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Centro Universitário Senac
Juliana Luiza de Melo Schmitt
Mortes Vitorianas
corpos e luto no século XIX
São Paulo
2008
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Juliana Luiza de Melo Schmitt
Mortes vitorianas: corpos e luto no século XIX.
Dissertação apresentada ao Centro Universitário Senac,
como exigência parcial para obtenção do grau
de Mestre em Moda, Cultura e Arte.
Orientadora: Profª Drª Eliane Robert Moraes
Centro Universitário Senac – Campus Santo Amaro.
São Paulo, março de 2008.
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Juliana Luiza de Melo Schmitt
Mortes vitorianas: corpos e luto no século XIX.
Dissertação apresentada ao Centro Universitário Senac,
como exigência parcial para obtenção do grau
de Mestre em Moda, Cultura e Arte.
Orientadora: Prof.ª Drª Eliane Robert Moraes
A banca examinadora em sessão pública realizada em 28 de abril de 2008,
considerou a candidata: Aprovada
1- Examinadora: Profª Drª Marisa Werneck
2-
Examinadora: Profª Drª Maria Lúcia Bueno
3-
Presidente: Profª Drª Eliane Robert Moraes
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Resumo
Propõe-se, neste trabalho, uma reflexão acerca do conceito de morte – em diferentes
acepções – durante o período vitoriano. A morte da espontaneidade e dos instintos
naturais, a morte das cores no vestuário e os sentimentos e atitudes diante do fim da
vida são os temas centrais dessa monografia.
Palavras-chave
História da moda; História do corpo; História da morte; Século XIX; Vestuário; Luto.
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Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos
Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,
Uma carniça repugnante.
O céu olhava do alto a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa
Chegaste quase a sucumbir.
Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,
Dali saíam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso
Por entre esses trapos nefandos.
Charles Baudelaire. Uma carniça. 1857.
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Sumário:
Nota Introdutória
Corpos e luto no século XIX ..................................................................................... 08
Capítulo 1
A morte de si .............................................................................................................. 12
Capítulo 2
Luto ............................................................................................................................ 50
Capítulo 3
A morte do outro ........................................................................................................ 99
Bibliografia Geral ...................................................................................................... 139
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Nota Introdutória
Corpos e luto no século XIX
Diante da morte, os homens reagem. Não apenas pelo fato biológico em si,
verdade incontornável da natureza, mas do que ele representa: foi a percepção da
finitude que levou o ser humano a procurar compreender, com todos os meios possíveis,
o sentido de sua existência. Em larga medida, as concepções de morte implicam
concepções de vida.
As atitudes e os comportamentos diante do óbito mudaram de acordo com as
diferentes épocas e as diferentes sociedades. De maneira geral, em todas elas, diversas
práticas rituais acompanham o evento, preenchendo-o de carga simbólica. E porque o
conceito de morte é, portanto, histórico, transformando-se no decorrer do espaço-tempo
e refletindo variadas visões de mundo em eras passadas, foi possível começar a produzir
sua historiografia, ou seja, registros sobre a maneira como os grupos humanos
vivenciam a morte. Tais discursos, desde a década de 1970, passam a compreender um
campo da, então recente, História das Mentalidades, que se convencionou chamar de
História da Morte.
Chama a atenção, nesses estudos, que nas sociedades ocidentais exista uma
espécie de ruptura nítida entre os comportamentos diante da morte em épocas pré-
industriais e nas subseqüentes industriais urbanas. No primeiro caso, nas culturas
campesinas e aldeãs, dedicadas a economias agrícolas ou artesanais, o grupo é o
principal alicerce de um sujeito, em todas as fases de sua vida. Fazia parte dessa
mentalidade comunal que ninguém fosse abandonado na velhice nem na doença e,
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quando ocorria um falecimento, a comunidade participava ativamente de todo o
processo de perda. Nessas culturas, os homens apegavam-se à crença numa morte-
passagem; percebiam-se integrados a uma coletividade terrena da qual todos eram parte,
que de certo modo se repetia num nível outro, divino. O “além” se torna uma projeção
da vida cotidiana e se perpetua por intermédio de ideologias religiosas que garantem
essa transmutação. Graças a essa solidariedade coletiva e aos diversos rituais que
acompanhavam o luto, tornava-se possível mitigar a angústia, superar a dor e retomar a
vida.
O progresso do pensamento individualista não permitiu a permanência desse
sistema mental. Os acontecimentos históricos que levam à substituição de um modelo
feudal para as modernas sociedades capitalistas e urbanas, desapropriam a coletividade
da função que assegura mútuo apoio entre os sujeitos. A importância crescente dos
talentos pessoais – e a conseqüente competição entre os homens –, aliada ao
enfraquecimento das doutrinas religiosas, desencadeia o desenvolvimento da concepção
de indivíduo e, por extensão, a morte adquire novos significados. Esse sujeito do
período moderno dominava a natureza a sua volta, mas não a sua própria. Amedrontava-
se frente ao que não conhecia e, por isso, afastava a morte de suas preocupações
cotidianas. Paulatinamente, e em oposição ao que ocorria, o grupo passa a exigir que
cada um resolva seus problemas e suas dores, reprimindo as manifestações emotivas e
impondo, àquele que sofre, uma solução rápida e discreta.
Essa transição encontra seu ápice no ultimo quartel do século XVIII e,
notadamente, durante o período vitoriano, momento em que se consolida o processo
histórico do desenvolvimento do mundo industrial. Assim, talvez nunca na cultura
ocidental, tenha se concebido a morte com tanto investimento sensível como ocorreu
naquele momento. Nos corpos, na aparência e na relação com outrem, os vitorianos
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experimentaram a angústia de sua existência, a um só tempo afirmando e negando seu
fim.
Dessa relação ambígua, nasce uma espécie de melancolia constante que
impregna os ares oitocentistas. O indivíduo, podado da necessidade de expressar seus
sofrimentos – encerrados na intimidade dos lares burgueses – e, ao mesmo tempo,
exposto à esfera pública da urbanidade moderna, dependia de um conjunto de códigos
sociais que lhe indicava o que era prudente ou não de ser mostrado. Aprendia a aniquilar
seus instintos, deixando de pensar e agir espontaneamente. Esse corpo vitoriano,
docilizado e contido, foi submetido a rígida racionalização em prol de um autocontrole
baseado em uma moral ascética e pudica. A primeira parte desse trabalho analisa o
processo de construção de uma nova idéia de corpo “naturalmente racional”, através da
morte de si.
Conseqüência desse óbito foi a prevalência de um luto permanente na aparência.
Se nos séculos anteriores os homens contavam com uma etiqueta do vestuário bastante
ampla, colorida e ornamentada, no século XIX eles têm de se acostumar a um leque de
opções mais sóbrias e austeras, negando as cores em sua imagem pessoal. A partir da
década de 1850, adotam em definitivo o preto cotidianamente, a cor da morte desde
épocas medievais. É dessa grande mudança na indumentária masculina – e também na
feminina, influenciada pelo luto da Rainha Vitória da Inglaterra – que tratará o Capítulo
2.
Por fim, é possível perceber no período estudado, uma verdadeira obsessão pela
morte. O apego dramático a tudo que se relacionasse a um ente falecido levou a
sociedade a práticas próprias de um culto aos mortos, como, por exemplo, a de visitar
frequentemente o cadáver em sua nova casa-túmulo. Assim, os restos mortais das
pessoas efetivamente indicavam sua presença, como uma multidão de mortos-vivos. Os
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túmulos personalizados, os pertences restantes e os registros fotográficos post-mortem
não permitiam que deixassem o convívio dos sobreviventes. O último capítulo
contempla esse novo fenômeno inaugurado pelo século XIX: a negação da morte
através da preservação do corpo sem vida.
Repressão dos sentimentos, manifestações do luto, mudanças na percepção da
morte: é em torno desses temas que as páginas a seguir foram escritas. Pertencente ao
campo da História, esta dissertação também contraiu dívidas profundas com autores da
literatura, antropologia e sociologia, cujas vozes participam vivamente da construção
das idéias aqui expostas. O texto de Mortes vitorianas está dividido em três partes: A
morte de si, Luto e A morte do outro, que podem ser lidas autonomamente – e, com esse
objetivo, cada uma delas contém suas próprias notas explicativas e bibliografia
específica. A listagem completa das obras consultadas está disponível no final do
trabalho.
*
No trajeto percorrido para o desenvolvimento desse trabalho, contei com a
presença preciosa de algumas pessoas às quais não posso deixar de agradecer:
Aos meus primeiros leitores: mãe, pai, Henrique e Lucas.
Às professoras que participaram das bancas de qualificação e defesa, Maria
Lúcia Bueno e Marisa Werneck, por sua leitura atenciosa, sugestões e comentários.
Aos amigos Jéssica Oliveira, Silvana Holzmeister e Mauro Fiorani, que
tornaram todo esse percurso muito mais divertido.
Por fim, meu agradecimento especial à professora Eliane R. Moraes, pela
orientação sempre motivante, aulas inspiradoras e pelo carinho que sempre dedicou a
mim e a meus textos.
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Catalogação na Fonte
Schmitt, Juliana Luiza de Melo.
S355m Mortes vitorianas: corpos e luto no século XIX / Schmitt, Juliana Luiza
de Melo -- São Paulo, 2008.
142 f. : il. color. ; 31 cm
Orientador: Prof. Eliane Robert Moraes
Dissertação (mestrado em Moda, Cultura e Arte) – Centro Universitário
Senac, Campus Santo Amaro, São Paulo, 2008.
1. História da Moda 2. História da Morte 3. História do Corpo
4. Século XIX I. Eliane Robert Moraes (orient.) II. Título.
CDD 391
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Capítulo 1
A morte de si
Corpos dóceis e civilizados: a morte dos instintos. O modelo burguês do comportamento.
A interiorização da contenção e o fim do homem espontâneo.
12
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Tu venceste e eu me rendo.
Mas de agora em diante, também estás morto... morto para o Mundo,
para o Céu e para a Esperança!Em mim tu existias... e vê em minha morte, vê por esta imagem,
que é a tua,
como sumariamente assassinaste a ti mesmo.
Edgar Allan Poe. William Wilson. 1840
Da mesma forma que a bondade estava estampada no rosto de um,
o mal estava ampla e claramente inscrito no rosto do outro.
O mal (que acredito ser o lado letal do homem)
deixou naquele corpo uma marca de deformidade e decadência.
E, no entanto, enquanto eu admirava no espelho aquele horrendo ídolo,
percebi que sentia uma tendência a saudá-lo como bem-vindo,
em vez de me repugnar. Esse também era eu.
Robert Louis Stenvenson. O médico e o monstro. 1885.
Que tristeza! – murmurou Dorian Gray, de olhos fixos na própria imagem.
Que tristeza! Ficarei velho, horrível, medonho.
Mas este retrato continuará sempre jovem.
Ah, se pudesse dar-se o contrário! Se eu permanecesse moço e o retrato envelhecesse!Para isto... para isto... eu daria tudo.
É verdade; não há no mundo o que eu não desse.
Daria minha própria alma!
Oscar Wilde. O retrato de Dorian Gray. 1890.
13
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Espelhos, sombras e sósias perseguem o imaginário do século XIX. O sujeito
cindido em réplica idêntica, re-produzido, perturba o indivíduo atomizado da era
contemporânea. A construção histórica das identidades individuais, ou ainda, o
desenvolvimento de uma consciência de si - processo iniciado em fins da Idade Média e
consolidado nesse momento - não permite a existência de um Outro, a cópia semelhante
de um ser que se entende único. Pois eis que na literatura oitocentista, o Duplo aparece
como tema recorrente.
Em larga medida, essa insistência na personagem dividida representa a angústia
do homem oitocentista frente a uma existência exclusivamente material. O corpo após o
Iluminismo, fora definido como máquina, composta de sistemas e controlada por
necessidades físico-químicas. Deixava de ser dual, carne e alma, como era desde
Descartes, para ser apenas autômato. A busca, desesperada, por uma resignificação do
humano, décadas antes da psicanálise, revelou as dores espirituais da sociedade
vitoriana. A figura literária do Duplo é apenas um de seus reflexos.
Ocorria, portanto, uma crise de identidade, tal como a crise na Arte, acusada de
plagiar o mundo – tarefa cumprida com mais eficiência pelas fotografias. Essa multidão
de duplicatas que invadiu o universo iconográfico denota essa emergencial busca de
sentido no que a ciência não revela. Do encontro consigo mesmo, instância escondida
do Eu projetada no Duplo, emerge a verdade trágica do destino humano: o mistério da
vida, ou seja, a morte.
Fim, este, inevitável do confronto com o Duplo. Deparar-se com essa
personificação de seus conflitos interiores, fantasmas que assombram e amaldiçoam,
rememorando a todo instante a miséria da condição humana, seus temores e
inseguranças, impossibilita a continuidade tranqüila da vida. Todo recalque, tudo o que
foi ocultado nos recônditos secretos do inconsciente, desejos incomunicáveis e atos
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inadmissíveis, é materializado nele e conviver com esse reflexo desprezado é
insustentável. Aniquilar essa dissociação e tornar-se uno novamente é destruir tudo o
que está internalizado. Acabar com a existência desse antagonista de si mesmo é,
portanto, pôr fim à própria existência. Morrer é a única solução.
*
A força geradora do Duplo é, destarte e paradoxalmente, o temor da degeneração
do corpo e, em sua extensão, a morte. Esse é o caso do Duplo de Dorian Gray, seu
retrato pintado por Basil Hallward. O rapaz deseja ardentemente a permanência de sua
indubitável beleza física, reconhecida por todos a sua volta. É devido ao seu encanto
exterior que Dorian consegue tudo o que quer e freqüenta a alta sociedade – tão apegada
que era às aparências. Depois de trocar suas feições pelas da figura no quadro e se
manter inexplicável e artificialmente gracioso, esta passa, então, a revelar a sua
verdadeira natureza. Ao ver seu Duplo, Dorian é confrontado com o seu aspecto real,
degradado e lívido, resultado de todos os seus desvios morais. O fazer artístico, capaz
de desvendar a essência das coisas, alcança seu ápice no texto de Wilde, ao tornar a obra
a verdadeira imagem do modelo.
A autoconsciência de Dorian Gray nasce no instante em que avista o quadro pela
primeira vez. Sua percepção da passagem do tempo, e com ele o desaparecimento de
tudo o que realmente importa – a beleza, seu porto seguro, fonte de tudo que conquista
– é mordaz, um golpe fatal em sua jovialidade inocente: A realidade de sua própria
beleza surgiu-lhe como uma revelação. Nunca sentira isso, até o presente. (...) Sim,
chegaria o dia em que seu rosto se tornaria enrugado e murcho, os olhos fracos e
desbotados, o corpo alquebrado e deformado. Dos lábios desapareceria o tom
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carmesim; adeus ao ouro dos cabelos! A vida que deveria animar-lhe a alma lhe
estragaria o corpo. Tornar-se-ia hediondo, repulsivo grotesco.
Amedrontado pelas mudanças do retrato - ao longo dos 18 anos que a narrativa
cobre, período no qual toda a graça de Dorian permanece intocada, enquanto sua réplica
transforma-se grotescamente -, obriga-se a trancafiar a obra no porão, longe dos olhares
de seus conhecidos e mesmo dos empregados. A possibilidade de escondê-la preserva o
caráter fantástico da história, já que não há cúmplices à corrupção da imagem. Essa
qualidade do Duplo, fantasmagórica, visível somente àquele que é diretamente afetado
por sua existência, é ainda mais algoz no caso de William Wilson. Seu sósia, espécie de
gêmeo espectral, que divide com o protagonista semelhanças inverossímeis (como o
mesmo nome, data de nascimento e fenótipo) é, ao contrário do que ocorre com Dorian
Gray, um tipo de consciência ética perdida por Wilson no decorrer das experiências
mundanas em que se envolve.
Golpista e manipulador, o personagem de Edgar Allan Poe é um dissimulado,
que se esconde detrás de sua estirpe aristocrática para realizar suas vigarices. Seu
antagonista personifica, para seu terror, sua própria culpa, que reconhece e rememora a
todo instante sua decadência e miséria moral. Ao eliminá-la, ou seja, ao escolher ser
exclusivamente o homem inescrupuloso e perverso, torna-se um condenado, sem
salvação, morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança.
Em algum momento esses personagens apercebem-se dos laços indissolúveis
que os unem aos seus Duplos.“Este também era eu” disse Henry Jekyll sobre Edward
Hyde. Durante toda sua vida, trancafiara o monstro na “prisão de sua índole” para ser,
com muito esforço, apenas o amável e discreto médico. Ao libertar esse Duplo cruel e
vil, gozava dos prazeres mais infames e criminosos sob a máscara do Outro. Pouco a
pouco, eu estava perdendo o controle sobre meu original e melhor eu, e tornando-me o
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O ator inglês Richard Mansfield ficou conhecido por interpretar o Doutor Jekill e o Senhor Hyde
na primeira adaptação do texto de Stevenson para o teatro, apenas um ano após sua publicação, em 1886.
A fotomontagem é de 1895.Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Jekyll-mansfield.jpg
18
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Essa fragmentação da consciência, capaz de emular um Duplo, foi reflexo de
uma crise profunda na construção da mentalidade de indivíduo. O homem, cientifizado
pelas Luzes e racionalizado pelas regras de civilidade, renega suas características
instintivas e busca, sofregamente, um reencontro com sua essência humana.
Esse processo de repressão de características naturais e inerentes ao ser humano
não teve início no século XIX - na verdade, acompanha a própria história da civilização
ocidental. Ao longo do percurso histórico, certas mudanças nos comportamentos
mostraram-se capitais, em prol de um melhor convívio social – principalmente à medida
que a sociedade se tornava mais complexa, e consequentemente a rede de
relacionamentos entre os indivíduos segmentava-se ainda mais.1
Desde, pelo menos, os séculos XIII e XIV é possível perceber tais
transformações, em especial dentro das cortes monárquicas, locais por excelência da
normatização das maneiras.2 Procurando se diferenciar do restante da sociedade,
notadamente da burguesia, as cortes tratavam de elaborar uma série de condutas
particulares ao seu grupo.3 A moderação dos afetos substituía a grande liberdade de
ação de que gozara a nobreza medieval salvaguardada por sua posição inquestionável no
mundo feudal. Quando passou a disputar hierarquias com a elite mercantilista, 4 mudou
de hábitos: o controle dos sentimentos transformava-se em signo de diferenciação, uma
vez que se conformava como um tipo de refinamento exclusivo e excludente.
Parte fundamental dessa cultura da corte, a courtoisie, foi o desenvolvimento
de um gosto próprio ao grupo, que não somente a caracterizava, mas que devia ser
constantemente demonstrado, através dos atos e sobretudo da aparência. A honra e a
glória eram atributos que deveriam saltar aos olhos pela imagem: não dizem respeito
exatamente a qualidades subjetivas, internas, mas aos títulos, ou melhor, à identidade
pública. A maneira como um nobre se apresenta sinaliza o que ele é , como uma espécie
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de linguagem que fala sobre o indivíduo, submetido constantemente ao olhar e à
opinião dos outros membros do grupo. Os meios de agir consistiam em ganhar a
aprovação ou a inveja ou pelo menos a tolerância da opinião graças ao parecer , quer
dizer, à honra. Conservar ou defender a honra equivale a salvar as aparências. O
indivíduo não era como era e sim como parecia, ou melhor, como conseguia parecer.5
Por isso a necessidade em se restringir o que se mostra com o uso consciente de um
rígido autocontrole. O comportamento do indivíduo começava a ser dividido entre o que
devia exibir e o que devia esconder, não só por polidez e sim por um princípio
civilizatório que o obrigava a praticar certos atos em isolamento. A civilidade, qualidade
exaltada pelas elites educadas, era, acima de tudo, uma arte, sempre controlada, da
representação de si mesmo para os outros, um modo estritamente regulamentado de
mostrar a identidade que se deseja ver reconhecida. 6
*
Um exemplo bastante eloqüente do refinamento das elites foi a importância cada
vez maior da limpeza corporal, não pela preocupação sanitarista mas pelo simbolismo
que o asseio adquire. Durante o período absolutista mantiveram-se as práticas medievais
que não incluíam abluções com água – mesmo o rosto dificilmente era banhado, mas
friccionado com panos levemente umedecidos em óleos perfumados ou águas-de-cheiro.
Nas cortes tornou-se praxe o costume de se ter os cabelos sempre muito escovados e
empoados, para desengordurar os fios. Apesar de os castelos possuírem salões para
banhos, sua finalidade era ostentatória e recreativa, funcionavam somente em ocasiões
festivas e especiais. O banho com água, em si, não tinha outro valor senão de
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divertimento luxuoso e supérfluo - e, mesmo assim, estava muito longe de ser um
hábito.
Contraditoriamente, na mesma proporção em que desaparece o uso da água,
cresceram as normas da aparência. Uma das mais importantes era o cuidado com a
chamada “roupa branca”, a roupa de baixo. Trocá-la era o equivalente a limpar-se. Sua
função era reter o suor do corpo e a sujeira proveniente do exterior, afastando os
parasitas presentes na superfície da pele, como pulgas e piolhos. Era bastante apropriado
que a prática de mudar esse traje íntimo diversas vezes fosse manifesta, pois conferia a
evidência visual do asseio, sinônimo de dignidade. Os tratados de civilidade, inspirados
justamente nas práticas da corte, repetirão do XVI ao XVII, e com insistência cada vez
maior, essa analogia: o asseio da roupa de baixo é o de toda pessoa. Ele constitui o
sinal do homem distinto.7 Iniciou-se assim a tendência de se deixar à mostra golas e
punhos lividamente brancos e ricamente adornados com rendas, babados e vazados. Ele
[o branco] é uma testemunha do “por baixo”. É o oculto que se mostra. Ele revela o
que o traje cobre. O branco, nesse caso, indica uma limpeza particular: a do interior .8
Por isso deve ficar visível – o tecido que está em contato direto com a pessoa revela em
público o que ela é intimamente. Se o brancor da roupa era sinônimo da alvura da pele
escondida, era altamente desejável que a pele exposta também fosse embranquecida, por
isso a necessidade de maquiar o rosto e ao mesmo tempo ressaltar maçãs e lábios
corados. A aparência saudável era fundamental, ainda que artificial. Luvas brancas
corrigiam a cor das mãos. O empoamento dos cabelos era sua limpeza, mesmo que
superficial; os perfumes corrigiam os odores do corpo, ainda que não os eliminassem.
Ao contrário dos tecidos destinados ao olhar, a roupa de baixo, chamada também
de camisa ou chemise, era de fazenda fina e cor clara, mais leve. Escondida, era
representante da pele. Contrapunha-se à roupa visível, que a cobre. A ausência de
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acuidade referente às condições do corpo é exemplar da preocupação por sua essência
(a alma), e por sua imagem - e não especificamente com sua limpeza (receio esse
próprio da época contemporânea em que se descobre que a higiene pessoal evitava,
diretamente, algumas doenças). Assim como fazer parte da corte tinha um fim em si,
construir essa arquitetura corporal do artifício também. Era uma necessidade resultante
desse pertencimento.
