas, unidades
estas definidas pela autora como -ga, isto , o constituindo a famlia extensa e
oga, representando a habitao comum que abrigava a totalidade do grupo familiar13.
Localizando-se os -gaa varias lguas de distncia um do outro como descrito
no item 1. 2, no trecho citado de Montoya , os encontros entre eles efetuavam-se
periodicamente, especialmente em ocasio de convites para as festas religiosas eprofanas, assim como para determinar alianas e expedies guerreiras. Na vida
quotidiana as atividades econmicas (agricultura, caa, pesca e coleta) e tcnicas
(construo de artefatos) eram fruto da cooperao do grupo domstico constitudo
simplesmente por um -ga, este garantindo, assim, uma autonomia relativa para
com a unidade maior do Gura.
12Sobre o tema, ver: Nimuendaju 1987 [1914]; Schaden 1974 [1954]; Melia et Alii 1976; Meli 1986;
Susnik 1979-80, 1983; Bartolom 1977; Thomaz de Almeida 1991, 2001; Chamorro 1995; Reed 1995;
Mura 2000.
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As transformaes de ordem material advindas nos territrios onde vivem
aqueles indgenas devidas circulao de objetos provenientes do exterior, assim como
sucessiva presena do homem branco com suas atividades, introduziram novas
possibilidades de subsistncia para os ndios, constitudas num primeiro momento pela
troca, e em seguida pelo estabelecimento de relaes de trabalho temporrio com os
novos colonos, denominadas de changa (Thomaz de Almeida 2001; Mura 2000).
Contrariamente ao que o senso comum normalmente afirma, o engajamento dos
indgenas nestas novas atividades no implica no abandono do sentimento tnico, e
muito menos numa mudana radical do estilo de vida guarani (Thomaz de Almeida
2001). Os indgenas passam progressivamente a transformar a organizao das unidades
domsticas, tornando-as mais flexveis e adaptadas s novas circunstncias.
Desse modo, tem-se a passagem do viver todos em uma nica cabana
distribuio das famlias nucleares em cabanas menores em torno da residncia do
tami, lder da famlia extensa (Thomaz de Almeida 2001; Mura 2000). Esta
transformao, sendo o fruto de uma integrao na vida indgena de novas atividades,
implicou tambm numa adaptao das novas formas habitacionais s condies do
trabalho agrcola, da caa, da pesca e de coleta, reproduzindo no interior do espao de
domnio da famlia extensa as mesmas regras que eram adotadas para distanciar estas de
outras. Isto ocorre porque cada famlia nuclear se estabelecer em um espao que possa
garantir o cultivo dos campos, a colocao de armadilhas, a coleta de plantas
medicinais, de frutos selvagens, de mel, etc.
A nova configurao espacial, portanto, d continuidade lgica de apropriao
do territrio perpetuada pelos Guarani. Verifica-se, de fato, a formao de grupos
macro-familiares que se estabelecero preferencialmente nas nascentes de rios e
crregos, distribuindo-se as famlias nucleares ao longo e ao redor destes cursos fluviaisou minas de gua. O espao intercorrente entre os lugares de domnio de uma famlia
extensa e os de outra tende a seguir as caractersticas da rede fluvial, podendo ocorrer,
portanto, que os grupos possam estar muito distantes um do outro. O que une estes
grupos familiares entre si fisicamente uma rede de trilhas ( )atravs das quais
os indgenas se comunicam e mantm elevada circulao de pessoas, seguindo a lgica
do oguata (andana), que determina a amplitude das relaes de parentela e
comunitrias. O ir de uma residncia a outra, justamente o oguata, uma instituio
13Ver no item 1.2 interessante descrio de uma habitao Guarani feita por jesuta annimo em 1620.
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motivada culturalmente, cujos reflexos esto presentes na cosmologia guarani. Nas
narraes mticas, as divindades do panteo indgena percorrem caminhos que os levam
de residncia em residncia, e atravs disto fundam as instituies para a humanidade,
bem como as relaes desta com a natureza (Bartolom 1977).
O aspecto religioso, em virtude de seu papel central na manuteno do equilbrio
csmico, fundamental na formao e manuteno das relaes sociais e econmicas.
justamente por ocasio das cerimnias religiosas, s quais freqentemente se seguem
festas profanas, que os indivduos provenientes de vrios lugares podem travar
conhecimentos e solidificar alianas, dando lugar a unies matrimoniais e alianas entre
grupos.
As regras das relaes comunitrias, por outro lado,so efetuadas atravs deaty(reunies formais) das quais todos podem participar, mas que exprimem principalmente
as linhas polticas dos lderes das famlias extensas. Durante estas reunies se designa,
com base em qualidades pessoais, um mburuvicha (lder comunitrio), que ir
coordenar atividades comuns e representar externamente as polticas da comunidade.