*
As cortes eram o ponto de apoio do poder monárquico e nos século modernos
foram os centros de referência de estilo, a fonte dos novos modelos comportamentais a
serem seguidos pelas ordens inferiores. Não se ocupavam com nenhuma atividade
produtiva devido a sua própria condição social. Dedicavam-se ao ócio. Ou ainda, a todo
tipo de superficialidade, nada que tivesse utilidade prática direta à vida cotidiana. Em
especial aos talentos eruditos e artísticos e ao domínio de uma complexa etiqueta que
lhes permitissem comportar-se de acordo com as rígidas normas do decoro exigidas por
seu grupo. Tão importante quanto viver o ócio era torná-lo visível através desses
pequenos e importantes refinamentos.
Via de regra, o rendimento das famílias aristocráticas era revertido para a
manutenção de seu status, já que não seguir o protocola equivalia à perda de prestígio. 9
Consumir toda espécie de luxo era um pressuposto do pertencimento à corte e para
tanto, recorria-se a todo tipo de tática financeira, como a venda de propriedades e a
contração de grandes dívidas. Tornava-se impossível diminuir os gastos uma vez que
não se desejava renunciar ao convívio entre palacianos e monarcas.10 A situação
22
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agravava-se no decorrer do século XVIII, no qual as cortes rivalizavam com a burguesia
enriquecida e ressentida.11
Certamente para a realeza o controle tão severo dos modos era um poderoso
instrumento de dominação, tanto daqueles que viviam ao seu redor quanto de seus
súditos. Em nenhuma corte essas regras foram mais bem utilizadas quanto na de Luís
XIV, o monarca francês que governou 1643 e 1715. Tal como a honra se manifesta pela
aparência, também o poder do rei deveria ser visível em tudo que o circundava. O
cerimonial real marcava a profunda distância que o separava da plebe, por isso era tão
importante que o próprio rei seguisse a etiqueta que impunha aos outros. 12
Luís XIV reinou por intermédio de um rígido protocolo, no qual os rituais foram
altamente teatralizados, ainda que fossem os eventos mais banais e cotidianos,
preenchendo-os de significados sociais e políticos. Todos deveriam testemunhar o
fausto e a majestade que envolvia a corte; o prestígio do rei era reconhecido em cada
palavra, em cada gesto. Outra tática foi instituir pequenas atitudes como sinônimas do
seu afeto particular, aproximando ou afastando membros da corte quando necessário,
mantendo as relações entre todos constantemente tensas, fazendo com que competissem
por sua atenção, o que, consequentemente, aumentava a pressão sobre o autodomínio.
Mesmo a instalação da corte em Versalhes foi parte de uma estratégia para
fortalecer a imagem da monarquia e da corte. Afastava a nobreza de Paris, a capital
francesa, ou seja, a cidade de maior circulação monetária e com maior comércio:
burguesa demais para o rei. Mostrava então aos burgueses, ávidos em copiar os modos
e consumos cortesãos, seu devido lugar: distantes do palácio real. Luís XIV encerrava,
assim, seus pares num mundo à parte, composto de pompa e circunstância, intrigas e
superficialidades. Essa aversão ao que ocorria fora dos luxuosos jardins do palácio
23
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culminaria no trágico desfecho de Luís XVI, e de sua esposa Maria Antonieta, no
episódio revolucionário, um século mais tarde.
*
Para as classes urbanas e trabalhadoras, o período moderno foi o momento de
desenvolver uma cultura própria, ainda que buscassem o ideal da vida aristocrática.
Desde o século XVI, a popularização de textos impressos - antes limitados a uma
minoria religiosa ou intelectual, agora tornados acessíveis à população letrada - fez com
que uma admirável circulação de idéias, fossem políticas, filosóficas, humorísticas ou
pornográficas, ocorresse ao mesmo tempo em que aumentava a experiência de uma
nova dinâmica urbana. Nos séculos seguintes, pelo menos nas grandes cidades da
Europa Ocidental, mais populosas e com maior movimentação monetária, as antigas
formas de sociabilidade tradicional, sustentadas pelos pilares da coletividade das
corporações de ofício ou na estabilidade do campo, davam espaço a indivíduos livres e
autônomos. Cada um com sua vida própria, cada um com sua ocupação. Estabeleciam-
se como mercadores, lojistas, viajantes, leitores de jornais, consumidores que tinham
algum tempo livre a algum dinheiro extra; negociavam, debatiam e, ocasionalmente,
conspiravam ou espionavam, ou faziam sexo com pessoas praticamente
desconhecidas.13 Aglomerados desordenadamente nesses cenários, podiam ser eleitores,
atrizes, jornalistas, funcionários do parlamento inglês ou prostitutas francesas,
vendedores portugueses de escravos africanos, livreiros alemães e até investidores
holandeses de açúcar brasileiro.
Essa burguesia cada vez mais se apercebe como um setor importante da
sociedade e é a partir dessa autoconsciência de classe que essas forças sociais puderam
24
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se opor decisivamente à nobreza, a fim de substituí-la. Era inevitável que o confronto
acontecesse uma vez que os interesses, mesmo que interdependentes em muitos
momentos (como nas negociações entre os territórios), eram opostos em tantos outros
(como na distribuição dos privilégios, exclusivos da nobreza). A filosofia iluminista
destitui o “direito divino”, servindo de arcabouço ideológico para uma revolução social.
O materialismo nivelou os homens. A tensão entre os dois grupos chegara em seu ápice
ao fim do século XVIII.
Com a ascensão das classes burguesas e seu expresso desprezo por tudo o que se
relacionasse às antigas monarquias, a cortesia, tão aclamada e cultivada pela nobreza,
passa a ser sinônimo de artifício, máscara imposta pela vida na corte. A essas condutas
falsas e dissimuladas, a burguesia opõe a virtude, autêntica, inata: a superficialidade das
reações calculadas versus a personalidade naturalmente comedida.
Assim, a burguesia do século XVIII configurou-se como a classe que conseguiu
internalizar a contenção dos instintos que oprimia a corte. Esse controle fora tão
absorvido que passa a funcionar mesmo quando o indivíduo encontrava-se sozinho,
mesmo que não estivesse sendo observado. O constrangimento causado pelas ações
mais espontâneas, e, em essência, animais - essência cientificamente comprovada pelo
darwinismo -, fez o homem omitir seu sexo, ocultar seus excrementos, negando sua
natureza obscena e rejeitando seu corpo natural. Festejava-se a vitória dessa
racionalização dos desejos. Esse corpo pós-iluminismo, território do controle total e
automático, passava a ser educado ainda na infância, compelido a suprimir vontades
consideradas nocivas, em direção a uma sociedade de adultos civilizados. Rapidamente
resumia-se todo um longo processo social de coação dos instintos, que historicamente
demorou séculos para ser concluído, em apenas uma única etapa da vida.14
25
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*
O que nas cortes era o domínio dos impulsos naturais tornava-se, para os
vitorianos, a sublimação profunda dos instintos: Na passagem para a sociedade
burguesa, a teia de ações passou a ser tão complexa e extensa, o esforço necessário
para comportar-se corretamente dentro dela ficou tão grande que, além do
autocontrole consciente do indivíduo, um cego aparelho automático de autocontrole foi
firmemente estabelecido.15
Esse mecanismo era formado por um conjunto de métodos
de repressão que apareciam nas escolas, nas famílias, nas fábricas, nos manuais de
etiqueta e, no limite, desencadeado por sentimentos íntimos de culpa e auto-punição.
Violar os rígidos códigos do comportamento civilizado fazia do indivíduo o alvo do
repúdio social ou, no mínimo, irrompia um intenso tormento pessoal.
O que impressiona, afinal, é que esse tipo de prática anteriormente restrita a um
grupo - as cortes e as elites burguesas em contato com elas – se transformou no
comportamento padrão. E mais: automatizado. A contenção, ação forçada e anti-
natural, fora legitimada por essa sociedade, e transmitida a todos indiscriminadamente,
independente de ofício, sexo ou idade.
A doutrina utilitarista característica da sociedade contemporânea pressupunha a
concepção do corpo que se modela e se manipula de acordo com necessidades
funcionais. Para fazê-lo produzir mais, seria necessário submetê-lo à uma estrita
disciplina, que o transforme e o aperfeiçoe, tornando-o um corpo adestrado: um corpo
dócil.16 Não se tratava somente de um cuidado exacerbado para com esse corpo, mas
acima de tudo de seu comando, ou, ainda melhor, o seu profundo autocontrole.
Essa disciplina passava a ser imposta tanto pelas instituições sociais através de
políticas de coerção baseadas na manipulação calculada da anatomia e das funções
26
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orgânicas do corpo, quanto pela popularização e naturalização dessas práticas
disciplinadoras, que geram uma espécie de submissão espontânea, na qual o indivíduo,
mesmo sem ser diretamente coagido, segue as regras, porque já as absorveu.17
A disciplina fabrica indivíduos.18 Adestra as massas, criando um ajuntamento
obediente de células separadas, autônomas e produtivas. Essas imposições são
direcionadas por um lado para a saúde dos corpos e o aumento da força física e do
vigor; por outro, para uma rigorosa conduta comportamental planejadamente limitada.
O objetivo é que todos sejam igualmente úteis.
Chega-se ao âmago da prática disciplinadora: a padronização dos indivíduos.
Não torná-los multidão novamente, mas ao contrário, agrupamentos de indivíduos
sozinhos, porém, nivelados. São unidos por uma mesma ordem homogeneizante, ainda
que continuem pessoas diferentes. Ao reprimir e censurar constantemente os indivíduos,
também evita-se sua socialização – além de mantê-los em constante concorrência. Nas
sociedades contemporâneas, aqueles que não se adaptam à total padronização são os que
vivem à sua margem, sem voz ativa: crianças pequenas19, doentes mentais,
delinqüentes, criminosos.
*
A obsessão pela disciplina das emoções visava, principalmente, o afastamento
da sexualidade e a abolição da violência – e em seu prolongamento, a morte em espaço
público - por serem instâncias humanas muito próximas dos instintos animais. No que
tange a violência, o homem contemporâneo esforça-se em reprimir em si mesmo
qualquer impulso em atacar fisicamente outrem e, na mesma proporção, espera estar
livre dos ataques alheios.
27
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Nem sempre foi assim. Nas sociedades dos Antigos Regimes, a distribuição de
poderes na elite aristocrática se dava por meio da posse de territórios, conquistados pela
guerra; era uma política e uma economia da violência. Ataques físicos eram constantes e
legítimos, faziam parte da normalidade da vida, a expectativa de uma morte sangrenta
era freqüente, altamente considerada. A presença da violência cotidiana permitia maior
liberdade em dar vazão a sentimentos que se tornariam intoleráveis para a época
contemporânea.
O afastamento da morte corriqueira fez parte do processo civilizador. Instaurava-
se uma espécie de ética cívica que impõe a paz civilizatória para o bem total da
sociedade. O contrato social hobbesiano era o arcabouço ideológico para o fim da
ameaça de violência nas relações entre todos. Se antes eram mais livres para exprimir
rompantes de espontaneidade, em contrapartida, estavam à mercê de serem alvo da
agressividade alheia. Duelos e ataques físicos ocorriam sem o controle ou a proibição de
instituição alguma. Quando, na sociedade oitocentista, a violência punitiva vira
território exclusivo de uma entidade representativa, como no caso de uma autoridade
local (monárquica, estatal), ela lentamente se despersonaliza. Vantajosamente, esse
processo reduz o temor que um homem sente por outro, no entanto, inibe qualquer
possibilidade de auto-expressão agressiva. Dirigentes e seus mandatários – exército,
polícia – monopolizam a prática punitiva e possuem o aval oficial para a violência.
Paradoxalmente, a vida tornou-se menos perigosa e mais segura, porém mais
entediante. Sem válvula de escape alguma, o homem poda qualquer tipo de descarga
emocional brusca e torna-se passivo. Os choques físicos, as guerras e as rixas
diminuíram e tudo o que as lembrasse, até mesmo o trinchamento de animais mortos e
o uso de faca à mesa, foi banido da vista ou pelo menos submetido a regras sociais
cada vez mais exatas. Às vezes, o indivíduo se habitua a tal ponto a inibir suas emoções
28
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(os sentimentos constantes de tédio ou solidão constituem bons exemplos disso) que não
é mais capaz de qualquer forma de expressão sem medo das suas emoções modificadas,
ou de satisfação direta de suas pulsões reprimidas.20
Mesmo o suicídio, a violação do próprio corpo - ou seja, em princípio um
assunto privado, pessoal - aos olhos da sociedade se transforma em uma demonstração
pública de fracasso. O suicida era o indivíduo inábil, fraco, que não triunfou de alguma
maneira; seu malogro, uma questão moral e não de oportunidade. A tentação do auto-
aniquilamento era decorrente da angústia de uma vida fadada à frustração. Instante
ápice do individualismo, quando nada mais limita a ação e o sujeito se liberta, enfim, de
tudo que rege sua vida. O suicídio é a solidão absoluta, local do máximo isolamento e
da máxima autonomia.
*
Segundo o sociólogo alemão Max Weber, contemporâneo ao vitorianismo, a
internalização do controle de si teria sido facilitada, pelo menos em uma parte da
burguesia, pela prática de religiões cuja pedra de toque é o ascetismo.21 Praticantes do
protestantismo apresentariam uma tendência especial em desenvolver uma espécie de
racionalismo econômico, um princípio de vida no qual homens que, de maneira geral,
equilibravam as atividades do dia entre momentos de trabalhos, de lazer e de descanso,
passam a não só dedicar mais horas ao trabalho como sacrificar os momentos de lazer
para tal. Na mesma medida, os gastos antes direcionados para esse lazer são
reinvestidos na produção. Essa capacidade de racionalizar o tempo e buscar mais
retorno financeiro sacrificando todo o resto da vida implica numa mudança de espírito,
que é, ela mesma, a origem do espírito capitalista.
29
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Esse elogio ao ascetismo agiria como um bloqueio ao consumo do supérfluo.
Como tudo no universo capitalista gira em torno do utilitarismo (das coisas, das ações,
das virtudes), o consumo se restringiria ao necessário, em contraposição a purpurina e a
ostentação da magnificência feudal que, repousando sobre bases econômicas doentias,
preferia a suja elegância à sóbria simplicidade.22 Contra a opulência cortesã, surgia
uma ética econômica especificamente burguesa que permitia que se perseguisse um
objetivo pecuniário qualquer, desde que dentro dos limites dos preceitos religiosos. Ao
agir com moral e ética, “ser rico” era uma conseqüência natural e legitimada pela
divindade.
*
Um estratagema altamente eficiente no controle dos corpos foi a da
popularização de um discurso higienista. Contrapunha-se ao artifício aristocrático, falso
e descartável como uma máscara. O corpo burguês, naturalmente civilizado e virtuoso,
teria uma vitalidade própria proveniente dos vigores internos, que desqualificaria
interferências externas e inapropriadas como o adorno e a aparência exagerada. Os
banhos, então, instalam-se nas práticas cotidianas da elite burguesa, ainda que fossem
parciais, sem a imersão completa na água; a limpeza não se limitava mais à troca da
roupa branca, como era a concepção anterior de limpeza corporal. A higiene,
significando, agora, o conjunto de práticas e saberes que favorecem a manutenção da
saúde, vira palavra-chave para o século XIX, em detrimento à profusão ornamental que
escondia a sujeira cortesã.
A necessidade de asseio pessoal foi acompanhada por justificativas médicas.
Descobriu-se, enfim, que as doenças não eram conseqüência do desequilíbrio dos
30
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humores, castigos divinos ou qualquer outra explicação não científica, mas são
comprovadamente causadas por microorganismos imperceptíveis ao olho. A assepsia
freqüente e cuidadosa torna-se fundamental: limpar-se é atuar sobre agentes invisíveis
que podem desestabilizar o corpo. Logo, era necessário; útil.
Entretanto, o maior inimigo da higiene no século XIX era, apesar dos apelos
científicos, o pudor. Foi imperativo que, já na segunda metade do século, as casas
apresentassem espaços privativos como banheiros, cômodos autônomos destinados à
limpeza íntima. Até então, as medidas higiênicas tinham espaço dentro dos quartos, nos
chamados gabinetes de toalete. Nos novos banheiros, entrava-se sozinho e não se
solicitava qualquer ajuda. Constituiu-se, simplesmente uma relação mais exigente do
indivíduo consigo mesmo. Talvez nunca essa exigência em relação a intimidade tenha
se manifestado a tal ponto. 23
*
A idealização do tipo burguês24 foi uma das chaves da transição social ocorrida
entre os séculos XVIII e XIX, caracterizando o período vitoriano.25 As convicções
próprias da classe trabalhadora passaram a ser o modelo esperado de comportamento.
Assim, o homem burguês deveria ser, ou pelo menos dizia ser, esposo devotado, pai
prestimoso, sócio honesto nos negócios, moderado em política e no consumo de vinho,
amigo de prazeres poucos dispendiosos. Sua aparência condizia com sua
respeitabilidade e o novo herói era um homem de capa simples, talvez calçando
galochas, portando uma pasta de documentos e certamente um guarda-chuva, e que
pensava em seus negócios e sua família. 26 Nunca na história ocidental foi tão
importante vestir-se adequadamente.27
31
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No caso das mulheres, limitavam-se a elas as capacidades restritas ao âmbito
dos sentimentos: sensibilidade estética, solicitude, sabedoria materna, encantos sociais
instintivos. Convenientemente, essa separação negava suas possibilidades de
participação ativa e as mantinham distantes do direito do voto, do direito de freqüentar
uma instituição de aprendizado superior ou possuir conta bancária independente, da
igualdade nos processos de divórcio e de outros direitos considerados privativos dos
homens.28
Na sociedade oitocentista triunfava uma moral do merecimento, na qual as
biografias pessoais resumiam-se a uma sucessão de feitos, definidores do caráter de
cada um. Aos homens, sua conduta em relação ao trabalho era notadamente importante.
Trabalhar para o burguês era um imperativo ético, um princípio ao qual deveria aderir
como demonstração de seu caráter irrepreensível. Quanto mais trabalhasse, maior seria
o reconhecimento de seu esforço.
A família foi uma instituição altamente idealizada pelos vitorianos. Na era dos
talentos individuais, era o único grupo de interdependência legítima, considerado o
motivo principal da busca de sucesso material. Diferentemente do espaço público, ali
cada um tinha seus papéis pré-estabelecidos e não estava em concorrência com os
outros.29 A privacidade tornava-se um importante valor no Ocidente,30 era a essencial
separação entre a vida doméstica e o resto do mundo. O ambiente privado – o idílico e
tranqüilo lar burguês - se constituiu como o local da máxima liberdade individual, e
também da máxima solidão social.
*
32
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O fracasso em resistir aos apelos da carne também foi considerado um autêntico
reflexo de fraqueza moral. A força de vontade, em relação ao sexo, assim como a
qualquer outro aspecto da vida, separava a sociedade entre aqueles que eram ou não
bem-sucedidos. Resistir às pulsões naturais era alcançar o mais alto grau de civilidade
pelo uso da razão e não ceder mesmo às tentações mais instintivas, ou seja, às realmente
perigosas porque animalescas. A civilização, de forma geral, apoiava-se na repressão
das urgências sexuais.31 O indivíduo verdadeiramente respeitável mostrava a força de
seu caráter ao não se deixar seduzir.
A sexualidade racionalizada desenvolvia-se concomitantemente a um novo
modelo de casamento romântico, que substituía gradualmente o matrimônio arranjado,
característico das relações aristocráticas. Por serem acertos de interesses e não laços
sentimentais, essas alianças nas cortes absolutistas trazia em seu bojo um equivalente
entre os papéis femininos e masculinos nessas sociedades.32 Ainda que as elites
mantivessem a prática das bodas negociadas pelos pais, a tendência da união por amor
ia se tornando a regra. O casamento burguês definia-se então pela busca do par ideal: ao
homem trabalhador, bem-sucedido, discreto e inteligente, seu correlato era a mulher
dedicada, submissa e responsável pelo bom andamento da esfera familiar. Gerenciar o
lar de classe média significava comprar as provisões, supervisionar os empregados,
conservar-se prudentemente dentro do orçamento doméstico, assumir o papel principal
na criação dos filhos, com os quais normalmente passavam mais tempo que os seus
maridos, presidir com graça o que os contemporâneos costumavam chamar de
“suplício doméstico” sempre dando a melhor impressão possível como anfitriã. 33
Além de ser a metade decorativa do casal, bibelô protegidos no espaço privado, deveria
ser a fiel colaboradora de seu esposo, apoiando-o nas decisões e nos fracassos.
33
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A idealização do núcleo familiar não permitia brechas para o desejo extra-
conjugal. Paradoxalmente, a verdadeira obsessão com a qual a civilização burguesa
insistia que a mulher era essencialmente um ser espiritual implicava que os homens não
o eram34, ou seja, ao mesmo tempo em que se pregava o modelo feminino de
subserviência, era convenientemente interessante aos homens manifestarem atração
constante por mulheres e por sexo para evitar rumores de efeminados ou de pouco viris.
A moralidade burguesa criava esse tipo de hipocrisia consciente em relação ao sexo, ao
esperar que mulheres, teoricamente, não se interessassem por ele e que homens não o
praticassem fora de suas casas.35
Esse temor da masculinidade desviada é bastante complexo uma vez que, na
construção de uma sexualidade caracteristicamente burguesa, o gosto pelo mesmo sexo
começava a ser concebido como uma doença. Um novo padrão de relações sexuais
admitia apenas o desejo sexual por mulheres, e era esse desejo que determinava a
condição masculina. Portanto, aquilo que no século XIX denominou-se de
homossexualidade e heterossexualidade não são distinções presentes na natureza
humana universal. 36
São concepções que surgiram principalmente devido à
cientifização dos assuntos do sexo por parte da medicina. Diferentes das designações
populares anteriormente utilizadas (como sodomitas, lésbicas, tríbades), essa
medicalização da sexualidade privada propõe a linguagem que indica uma desordem na
própria constituição do indivíduo. Um tipo de maniqueísmo que coloca de um lado o
heterossexual, “normal” e bom – portanto saudável, e do outro o doente homossexual
“anormal” e pervertido.
*
34
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De fato, a Revolução burguesa do fim dos setecentos marcava também uma
revolução sexual, pelo menos nos discursos. Para o vitoriano ideal, antes de tudo, o
casamento era o único local da sexualidade lícita; mas, mesmo nele, as relações
deveriam ser moderadas. A polêmica historiográfica em torno do assunto teria origem,
em primeiro lugar, no exagero da propagação desse ideal que teria sido, em verdade,
uma reação contra o estereótipo da aristocracia devassa e libertina. Em segundo lugar,
no excesso de moralismo teórico que esconderia uma prática sexual satisfatória, e não
abstêmia. Por último, nos comentários mordazes de críticos da burguesia, tanto no
século XIX como posteriormente, contra uma certa hipocrisia vitoriana.37
Criaram-se, assim, as duas caricaturas extremistas e opositoras: a do aristocrata
inescrupuloso e degenerado (que tinha o alto clero como seu cúmplice – a figura do
“bispo bonachão” é recorrente no imaginário libertino38) e o do burguês
dissimuladamente puritano. Um exemplo do primeiro caso foi a grande circulação de
panfletos de cunho pornográfico, no período revolucionário, que acentuavam o caráter
imoral da nobreza, expondo os reis depostos, Maria Antonieta e Luís XVI, a primeira
como uma devassa da mais alta estirpe e o segundo, obscenamente efeminado. Nesses
panfletos, a degeneração sexual andava de mãos dadas com a corrupção política.
Contrapondo-se – em geral implicitamente - aos aristocratas degenerados e aos
padres sodomitas do Antigo Regime, havia o amor saudável dos novos patriotas.39 A
libertinagem desvairada seria substituída pelo autocontrole higiênico: a pornografia que
degradava a nobreza elevava o ascetismo burguês.
Ao mesmo tempo, buscava-se uma sexualidade caracteristicamente burguesa que
servisse de instrumento de afirmação de classe ao atribuir a si uma prática sexual
específica – concomitantemente a uma nova concepção do corpo, da higiene, da
imagem, do vestuário. Seria, antes de mais nada, uma transposição, sob outras formas,
35
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dos procedimentos utilizados pela nobreza para marcar e manter sua distinção de
casta; pois a aristocracia nobiliárquica também afirmara a especificidade de seu
próprio corpo. Mas era na forma de sangue, isto é, da antiguidade das ascendências e
do valor das alianças; a burguesia, para assumir um corpo, olhou, ao contrário, para a
sua descendência e da saúde do seu organismo. O “sangue” da burguesia foi seu
próprio sexo.40 Ao substituir a ordem aristocrática, o sangue azul, impôs um organismo
são e uma sexualidade sadia, seguindo preceitos tipicamente burgueses e novos – e por
isso, talvez, tão intransigentemente criticados.
Os discursos referentes à moralidade vitoriana dão a entender que o mundo
burguês era perseguido pelo sexo, ou ainda, pela proibição do sexo. Certamente exigia-
se a discrição sobre determinados assuntos e, mesmo concernente ao vestuário, nunca o
corpo fora tão coberto no caso das mulheres, e pouco chamativo no caso dos homens,
numa tentativa de dessexualizar a imagem pessoal. Porém, chamam a atenção as
histórias fabulosas sobre um severíssimo decoro imposto pela etiqueta vitoriana que
chegava ao ponto de obrigar que se escondesse os objetos que lembrassem partes do
corpo humano, como as pernas das mesas e dos pianos, ou ainda que, ao comer,
pedissem não o peito, mas o colo da galinha.
Ainda que não seja possível afirmar veementemente que a vida sexual dos casais
vitorianos fosse lascivamente admirável, tampouco é possível concordar que a classe
média era contra o sexo. É possível acreditar que, por muito que se falasse acerca do
sexo (mesmo quando para se dizer de sua proibição), a profusão de discursos, antes de
evitar o intercurso, promovia uma prática sexual mais consciente. Durante mais de um
século os historiadores que desdenhavam os vitorianos passaram adiante a calúnia de
que os maridos burgueses daquela época se sentiam compelidos a recorrer a
prostitutas para compensar a inescapável frustração sexual no lar. Evidentemente
36
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havia os que faziam isso. Todavia o remédio mais seguro era frequentemente mais e
melhor sexo dentro do matrimonio. Mais e melhor, ainda que sempre moderadamente.
A grande chave, talvez, seja entender que parte do treinamento moral para os
burgueses respeitáveis deve ser a transformação do desejo inato e selvagem em
satisfação civilizada e afável.41 No limite entre o revelado e o oculto, a sexualidade
vitoriana parece ter sido mais livre do que a literatura produzida insiste em afirmar.
*
Aos homens, a razão; às mulheres, o sentimento. Economicamente, esses
binômios se manifestavam nos papéis sociais dos gêneros, nos quais o homem, chefe de
família, se orgulha de seus negócios e de seus rendimentos e, especialmente, de poder
arcar com o ócio de sua mulher. Porque a ocupação ideal da mulher burguesa é a
dedicação ao lar e o cuidado com as tarefas domésticas, na esfera pública acabava se
ocupando com todo tipo de amenidade social, demonstrando sua incapacidade de lidar
com “assuntos sérios”. O novo modelo de relações entre os sexos resulta numa
sociedade que rejeita ao homem a prática do ócio, relegando à sua esposa essa matéria.
Esse cenário ajustava-se perfeitamente às aspirações das elites, no entanto, a
pequena burguesia passava por inúmeros percalços na manutenção de uma imagem de
respeitabilidade. Aquilo que para as classes altas era considerado consumo corriqueiro
transformava-se em um verdadeiro luxo: jantar num restaurante, comprar entrada para
um concerto, passar férias fora de casa, mandar fazer um casaco novo, adquirir móveis
confortáveis. Os quadros em suas paredes, exceto talvez uma gravura religiosa, eram
cortados de revistas; seus filhos entravam para a força de trabalho tão cedo quanto a
lei permitisse. E, ainda assim, desdobravam-se em não aparentar situação pior do que a
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que se encontravam. Preocupavam-se enormemente em não descambar para o
proletariado, razão pela qual insistiam quase comicamente em conservar modos
burgueses formais e incutir nos filhos padrões éticos da burguesia. Poderiam permitir-
se alguma extravagância no dia do pagamento, ou fazer arranjos domésticos que os
bons burgueses desdenhariam, mas eram gente respeitável. Não eram proletários!42
E apesar das desigualdades, a penetração de padrões e valores da classe alta e
média ocorreu amplamente no operariado. Todo um conjunto de preceitos que incluíam
a respeitabilidade e a virtude, o recato e a discrição, infiltrou-se nas ordens mais
humildes. Mesmo que não consumissem da mesma maneira, procuravam na medida do
possível comportarem-se de acordo com a etiqueta burguesa e no vestuário dos
trabalhadores fabris isso era bastante perceptível: usavam as mesmas modelagens e
cores, em opções baratas. Ainda que não possuíssem bens materiais para dispor, trocar
ou vender, contavam com uma propriedade primeira, seus corpos. E dispunham dele, de
sua força física, para garantir sua sobrevivência. Em épocas utilitaristas, o corpo serve,
inclusive, para manter a dignidade de um homem através do trabalho. A vadiagem, o
desemprego ou o ócio masculino eram inaceitáveis, eram imorais, visto que, em última
instância qualquer pessoa tem seu corpo para servir ao mercado. Não trabalhar se
tornava degradante agora.
Tal mudança de concepção é bastante oportuna visto que a maior parte da
população urbana efetivamente não contava com nada além do próprio corpo. Nas
fábricas, a repetição contínua da mesma tarefa leva o operariado superexplorado por
uma jornada de trabalho muito longa a viver subordinado a determinações que são
exteriores a ele, não produzindo nada que realmente crie, invente ou deseje. Afastados
de qualquer atividade do pensamento, são homens reduzidos a seres automatizados, mas
não racionais. Porque se transforma nesse animal amorfo e domesticado, cansado e sem
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ânimo, vira apenas mais um, inserido no rebanho de centenas de outros com os quais
convive e sequer se relaciona. Era, ironicamente, o homem-máquina tão festejado do
século anterior.
*
Nos grandes centros urbanos do século XIX, essas realidades conviviam lado a
lado. A miséria e o luxo atravessam as mesmas ruas. Os diferentes ofícios se
encontravam, homens e mulheres se esbarravam, sem jamais se conhecerem. Figuras
tipicamente urbanas surgem para assistir o espetáculo da vida moderna, como o flanêur
e o dândi. As principais capitais culturais eram Paris e Londres, mas também havia
Viena e Berlim. A Inglaterra, país mais industrial, alcançava, em meados do século, a
posição de primeiro a ter uma população majoritariamente urbana. Ainda assim, a
Holanda era a sociedade mais urbanizada e instruída, e com a tolerância política e
religiosa desde o fim dos setecentos. A Alemanha, a partir da segunda metade do
século, investia pesado para se industrializar enquanto na França, os rumos da economia
caminhavam para uma abertura liberal-capitalista cada vez maior e, apesar das
atividades rurais predominarem, lentamente se industrializou. Seus reis já eram, em
larga medida, burgueses, assim como na Inglaterra, a Rainha Vitória. Próximo do fim
do século – na transição do período vitoriano para o eduardiano – os valores morais da
burguesia já estavam profundamente consolidados na Europa Ocidental e também nos
Estados Unidos.
Grande movimentação urbana e individualismo: eis a tônica da sociabilidade
oitocentista. No meio do caos das cidades, sensações indefiníveis de ansiedade e
nervosismo alternavam-se ao tédio e à monotonia. Esse estado de espírito, que
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chamavam mal do século, um misto de tristeza, cansaço e desorientação, abate a
sociedade. Um dos causadores dessa enfermidade difusa era, certamente, a angústia
gerada pelas longas jornadas de trabalho e sua conseqüência direta, a alienação.
Também a excessiva repressão do autocontrole, assim como o apego desmesurado ao
materialismo. Afundados em valores capitalistas, os indivíduos se viam obrigados a
ganhar dinheiro e consumir compulsivamente, não pelo prazer obtido nessas
realizações, mas como um fim em si mesmo. Histeria, neurastenia e neurose eram as
doenças típicas do fim do século: moléstias da alma. O fim da espontaneidade
demandou novas válvulas de escape. Ao matar Hyde, o vitoriano viu, a si próprio, de
luto.
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Bibliografia
ARIES, Philippe e CHARTIER, Roger (orgs). História da vida privada 3: da
Renascença ao Século das Luzes. Tradução: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador . Tradução: Ruy Jungmann. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1994. Volumes I e II.
_____________. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber . Tradução: Maria
Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1984.
_________________. Vigiar e Punir . Rio de Janeiro: Vozes, 1998.
GAY, Peter. O século de Schnitzler: A formação da cultura da classe média: 1815-
1914. Tradução: S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
HOBSBAWM. Eric. A Era do Capital, 1848-1875. Tradução: Luciano Costa Neto. Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1996.
HUNT, Lynn (org.) A invenção da pornografia: obscenidades e origens da
modernidade. Tradução: Carlos Szlak. São Paulo: Hedra, 1999.
VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo. Uma história da higiene corporal. Tradução:
Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução: Pietro
Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001.
41
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Notas:
1 É a esse processo que o sociólogo alemão Norbert Elias denomina Processo Civilizador . Partindo do fim
da Idade Média, Elias elenca uma série de comportamentos e suas respectivas mudanças até o fim do
século XVIII, para mostrar o quanto condutas consideradas banais até os dias atuais, foram, na verdade, parte de um conjunto de transformações passadas para as gerações seguintes. Ou seja, mesmo o menor
dos atos, quando buscado em retrospecto, foi culturalmente construído para ser considerado, enfim,
civilizado.
2 O agrupamento do rei e seus familiares, juntamente de seus principais servidores e conselheiros e suas
respectivas famílias formavam o que denominamos corte. Dependendo do reino, dividiam o mesmo
espaço, o castelo do rei, centenas, às vezes milhares, de pessoas. Era a estrutura mais representativa dos
Antigos Regimes, o novo local de ação dos reis (antes reservado às guerras), que verdadeiramente
influenciava toda a sociedade, apesar da crescente relevância econômica dos centros urbanos. Porque se
tornava um novo tipo de sociabilização, sem antecedentes na história, as cortes exigiam novas regras de
conduta, que proporcionassem a convivência possível entre a nata da aristocracia.
3 Isto é, ainda que se diferenciassem em alguns aspectos, as cortes francesas, italianas e alemães seguiam
basicamente as mesmas normas, o que pode ser percebido pelas análises que Norbert Elias faz dos
códigos de boas maneiras dessas cortes, muito similares na maioria dos pontos. Um exemplo bastante
esclarecedor é relativo às “boas maneiras à mesa”, todos eles sugerindo que se evitem barulhos
desagradáveis ou que não se limpe orifício corporal algum enquanto as refeições são servidas. Enfim, são
regras ainda muito rudimentares mas que exibem a preocupação nascente com o refinamento dos gestos.
4 A partir dos séculos da Renascença, era possível a compra de títulos pela elite burguesia, já bastante
enriquecida. A chamada nobreza de toga só pôde aparecer quando os atributos da força bélica foram
substituídos pela riqueza.
5 A citação, retirada de Philippe Aries, é altamente significativa em relação à importância das aparências a
partir dos séculos da Renascença. O historiador francês faz dela sinônimo de honra, e para manter a honra
recorria-se a todo tipo de recurso que visasse a ostentação da imagem. (ARIES. História da vida privada.
Página 9)
6 A citação é do historiador francês Roger Chartier, conhecido por suas análises sobre História da Leitura.
Chartier é um dos expoentes da chamada História Cultural, ramo da historiografia que se contrapõe aos
modelos teóricos da historiografia tradicional, política e positivista, assim como da história marxista que
limita o processo histórico às teorias econômicas e de lutas sociais. Juntamente de Phillippe Aries, outro
importante historiador, já falecido, organizou o volume 3 da famosa série História da vida privada.
(CHARTIER. Historia da vida privada. Página 166.)
42
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7 Uma história das práticas de higiene corporal, desde a Idade Média até o século XIX, foi escrita pelo
historiador francês Georges Vigarello, tendo como alicerce as transformações de uma cultura do corpo
decorrente do processo civilizador teorizado por Norbert Elias. (VIGARELLO. O limpo e o sujo. Páginas
45-67)
8 Idem.
9 A riqueza total da nobreza parisiense cresceu mais de 700% entre 1700 e 1789. E era uma riqueza sem
reinvestimento: destinada integralmente aos gastos da corte.
Essa herança de fidalguia se tornava problemática quando não existia mais seu correspondente em
riquezas. Cabia às famílias abrir mão de seus títulos ou, menos indigno, contrair empréstimos até a
bancarrota – o que de fato ocorria.
10O pertencimento a corte tinha valor em si mesmo pelo simples reconhecimento de superioridade que
pressupunha. Por isso, qualquer sacrifício era valido para manter-se lá, o dinheiro gasto pouco importava
enquanto valor monetário. Quando se nasce e se é educado numa sociedade que dá mais valor à
aquisição de um título de nobreza que à acumulação de riquezas através do trabalho, na qual ser
membro da corte e, mais ainda, ter o privilégio de privar com o rei, são posições que abrem-se em
virtude das estruturas de poder – perspectivas sociais particularmente importantes para toda a vida, é
difícil fugir à necessidade de adaptar ambições pessoais às normas e valores sociais em vigor ou perder
o lugar na corrida do êxito, por menos que a posição social da família e a capacidade individual ajudem
à vitória. (ELIAS. A sociedade de corte. Página 50)
11 Principalmente a corte francesa, já que as camadas sociais na França eram mais separadas e a etiqueta
de corte mais rígida, o que a diferenciava bastante da burguesia. Na Inglaterra, desde o século XVI, as
cortes já contavam com um número grande de burgueses e a própria monarquia inglesa era mais liberal
em relação às demais no século XVIII. Na Alemanha, o absolutismo nunca teve um representante forte
até esse período e a existência de diversas cortes tornava a courtoisie mais simples, ainda que imitassem a
francesa.
12 O ritual matinal de Luís XIV foi um dos exemplos mais explorados no tocante à teatralização do
cerimonial real. Tanto Norbert Elias quanto o filósofo brasileiro Renato Janine Ribeiro debruçaram-se nos
detalhes do evento. Desde seu despertar, o “rei-sol” era cercado por membros da corte, que lhe ajudavam
em todas as etapas matinais. Participar do ritual era uma honra incomensurável: esse sentimento foi
chamado por Elias de fetiche do prestígio, uma vez que indicava a posição hierárquica e, principalmente,
a estima do rei para com os cortesãos escolhidos. (ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001; RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta no Antigo Regime. São Paulo: Moderna,
1999.)
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13 JACOB, Margaret. O mundo materialista da pornografia. In: HUNT, Lynn. A invenção da pornografia.
Página 171.
14 A personalidade da criança é tão modelada por medos que ela aprende a agir de acordo com o padrão
predominante de comportamento, sejam esses medos gerados pela força física direta ou pela privação,
pela restrição de alimentos ou prazeres. Os medos e a ansiedade criados pelo homem, sejam eles medos
ao que vem de fora ou ao que está dentro de nós, finalmente mantêm em seu poder até mesmo o adulto. A
vergonha, o medo da guerra, de Deus, o medo que o homem sente de si mesmo, de ser dominado pelos
seus próprios impulsos afetivos, todos eles são direta ou indiretamente induzidos nele por outras pessoas.
(ELIAS. O processo civilizador. Página 270.)
15 ELIAS. O processo civilizador . Volume 1. Página 198.
16 “Corpo dócil” é uma expressão cunhada pelo importante filósofo francês Michel Foucault no texto
Vigiar e Punir, de 1975, que trata dos métodos coercitivos e punitivos no decorrer da história. Segundo o
autor, as práticas disciplinadoras constituem uma espécie de Biopoder, cujo objetivo último é transformar
o corpo humano natural e instintivo num corpo dócil e útil, aproveitando ao máximo todas as suas
potencialidades produtivas. A internalização dessas disciplinas teria alcançado seu ápice na sociedade
contemporânea. (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir . Rio de Janeiro: Vozes, 1998.)
17 É esse o objetivo último do Panóptico, utilizado em escola, prisões, hospitais ou em qualquer
instituição que evite a violência física mas que necessita de ordem pacífica entre os indivíduos. Estando
ocupado ou não por um vigia, obriga a todos a seguirem estritamente as normas. Os indivíduos se
acostumam de tal maneira a manterem uma conduta desejável que não mudam mesmo na hipótese da não
estarem sendo observados. (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2003.)
18 FOUCAULT. Vigiar e Punir . Página 143.
19 Crianças não atingiram a idade da total submissão à disciplina tal como os adultos, por isso têm
pequena participação social. Se freqüentam a escola, estão já sendo ensinadas a se adaptarem às regras.
20 ELIAS. O processo civilizador . Volume 1. Página 204.
21 O sociólogo alemão Max Weber foi o grande teórico dessa analogia entre o protestantismo e a
formação do capitalismo. Afirma que os homens de negócios e donos do capital, assim como os
trabalhadores mais especializados e o pessoal mais habilitado técnica e comercialmente das modernas
empresas é predominantemente protestante. (WEBER. Ética protestante e o espírito do capitalismo.
Página 35.)
22 WEBER. Ética protestante e o espírito do capitalismo. Página 123.
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23 VIGARELO. O limpo e o sujo. Página 238.
Segundo o autor citado, existiam também algumas analogias entre o corpo e a máquina industrial que
favorecia a promoção dos assuntos da higiene na sociedade eufórica com as máquinas. São exemplos: a
propagação do uso do sabonete como uma “ferramenta” da limpeza assim como a descoberta de que o
corpo transpira através da pele por conta da queima calórica - suor que seca porque se transforma em
vapor , o mesmo procedimento das máquinas a vapor .
24 Tomo emprestado a definição do homem burguês do célebre historiador naturalizado inglês, Eric
Hobsbawm. Segundo ele, o burguês, economicamente, era um capitalista (isto é, o possuidor do capital,
ou aquele que recebia renda derivada de tal fonte ou um empresário em busca de lucro, ou todas as
coisas juntas) (...) Socialmente, as definições não eram tão claras, embora a “classe média” incluísse,
desde que fossem abastados e bem estabelecidos: homens de negócios, proprietários, profissionais
liberias e os escalões mais altos da administração, que eram um grupo numericamente bem pequeno fora
das capitais. A dificuldade está em definir os limites altos e baixos dessa camada dentro da hierarquia de
status social (...) Uma das principais características da burguesia como classe era que consistia num
corpo de pessoas com poder e influência, independentemente do poder e da influência derivados de
nascimento ou status. Para pertencer a ela, um homem tinha que ser “alguém”; uma pessoa que contasse
como indivíduo, por cause de sua riqueza, capacidade de comandar os outros, ou de influenciá-los. Para
o autor, a principal característica do século XIX, considerado por ele o período entre a Revolução
Francesa e a Primeira Guerra Mundial, foi o triunfo e a transformação do capitalismo na forma
historicamente específica de sociedade burguesa em sua versão liberal. (HOBSBAWM. Era do capital.
Página 338.)
25 O historiador alemão Peter Gay utiliza o termo vitorianismo de maneira mais ampla e abrangente e é
assim que será empregado nesse trabalho. Segue sua definição: O uso costumeiro há muito define essa
palavra como algo britânico e, mais precisamente, como algo que sugere os gostos, moralidade e modos
ingleses. O sentido jamais ficou inteiramente confinado ao reinado da Rainha Vitória, pois em geral se
reconhece a existência de vitorianos antes de sua subida ao trono em 1837 a após a sua morte em 1901.
Em suma, o nome da soberana vem sendo aplicado de maneira ampla ao século XIX, isto é desde a
derrota de Napoleão em 1814 até a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914. Mas também havia
vitorianos fora do reino. Nos anos recentes, historiadores da cultura americana domesticaram o termo; e
na minha opinião ele pode ser ainda mais generalizado. Não quero com isso dizer que os “vitorianos”
franceses, alemães ou italianos fossem exatamente iguais a seus contemporâneos britânicos ... mas estou
convencido de que existe uma grande semelhança de família entre os burgueses, em que pesem todos as
diferenças. (GAY. O século de Schnitzler . Página 17.) Na série A experiência burguesa: da Rainha
Vitória a Freud , o historiador simplifica ainda mais a questão, ao utilizar vitoriano como sinônimo de
“século XIX”. Existiram “vitorianos” antes e depois da rainha Vitória; o século XIX estendeu-se da
derrota de Napoleão, em 1815, à eclosão da Primeira Guerra Mundial, em agosto de 1914. Além do
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mais, os traços que corretamente consideramos como característicos dos vitorianos não estavam
confinados à Grã-Bretanha. (GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud . São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, Volume 3, Página 11)
É possível também falar em uma moral vitoriana, em conformidade com esse momento histórico. Essa
seria um conjunto de valores que se impõem na sociedade após o período das revoluções (Revolução
Francesa à Primavera dos Povos). O período de paz e progresso econômico e tecnológico é dominado por
uma moral que supõe bons costumes, puritanismo, seriedade, retidão, discrição. Uma moral muito rígida
e, por isso, frequentemente considerada hipócrita por seus críticos mais audazes.
26 A formação de uma cultura própria da classe média burguesa no século XIX é o tema do texto de Peter
Gay do qual essa citação foi retirada. O pano de fundo para os comentários do historiador é a vida e os
escritos do romancista vienense Arthur Schnitzler. (GAY. O século de Schnitzler . Página 54.)
27O traje faz o homem, dizia um ditado alemão, e nenhuma época seguiu mais à risca tal idéia do que a
época em que a mobilidade social poderia de fato colocar numerosas pessoas dentro da situação
histórica inteiramente nova de desempenhar papéis sociais novos (e superiores), tendo que usar as
roupas apropriadas. (HOBSBAWM. Era do Capital. Página 321.) O papel do vestuário na sociedade
vitoriana será longamente analisado no Capítulo 2 deste trabalho.
28 GAY. O século de Schnitzler . Página 68.
29 O ponto crucial era o de que a estrutura da família burguesa estava em direta contradição com a
sociedade burguesa. Dentro dela, a liberdade, a oportunidade, o nexo do dinheiro e a busca do lucro
individual não eram a regra. (...) Mas também pode ser que a desigualdade essencial sobre a qual o
capitalismo se apoiava encontrasse uma expressão necessária na família burguesa. Precisamente porque
não era baseada em desigualdades coletivas, institucionalizadas e tradicionais, a dependência precisava
ser uma relação individual. Já que a superioridade era algo tão incerto para o indivíduo, ela precisava
tomar uma forma que fosse permanente e segura. (HOBSBAWM. Era do capital. Página 334.)
30A concepção medieval de coletividade, mantida na maior parte da população durante o período
moderno, entendia o homem como um elemento de um todo maior e mais importante, não deixando
espaço para a necessidade de uma vida privada.