Por ocasio de conflitos entre as diversas famlias extensas que do vida aos liames
comunitrios, podem efetivar-se as seguintes situaes: 1) simplesmente interrompem-
se as relaes, ficando o grupo minoritrio isolado, 2) em ausncia de fronteiras fsicasque se interponham entre os indgenas e a natureza da qual obtm a sua subsistncia, os
grupos minoritrios podem deslocar-se para nascentes ou margens de rios mais
distantes, ou 3) a partir da sua localizao, o grupo minoritrio estabelece novas
relaes com famlias extensas mais distantes, incorporando-se nelas ou dando vida a
uma outra relao comunitria.
Estas caractersticas da vida poltica comunitria e intercomunitria que foram
descritas at aqui espelham as exigncias da morfologia social do grupo em situaesnas quais, como foi evidenciado, existe uma continuidade territorial e ecolgica que no
impe aos indgenas barreiras indevassveis obrigando-os a estar em espaos reduzidos
e com fronteiras bem delimitadas. Os Guarani, como foi visto na primeira parte deste
relatrio, foram progressivamente levados a essas ltimas condies pela poltica
desenvolvida pelos organismos indigenistas oficiais do Estado brasileiro, coadjuvado
pelas atividades missionrias que se implantaram na regio14 a partir das primeiras
14Ver Brand 1997 e 2001; Thomaz de Almeida 1991; Lima 1995.
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dcadas do sculo XX. No tocante a situao dos Guarani no Paraguai, verifica-se em
certa medida algo anlogo, embora o INDI (Instituto Nacional Del Indgena), organismo
indigenista desse pas, tenha iniciado suas atividades somente nos anos 70 do sculo
passado. Ao mesmo tempo as relaes compulsrias com as frentes coloniais tm
produzido efeitos significativos na maneira dos ndios entenderem e conceituarem o
espao onde desenvolvem sua existncia. Porm, contrariamente aos entendimentos
mais corriqueiros, os Guarani no tm adotado outra tica cultural (sabidamente a das
frentes coloniais); ao contrrio, o conhecimento adquirido com as relaes de contato
tem permitido aos grupos macro-familiares refletir sobre suas categorias espaciais
tradicionais, produzindo ricas e detalhadas formulaes expressas atravs da noo
nativa de tekoha
2.3 Tekoha e tekoha guasu: duas importantes categorias nativas na
definio territorial
Apresentamos a seguir uma definio sobre tekoha, resultado de pesquisas
realizadas nos anos 1970 entre os Pa-Tavyter (Kaiowa) do Paraguai, em situaes no
muito diferentes daquelas vividas pelos mesmos ndios no lado brasileiro:
Su tamao puede variar en superficie [...], pero estructura y funcin semantienen igual: tienen liderazgo religioso propio (tekoaruvixa) y poltico
grandes fiestas religiosas (avatikyry y mit pepy) y las decisiones a nivel
poltico y formal en las reuniones generales (aty guasu). El tekoha tiene un reabien delimitada generalmente por cerros, arroyos o ros y es propiedad comunal
exclusiva (tekohakuaaha); es decir que no se permite la incorporacin o la
i 1976: 218)
Em seu contedo, como nos parece, esta definio no considera devidamente as
condies histricas nas quais os ndios constroem suas categorias e instituies. Os
autores apresentam anlises resultantes do trabalho desenvolvido pelo Proyecto Pa-
Tavyter15
15Pa-Tavyter , como mencionado anteriormente, a autodenominao dos Kaiowa.
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na regularizao das Colnias (terras indgenas) dos Pa-Tavyter (Kaiowa) no
Paraguai.
Das 24 reas demarcadas at 1975, apenas uma superou os 11.000 ha, e assim
mesmo por condies especiais e com a interveno de militares simpatizantes dosndios; uma outra foi legalizada com pouco mais de 5.800 ha. Superior a 2000 ha
somente outras duas, sendo seis as que oscilaram entre 1000 e 2000 ha. As 14 reas
restantes oscilam entre 52 e 846 ha. A situao apresentada naqueles anos de 1970 deixa
evidente a necessidade de negociao dos espaos demarcados (v. PPT/PG 1977). As
medidas reduzidas das superfcies legalizadas esto umbilicalmente ligadas
impossibilidade de superar barreiras definidas pela situao de subordinao ao domnio
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.Este estado de coisas no se limita s regies onde vivem os Pa. Em um recente
trabalho, Richard K. Reed (1995), que realizou suas pesquisas junto aos Chiripa
(Guarani andeva) no Paraguai, apresenta um mapa que ilustra um certo nmero de
comunidades do entorno da Colonia Itanarmi, as quais foram abandonadas em
decorrncia das presses exercidas por brancos (ver Mapa 4). Tomando em
considerao a dimenso da rea atualmente em posse dos ndios que foi legalizada
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