31 HOBSBAWM. Era do capital. Página 328.
32 A desmilitarização das cortes contribuía para criar uma atmosfera um pouco mais pacífica. Como
acontece em todas as ocasiões em que homens são obrigados a renunciar à violência física, aumentou a
importância social das mulheres. (...) A riqueza das grandes cortes dava à mulher a possibilidade de
preencher seu tempo de ócio e dedicar-se a interesses de luxo. E assim, foi em torno de mulheres que se
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formaram os primeiros círculos de atividade intelectual pacífica. (ELIAS. O processo civilizador.
Volume 1. Páginas 77-8.)
33 GAY. O século de Schnitzler . Página 219.
34 HOBSBAWM. Era do Capital. Página 327.
35 A expressão “hipocrisia consciente” é emprestada de Eric Hobsbawm que afirma que, nas questões
relativas ao sexo, a moralidade oficial burguesa batia de frente com as demandas da natureza humana:
Aqui, as regras eram perfeitamente entendidas, incluindo a necessidade de uma certa discrição nos casos
onde a estabilidade da família ou da propriedade burguesa pudesse ser ameaçada: paixão, como
qualquer italiano da classe média ainda conhece, é uma coisa, “a mãe dos meus filhos” é outra bem
diferente. (HOBSBAWM. Era do Capital. Página 325.)
36 O historiador da homossexualidade Randolph Trumbach comenta que antes do século XVIII na Europa,
o homem adulto tinha relações sexuais com mulheres e adolescentes do sexo masculino. Apenas as
relações matrimoniais com mulheres eram legais e aprovadas pela Igreja, mas os homens se envolviam
em outros tipos de relacionamentos, da prostituição ao adultério e estupro, que eram ilegais na
Inglaterra e certamente imorais em toda Europa. Esse comportamento podia, entretanto, ser honroso
para os homens quando revelava o seu poder. As relações homossexuais também eram condenadas mas
podiam ser honrosas quando afirmavam o poder do homem. Na maior parte da Europa, e certamente na
Inglaterra., isso ocorria quando homens adultos penetravam em garotos adolescentes, que
representavam um estado intermediário entre homem e mulher. Supostamente todos os homens eram
capazes de praticar tais atos com garotos. (...) Essas praticas sexuais entre homens e garotos não
implicavam – e esse é o ponto crucial – o estigma da efeminação ou do comportamento inadequado do
homem. Essa idéia remonta ao XVIII e permaneceu. Depois de 1700 esse tradicional comportamento
homossexual masculino foi substituído por um novo padrão de relações. (...) A prostituta e o sodomita
revelavam os limites do comportamento que a sociedade considerava apropriado para homens e
mulheres. Para essa maioria, as mulheres de verdade não eram prostitutas e os homens de verdade não
eram sodomitas. Portanto, aquilo que no século XIX denominou-se de homossexualidade eheterossexualidade não são distinções presentes na natureza humana universal. (TRUMBACH. Fantasia
erótica e libertinagem masculina no iluminismo inglês. In: HUNT. A invenção da Pornografia. Páginas
275-278.)
37 O discurso sobre a repressão do sexo no século XIX vigorou na historiografia até que Michel Foucault
batesse de frente com essa verdade já consolidada. Era razoavelmente fácil manter uma postura teórica
que sustentava que até o XVII, o sexo não era considerado um assunto a ser escondido sequer disfarçado,
sendo frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade, da decência, se comparados com os do
vitorianismo. Esse, por sua vez, teria finalmente limitado a sexualidade ao âmbito doméstico, privado; o
casamento sendo o único local da sexualidade lícita. O sexo comedido, discreto, heterossexual e dentro do
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matrimônio seria o único tipo aceito e praticado pela sociedade. Para os críticos da sociedade utilitarista e
monetarista, um prato cheio para denunciar a hipocrisia dessa pregação.
O autor dedica um capítulo de sua História da Sexualidade aos textos que passaram a censurar o sexo e
ditar um comportamento adequado, próprio da burguesia, desde o século XVII. Ao promoverem debates
acalorados acerca da conduta moral ideal, não estariam, na verdade, promovendo um assunto que
justamente buscavam refrear, limitar?
Se a hipótese geralmente aceita a respeito da sexualidade é a repressiva, Foucault, por sua vez, afirma que
a partir do século XVI, a “colocação do sexo em discurso”, em vez de sofrer um processo de restrição
foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de crescente incitação; que as técnicas de poder exercidas
sobre o sexo não obedeceram a um princípio de seleção rigorosa mas, ao contrário, de disseminação e
implantação das sexualidades polimorfas e que a vontade de saber não se detém diante de um tabu
irrevogável, mas se obstinou em constituir uma ciência da sexualidade. (FOUCAULT. História da
Sexualidade. Página 17.)
38 Nos 120 dias de Sodoma do Marquês de Sade, provavelmente o mais importante autor da literatura
libertina, o grupo de libertinos que se isola no castelo de Siling conta com um clérigo. Irmão do celerado
Duque de Blangis, o Bispo de ... é definido da seguinte maneira: A negrura de sua alma era a mesma [de
seu irmão] assim como o pendor para o crime, o desprezo pela religião, o ateísmo, a velhacaria, mas
tinha o espírito mais flexível e mais destro, mais criatividade para causar a morte de suas vítimas (...)
Idólatra da sodomia ativa e passiva, com uma clara preferência por essa última, passava a vida sendo
enrabado e esse prazer, que nunca requer um grande desgaste de forças, combinava perfeitamente com
seus recursos limitados. Incestuoso, sodomita, assassino, ladrão, pedófilo: o “Bispo de ...” , justamente
por não ser especificado, podia ser qualquer um. Ou todos. (SADE, Marques de. Os 120 de Sodoma ou A
escola da libertinagem. Tradução de Alain François. São Paulo: Iluminuras, 2006, Página 24.)
39 HUNT, Lynn. A pornografia e a revolução francesa. In: A invenção da Pornografia. Página 336.
A invenção da pornografia reúne artigos de diferentes historiadores a respeito da tradição de escritos de
cunho erótico e sexual no Ocidente durante o período moderno. Sobre o assunto, a historiadora norte-americana Lynn Hunt – organizadora da publicação – escreve que Pornografia e revolução parecem
parceiras involuntárias e constrangidas. Nos século XVI, XVII e XVIII, a pornografia foi escrita quase
exclusivamente por homens; em geral, ainda que nem sempre, para um público de leitores masculinos de
classe alta, supostamente libertinos, tanto nas idéias quanto no comportamento. Os libertinos
aristocráticos são, presumivelmente, representantes da decadência da moralidade aristocrática, que os
revolucionários franceses desejavam erradicar. Os revolucionários franceses são retratados como
puritanos – Robespierre, evidentemente, é o principal exemplo -, e é difícil imaginar esses homens
rígidos e ascéticos aprovando a pornografia. A pornografia de motivação política a provocar a
revolução ao abalar a legitimidade do Antigo Regime como sistema social e político. (Página 336.)
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40 Foucault complementa: A valorização do corpo deve mesmo ser ligada ao processo de crescimento e
de estabelecimento da hegemonia burguesa; mas não devido ao valor mercantil alcançado pela força de
trabalho, e sim pelo que podia representar política, econômica e, também, historicamente, para o
presente e para o futuro da burguesia, a “cultura” de seu próprio corpo. (...) Perdoem-me aqueles para
quem a burguesia significa elisão do corpo e recalque da sexualidade, aqueles para quem luta de classes
implica no combate para suprimir tal recalque. A “filosofia espontânea” da burguesia talvez não seja
tão idealista e castradora, como se diz; uma de suas primeiras preocupações, em todo o caso, foi o de
assumir um corpo e uma sexualidade – de garantir para si a força, a perenidade, a proliferação secular
deste corpo através de um dispositivo da sexualidade. (FOUCAULT. História da Sexualidade. Páginas
117-18.)
41 GAY. O século de Schnitzler . Páginas 100-102.
42 Idem. Página 47.
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Capítulo 2:
Luto
Preto: a cor da morte. A separação dos gêneros pela aparência.
Os homens adotam o negro na vestimenta. O luto feminino e a influência da Rainha Vitória.
50
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O caráter da cor tem a ver com o caráter da pessoa.
Homens cultivados têm aversão às cores.
Isso se deve em parte à fraqueza do órgão da visão,
em parte ao gosto inseguro, que prefere se refugiar na completa negação.
As mulheres agora se vestem frequentemente de branco, e os homens, de preto.
Goethe. Doutrina das cores. 1840.
O traje do século XIX é detestável. Sombrio, deprimente.
O pecado é realmente o único elemento que dá colorido à vida moderna.
Oscar Wilde. Aforismos. 1890.
Quando os homens de cultura passaram a ter aversão às cores, encontrava-se a
sociedade ocidental nos primeiros anos do período vitoriano. A seriedade e a moral
rígida, características desse momento foram, em larga medida, expressas pela adoção
irrestrita do preto na vestimenta – tanto masculinas quanto femininas. Todo o processo
de aniquilamento do ser humano instintivo e de comportamento natural culminou na
morte da espontaneidade, que no século XIX alcançou seu ápice. Morreram também as
cores na aparência desse indivíduo, sóbrio e autocontrolado tanto interna quanto
externamente.
Foi nesse período, mais do que em qualquer outro anterior, que os homens
vestiram preto. Anulando seus desejos e contendo seus corpos, a sociedade vitoriana
adotou o luto como vestimenta cotidiana. Em meados daquele século, o negro das
roupas tornou-se o uniforme tanto das elites, aristocratas ou industriais, quanto das
classes médias, comerciantes e profissionais liberais, e do operariado. A moda do luto
foi, então, uma moda para todos.
51
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*
Em pleno século XIX, Goethe defendeu que a cor era mais do que um fenômeno
físico provocado pela incidência da luz na superfície das coisas. Desde Newton,
duzentos anos antes, e por prolongamento durante as Luzes, aceitava-se amplamente a
tese de que cor e luz eram indissociáveis, existindo uma como conseqüência da outra e o
empirismo iluminista aceitava as provas observáveis na natureza e as reprodutíveis em
laboratórios pela utilização de prismas e lentes como comprovação da tese.
Pois que esses argumentos não eram suficientes para Goethe. O escritor alemão
foi um apaixonado pelo estudo das cores a ponto de não se satisfazer com a teoria
newtoniana, muito simplista em sua opinião. Para ele, ainda que se pretendesse estudar
a luz, e consequentemente a existência das cores, somente como um fenômeno físico,
era necessário aliar esse conhecimento mais factual a uma associação entre as cores e a
construção de uma linguagem sensível-moral, que se estabelecia no contato com o
homem, ou melhor, entre uma cor e o órgão da visão no momento exato de sua
percepção. Porém, os olhos não eram simples instrumentos passivos tais como as lentes
dos laboratórios: sendo partes vivas e ativas do organismo, não apenas refletem
mecanicamente as cores, mas sobretudo, as interpretam.
Tal como um indivíduo mostra à sociedade o que é por meio de suas ações e
suas paixões, também a luz se mostra por meio das cores: suas ações e paixões. O
caráter da cor despertaria reações à alma humana e por isso, antes de serem apenas
efeitos da luz, elas pertenceriam aos homens, à sua visão, à sua capacidade de agir e
reagir perante elas. Nenhuma cor seria, então, absolutamente neutra – mero fenômeno
físico - porque a visão não é absolutamente passiva: Cada olhar envolve uma
52
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observação, cada observação uma reflexão, cada reflexão uma síntese: ao olharmos
atentamente para o mundo, já estamos teorizando.1
Cores são conceitos, concepções ordenadas e interpretadas no momento da
recepção. Dessa maneira, branco não é somente luz, mas conceito de luz; preto não é a
falta da luz, mas o conceito de escuridão. Por sua definição científica, o preto
representaria somente a ausência da luz; metaforicamente concebe uma idéia de
obscuridade e negação, porque anula as outras cores, impondo-se. Não excita a retina,
não estimula os sentidos, mantém os olhos em estado de repouso: melancólica e
cômoda, ideal ao gosto inseguro do homem vitoriano.
Na esfera ideológica, a relação entre a cor preta e a escuridão aparece desde a
Antiguidade. Segundo o poeta Hesíodo, a divindade Noite é a mãe do deus Morte. Filha
do deus primordial Caos, é a representante das Trevas. Simboliza não apenas um
estágio primeiro da origem do mundo, como também a ausência da luz e da vida.2
Sendo assim, a deusa da Escuridão gerou a Morte: e desde então, desde os mitos
cosmogônicos da Antiguidade arcaica grega, a sociedade ocidental nunca mais deixou
de representar a morte através do preto.
*
Durante o período medieval, homens e mulheres vestiam-se com diversas cores.
Foi por volta do ano mil que a roupa na cor preta tornou-se própria de um tipo
específico de vestuário: o monástico. A cor que, não tendo cor, apagava e afastava o
eu3, trazia em seu cerne o princípio da impessoalidade, buscada pelas ordens religiosas
que pregavam a vida ascética, notadamente a beneditina e, posteriormente, a
dominicana e a franciscana no século XIII. Suas vestes, confeccionadas em tecidos
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grosseiros poderia ser também parda, em tons de marrom ou cores escuras específicas
dos tecidos brutos como a lã, mas logo o uso do negro tornou-se como que uma marca
de identificação desses religiosos, cujas características incluíam abraçar a pobreza, o
desapego material, praticar a peregrinação. O preto desde então já indicava a abnegação
e a contenção dos desejos desses homens.
Porque dentro da Igreja o preto aparece como a cor da ausência, logo foi
assumida pelo clero secular como a roupa própria para o luto, não por acaso no
momento em que a instituição gradualmente se apropriava dos ofícios do luto, até então,
laicos. A incorporação da morte ao cerimonial da Igreja ocorreu conjuntamente a outros
vez eram também conduzidos sem sua participação, como os casamentos e os batizados.
Durante o fim da Alta Idade Média, a Igreja se consolida como a mais forte instituição
ideológica da medievalidade, muito por ter se inserido e, consequentemente,
monopolizado esses ritos sociais. Assim, se a celebração das missas era feita com trajes
em cores, nos períodos de luto, o preto tornou-se a roupa oficial de seus membros a
partir do século XI.
Não somente padres e monges vestiam o preto nessas ocasiões, mas também os
demais envolvidos nos rituais. Por influências das vestes religiosas, ajudantes,
coroinhas, carregadores de caixão, carpideiras, passam também a utilizar vestimentas
simples e negras.4 A cor indicava o respeito ao morto e gradativamente passou a ser
adotada pelos indivíduos próximos ao defunto como familiares e amigos.
Assim, apesar da relação existente entre a morte e o preto dentro da Igreja, foi
somente no fim da Idade Média que a veste dessa cor passou ser característica do
processo de enlutamento para os indivíduos comuns. Se antes a tristeza era manifesta
pelo choro, lamentos e gestos dramáticos, nos séculos XIII e XIV generalizou-se uma
identificação de um óbito também pelo uso da roupa em cor preta. O evento era
54
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reconhecível pela adoção de um vestuário característico, que não era utilizado
cotidianamente pelas pessoas não pertencentes ao clero. A cor ganhava a conotação do
sofrimento: o preto passava a ser a aparência da dor .5 Também no período posterior ao
funeral, quando era apropriado demonstrar certo tipo de comportamento semelhante ao
religioso, o negro transmitia explicitamente a contenção dos sentimentos de euforia, o
recato e o resguardo sexual pelos quais passava o sujeito enlutado.
*
Durante o Renascimento, o preto entrou em moda por uma série de motivos que,
inter-relacionados, tornaram-no uma voga momentânea, seguida somente por alguns
grupos específicos da Europa Ocidental. O tingimento era ainda um procedimento
bastante custoso pois necessitava a sobreposição de tinturas até que a fusão dos
pigmentos resultasse no breu total. Os materiais ordinários e rústicos naturalmente
escuros, como a lã preta, eram opções mais baratas; por outro lado, um pano que fosse
tingido, independente de sua qualidade, encarecia sobremaneira. No caso dos tecidos
finos, seu acesso era impraticável aos pobres. Ou seja, o uso dessa cor era, em si
mesmo, uma marca de distinção social.6
Os séculos da Renascença são também os da Peste Negra e da Guerra dos Cem
Anos7, momentos de certa obsessão pela morte e da presença constante de cadáveres
pelas cidades, promovendo o uso de um luto carregado por grande parte da população
dos países atingidos. Ao mesmo tempo em que vivenciava a nova dinâmica urbana do
fim do período medieval, a época fora acometida por males constantemente
interpretados como castigos divinos contra os homens de pouca fé e ganância de sobra.
55
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O uso corriqueiro do preto expressava em seu gérmen o medo e a culpa pela vida em
pecado e da incerteza diante de um momento de caos social e ideológico.8
Também por sua característica de luto, o preto foi amplamente utilizado pela
corte de Borgonha, a mais poderosa do século XIV, devido a sua adoção por Felipe, o
Bom; após a morte de seu pai, o rei João sem Medo. O impacto do uso do negro nesse
espaço social dedicado ao exagero das cores redefiniu seu uso, relacionando-o a uma
refinada sobriedade, adequada à nobreza. A elite, na tentativa de se aproximar da
aristocracia, copiava o uso do negro que se tornava, igualmente, a cor das classes
urbanas; não por acaso, a riqueza daquela região dava-se por suas cidades mercantes,
fazendo do território um pólo de atividades tipicamente burguesas. No século seguinte,
outro Felipe, rei da Espanha, filho de Carlos V, também ditou a moda européia ao
adotar o luto perpétuo. Sua influência foi proporcionalmente maior do que a do Felipe
borgonhês visto que as conquistas territoriais espanholas faziam do país o mais rico e de
maior atividade mercantil do período.9
De maneira geral, a alta burguesia européia buscava a aproximar-se da imagem
de luxo das cortes, sobretudo copiando seu vestuário luxuoso e, via de regra,
extravagantemente colorido. Contudo, cada vez mais fazia-se prudente vestir-se de
outro modo, em especial a partir dos decretos de leis suntuárias10 que visavam limitar o
plágio. O oposto à opulência aristocrática veio na neutralidade do negro. Muito
conveniente para uma “classe sem classe” que transitava dentro de uma sociedade ainda
estamental. O preto era sóbrio, austero, digno: qualidades apreciadas aos homens de
negócios. Era também a cor da discrição – e assim permanecerá durante todo o período
moderno. A burguesia – vestida de preto – enriqueceu e se fortaleceu paradoxalmente às
cortes que, luxuosamente coloridas, faliam. Nas regiões onde o poder econômico
sobrepunha-se ao hereditário, ou naqueles em que os monarcas eram já intimamente
56
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ligados à burguesia, o preto impôs-se: na Veneza mercante e na Espanha das grandes
navegações no século XVI, na Holanda protestante do período seiscentista, na Inglaterra
industrial desde fins dos setecentos.
Provenientes da Reforma, as vertentes protestantes que professavam um ideal de
frugalidade e severidade promoviam uma ode ao ascetismo material em contraposição
aos excessos cortesãos. A consonância entre esse modelo de espiritualidade e a adoção
do vestuário em preto era, então, inequívoca, tornando-se uma prática tão freqüente ao
ponto de transformá-la no uniforme dessas religiões. O austero estilo negro de Lutero,
assim como de muitos luteranos, calvinistas, regentes holandeses e puritanos ingleses
reflete a percepção do protestantismo.11 E se a alma humana em essência já era
marcada pelo pecado, a única opção era viver devotamente e com simplicidade:
combinação ideal entre a necessária prosperidade de um grupo à margem - sem classe,
desprezados pela aristocracia - e uma espiritualidade austeramente levada a sério.
Unidos pela ocupação mercantil e artesã, pela religião e pela exclusão das cortes,
esses homens buscam uma padronização solidária da aparência. Mesmo que os ricos
usassem veludo e os pobres, fustão, ainda assim todos usavam o preto. O quadro mais
discrepante em relação à aparência era a oposição entre holandeses - no auge da
austeridade puritana do negro -, e franceses, no ápice do refinamento exibicionista e
colorido da corte de Luís XIV, todos habitantes dos setecentos.
*
Nas cortes mais refinadas, notadamente a francesa, o aspecto da indumentária
que mais chama a atenção, antes mesmo da ornamentação e do luxo, é o do incômodo.
O desconforto físico parecia ser compensado por uma espécie de consolo mental pela
57
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certeza da imagem de autodisciplina e honra. A rigidez das peças com todos seus
pequenos detalhes e fechos complicados, amarrações e laços, toda a dificuldade
obrigatoriamente necessária para manter-se constrito em tais artifícios serviam para
expor à sociedade que eram poucos os homens e as mulheres privilegiados pelo sangue,
altamente civilizados e separados da plebe por um treinamento árduo e
responsabilidades complexas, diferente do povo, campesinos e burgueses, com suas
preocupações banais e prazeres prosaicos. 12 A corte de Luís XIV, regida pelo protocolo
e pelo cerimonial foi, por certo, a mais exemplar nesse sentido.
Em paralelo ao luxo francês, a corte da Inglaterra desprezava tais excessos e seu
vestuário simplificava-se de forma gradual. No caso das roupas masculinas , um casaco
simples, botas úteis, chapéu e roupa branca simples estavam se tornando sinais de um
cavalheiro que possuía não apenas muitos acres e um cofre cheio, mas também uma
mente sensível com um desdém maduro pelas instituições primitivas e seus badulaques
desnecessários, não importa quão raros. Apesar da influência francesa em cores,
perucas, laços e rostos empoados, Londres era vista como uma cidade sobriamente
vestida13, residência de um número cada vez maior de intelectuais, escritores e
negociantes. Nas cidades inglesas, bengalas e guarda-chuvas substituíam as espadas
ricamente decoradas.
O preto, que era a cor da classe burguesa desde o Renascimento, fosse na elite
mercantil ou nas classes médias protestantes, começava a ser adotado pelas cortes dos
países nos quais ascendia a potência política. O salto se deu no século XIX quando essa
burguesia de preto subiu ao poder tornando-se, inversamente ao que ocorria até então, o
grupo referência, responsável por irradiar novas tendências. Durante séculos acusados
de copiadores das cortes e renegados a descrições pejorativas, são eles agora que ditam
a moda. A simplificação da modelagem e o escurecimento dos tecidos foram mudanças
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burguesas preconizadas pelos dândis e sancionadas pelos românticos, adotadas pelos
industriais e seguidas pela massa.
*
Durante a Renascença, a ênfase do vestuário masculino era a força física,
realçada pelo volume concentrado dos gibões acolchoados e aumentado ainda mais pelo
uso de capas e peles nos ombros e nas costas. Outro foco era o da virilidade, acentuada
por ceroulas e calções curtos usados com meias muito justas, e pelo uso da braguilha.
No fim do século XVII essa silhueta começava a ser gradativamente alterada através do
traje que priorizava a elegância e a delicadeza em detrimento da força e da virilidade.
Destacava, então, a barriga e os quadris, estreitando o peito e os ombros, alongando o
torso e encurtando as pernas. As peças diminuíam de volume e tornavam-se mais retas
proporcionando uma melhor mobilidade – o que, na aristocracia, não significava em
absoluto desafetação. Um primeiro momento no processo de simplificação acontecia
aqui, na passagem entre os séculos XVII e XVIII, quando a combinação de camisa,
colete, casaca e calções aparece nos trajes de campo, mais informais, que aos poucos ia
sendo adotado no meio urbano pelas classes médias. Já era nítido o distanciamento entre
as peças masculinas, que diminuíam no volume e simplificavam na modelagem, e as
femininas, absurdamente excêntricas e caprichosas. O comedimento tornava-se
paulatinamente uma qualidade do guarda-roupa masculino, tendo em vista a
radicalidade dos excessos estilísticos das damas. Apesar das mudanças na silhueta, os
trajes das cortes, tanto os masculinos como os femininos, eram ainda confeccionados
em tecidos luxuosos e caros, com bordados, fitas, muitos ornamentos, excessos
considerados adequados ao homem até o fim do XVIII.
59
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conservadorismo em relação à indumentária proveniente do Antigo Regime. Nesse
sentido, os homens teriam efetivamente inovado ao despojarem-se do decorativismo
aristocrático. A simplificação do traje dos homens – que seria parte do processo de
desespetacularização do sujeito masculino – ocorre de maneira inversamente
proporcional ao exagero da indumentária feminina – a hiperespetacularização da
mulher, que passa a concentrar um valor extremo de exibição.15 Essa oposição era
reflexo de seus papéis sociais e casava-se de forma muito apropriada com o desejo em
se estabelecer novos valores comportamentais para a sociedade oitocentista. Dentre eles,
destacava-se a supervalorização da família. Na idealização do grupo doméstico, o
homem fazia as vezes de chefe rigoroso, marido respeitável, grande provedor e protetor
do lar; a esposa era a mãe dedicada e mulher virtuosa cujos filhos cumpriam o papel dos
pequenos anjos domesticados e obedientes. A honestidade nos negócios, a fidelidade e
a monogamia, o autocontrole nos gestos e nos gastos, a privacidade e o amor ao
trabalho foram outros ideais caracteristicamente burgueses.16
*
Na moda feminina, o século XIX começara sugerindo a simplicidade, sob
influência das idéias iluministas rousseaunianas (referindo-se à busca pelo “homem
natural”), da Revolução Francesa (no desprezo aos valores aristocráticos) e da estética
neoclássica (contra o rebuscamento rococó e de referência à arte da Antiguidade). As
mulheres vestiram-se de tecidos muito finos e vaporosos, de modelagem solta no corpo,
atados somente abaixo do busto, como uma camisola – ou melhor, uma túnica grega.
Adotaram corpetes curtos para sustentação do busto, em substituição ao espartilho. A
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cor predominante era o branco com detalhes em cores vivas, contrastando. Corpo livre,
à mostra, sandálias sem saltos.
Com a Restauração, essa liberdade da modelagem Império se perde e a silhueta
muda radicalmente. Mangas bufantes, saias encurtadas na altura dos tornozelos e
anáguas para dar volume nas saias levaram a um inevitável esquecimento da fluidez das
formas anteriores já na década de 1820. Nos dez anos seguintes, as mangas foram
ajustadas aos antebraços e amplamente abertas no punho, escondendo as mãos em
delicadas rendas e abundantes babados. A moda convergia da simplicidade para a
complexidade, do branco com detalhes coloridos pós-Revolução Francesa às cores
pálidas com estampas delicadas do Romantismo. Passou-se a toda variedade de cores,
estampas e padrões, incluindo-se o xadrez e o listrado em cores fortes contrastantes.
O espartilho retornava ao uso cotidiano para compensar uma silhueta de ancas
cada vez mais destacadas. Em meados da década, a crinolina foi introduzida pela
imperatriz francesa Eugenia e tornou-se o principal símbolo da roupa feminina daquele
século. Feita de aço flexível, seu triunfo era aliviar o peso das inúmeras anáguas e
liberar o movimento das pernas. Na época, foi uma invenção recebida com grande
entusiasmo. A chamada silhueta em X 17 foi o ícone da moda vitoriana, obtida com a
divisão do corpo pelo estrangulamento da cintura, destacando os quadris enormemente
aumentados pelo artifício metálico. Compunham o restante da composição as mangas
muito justas, blusas fechadas para o dia ou muito decotadas para a noite e saias muito
longas, por vezes com caudas, que se mantiveram até o fim do século.
*
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O ideal vitoriano valorizava atributos considerados tipicamente femininos como
a fragilidade, a delicadeza e a docilidade infantilóide. Fisicamente, essas qualidades
eram personificadas na fraqueza, na magreza, na palidez. Força e vigor eram atributos
exigidos apenas das mulheres operárias ou da classe média que deveriam ajudar nos
negócios. A suposta fraqueza das damas era ainda mais realçada por seus trajes, que
muitas vezes tornavam-na mais debilitada. Agourentamente, essas roupas garantiam a
saúde deficiente, encantadora, vestindo a mulher com sapatilhas de sola fina e vestidos
de mangas curtas e decotados, de musselina transparente. Para qualquer mulher, a
felicidade e a segurança, inclusive financeira, eram possíveis somente através do
casamento. Quanto mais inútil aparentasse, mais indicava sua posição na hierarquia
social, mantida pelo esposo. A ociosidade aristocrática era vista como o modo de vida
mais apropriado para mulheres da alta sociedade. As roupas femininas consideradas
elegantes na época eram excepcionalmente restritivas e ornamentais.
O espartilho, que deformava os órgãos internos e impossibilitava respirar
profundamente, funcionava como um instrumento de vigilância e submissão. Servia
para sustentação da frágil estrutura feminina: não apenas a física, sobretudo a moral. A
mulher desde cedo deveria estar presa e ser contida. Consequentemente, a mulher
vestida com elegância corava e desmaiava facilmente, sofrendo de falta de apetite e
problemas digestivos, e se sentia fraca e exausta após qualquer esforço maior.
Convenientemente, as mulheres eram mantidas em suas carapaças da moda: Em uma
sociedade patriarcal, uma mulher impotente, tola e bela é objeto máximo de consumo
conspícuo.18
Comparativamente aos períodos anteriores, no século XIX as mulheres
desejavam possuir um vasto número de trajes. Roupas representavam a situação
econômica e social de quem as vestia, eram dispendiosas e, portanto, possuí-las em
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quantidade era sinal de riqueza. Considerava-se bastante elegante trocar de trajes várias
vezes no mesmo dia e de acordo com a ocasião.
Enquanto para a roupa das classes médias e altas, novos matizes eram gerados a
partir da anilina, a mulher operária ou camponesa não podia ter grandes gastos e
preferia cores escuras ou pretas, mais versáteis. Sequer possuíam a crinolina, que era
indispensável à elite em todos os períodos do dia. E poucas usavam o espartilho, peça
bastante cara, pois era feita sob medida e artesanalmente – que, além do mais, impedia o
esforço físico -; quando muito usavam corpete. A mulher da cidade, por sua vez,
profissional liberal ou artesã, por manter contato constante com outras pessoas, investia
mais em sua aparência.
*
Em sua análise sobre o nascimento de uma “classe ociosa”, de 1899, o
sociólogo e economista Thorstein Veblen comenta a intenção expressa com a
hiperespetacularização da mulher pelo traje: O vestuário, portanto, a fim de servir
eficazmente a seus propósitos, não deve apenas ser dispendioso, mas deve também
tornar visível a todos os observadores que quem o usa não está ligado a qualquer
espécie de labor produtivo. A análise de Veblen tornou-se uma referência justamente
por demonstrar, por meio de uma exposição histórica sobre o surgimento da sociedade
de consumo, que o objetivo principal do dispêndio conspícuo é construir uma aparência
que simbolize o que se possui, ou seja, uma imagem representativa da posição
financeira do indivíduo. Sua finalidade seria conquistar simpatia e afeição ou – em
última instância – causar a inveja. Esse espírito de competição, inerente e natural ao ser
humano, seria, nas sociedades modernas, extravasado através do consumo e praticado
64
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em um nível de posse: possuir mais, ou melhor, que seus semelhantes. E sem ter feito
esforço para tanto, já que um exame detalhado daquilo que, na compreensão popular,
passa por elegância no vestir mostrará que essa elegância é conseguida para dar a
impressão de que a pessoa que a tem não costuma desenvolver qualquer esforço útil. O
efeito agradável de vestuários elegantes e imaculados se deve principalmente – se não
de todo – à sugestão do ócio que trazem.19
Nesse sentido, o vestuário feminino mostrou-se mais que eficaz. O corpo em
forma de ampulheta, mangas amplas, saias volumosas e apertadíssimos espartilhos,
sapatos de salto e cabelos longuíssimos arrumados em elaborados penteados que eram
ainda complementados por rebuscados chapéus, as mãos decoradas por luvas
delicadíssimas que seguram sombrinhas ou leques: esse conjunto causava exatamente o
resultado esperado, a sensação de que essa mulher não se preocupava com mais nada
além da própria aparência. Manter-se na moda era bastante custoso visto que os
modelos começavam a mudar rapidamente a partir de meados do século. Os tecidos
finos e importados usados aos metros, peças feitas sob medida, jóias refinadas e todo o
restante de acessórios faziam da imagem pessoal um grande investimento em termos de
dispêndio conspícuo.
*
Por volta de 1870, a crinolina passava a ser levemente projetada para trás,
tornando a frente da composição mais estreita e seca, a ênfase concentrando-se na parte
traseira da figura. Em 1880, o surgimento e a popularização da anquinha, em
substituição à crinolina, reestruturam um novo tipo de silhueta em formato de “S”,
valorizando o colo do busto, alongado por espartilhos mais compridos e liberando o
corpo do diâmetro exagerado na saia. Foi uma tênue simplificação do traje que
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acompanhou importantes mudanças comportamentais do universo feminino na transição
entre os séculos XIX e XX. Começar a trabalhar fora de casa, conquistar o direito ao
divórcio, interessar-se pelas artes e pela intelectualidade eram processos representados
no corpo pelo abandono de alguns artifícios extremamente tolhedores ou pela inserção
de peças mais masculinas nos trajes, como saias mais secas e retas e camisas usadas
com gravatas – como que simbolizando essa entrada das mulheres num universo, até
então, exclusivamente masculino.
O advento dessa “nova mulher”20 culminava com a recusa em ser
exclusivamente mulher-espetáculo. Desejando transpor da extravagância desmesurada
para a sobriedade das responsabilidades mundanas, as mulheres passaram não somente a
se vestir de maneira mais simples como também a adotar cores mais escuras e neutras.
Parece bastante significativo que essa mudança na conduta feminina coincida com a
morte da Rainha Vitória e, consequentemente, com o fim do vitorianismo.
*
Para a mulher a beleza, para o homem o despojamento completo.21 O paradoxo
da roupa feminina era dado pelo traje masculino. Essa diferença era notável até mesmo
no material empregado nas diferentes confecções: se até o fim dos setecentos não havia
separação entre os tecidos para roupas masculinas e femininas, a partir de então, alguns
seriam exclusividade das mulheres. As misturas linho-seda e lã-seda eram utilizadas nos
trajes diurnos de rua; a musselina, o organdi, a seda, brocados, tafetás, cetim e outras
fazendas requintadas eram apropriados para os trajes noturnos: sugeriam a fragilidade e
a inconstância feminina. Já os homens deveriam limitar-se ao uso entediante da lã e do
linho, 22
sempre engomado e alinhado, sugerindo rigidez de caráter, retidão moral.
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O traje campestre inglês da segunda metade do século XVIII, - que incluía o uso
de botas de solado baixo; mais confortáveis que os sapatos de salto das cortes, e o
casaco de montaria, o riding coat, (ou redingote para os franceses) - passou a ser
confeccionado pelas alfaiatarias londrinas na década de 1780, para uso urbano. A
Inglaterra assumia, destarte, o papel de ditar a moda masculina, influenciando tanto
França quanto Estados Unidos. Foi somado ao novo traje o hábito da burguesia
protestante, habitante das cidades, de utilizar desde muito, cores sóbrias e modelagens
austeras. A revogação das antigas leis suntuárias e os decretos de proibição do vestuário
aristocrático após a Revolução Francesa foram decisivos nesse processo, sendo o
próprio sans-culottismo responsável pela extinção dos calções nas classes médias.
Impunham a substituição da indumentária sensualista por uma racional e obrigavam o
cidadão a manifestar publicamente seu desprezo pelo estilo cortesão. A moda masculina
não se definiu de imediato com tanta clareza, mas a indumentária logo se transformou
num sistema semiótico intensamente carregado. Os moderados e os aristocratas eram
identificados por sua recusa em usarem a roseta [símbolo revolucionário]. A partir de
1792, o barrete vermelho, o casaco estreito com várias filas de botões e as calças
largas passam a definir o sans-culotte, isto é, o verdadeiro republicano.23 Era inevitável
que nas décadas não somente o vestuário se tornasse mais simples e solto como as cores
fossem desaparecendo, peça por peça.
A importância do vestuário enquanto imagem pública dos ideais pessoais era
oportuna à sociedade que valorizava as qualidades individuais em contraposição aos
privilégios do sangue. Entretanto, a aparência da respeitabilidade conquistada, e não
genética, não foi uma invenção burguesa. Os dândis24 , espécies de diletantes da vida
moderna, foram os responsáveis por inaugurar um novo estilo da indumentária
masculina, notadamente urbano e cuja ênfase dava-se na alfaiataria.
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Essas mudanças do início do século XIX partiram de homens como George
Beau Brummel, Baudelaire e Barbey d’Aurevilly, personalidades ilustres pelo gosto
requintado e freqüentadores das altas rodas. O dândi não se considerava um burguês
visto que era, por definição, um ocioso; eram de fato críticos mordazes do modo de vida
da burguesia. Ocupavam-se com assuntos da cultura, das artes, das elites.
Demonstravam que, na nova sociedade, vestir-se como um aristocrata deixara de ser
efetivamente elegante - quanto mais, perspicaz. Para eles, a perfeição do vestuário
consistia na simplicidade absoluta. Visto às vezes como excentricidade, o fato é que o
dandismo foi o último suspiro do “pavoneamento” masculino antes do firme triunfo da
sobriedade de classe-média burguesa que dominou posteriormente o século.
Privilegiando a elegância de formas simples, a alta qualidade dos tecidos e a
excelência da modelagem e do corte, os dândis proclamavam a melhor maneira de se
distinguir na sociabilidade urbana: pela sutileza dos detalhes e pela sofisticação
minimalista. Preocupavam-se com acessórios e com uma toalete minuciosa.
Paradoxalmente, apesar de renunciarem às cores brilhantes e ao exagero na
ornamentação, alguns dândis mais afetados davam-se ao luxo de praticar o tight-lacing,
adotando uma silhueta delicada quase feminina, trocaram os calções curtos pelas
pantalonas justíssimas com enchimentos que realçavam pernas bem torneadas, e
principalmente, engomar e ajeitar muito alto os suntuosos colarinhos, ornados de
gravatas com muitas voltas e um complicado e primoroso nó.
Ainda que o dandismo tivesse continuado como referência de estilo até meados
do século, já nos anos 1830 começava a ser substituído por tendência do escurecimento
das cores e da modelagem mais reta e funcional. A burguesia impunha uma moda
confortável e prática. A roupa masculina se desvencilhava de cores, principalmente os
trajes noturnos, em especial o smoking que, até a década de 1820 podia ser usado em
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diversas tonalidades e após, a elegância dos eventos permitia somente o preto. Todas as
outras cores passavam a ser consideradas deselegantes.
*
Assim, por volta de 1830, as casacas tornaram-se escuras, em tons de azul,
verde, marrom e no preto. Era considerado adequado vestir-se em combinações de três
cores: claras na parte de baixo, escuras para a casaca e vivas para os coletes e gravatas,
que poderiam ser mesmo bordados e brilhantes. As pantalonas justíssimas, presas aos
pés e usadas em cores claras, foram substituídas por calças, abertas nas barras, em tons
escuros ou no preto. Coletes e gravatas, únicas peças que ainda permitiam cores,
perdem-nas, passando a ser pretas, brancas ou escuras, nada de cores vivas. Depois de
1840, a tendência segue em direção ao monocromatismo e efetivamente ocorre uma
febre: a moda do preto. O homem decidia se cobrir de luto em todas as ocasiões.
Durante a época vitoriana, a nova mudança na silhueta masculina se deu pela
ênfase nos ombros e o corpo se esticou. Os trajes eram cortados de modo a sugerir uma
anatomia que, partindo de ombros largos e um peito musculoso e forte, afina-se em um
abdômen achatado e cintura estreita, flancos esguios e pernas espantosamente
alongadas, cobertas desde o alto da cintura até os calcanhares com tecido escuro. As
casacas, que no início do século eram compridas e com abas traseiras, encolheram
drasticamente para priorizar o efeito do tórax e costas. O colete muitas vezes
trespassado, para ajudar a disfarçar uma barriga arredondada, foi auxiliado por uma
longa fileira de botões. As golas moles de antes endureceram em colarinhos removíveis
altivos, passando a equilibrar os ombros aumentados, reforçando e enrijecendo o
pescoço, sustentando uma cabeça que não mais possuía cabelos falsos e empoados mas
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uma respeitável cartola. O homem rococó com seus subterfúgios artificiais fora
totalmente substituído por um homem naturalmente forte e sadio.
A moda masculina permanecia quase a mesma no decorrer do século, enquanto
as modas femininas sucediam-se umas às outras. Uma breve tentativa de mudança foi
esboçada na década de 1880 e teve como seu principal e mais conhecido representante o
escritor Oscar Wilde. Seu estilo impecavelmente arrumado, numa referência direta ao
dandismo do início do século, incluía calças muito justas na altura dos joelhos – à moda
do Antigo Regime – muitas peças em seda e veludo, complementado por seus cabelos
compridos e seu comportamento um tanto polêmico para a época (tendo como auge o
escândalo de sua prisão, acusado por seduzir um jovem filho de um barão), acabou por
relacionar a tendência ao homossexualismo e consequentemente levando-a ao
fracasso.25 Qualquer possibilidade de mudança esbarrava nesse preconceito do homem
efeminado e, assim, até o fim do século o guarda-roupa masculino resumia-se,
basicamente, em ternos, casacos e smokings para ocasiões formais. A grande reviravolta
só aconteceria décadas depois, com a voga da prática esportiva do início do século XX,
que quebrava o monocromatismo e reintroduz cores claras e alegres às peças.
*
A mudança do tecido apropriado ao traje dos homens também foi uma espécie
de reflexo das mudanças sociais pós-Revolução Francesa. Antes a seda e os brocados,
autoritários, que enrugavam e amassavam facilmente, pressupunham um grande
sacrifício em vesti-los – um refinamento. As superfícies decoradas dos tecidos eram a
lapidação do corpo, não revelando sua verdadeira natureza, o que está por trás do pano.
Exigem conduta e postura, demonstram ser incômodas e exige que o indivíduo atue seu
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próprio conforto. No mundo dos negócios, os tecidos mais vestidos como a lã e o linho
eram maleáveis, obedientes ao corpo e ao movimento. A beleza passava da superfície
decorada para a forma. Não escondia nada; antes, realçava aquilo que era intrínseco ao
homem: seu corpo e qualidades inatas como a honestidade e a dignidade. Também exige
postura, mas não a artificial, fingida, e sim a naturalmente elegante, sem afetação. A
honra aristocrata deu lugar à virtude burguesa no corte e no feitio das peças.
Literalmente, afinal a aristocracia também passou a se vestir nas alfaiatarias de luxo
londrinas.
A partir da metade do século, o traje aproximava-se rapidamente do terno, mais
confortável, marcando menos o corpo. A casaca, muito parecida com o paletó, cobria
quase todo o quadril e a braguilha, descartando a virilidade óbvia e explícita – e a calça
reta e solta era sua aliada nesse sentido. A estratégia de compensação dessa
dessexualização da roupa foi a utilização de diversos acessórios “fálicos”, contrapostos
ao despojamento: gravatas, bengalas, cartolas, charutos, são alguns exemplos.
Paralelamente, era um tipo de indumentária democrática, que favorecia todos os tipos
físicos e as mais diversas atividades. A sensação de uniformização cresceu
demasiadamente a partir do momento em que a produção industrial do vestuário
masculino trazia não apenas peças de qualidade cada vez maior, mas também a
padronização dos tamanhos, conseguida a partir do cálculo das proporções aproximadas
dos indivíduos com medidas semelhantes. Criava-se um design universal do traje. A
roupa pronta alcançou um nível de qualidade incomparável à dos períodos anteriores.
Diferentemente da feminina, que, montada sobre o espartilho – confeccionado
manualmente sob medida -, não deveria ser comprada pronta. Somente com a
padronização dos corpetes, no fim do século, foi possível conceber roupas elegantes de
qualidade para a produção fabril. A uniformidade no vestir trazia uma profunda
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similitude entre os homens, paradoxalmente à variedade, principalmente decorativa, do
vestuário feminino.
A estandardização do vestuário masculino durante o século XIX aconteceu em
todos os sentidos: na modelagem, mais seca e funcional, na padronização dos tamanhos
e nas cores escuras. A diferenciação entre classes mantinha-se na qualidade dos tecidos
e do corte, cujo caimento conferia uma estética mais ou menos sofisticada. No caso das
cores, o preto servia a todos. Poderia ser solene e prático, para trabalhadores liberais da
classe média, como advogados, médicos, funcionários de escritório, ou ainda para o
operariado: era durável, econômico, ocultava manchas de sujeira e de uso. Ao mesmo
tempo, usado pelas elites burguesas e aristocráticas, era dramático e elegante. Seus
trajes feitos em tecidos finos e de modelagem primorosa, sob medida, com recortes
complexos e detalhes intrincados, tornavam-se altamente agradáveis e sofisticados em
todo tipo de ocasião. O negro foi, portanto, o uniforme do mundo elegante e do mundo
industrial, no campo, nas metrópoles ou nas pequenas cidades.
*
O terno do fim do século era a versão popular do traje no qual a casaca, o colete
e a calça eram confeccionados no mesmo tecido e na mesma cor, em escala industrial.
Eram realmente informais e flexíveis, inicialmente usados só pelas classes inferiores ou
pelas classes médias em ocasiões muito íntimas, nunca em sociedade. Porém, devido à
sua praticidade popularizou-se no meio urbano e se tornou apropriado para todas as
ocasiões, desde que não fossem eventos elegantes e festivos. Sugere diplomacia,
compromisso, civilidade e autocontrole físico.26 Inexpressivo e obediente, ideal aos
indivíduos das classes subordinadas. O novo traje popularizou-se e igualmente
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dominava o gosto da população mais humilde, inclusive do operariado, que se
uniformiza em seus ternos pretos, como um grande exército fúnebre rumo às fábricas.
A simplificação da indumentária resultou num afrouxamento da etiqueta
masculina, não havendo mais a necessidade de diversas trocas durante o dia e nem a
posse de inúmeros trajes mesmo para as elites. A pouca variação em termos de
modelagens e cores tornava a composição mais prática e as peças combinavam entre si,
pois, ainda que a produção industrial tivesse diminuído os custos e o preço final, obtê-
las em quantidade era um luxo.
O vestuário representava parte significativa das posses dos que tinham recursos
limitados. As roupas constituíam, com freqüência, seu único bem de valor e a
abundância de lojas de penhores nos centros urbanos provava com que freqüência eram
procuradas por indivíduos que pouco mais tinham além, literalmente, da roupa do
corpo.27 Para os mais pobres, havia nitidamente dois tipos de trajes, feitos de diferentes
materiais. Um de trabalho, confeccionadas em casa, e um de “classe média”, a chamada
“roupa de domingo”, em melhor condição ou mais nova, para ser usada nas festas ou
nos eventos religiosos e que, quando já surradas e velhas, eram usadas nas fábricas.
Esse traje especial era composto de terno, sobrecasaca, colete de seda, gravata de seda,
cartola, sendo comprados prontos, mais baratos, ou feitos sob encomenda em alfaiates
de segunda linha. Adquiriam-se ternos e casacos novos quando alguém se casava, e
esses eram usados por décadas. A preferência era sempre pela cor preta: para serem
usados também, quando necessário, como traje de luto. O mesmo ocorria para com as
mulheres. 28
*
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Pois que a sociedade vitoriana, baseada na igualdade democrática e aberta aos
talentos individuais, valorizava mais as qualidades internas pessoais em contraposição
aos sinais externos da aparência. Agora o que importa não é desaparecer dentro de uma
carapaça fulgurante, sumir debaixo dos brocados, formando a roupa como um todo
indissolúvel, mas destacar-se dela, reduzindo-a a um cenário discreto e amortecido no
qual se exibe o brilho pleno da personalidade.29 Seria legítimo pensar em um desapego
consciente da beleza por parte dos homens no século XIX?
É possível considerar, por um lado, a uniformização da indumentária masculina
como uma grande renúncia do belo em nome de outras prioridades como o conforto, a
elegância, a praticidade.30 Entretanto, por outro lado, apesar da pouca variação, o código
vestimentar continuava a ser muito rígido e contava ainda com inúmeras possibilidades
estéticas, mesmo dentro do limitado universo da sobriedade.31 Casacos e trajes
completos mudavam de estilo de acordo com as modas, no tipo do corte e no número de
botões, por exemplo; determinados tipos de casaco e calça eram apropriados somente
para atividades e períodos específicos do dia – e eram diferentes também no ambiente
campestre ou urbano. Ainda que se tratasse de um tipo de vestuário mais simples, a
apresentação num estilo elegante requeria tempo, bom gosto e dinheiro. Numerosos
tipos de acessórios também eram usados como cartolas, gravatas de seda, coletes de
seda e cetim, luvas, bengalas e relógios, elementos importantes na apresentação da
classe média e alta. As classes baixas eram do mesmo modo preocupadas com a
aparência e usavam versões mais baratas, por vezes industrializadas, desses itens.
Portanto, se for possível considerar algum tipo de renúncia masculina, essa
certamente se deu em relação às cores. Seu desaparecimento gradativo nas peças de
roupa foi a primeira instância do processo de simplificação e austeridade nos trajes. Não
por acaso combinava com o ambiente em que esses homens viviam: a fumaça cinza das
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fábricas nos céus das cidades que crescem em meio a prédios e asfalto. A morte das
cores estava em todos os lugares no meio urbano. Necessita-se um tipo de roupa que
além de não contrastar com a paisagem, não sujasse facilmente e fosse apropriado à
dinâmica do homem de negócios, que deveria estar apresentável, discreto e digno em
qualquer hora do trabalho
A imagem de civilidade aparecia não só pela rigidez do traje, mas na conduta
baseada no autocontrole, na abstinência e na disciplina, provenientes tanto da ética
protestante e da parcimônia burguesa quanto de um processo de adestramento pelo qual
o homem moderno passou dentro das regras familiares, das escolas, das fábricas. Porque
o progresso e o lucro passam a ser vistos como conseqüência da regularização e da
repressão dos comportamentos e desejos naturais aos seres humanos; o corpo passa por
uma racionalização refletida em novos hábitos alimentares, na contenção do sexo, na
economia das finanças, deixando de ser o espaço do individualismo para ser
socialmente construído. Toda a energia humana deveria ser canalizada para o trabalho, a
conquista sexual revertendo-se em triunfos econômicos nos negócios e no comércio, a
totalidade da vida passando a ser controlada pelo Estado.
Durante o período vitoriano, a indumentária masculina tornou-se austera, sóbria,
e ao mesmo tempo prática, funcional, quase melancólica. O fato é que, ao mesmo tempo
em que a sociedade comemorava o surgimento da democracia e do liberalismo, a
explosão da produção industrial e a consolidação da burguesia e do capitalismo, seus
homens cobriram-se de luto.
*
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Em sua vida, o vitoriano frequentemente presenciava a morte. Considera-se que,
no século XIX, a cada vinte crianças, três morriam antes de seu primeiro ano e a
expectativa de vida era de somente 43 anos.32 As maneiras simples de prevenção de
doenças, muitas delas baseadas no controle básico da higiene na preparação de
alimentos ou nos partos não eram uma praxe, assim como a freqüente utilização de
medicamentos duvidosos de origem caseira aumentavam as chances de falecimento
prematuro. Não era nada incomum que se estendesse de um período de luto para outro,
os indivíduos passavam um bom tempo de suas vidas cobertos de negro.
Por ser uma sociedade altamente regida pelos códigos de etiqueta,
consequentemente a morte foi também rigidamente regulamentada. Desrespeitar essas
regras era considerado um verdadeiro escândalo, um ato de imoralidade. A aprovação
de outrem governava o comportamento individual.33
Jornais de costumes e manuais de etiqueta, muito comuns à época, traziam todas
as recomendações e dicas a serem seguidas nesses momentos e eram muito populares
entre a classe média. O luto tornou-se um cerimonial complexo, normatizado desde as
cartas de condolências até a maneira de conversar com a viúva. Dentro das casas, as
cortinas eram abaixadas e os relógios parados na hora do falecimento. Espelhos eram
cobertos.34A família não se reunia para as refeições enquanto o cadáver estivesse
presente. Era aconselhável que se preparassem funerais dispendiosos, erguessem
túmulos artisticamente preparados com monumentos ao morto. Todos os detalhes eram
observados e mesmo os cavalos que levavam o carro com o caixão deveriam ser pretos
e decorados em preto. A determinação em assegurar um funeral decente para os
membros da família foi característica seguida por todas as classes na sociedade
vitoriana, mesmo quando os gastos colocassem em risco a sobrevivência dos que
ficavam. Ninguém queria enterrar seus entes em túmulos medíocres.
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*
O luto vitoriano tinha dois estágios: fechado e meio-luto, cada um contando com
suas próprias regras.35 De fato, as mais importantes e rígidas referiam-se ao vestuário.
Era através dele que se mostrava imediatamente a tristeza e se exigia distância das
mundanidades. Sua cor oficial era o preto, reconhecidamente a cor da ausência. Porém,
não era a única. Mesmo no luto fechado, o branco poderia ser utilizado em punhos e
colarinhos. Os tecidos deveriam ser discretos como os de algodão ou a lã, nunca
brilhantes ou chamativos como o cetim, a seda e o veludo.
Para os homens o vestuário era muito mais fácil de ser providenciado: eles
apenas usavam o seu traje preto tradicional combinado com luvas pretas. Às crianças, o
luto não era obrigatório, mas poderia ser adotado fosse com essa cor ou com outras,
neutras, como o cinza ou o branco. Já o luto feminino era muito mais severo, exigia que
as mulheres tivessem um guarda-roupa completamente negro, incluindo acessórios
como sombrinhas, bolsas e lenços na mesma cor e sem ornamentos. Notadamente no
caso das viúvas, deveria ser um sinal de afeição eterna e não segui-lo corretamente era
interpretado como desprezo ao marido, uma ofensa imperdoável numa sociedade em
que homens valiam mais que mulheres e eram responsáveis por sua posição social.
O luto fechado de viúvas deveria durar cerca de dois anos, período no qual além
do vestuário preto, sem jóias, usava um véu cobrindo o rosto ao sair de casa e não era
apropriado que arrumasse os cabelos ou usasse perfume. Nesses meses, suas atividades
sociais deveriam ser as mínimas possíveis, idealmente restritas aos serviços da igreja.
Ao fim do luto profundo, se a viúva não tivesse meios para se sustentar e ainda tivesse
filhos pequenos, era permitido e aconselhável que se casasse novamente. Nenhum luto
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era mais longo do que o da esposa já qualquer outro membro da família, supostamente,
sofreria menos do que ela. Viúvos mantinham seu vestuário habitual e cotidiano, e
poderiam continuar trabalhando; era de bom-tom que evitassem eventos sociais nos
primeiros dois anos após o falecimento. No caso de pais que perdessem um filho ou do
filho que perdesse um dos pais, o luto fechado era de dez meses a um ano, por outros
membros da família variavam de seis meses a quatro semanas. De maneira geral, essa
duração dependia muito da relação que se tivesse com o falecido, especialmente com
aqueles com que não houvesse parentesco. Esperava-se que o luto representasse a
extensão do pesar pela qual o sujeito passava, podendo ser, então, bastante variável.
No meio-luto, era aceitável usar matizes como o cinza, malva, roxo, lavanda,
lilás e também o branco combinado com essas cores. Também o vermelho, em seus tons
mais escuros, era adequado. Ao suavizar o negro, o uso de jóias também era liberado,
porém limitadas e discretíssimas. Em tons sóbrios ou ainda em formato de camafeus,
nos quais se colocavam mementos mori como mechas de cabelo ou fotos do morto. O
meio-luto também era variável, adotado após o luto profundo e durava alguns meses.
Após no máximo um ano, era então possível voltar a vestir todas as cores. Entretanto,
algumas mulheres decidiam seguir o exemplo da rainha inglesa, Vitória, e adotavam o
meio-luto pelo resto de suas vidas.
O vestuário de luto passou a ser vestuário de moda, seguindo todas as suas
tendências e novidades. Nas classes médias e baixas, apesar dos gastos, faziam o
possível para vesti-lo pelo maior tempo. Roupas eram artigos caros e o comércio do
luto passou a ser bastante lucrativo, visto que as mulheres, usavam-no cada vez mais
por tempo maior.
Portanto, curiosamente, o luto era a maneira mais perfeita de mostrar a riqueza e
a respeitabilidade de uma mulher. No caso dos homens, o fato curioso vem a ser a
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respeito da roupa do defunto. Para a morta, o mais indicado era o branco ou cores
suaves, como as usadas em vida. O mesmo procedimento era indicado às crianças que
usavam tecidos claros ou estampados mesmo no túmulo. Porém, se o cadáver fosse
masculino, o traje mortuário ideal era o mesmo do cotidiano, o mesmo das festas e
ocasiões formais, o mesmo do luto: o traje completo em preto. O homem vitoriano se
vestia exatamente da mesma maneira na vida e na morte.
*
A grande responsável por tamanha importância da imagem do luto feminino
fora, indubitavelmente a rainha da Inglaterra. Seus 64 anos de reinado foram marcados
por sua conduta rígida enquanto governante e pela tragédia pessoal que passou com a
morte de seu marido e primo, Albert. Entronada em 1837, Alexandrina Victoria
conduziu a política inglesa numa época em que os interesses industriais e imperialistas
da nação mais poderosa do mundo contrastavam com um território ainda
prioritariamente rural. Mesmo com esses paroxismos, a monarca conseguiu manter a
paz social e recuperar o prestígio da realeza, agindo em sentido oposto de seus
predecessores.36
Não foi à toa que seu nome designou o século da construção de um modelo
burguês. Em primeiro lugar, Vitória trabalhava como um homem de seu tempo;
autoritária, gostava de acompanhar de perto tudo o que acontecia em seu Parlamento
assim como de participar das decisões de seus ministros. Acordava cedo e passava horas
em seu escritório, revendo contratos e assinando papéis. A imagem de dama vitoriana,
sempre estendida em seu canapé, não vem da rainha.37
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Por conta desse compromisso com o labor, era querida pelo povo;
paradoxalmente, jamais foi a aristocrata típica, mergulhada em luxos e preocupada
exclusivamente com roupas e festas, pelo contrário. Apreciava-lhe ser
reconhecidamente mais próximas das classes médias do que da elite dispendiciosa: “As
classes elevadas”, escrevia ela à sua filha “e particularmente a aristocracia
(evidentemente com algumas exceções honrosas) são tão frívolas, tão apegadas aos
seus prazeres, tão pouco compassivas, tão egoístas imorais e folgazãs que evocam [...]
os dias que precederam a Revolução Francesa. Os jovens são tão mimados, as
mulheres jovens tão emancipadas, tão frívolas, tão imprudentes que o perigo é
realmente muito grande. É preciso adverti-los. As classes inferiores estão se tornando
tão bem informadas, tão inteligentes e ganham seu pão e suas riquezas tão
honestamente que não podem e não devem ser mantidas atrás para o prazer de tristes
indivíduos ignorantes e bem-nascidos, que vivem apenas para matar o tempo .”38 É
possível afirmar ainda que o amor desmesurado de Vitória por seu marido fosse o mais
robusto alicerce de seu carisma popular. Ao personificar o ideal da mulher oitocentista,
assumidamente apaixonada e companheira irrestrita de seu parceiro, a rainha criava um
vínculo de afinidade com seus súditos, sem precedentes. A afirmação do casamento
como o principal evento da vida, origem da família – o porto-seguro da burguesia,
talvez seja sua maior contribuição social aos seus contemporâneos.39
Em 1861, morre seu querido Albert, vítima da tifo. Sua dor foi profunda e sem
fim. Até sua própria morte, em 1901, a rainha viveu e governou abalada pela angústia
dessa perda e pela responsabilidade de ser mulher, chefe de estado e modelo de
reputação. Inconformada, não havia para ela desgosto maior que o seu. Nunca se
chorava o bastante e, ao mesmo tempo, nunca se devia tentar superar a rainha em
infortúnio. Sempre foi extremamente difícil para a rainha admitir que uma desgraça
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pudesse ser comparada à sua. Quando sua filha perdeu um filho, consolou-a
escrevendo-lhe: “Pensa no que é a perda de um filho em comparação à de um
marido”.40
Viúva, Vitória adotou o luto pelo resto da vida. Por não ter se casado novamente,
ter vivido desde essa perda em reclusão e não ser vista divertindo-se, sua imagem
sempre severamente séria em negro, fiel ao marido até o fim, a Rainha transformou o
luto em sinônimo de virtude. Sinal da esposa que não encontra mais alegria após a
morte de seu companheiro. Vestiu o luto profundo por mais de três anos e o meio-luto
por quarenta. Seguindo seu exemplo, mantê-lo durante o máximo de tempo possível
garantia reputação altamente respeitável a qualquer viúva. Era uma expressão de
isolamento e resguardo. A rainha foi também responsável pela adoção do luto por parte
da corte e com isso influenciou mulheres que exigiam que seus empregados assim se
vestissem na morte de seus senhores.
Sua dor, despótica, se estendia ao espaço público – em detrimento de ser um
sentimento privado. O corpo eternamente lutuoso da rainha era a representação de um
Estado em luto. Sua casa mergulhou no luto mais estrito. Nada de festas, nada de
música. O dia da morte de Albert tornou-se sagrado, assim como de seu nascimento, de
seu noivado, de seu casamento. Em cada uma de suas moradas, o quarto de Albert era
conservado intacto: a cama feita, os trajes do dia prontos para serem vestidos, as
escovas e as navalhas dispostas como de hábito. Trinta anos depois, Gladstone
queixava-se de que um criado, trazendo água quente para o fantasma de Albert,
interrompesse regularmente as conversações do fim do dia com a rainha. Ninguém de
seu círculo tinha a audácia de sugerir-lhe pôr um fim nessa comédia fúnebre.41
Típica do período vitoriano, essa idolatria pelos mortos não foi exclusividade da
rainha.
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*
Assim, a profusão de cores deu lugar a corpos cobertos de breu. Algo de
ideologicamente novo refletiu-se nos vestuários. O preto foi o símbolo da praticidade –
a roupa do homem de negócios e do trabalhador urbano, apropriada ao ambiente
citadino e à respeitabilidade burguesa –, da reação à ornamentação exagerada de
aristocratas. Era, sobretudo, um emblema democrático: a cor neutra e a modelagem
simplificada, aliadas à padronização industrial dos tamanhos serviram para uniformizar
a sociedade. A roupa passa a ser um nivelador, indicando a igualdade política entre os
homens e, por extensão, a anulação da individualidade: em última instância ocorre,
mais do que essa democratização do vestuário, uma morte do sujeito, a quem se proíbe
destacar-se dos outros pela aparência. E a morte exige o luto. A imagem da
impessoalidade indica a aniquilação do próprio indivíduo enlutado. Ao vestir o corpo
ascético e civilizado de preto, a modernidade encena um funeral elegante e discreto no
qual os mortos são todos. Cobertos de negro, esses homens apegam-se à materialidade e
indicam uma nova relação com a morte.42 Tornam-se iguais: como são todos os
cadáveres.
O luto feminino era a memória direta da dor da morte. O vestuário vitoriano que
não permitia a semelhança entre mulheres de diferentes classes, visto que a roupa
pronta, considerada deselegante, era somente utilizada pelas ordens inferiores, não
permitia uma indumentária passível de democratização. Contudo, assemelhavam-se nos
momentos de morte, em que se enlutavam – e no século XIX o período de luto fora
prolongado como nunca dantes. Desenrolava-se com uma ostentação além do usual43:
foi a época dos funerais histéricos nos quais já não se aceitava a morte do outro.44
O
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apego ao corpo que se desenvolveu naquele século pressupôs um culto ao sofrimento,
longo e carregado, no qual vestir o luto era morrer um pouco, junto daquele que se
enterrava.
O exagero do preto no vestuário oitocentista transitava entre os paradigmas da
afirmação de classe, como o uniforme da nova sociedade burguesa, industrial e
capitalista; da neutralidade na cor prática e funcional, aconselhável para todas as
situações; e da negação de uma identidade pessoal no vestir. A contenção de cores era
um prolongamento do fim da auto-expressão. Enlutar-se em vida era sinal da falta de
sentido na própria existência. A perpetuação do luto era manifestação de algo que se
perdeu e do pesar interminável por essa perda.
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Retrato de uma família americana em luto, tirada por volta de 1894.
Vestidos elegante e apropriadamente, fazem questão da presença do parente morto:
sobre a cadeirinha infantil decorada de flores, repousa a foto do bebê ainda vivo no colo da mãe.
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Image:WCB-family-lompoc.jpg
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Todos de luto? Difícil afirmar; pelo vestuário mantêm-se a dúvida.
A foto da família de Henry Whitlockfoi tirada no Natal de 1885, em Birmingham, na Inglaterra.
Mesmo felizes, posam contraidamente para o registro.
Fonte: http://www.cartes.freeuk.com/visitors/whit.htm
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Tadeu da Silva. São Paulo: Unesp, 2003.
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Um deles, tranqüilo e doce aos homens, percorre a terra e o largo dorso do mar,
o outro, de coração de ferro e alma de bronze, impiedoso no peito,
retém dentre os homens aquele que agarra,
odioso até aos deuses mortais.
3 O historiador inglês John Harvey analisa em sua obra Homens de preto os significados do uso do preto
no vestuário entre a Idade Média e a contemporaneidade. Já na Introdução, lembra que “a conexão entre
negro e morte não é jamais deixada pra trás. Apesar de o preto ter desenvolvido usos ordinários e
insípidos, e também elegantes, sempre houve um elemento sinistro recorrente no uso que os homens
fazem do preto.” A respeito do preto monacal, segue citação completa: O preto parece ter sido a cor com
a qual se enterrava a si mesmo – a cor que, não tendo cor, apagava e afastava o eu; a cor do que há de
mais aterrador na escuridão, das divindades infernais, de um poder terrível vindo das trevas. Foi o
primeiro desses valores que deu início ao uso do preto na Igreja cristã. Os sacerdotes da Antiguidade
não usavam o preto. (HARVEY. Homens de preto. Página 58.)
4 Na França, os profissionais do luto eram os padres, os monges e os pobres que acompanhavam o
cortejo e carregavam o corpo, primeiro numa liteira – ou ataúde -, mais tarde em um esquife ou caixão
de madeira. O sentimento de luto era expresso não mais por gritos ou gestos, mas por uma cor. A cor é o
negro, que se generaliza no século XVI. (ARIES, Philippe. História da morte no Ocidente. Página 130.)
5 John Harvey diz que essa dor se desdobrava em diversas situações de perda que não eram
necessariamente relativas à morte efetivamente, mas a uma morte figurada, metafórica: a dor do amor não
correspondido ou proibido, a dor da humilhação pela expulsão de um cavaleiro de sua ordem, por ex, a
dor da penitência. (HARVEY. Homens de preto. Páginas 68-70.)
6 A manufatura de tecidos pretos era ainda àquela altura, difícil e cara, tornando o pano negro
impraticável para os pobres e, consequentemente, uma marca de distinção social. Se não fossem usados
materiais originalmente pretos, como a lã negra, o processo consistia em sobrepor cores até que não
houvesse mais cor. (HARVEY. Homens de preto. Página 73.)
7 Peste Negra é o nome pela qual ficou conhecida a epidemia de peste bubônica que dizimou um terço da
população européia (mais de 25 milhões de pessoas) em meados do século XIV.
A Guerra dos Cem Anos foi o conflito travado entre França e Inglaterra, iniciado em meados do século
XIV e findado em meados do século XV.
8 Os temores dos homens do fim da idade Média foram notadamente retratados por Hieronymus Bosh,
pintor holandês que viveu entre os séculos XV e XVI. Os pecados, o Juízo Final, Morte, Purgatório e
Inferno são temas recorrentes de suas pinturas. Seus personagens não possuem a beleza física
renascentistas, mas a fragilidade do corpo pecador e corruptível. As imagens caóticas impressionam pela
riqueza de cenas e detalhes perturbadores, revelando muito do imaginário da época. Destaco,
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pessoalmente, os óleos Os sete pecados capitais, de 1480-1500 - no qual o centro do quadro, em formato
de olho, contém um Cristo e a inscrição Cuidado, cuidado, Deus está vendo! -, e Miséria e Morte (A
morte do avarento) de 1485-90, no qual um homem comum está em seus últimos momentos de vida. A
morte já está em sua porta e ele deve se decidir se seguirá com o anjo à sua direita ou com um ser
demoníaco à sua esquerda, que lhe oferece um saco de dinheiro. Imagens disponíveis, respectivamente,
em: http://museoprado.mcu.es (Site do Museo del Prado em Madri, onde a obra Os sete pecados capitais
encontra-se exposta) e http://www.nga.gov (Site da National Gallery of Art em Washington, onde Miséria
e Morte encontra-se exposta.)
9 O impacto do preto na corte é destacado por John Harvey: No início do século XV o preto era pouco
usado pelos príncipes. Pode-se imaginar então o grande efeito alcançado nesse mundo colorido por um
monarca que escolhesse vestir preto como fez Felipe, o Bom, duque de Borgonha. Felipe vestiu preto
pela primeira vez quando seu pai, João sem Medo, foi assassinado pelos franceses em 1419; e sua
decisão de estar sempre de preto, a partir de então, tinha, sem dúvida, um caráter nobremente
ameaçador: era um sinal aos franceses de que ele não havia esquecido. A Borgonha era poderosa
durante o reinado de Felipe, e sua corte e aristocracia influenciavam a moda em toda a Europa. A moda
da Borgonha era conhecida pelo uso do preto nas roupas tanto masculinas quanto femininas.
(HARVEY. Homens de preto. Páginas 71-3.)
Depois de Felipe, outro monarca que fica conhecido pelo uso de preto foi Felipe I rei da Espanha entre
1556 e 1598I, filho de Carlos V. Sobre ele, Harvey diz: na companhia de monarcas que vestem tecidos
dourados e arminho, Felipe se mantém sóbrio, vestido com roupas simples e negras. Como a sociedade
espanhola se dividia claramente entre o mundo feudal da corte e o mundo mercantil das cidades, talvez
fosse bem pensado da parte de Felipe vestir-se num estilo negro que o associasse – ele, o supremo
aristocrata – a seus cidadãos urbanos que, de certa forma, se sentiam ameaçados. Mas as roupas negras
de Felipe não eram originalmente mercantis ou urbanas. Eram, na verdade, extensão do luto por sua
segunda esposa, cuja morte o afetou realmente (...) Mas assim como fez Felipe, o Bom, ele também
continuou a usar o negro passado o período de luto, e a cor lhe parecia adequada por outras razões além
da dor. O preto tornou-se uniforme dos oficiais e homens de poder em todas as possessões de Felipe. O
estilo já quase todo negro da Borgonha foi ao mesmo tempo eclipsado e consumado no novo negro daextensa administração de Felipe. A Espanha era a nação mais poderosa do mundo e não é surpresa que
ditasse a moda internacional. (HARVEY. Homens de preto. Páginas 94-99.)
10As leis suntuárias foram criadas para limitar o uso de determinados itens – do vestuário, de luxo, da
alimentação – a determinadas classes. Em vigor desde o fim da Idade Média e durante todo o período
moderno, passaram muitas vezes por letra morta, mas são muito representativas da necessidade em
identificar o grupo social a que se pertence cada indivíduo através da aparência já naquele período. Além
de evidenciarem o quanto os grupos copiavam uns aos outros, na tentativa, ou no sonho, de serem
confundidos com indivíduos hierarquicamente superiores, numa espécie de realização do conto de
Cinderela. Esse momento da medievalidade marca o início da formação de uma proto-burguesia, que nos
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séculos seguintes cresceu e se fortaleceu. Os decretos serviam, principalmente, para erguer as fronteiras
sociais entre aristocracia e burguesia, a segunda sempre buscando se apresentar como a primeira, numa
dialética da cópia, sobretudo do vestuário, que irritava os membros das cortes.
11 A respeito da relação entre o vestuário negro e o protestantismo, John Harvey comenta que “Vestir-se
de preto tornou-se uma prática protestante tão freqüente, tanto no púlpito quanto fora dele, que não seria
errado considerar a consonância entre a roupa preta dos “puritanos” e o seu modelo de
espiritualidade.” Em larga medida, essa aproximação entre o preto e o ascetismo protestante tornou a cor
um emblema da classe que lidava com dinheiro obtido por seu próprio esforço e economia. Era a cor da
restrição: dos gastos, dos luxos. (HARVEY. Homens de preto. Página 111.)
12 A pesquisadora norte-americana Anne Hollander buscou na história do vestuário a simplificação da
roupa masculina ao que denomina traje, uma espécie de prelúdio do terno, ou seja, a composição de 4
peças, a saber: a casaca – depois tornada paletó -, a camisa, o colete e as calças. Sobre o vestuário do
Antigo Regime, segue citação da autora: A rigidez, a ponderabilidade, a constrição e os fechos
problemáticos, assim como todos os ornamentos precários e todas as dificuldades similares no vestuário,
lembravam constantemente a homens e mulheres privilegiados que eles eram seres altamente civilizados
e separados por um treinamento árduo, educação elaborada e responsabilidades complexas dos meros
peões com seus prazeres, afazeres e deveres simples. (HOLLANDER. O sexo e as roupas. Páginas 69-
70.)
13 Sobre o início da simplificação do traje masculino, Harvey diz q “a própria Inglaterra, ao longo do
XVIII vinha buscando um estilo simples, apesar de toda a influência das cores e laços franceses, e
Londres era vista como uma cidade sobriamente vestida. Se o século XVIII na Inglaterra era um
espetáculo de perucas e laços e de grandes e negros sinais nos rostos empoados dos homens (...) ele
também apresentava um grande número de negociantes e de estudiosos, de inventores e daqueles que
investiram em suas invenções, todos eles racionais, industriais e distintamente sóbrios.” (HARVEY.
Homens de preto. Páginas 165-6.)
14
Da diferença entre alfaiates e costureiras, Anne Hollander comenta: As mulheres nunca eram alfaiates,ou treinadas para criar estilo, corte e acabamento – nunca haviam sido mestres-alfaiates, mas eram
reconhecidamente especialistas no trabalho de costura fina. A idéia era de que as mulheres eram
caprichosas, diligentes e hábeis com as mãos, mas não essencialmente criativas (...) Com o surgimento
das guildas de costureiras, responsáveis a partir de então pela confecção de roupas femininas, os alfaiates
especializaram-se somente nas masculinas: Durante as duas centenas de anos anteriores ao surgimento
dessa divisão, armações e barbatanas feitas de metal, madeira ou ossos de baleia haviam sido costuras
diretamente nas roupas femininas para dar-lhes formas, e armações similares haviam sido costuradas
nos gibões masculinos e na bainha de seus casacos. Porém com o surgimento do corpete feminino, por
volta de 1700, ou seja de peça estruturada já contendo as armações, não havia necessidade em se inovar
na modelagem, apenas utilizar o suporte pronto do corpete: Isso significava que o novo ofício de
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costureira na verdade consistia na utilização simples do tecido, muitas vezes em dobras, e com poucos
cortes, para ajustá-la a um corpo já moldado, permitindo que boa parte se transformasse em saia,
adicionando-lhe depois as mangas. Para esse tipo de vestido não eram necessários um corte e uma
confecção criativa. Ocupavam-se, basicamente, com decorativismos. (HOLLANDER. O sexo e as
roupas. Página 90.)
15 Tomo emprestado esses termos, de maneira enviesada, da historiadora de arte Tamar Garb. A própria
pesquisadora apropria-se desses termos do texto de Kaja Silverman, The acoustic mirror (SILVERMAN,
K. The Acoustic Mirror : the Female Voice in Psychoanalysis and Cinema. Bloomington: Indiana
University Press , 1988.) para empregá-los em relação à arte. A autora analisa a apresentação de sujeitos
masculinos e femininos em obras do período vitoriano, destacando que a mulher é sempre sexualmente
mais detalhada e por isso mais evidente nos quadros. Segue citação completa: Podemos ver a rígida
separação que a estrutura do quadro impõe como demonstração de uma ansiedade que está no cerne damanutenção das diferenças sexuais na cultura burguesa moderna. Poderíamos ser levados a perguntar:
por que a idéia do homem funcionando explicitamente como objeto de exibição seria tão ameaçadora que
devesse ser absolutamente descartada de um quadro como este? Por que na moderna economia sexual, a
“hiperespetacularização” (extrema concentração no valor de exibição) do sujeito feminino é dependente
da “desespetacularização” (ausência total de valor de exibição) do sujeito masculino heterossexual
normativo? (GARB, Tamar. “Gênero e Representação”. In FRASCINA (et allii). Modernidade e
modenismo. A pintura francesa no século XIX . São Paulo: Cosac & Naify, 1998, Página 226.) Por
considerar esses termos muito eficientes sobre a relação entre gêneros no vitorianismo, adotei-os ainda
que sem a possibilidade de me remeter à sua fonte original.
16 Max Weber, filósofo alemão do século XIX, via as atitudes burguesas pelo viés do utilitarismo. Em seu
texto Ética protestante e o espírito do capitalismo, analisada no Capítulo 1 deste trabalho, o autor entende
que viver e consumir equilibradamente e sem desperdício era uma idéia incutida pelo protestantismo,
responsável pela consolidação de grupos burgueses contrários a pratica do dispêndio conspícuo. A
ostentação e a opulência deveriam ser não só evitadas como repugnadas e as atitudes pensadas sempre
pela ótica do utilitarismo; as virtudes vistas como niveladores úteis nas relações sociais e comerciais: A
honestidade é útil, pois assegura o crédito, e assim é com a pontualidade, com a industriosidade, com a frugalidade (...) Tais virtudes, assim como as demais, só são virtudes à medida que são úteis aos
indivíduos. (...) O tipo ideal de empreendedor capitalista evita a ostentação e gastos desnecessários,
assim como o regozijo consciente do próprio poder, e fica embaraçado com as manifestações externas do
reconhecimento social que recebe. (WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São
Paulo: Martin Claret, 2001, páginas 59 a 124.)
17 Essa simbologia das silhuetas em X e S para mulheres e em H para homens do século XIX, em
referência ao desenho do corpo construído pela roupa, foi apresentada pela socióloga brasileira Gilda de
Melo e Souza, reconhecidamente uma das primeiras pesquisadoras do país a se debruçar sobre o tema da
moda. Seu ponto de partida foi, justamente, o século XIX e em sua dissertação de mestrado, da década de
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Nesse sentido, as análises de Thorstein Veblen e de Max Weber permitem que se reflita sobre essa
diferença entre o consumo conspícuo de cortesãos e burgueses. Essa será dada por uma consciência moral
que permite aos segundos o acesso a itens supérfluos na medida em que – teoricamente - se utilizam dos
frutos de seu próprio trabalho, enquanto os primeiros se apropriam indiscriminadamente dos frutos do
trabalho alheio. Outro ponto de correlação entre os textos seria em relação ao consumo conspícuo em si,
já que Weber assinala que, pela ética protestante, não se consome nada além do prático e necessário. Pois
que, a partir de Veblen, vimos como a definição de necessário se torna fluida na medida em que
necessário se torna proporcional ao estilo de vida que se conquista. São idéias complementares e não
contraditórias.
20 O fenômeno da “nova mulher” é reconhecido pela historiografia por conta dos novos grupos femininos
que, na transição entre os séculos XIX e XX, passam a efetivamente participar da sociabilidade urbana
através de atividades antes restritas aos homens. Ao aceitarem as novas profissões e liberdades, as
mulheres reinvidicam mais fortemente o direito de trabalhar, viajar, amar. Expressão coletiva de
aspirações muito mais difusas, o feminismo intermitente do século XIX, frequentemente infiltrado nas
brechas do poder, torna-se então um movimento constante; através de jornais, grupos e congressos,
reclama a igualdade de direitos civis e políticos, apoiando-se em uma dupla argumentação: a do papel
social e maternal das mulheres, mas também a da lógica dos direitos naturais; se as mulheres são
indivíduos porque tratá-las como menores de idade? A “nova mulher”, celebrada às vezes
ambiguamente por muitos homens desejosos de viverem de outra maneira a relação de casal, é uma
figura largamente européia. (PERROT. História da vida privada. Página 613.)
21 Eis em traços rápidos um apanhado da evolução da moda no século XIX. Mais do que em épocas
anteriores, ela afastou o grupo masculino do feminino, conferindo a cada um uma forma diferente, um
conjunto diverso de tecidos e de cores, restrito para o homem, abundante para a mulher, exilando o
primeiro numa existência sombria onde a beleza está ausente, enquanto afoga a segunda em fofos e
laçarotes. (MELO e SOUZA. O espírito das roupas. Página 72.)
22 Ao homem cabe apenas as fazendas ásperas, pois à medida que o século avança vai renunciando às
sedas, aos cetins, aos brocados, que aliás há muito vinha empregando somente nos acessórios, como nocolete, e escondendo debaixo da austeridade do traje. Ao terminar o século está acomodado à monótona
existência do linho e da lã. (MELLO e SOUZA. O espírito das roupas. Páginas 70-1.)
23 A historiadora Michelle Perrot, uma das organizadoras da célebre série História da vida privada fala da
importância do vestuário nos anos que se seguiram à Revolução Francesa. Era através dele que o
indivíduo tornavam público seus ideais políticos, de preferência em conformidade com os princípios
revolucionários. Afinal, como seria possível chegar à igualdade festejada pelo lema revolucionário de os
homens ainda se vestissem de maneiras diferentes, manifestando suas diferenças sociais? Um dos
exemplos mais claros da invasão do público no espaço privado é a preocupação constante com o
vestuário. Desde a abertura dos Estados Gerais, em 1789, a roupa possui um significado político.
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Michelet [historiador francês do século XVIII, entusiasta da Revolução] descreveu a diferença entre a
sobriedade dos deputados do Terceiro Estado, á frente da procissão de abertura – “uma massa de
homens, vestidos de negro com trajes modestos” -, e “o pequeno grupo refulgente dos deputados da
nobreza com seus chapéus de plumas, suas rendas, seus paramentos de ouro”. A moda masculina não se
definiu de imediato com tanta clareza, mas a indumentária logo se transformou num sistema semiótico
intensamente carregado. Ela revelava o significado público do homem privado. Os moderados e os
aristocratas eram identificados por sua recusa em usarem a roseta. A partir de 1792, o barrete vermelho,
o casaco estreito com várias filas de botões e as calças largas passam a definir o sans-culotte, isto é, o
verdadeiro republicano. A roupa é investida de tal significado que a Convenção em outubro de 1793, vê-
se obrigada a reafirmar a “liberdade do vestuário” Apesar do aparente apoio da Convenção ao direito
de se vestir à vontade, o Estado desempenhou um papel crescente nesse campo. A partir de 5 de julho de
1792, todos os homens passaram a ser obrigados por lei a usar a roseta tricolor; a partir de 3 de abril de
1793, todos os franceses, sem distinção de sexo, ficaram submetidos a esse decreto. Em maio de 1794, a
Convenção solicitou ao pintor-deputado David que apresentasse projetos e sugestões para melhorar o
traje nacional. A indumentária civil criada por David nunca foi usada. No entanto, a simples idéia de um
uniforme civil mostra que havia quem desejasse o fim da fronteira entre o público e o privado. Mesmo
depois de abandonado o grandioso projeto de reformar e uniformizar a indumentária masculina, as
roupas não perderam seu significado político. De modo geral, a Revolução contribui para diminuir o
número de peças de roupa e deixar a indumentária mais solta. (PERROT. Revolução Francesa e vida
privada. In: História da vida privada. Páginas21-8.)
24 Segue a definição de Michelle Perrot: O dandismo representa uma forma ainda mais consciente e
elaborada de recusa da vida burguesa. De origem britância e essência aristocrática, o dandismo toma a
distinção como o próprio princípio de seu funcionamento. A boêmia se inclina para a esquerda, o
dandismo se inclina para a direita. Antiigualitário, ele gostaria de recriar uma aristocracia que
certamente não seria a do dinheiro ou a da linhagem, mas a de um temperamento – “nasce-se” dândi – e
de um estilo. Homem público, o dândi, ator do teatro urbano, protege sua individualidde por trás da
máscara de uma aparência que eel tenta tornar indecifrável. Ele alimenta o gosto da ilusão e do disfarce,
tem um agudo senso dos detalhes e dos acessórios (luvas, gravatas, bengalas, echarpes, chapéus...). Tudo
isso supõe uma vida de lazer e rendas suficientes que dispensam o trabalho. Certamente mais abonadosque os boêmios, os dândis, porém não eram muito abastados. O desprezo do dinheiro como objetivo, o
gosto pelo jogo e pela ostentação do luxo, mas também a aceitação do risco e de uma eventual ascese
fazem parte da moral dândi, anticapitalista e antiburguesa.. O dandismo é uma ética, uma concepção de
vida que eleva o celibato e a vagabundagem ao nível de uma resistência consciente. (PERROT. À
margem: solteiros e solitários. In: História da vida privada. Páginas 296-98.)
25 Tal tendência não passou despercebida a Veblen: Há, naturalmente, homens livres, e não poucos, que
transgridem a linha teórica entre o vestuário masculino e feminino, até o ponto de se vestirem em trajes
obviamente planejados para torturar o seu corpo mortal; mas todo mundo reconhece, sem sombra de
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dúvida, que esses trajes masculinos se afastam visivelmente da normalidade. Temos o hábito de
qualificar tais trajes de “efeminados”. (VEBLEN. A teoria da classe ociosa. Página 84.)
26 HOLLANDER. O sexo e as roupas. Página 144.
27 O historiador inglês Peter Stallybrass relembra que até mesmo Karl Marx precisou recorrer inúmeras
vezes às lojas de penhores, onde frequentemente o objeto da penhora era seu casaco de inverno e o
dinheiro arrecadado convertia-se não só em alimentos para a família como em papéis e tinta para seus
textos. E enquanto não reavia a peça, sequer podia sair de casa por não ter mais o que vestir. Em carta
enviada ao amigo Friederich Engels, Marx queixava-se que havia uma semana que não podia sair por
falta dos casacos que estavam penhorados. Naqueles anos de 1850 e 1860, seus casacos estavam
condenados a irem e voltarem diligentemente das lojas de penhores. (STALLYBRASS, Peter. O casaco
da Marx. Roupas, memória, dor . São Paulo: Unesp, 2003.)
Um dos problemas maiores de Marx era o fato de não poder freqüentar o Museu Britânico devido à falta
dos casacos, não só pelo motivo óbvio de não se proteger do frio, mas porque o salão de leitura não
aceitava simplesmente qualquer um que chegasse a partir das ruas; e um homem sem um casaco, mesmo
que tivesse um passe de entrada, era simplesmente qualquer um. Sem seu casaco, Marx não estava, em
uma expressão cuja força é difícil de reproduzir, “vestido em condições que pudesse ser visto”.
(STALLYBRASS. O casaco de Marx. Página 65.)
Veblen, contemporâneo de Marx, comentava que a maior parte do dispêndio em que incorrem todas as
classes em questão de vestuário é principalmente devida ao interesse pela aparência respeitável, não
pela proteção da própria pessoa. E, provavelmente, em nenhum outro ponto é a sensação de sordidez tão
agudamente sentida como numa decadência do padrão estabelecido pelos usos sociais em matéria de
vestuário. (VEBLEN. A teoria da classe ociosa. Página 77.)
28 É possível averiguar esse dado em fotos da época: é muito comum as mulheres estarem vestindo preto,
tal como os homens. Provavelmente todos seus poucos vestidos formais eram preto - ou ainda porque
estavam efetivamente de luto.
29 Segundo Gilda de Melo e Souza, O homem só se desinteressou da vestimenta quando esta, devido à
mudança profunda no curso da história, deixou de ter importância excessiva na competição social. A
Revolução Francesa, consagrando a passagem de uma sociedade estamental a uma sociedade de classes,
e estabelecendo a igualdade política entre os homens, fez com que as distinções não se expressassem
mais pelos sinais exteriores da roupa, mas através das qualidades pessoais de cada um. A carreira
estava aberta ao talento. (MELO e SOUZA. O espírito das roupas. Página 80.)
30 Essa primeira corrente de pesquisadores seria liderada pelo psicólogo J.C. Flugel, que na década de
1930 escreve uma Psicologia das roupas, texto no qual cunha e expressão “Grande Renúncia Masculina”,
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referente a essa perda da beleza na roupa masculina no século XIX: Pode-se dizer que os homens
sofreram grande derrota na súbita redução dos adornos na vestimenta masculina, que se efetuou no final
do século XVIII. Por volta dessa época, ocorreu um dos mais notáveis acontecimentos em toda a história
do vestuário. Um evento sob cuja influência ainda vivemos e que tem recebido muito menos atenção do
que merece (...): os homens abdicaram de seu direito às formas mais claras, mais alegres, mais
elaboradas e mais variadas de ornamentação, deixando-as inteiramente para uso das mulheres, tornando
assim o seu corte de roupa a mais austera e ascética de todas as artes. Em termos de moda, esse
acontecimento certamente deve ser considerado “A Grande Renúncia Masculina”. O homem abandonou
sua reivindicação de ser considerado belo. Objetivou, assim, ser considerado somente útil. Se as roupas
permaneceram importantes para ele, seu maior empenho ficou no sentido de estar “corretamente”
trajado, não de estar elegante ou elaboradamente vestido. (FLUGEL Psicologia das roupas. Página
100.). Gilda de Melo e Souza parece seguir essa linhagem inaugurada por Flugel, ao afirmar que o
princípio da atração e da sedução estão ausentes na roupa masculina do século XIX. O grupo masculino
teria abandonado o adorno, substituindo-o por símbolos de dignidade e competência. (MELLO e
SOUZA. O espírito das roupas. Página 80.) Já a socióloga Elizabeth Wilson destaca que a grande
renúncia masculina se tornou um clichê infundado da historiografia de moda, porém não vai mais adiante
em sua análise: O que é certamente uma realidade é que a coincidência da revolução industrial com os
ideais políticos revolucionários e com o credo do romantismo resultaram numa mudança fundamental no
aparato masculino. A isto se tem chamado “grande renúncia masculina” e muitos historiadores da moda
concordam com o ponto de vista de que, a partir desse momento, os homens abandonaram todas as
pretensões de beleza e só as mulheres continuaram a utilizar a roupa como forma de exibição. Este
clichê da história da moda esconde uma realidade mais complexa. Ou ainda: As primeiras modas
masculinas urbanas adotaram a sobriedade escura dos dandies e do linho branco limpo. Eles vestiam
este “uniforme” até à noite, momento em que as suas mulheres se vestiam elegantemente. Na base deste
contraste desenvolveu-se o mito de que a moda, depois da revolução industrial, passou a ser uma questão
inteiramente feminina. (WILSON. Enfeitada de sonhos. Páginas 45 e 50.)
31 Na segunda linhagem de pesquisadores, mais recente, destaca-se o inglês John Harvey e a norte-
americana Diana Crane. O primeiro autor afirma que o vestuário preto é sexualmente muito atraente e
esse aspecto não passou despercebido pelos vitorianos: Salientei a sobriedade, como o faziam oscomentaristas da época, mas um outro lado da questão, muito relevante para os dândis, diz respeito à
atração sexual do preto. Quem veste preto parece mais magro, realça o rosto, talvez sugira intensidade.
A elegância glamurosa e vistosa de muitos homens de preto – o ar de correção absoluta de uns, o langor
longilíneo e elegante de outros – é aparente em inúmeras pinturas de bailes ou de passeios do século
XIX. (HARVEY. Homens de preto. Página 45.) Já para Diana Crane, é insensato falar de renúncia estética
visto que as modas para homens continuavam sucedendo umas às outras, refletindo a preocupação pela
aparência: Os historiadores da moda com freqüência afirmam que ao homens do século xix evitavam a
moda em favor de uma aparência propositalmente insípida e conservadora. Na realidade, as modas
masculinos mudavam regularmente e havia numerosos tipos de casacos, calças, plastrões, gravatas e
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chapéus que ofereciam material abundante para afirmar ou manter o status social . (CRANE. A moda e
seu papel social. Página50.)
32 De acordo com Michelle Perrot, em 1801 a expectativa de vida era de 30 anos. Em meados do século
passou para 38 anos para os homens e 41 para as mulheres. (PERROT. Os ritos da vida privada. In:
História da vida privada. Página 255.) Segundo o historiador inlgês Eric Hobsbawm, a esperança de vida
média nos anos 1880 nas principais regiões desenvolvidas - Bélgica, Grã-Bretanha, França
Massachussets, Holanda e Suíça - era de apenas 43-5 anos e menos de 40 na Alemanha. (HOBSBAWM,
Eric. Era dos Impérios. 1875-1914. São Paulo: Paz e Terra, 2006, Página 50.)
33 De maneira geral, o luto na Europa Ocidental era muito mais severo do que o luto na América ou na
Austrália, apesar de seguirem também a etiqueta vitoriana. O item que mais se aproximava era o
vestuário: Na América, vestia-se preto durante um ano após a morte de genitores e filhos e durante seis
meses após a perda de avós e outros parentes. Até mesmo as crianças pequenas tinham que usar batas
pretas. Uma viúva ou um viúvo devia vestir luto fechado por dois anos, podendo optar – como a Rainha
Vitória – por usá-lo permanentemente. Para os homens, cujo vestuário cotidiano era de tonalidade
sombria, o traje de luto não requeria muita alteração de seu guarda-roupa. Mas para mulheres, dava-se
uma modificação complexa e cara. (LURIE. A linguagem das roupas. Página 203.)
34 A prática justificava-se por uma superstição da época, na qual a alma do defunto poderia se deter diante
de sua imagem refletida e não ascender.
35 As informações a respeito dos estágios do luto vitoriano foram feitas a partir das leituras de PERROT,
ARIES, GAY e dos sites mencionados ao fim do capítulo. Apesar de algumas diferenças entre esses
textos, busquei mencionar os dados que não estivessem em contradição nas referidas fontes.
36 Os predecessores de Vitória se haviam distinguido fosse por seus caprichos e suas loucuras, fosse por
seu desinteresse pela coisa pública, ao passo que ela, desde sua subida ao trono, compreendeu seus
direitos e seus deveres. Graças às suas qualidades pessoais, contribuiu para definir um novo tipo de
monarca, cujo modelo transmitiu a seus sucessores. Sua seriedade levou-a a usar ativamente seu direitoà informação e à prevenção; seu bom senso lhe permitiu evitar o impasse nos casos em que não estava de
acordo com seus ministros e seu gosto pela calma e pala intimidade mudou radicalmente a imagem
popular da família real. Assim como essa, as próximas citações foram retiradas da biografia da Rainha
Vitória escrita por Anka Muhlstein. (MULHSTEIN. Vitória. Página 10-11.)
37 Idem, página 41.
38 Ibidem, página 139.
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39 A grande contribuição social da Rainha Vitória foi a afirmação da família em termos que nos são
acessíveis. Vitória deu títulos de nobreza a sentimentos que até então haviam florescido somente nas
classes médias. Por isso, as alianças e a passagem do privado ao público adquirem com ela um sabor
novo. (Ibidem, página 11)
40 Ibidem, página 99.
41 Idem.
42 A nova relação com a morte será analisada no segundo capítulo deste trabalho.
43 Segundo John Harvey, o século XIX realmente tinha seu culto à morte, um culto ao longo e carregado
pesar, aos funerais elaboradamente decorados e ao uso do luto por um longo período de tempo. Ou seja,
o luto se desenvolve aí com uma ostentação jamais vista anteriormente, e nunca mais repetida
posteriormente, até a atualidade. (HARVEY. Homens de preto. Página 170.)
44 Também esse aspecto da relação com a morte no período vitoriano é assunto do capítulo seguinte e nele
será amplamente discutido.
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Capítulo 3
A morte do outro
História da morte e consciência de si. O apego ao corpo. Obsessão pelos restos mortais.
O cadáver como herança. Negação da morte pela preservação do morto.
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É a sorte comum: espera-se
A morte e depois o juízo.
O único remédio é ainda
Lavar-se completamente,
Sem tardar, arrependendo-seDo que causa remorsos.
Quem não o faz antes da morte,
Lamentar-se-á muito tarde e sem razão,
Quando vier o castigo.
Hélinand de Froidmont. Os versos da Morte. ca 1194.
Venha teu pranto agora, ou nunca mais!
Vês! No rude esquife jaz teu amor, Lenore!
Leiam-se os ritos funerários e o último canto se ouça,
um hino à rainha dentre as mortas, a que morreu mais moça.
E duplamente ela morreu, por que morreu tão moça!
Edgar Allan Poe. Lenore. 1831.
A sociedade vitoriana concebeu a presentificação da morte na vida. Não
somente pelos hábitos sociais, cada vez mais artificiais, que indicavam o fim do homem
naturalmente espontâneo, ou pela adoção do luto como traje cotidiano. Também o
século XIX presenciou a morte-tabu, indesejada e, no extremo, negada – como se fosse
possível evitá-la. Paralelamente, apegou-se a uma supervalorização do morto,
mantendo-o ao mundo dos vivos, numa melancólica afirmação da efemeridade do viver.
Talvez nunca na história ocidental, a morte tenha sido tão dramatizada, tão
apaixonadamente sofrida. A intolerável perda da presença humana evidencia-se nas
mais desesperadas manifestações sentimentais diante da morte do outro: um ente
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querido, a pessoa amada. O homem apegou-se como nunca aos seus próximos, ainda
que só lhe restasse corpos sem vida. O cadáver tornou-se objeto de culto; dedicar-se aos
finados foi a resposta vitoriana à perda de sentido de uma vida cada vez mais
materialista e mundana. Desde fins do século XVIII é possível notar essa nova
sensibilidade que modificou sobremaneira a relação dos indivíduos com a morte, a
própria e a dos outros.
Entretanto, durante um longo período histórico, o ser humano lidou com o
desaparecimento eterno de forma sensivelmente diferente. Houve um tempo em que
vida e morte eram conceitos tão indissociáveis que não se concebia um sem se
considerar o outro. O modo como se vivia era pré-condição para os acontecimentos do
fim. Nessas sociedades nas quais acreditava-se que morrer era, antes de tudo, uma
transição, uma passagem para uma outra esfera, faltavam motivos para transformar o
óbito em assunto-tabu. Ao contrário: Quando ninguém duvida da existência de um outro
mundo, a morte é uma passagem que deve ser celebrada em cerimônia, entre parentes e
vizinhos. O homem da Idade Média tem a convicção de não desaparecer completamente
esperando a ressurreição. Mais do que a morte, nossos ancestrais temiam o Juízo
Final, a punição do Além e os suplícios do inferno.1 Antes de efetivamente temerem a
morte em si, os medievos temiam desconhecer seus desdobramentos. Em vida,
preparavam-se para morrer e ocupavam-se com o pós-vida.
Assim, a morte, tal como a dor física, contava pouco. A crença na
sobrevivência, ainda que não corpórea, fazia menos aterrorizantes os suplícios do
mundo. Além disso, era um evento muito corriqueiro - a expectativa de vida era
pequena se comparada com épocas atuais, os homens não dispunham de noções básicas
higiene ou de controle sanitário de doenças - fazendo parte do cotidiano de todos,
independente da hierarquia social e mesmo da idade.
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Era, sobretudo, um acontecimento solidário, compartilhado pelo grupo. O
sujeito nunca era abandonado e portanto não se percebia sozinho nem no momento
derradeiro: nascia e expirava sabendo ser parte de um todo. A travessia era realizada em
conjunto: As sociedades medievais eram sociedades de solidariedade; as pessoas
terminavam sua vida no interior de um grupo, no seio da família.2 Mesmo a velhice era
doméstica, uma responsabilidade familiar: Nas sociedades pré-industriais, em que a
maioria da população vive em vilarejos e se ocupa do cultivo da terra e da criação do
gado, ou seja, em que camponeses e lavradores formam o maior grupo ocupacional,
quem lida com os que vão envelhecendo e com os moribundos é a família. [até o século
XIX] a maioria das pessoas morria na presença de outras apenas porque estavam
menos acostumadas a viver e estar sós. Não havia cômodos onde uma pessoa pudesse
ficar só. Os moribundos e os mortos não eram tão flagrantemente isolados da vida
comunitária.3
Todos se reuniam em torno daquele que perecia. Família, serviçais. A casa era
aberta a visitações da comunidade, fazendo da morte um evento público, ainda que
doméstico. A coletividade se fazia presente, sobretudo nas fases que antecedem o óbito.
Na presença de seus pares, o moribundo cumpria uma série de obrigações, devendo
despojar-se, distribuir entre os que ele ama todos os objetos que lhe pertenceram.
Também aconselhava os mais novos, pedia perdão aos conhecidos e confessava-se.
Após essas etapas, realizadas com maior ou menor pressa dependendo do caso,
esperava. De preferência na posição típica de uma morte que é esperada: deitado, no
leito, tranquilamente.
Resignados e esperançosos pela recompensa pós-vida, os medievos entregava-se
à sorte do destino comunal. O ideal de uma morte aceita e esperada, se contrapunha à
possibilidade do óbito súbito, a pior maneira de expirar. Lê-se os seguintes versos de
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um famoso poema medieval: “É preciso que se pague / Enquanto se pode, aquilo que
se deve. / Cada um tenha, pois, piedade de si / E siga logo esta via / Para evitar a morte
súbita.”4
A experiência medieval sobre o fim da vida pressupunha, sobretudo, a idéia de
uma morte domada.5 Ou ainda, uma morte-passagem que, por pressupor uma transição,
delineava-se como um evento esperançosamente necessário. O óbito era mais
tranquilamente aceito e seus rituais cumpridos com certa naturalidade e simplicidade.
De maneira cerimoniosa e emotiva, mas sem o caráter dramático ou gestos de
desespero. Admitia-se o falecimento com tranqüilidade, sem tentativas em retardar
nenhuma de suas etapas, as quais eram cumpridas com lucidez: era o destino natural de
todos os homens. Ilustra essa idéia a iconografia das chamadas Danças Macabras, na
qual a Morte, representada pelo esqueleto, pela caveira, ou por um corpo morto seco,
tratava de levar consigo todo tipo de pessoa, do mais rico ao mais pobre, do príncipe ao
moleiro, do cavaleiro ao monge. As danças macabras punham em cena o invencível
esqueleto que arrasta à força para sua ronda fúnebre pessoas de qualquer idade e de
qualquer condição.6 A Morte derrubava a fronteira entre os estamentos, dissolvia as
hierarquias e denunciava a crise do poder monárquico, extremamente segmentado,
durante a medievalidade.
Os medievos compartilhavam uma percepção do corpo intrinsecamente ligada à
esfera religiosa. Criação divina, a matéria corpórea servia para proteger a essência
humana, a substância que distinguia o homem das outras criaturas, o sopro de deus: o
corpo era habitado por uma alma que, sem ser subjetividade, era um princípio de vida,
comprobatório da própria existência da divindade – ainda que não fosse a do
cristianismo. Por isso o corpo, apesar de ser artesanato de deus, era pouco importante:
sua função era apenas servir de abrigo para a intervenção sobrenatural mais preciosa, o
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espírito. Ambos eram partes do mesmo projeto divino: o ser humano era a fusão de
corpo e alma, construídos por um deus. Por esse motivo entende-se porque as
representações imagéticas do morto traziam sua alma com as características físicas do
corpo. Ainda assim, a parcela abstrata, mística, prevalecia sobre a material.
Sem possuir uma subjetividade própria, sendo sua alma uma designação divina,
esse homem se submetia ao ethos coletivo característico do feudalismo medieval,
inclusive à rede social baseada nos juramentos de fidelidade. Fiel a deus, à Igreja e aos
senhores de terras, aceitava sua condição mundana de subordinação, a qual partilhava
com todos os seus comuns. Não só na vida, mas também perante a morte.
*
A subserviência ao senhor da terra era análoga àquela para com o “Senhor”.
Nada se fazia efetivamente para si, mas para eles. O fim da existência terrestre não
significava, portanto, a perda de algo que realmente lhes pertencesse. Por isso a morte
não era sentida como a perda, fim absoluto, já que essa consciência de si não ocorria.
Esse tipo de comportamento caracterizou a maior parte da população ocidental por
muitos séculos, e mesmo após a Idade Média, durante todo o período moderno.7
Essa compreensão passiva era somada a uma confiança irrestrita na doutrina
cristã da imortalidade da alma. Segundo a Igreja, o momento do falecimento era
também o da radical separação entre corpo e alma, que não era então aniquilada, mas
pelo contrário, salva. Notadamente, sua aceitação relacionava-se com a concepção do
destino comum. Na sociedade estamental, que se pensava enquanto grupo e não como
sujeito particular, um homem não era nada sem a teia de relações na qual estava
inserido. Os sentimentos de amizade, característico da cavalaria; e lealdade, pressuposto
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dos laços de vassalagem, davam coesão aos grupos. Os homens, portanto, simplesmente
abandonavam-se diante de um fato que sabia ser coletivo, sendo a vida terrestre nada
mais do que um prelúdio da verdadeira vida, a “vida eterna”. Por isso a familiaridade
com a morte e com os mortos: não se buscava afastar-se deles assim como não se
evitava o próprio fim.8 Versos escritos no século XII diziam: “A vida sempre tem um
fim / Querer prolongá-la é inútil / Porque a morte a encurtará.”9
Era em torno do tema da morte que a doutrina cristã determinava seus dogmas.
Todas as restrições impostas vinham acompanhadas do castigo fatal se burladas. A
própria condição mortal da humanidade era, em si, a pena para o pecado original, da
qual ninguém escapa: quem nasce já está condenado. A culpabilidade cristã perseguia
todo homem e mulher não somente porque eram frutos do ato pecaminoso por
excelência como também por serem todos, linhagem – e por isso, herdeiros – dos
primeiros pecadores. Toda uma tendência anti-sexual vai se expandir com o
cristianismo; pregando a abstinência e o celibato, ele traduzirá o desejo obscuro de
talvez voltar ao período pré-sexual da vida, no qual a morte não existe.10
Se já estava condenado ao castigo da mortalidade, deveria ao menos lutar por
sua redenção. Não negar a morte, mas usar o tempo da vida para ser salvo no Além: o
sofrimento na terra justificaria a felicidade eterna (não por acaso, o cristianismo se
configurou como uma poderosa arma ideológica de controle do campesinato ao ser
adotado como religião oficial das monarquias absolutistas dos séculos modernos). O
medo da morte na medievalidade se traduziria, antes, como um temor da dúvida em não
se saber merecedor da recompensa do que pelo pavor do óbito propriamente dito.
*
105
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O quarto do agonizante aberto à visitação e os rituais do cortejo fúnebre e do
sepultamento, acessíveis a qualquer um independente de quem fosse o morto, faziam a
morte próxima de todos e cotidiana. Mesmo para as crianças, que não eram em nenhum
momento alienadas dos eventos. Eram etapas realizadas, para a grande maioria da
população, de maneira muito simples, além de serem ainda cerimônias laicas.
Curiosamente, apesar dessa intimidade, o homem medieval temia o morto. Não
o corpo sem vida, o cadáver, mas certa reapresentação do defunto que se manifestava
espiritualmente, com as características do corpo. Uma espécie de duplo morto-vivo. A
alma, apesar do caráter espectral, possuía a fisionomia do morto e, se a morte em si não
indicava o fim absoluto, a presença dos espíritos no imaginário medieval tornava a
fronteira entre vida e morte bastante oscilante. Era preciso temer os mortos que são
muito mais poderosos que os vivos: eles detém o grande mistério da existência, o saber
do pós-morte. A crença nas almas, cuja presença era inquestionavelmente efetiva,
acabou sendo incorporada pelo cristianismo, o que acarretou na disseminação da prática
da oração para as almas. Porque o defunto permanecia dessa maneira ainda presente, o
fantasma poderia querer voltar aos lugares de sua existência material, para resolver
assuntos pendentes ou simplesmente assombrar os vivos. 11 Essa coexistência entre
vivos e mortos no plano terrestre justificaria o temor pelas almas em danação, que
voltam ao invés de viverem na paz eterna, assim como o medo de não se cumprir todas
as etapas do pré-morte e se tornar o próprio espírito atormentado. O terror pela alma
condenada – penada, aquela que pena – e que poderia querer retornar, legitima a
preocupação em sempre lembrar-se dos que se forma nas orações e nas missas, de
preferência, honrado-se suas memórias, para que não se zangassem.
Se a grande preocupação do morrer é a salvação metafísica, o resíduo corporal
não tinha importância depois que o espírito o abandonasse. Meros invólucros que
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continham a alma, seriam descartados no momento da passagem para um outro plano,
aquele que realmente interessava. Não causa espanto que os cemitérios - não só na
Idade Média, mas durante o período moderno -, localizados nos terrenos ao redor das
Igrejas, fossem constituídos de inúmeras fossas coletivas, largas e profundas, destinadas
a receberem os corpos das gentes simples, camponesas, envoltos em humildes sudários.
Quando uma delas se enchia, abria-se outra mais antiga, retiravam-se os ossos e
reutilizava-se o espaço. Somente os membros da elite clerical e cavalheiresca ou
poderosos senhores de terras, dispunham do espaço interno das Igrejas e eram
enterrados sob as lajes. Contudo, de fato o destino e a localização dos corpos não
importavam, mas sim que ficassem o mais próximo possível dos locais santos. Santos e,
certamente, públicos. A morte continuava presente na vida medieval, pública e
comunal, tanto no espaço fechado do templo quanto nas fossas que recebiam os
amontoados de corpos.
*
Enquanto o imaginário popular continuaria impregnado pela doutrina cristão da
imortalidade da alma durante os séculos seguintes, na etapa final da Idade Média algo
de qualitativamente novo começava a ocorrer. Pelo menos numa pequena parcela da
população formada por homens letrados e cultos das classes superiores, que, por não
mais se adequarem à vida estática ou a laços de fidelidade senhorial, passavam a
conduzir suas próprias decisões. Foram esses os responsáveis por desenvolver um tipo
ainda simples e inicial, mas extremamente importante, de consciência individualista.
Ocupavam-se com a cultura e as ciências e, durante os séculos da Renascença, esses
homens seriam os condutores do salto técnico e artístico ocorrido no período. A grande
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circulação de mercadorias entre as grandes cidades comerciais trazia consigo uma
incrível circulação de idéias, das quais foram esses sujeitos os principais porta-vozes.
Influenciaram ideologicamente toda uma proto-burguesia que se formava nas cidades
desde a Baixa Idade Média, essa nova classe de trabalhadores livres, ou seja, sem
vínculos com a terra, cujo sustento vinha de seu próprio esforço e que encontrava-se
fora dos padrões fixados pela hierarquia social ligada ao campo, baseada na servidão. A
dinâmica, o movimento – de idéias, de discussões, de artigos – rompia gradualmente a
estabilidade dos estamentos. É altamente significativa a constatação de que a
personificação da Morte, que se transforma numa personagem esquelética, carregando
uma foice, e deixa de ser somente um evento para ser alguém, date desses mesmos
séculos XII e XIII, período do início do processo de construção da consciência de si.12
A concepção de indivíduo apresenta essa possibilidade de se pensar como ser
único, responsável pelo próprio destino e não mais cegamente submisso a uma esfera
metafísica abstrata ou ao pertencimento rígido à uma coletividade, qualquer seja ela. O
mundo material separa-se da divindade no momento em que esse homem iniciou um
processo de autoconsciência de si. Paradoxalmente, seria possível pensar no conceito de
indivíduo como o ser humano em divisão,13 cindido ao se dar conta da dualidade do ser ,
como matéria corpórea separada do espírito. O Renascimento não descartou a presença
da alma, considerada ainda inexplicável em sua totalidade ou mesmo divina, porém já
com uma essência racional, caracteristicamente humana.14
A conseqüência direta da tomada de consciência da subjetividade foi uma
crescente preocupação com o próprio aniquilamento. Se para esses homens a sociedade
não mais se dividia em ordens rígidas e estáveis na qual os grupos compartilham dos
mesmos destinos, morrer deixa de ser considerado parte desse destino comum e se
transforma em um evento particular, pertencente a cada indivíduo. Passam a temer não
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o fim da vida em si, mas um processo de morte: o que se perde e se deixa, como
ocorrerá e o que virá após.15 Esses homens, de fé próspera nas ciências e nas técnicas,
cada vez mais questionavam os dogmas da cristandade. 16
Os eventos pós-óbito são também perturbadores não apenas pelas dúvidas
espirituais, mas também pelo destino do corpo sem vida. Esse resíduo, que continha a
existência propriamente dita, inevitavelmente seria desprezado pelos vivos: enterrado,
entraria em irreversível destruição. Considerava-se a podridão a miséria do corpo, a
corrupção derradeira. A morte possui esse lado que inviabilizava uma sua concepção
plenamente positiva: a imagem do corpo putrefato, nojento e detestável. Isso talvez
explique a proibição por parte da Igreja em se abrirem os cadáveres: a não-visão da
putrescência era, em larga medida, a manutenção do modelo de “morte desejada”. O
enterro evitava o apodrecimento aparente e também, até como conseqüência disso,
sustentava a crença da ressurreição da alma. É muito significativo que nesses séculos da
Renascença apareçam nas artes tantas representações da morte como o corpo em
decomposição. Não é o homem em vias de morrer que atrai a criação das imagens do
século XV. O caráter original comum a todas as suas manifestações, iconográficas e
literárias, sendo, portanto, a decomposição. Isso significa que se quer mostrar o que
não se vê, o que se passa debaixo da terra e que é, na maioria das vezes, escondido dos
vivos.17
*
Não por acaso, a devastação causada pelas grandes epidemias entrava no
imaginário coletivo pungentemente. O fenômeno endêmico que ficou conhecido como
Peste Negra incluiu a peste bubônica e outras epidemias que a seguiram e foi, antes de
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mais nada, um episódio de pânico coletivo. Seu surto inicial ocorreu em 1348 e entre
junho e setembro desse ano, dizimou 1/3 da população européia.18. Não é uma
coincidência que a iconoclastia das Danças Macabras tenha surgido exatamente nesse
período e tenha se mantido recorrente nos séculos seguintes, paralelamente aos refluxos
das epidemias, que duraram até meados do século XVIII.
Uma profunda mudança nos sentimentos da morte ocorre em decorrência da
Peste Negra. As cidades atacadas não absorviam seus mortos, os cadáveres
amontoavam-se por todos os lados e não havia mais onde enterrá-los. Durante as
grandes contaminações, nada mais distinguia o fim dos homens do dos animais. (...)
abandonados em sua agonia, os contagiados de qualquer cidade da Europa entre os
séculos XIV e XVIII, uma vez mortos, eram acumulados desordenadamente, como cães
ou carneiros, em fossas imediatamente recobertas de cal viva. Para os vivos, é uma
tragédia o abandono dos ritos apaziguadores que em tempo normal acompanham a
partida desse mundo.19
Nas populações atingidas, propagavam-se as imagens trágicas e mantinha-se um
estado permanente de medo que acometia todas as ordens sociais – justamente o tema
central das Danças. A morte, que fora até então vivenciada em grupo, mudava
radicalmente de perspectiva: Em períodos de epidemia, ao contrário, os próximos se
afastam, os médicos não tocam os contagiosos ou fazem-no o menos possível ou com
uma varinha; os cirurgiões só operam com luvas (...) os padres dão absolvição de longe
(...) desse modo, as relações humanas são totalmente conturbadas: é no momento em
que a necessidade dos outros se faz mais imperiosa – e em que, de hábito, eles se
encarregavam dos cuidados – que agora abandonam os doentes. O tempo da peste é o
da solidão forçada. 20
110
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Testemunha do início da mortífera pestilência em Florença, Giovanni Bocaccio
destacou esse súbito deslocamento dos eventos fúnebres no início de seu Decameron,
escrito em 1350: Costumava-se reunirem-se as mulheres, parentes e vizinhas na
residência do que morria. Ali, em companhia das mulheres mais aparentadas do
defunto, elas choravam. De outro lado, diante da casa do morto, vizinhos e inúmeros
cidadãos reuniam-se com seus achegados; de acordo com a categoria do morto,
apresentava-se o padre. Desse modo, o falecido era conduzido à igreja que escolhera
momentos antes de morrer. Os seus pares levavam-no aos ombros, com pompa fúnebre,
de velas e cantos. Tais cerimônias quase se extinguiram, no todo ou parcialmente,
quando principiou a crescer o furor da peste. No caso das classes médias e pobres, a
situação era muito mais precária: Tal gente era retida em suas casas (...) ficando
próximos dos doentes e dos mortos, os que sobreviviam ficavam doentes aos milhares,
por dia, como não eram medicados nem recebiam ajuda de espécie alguma, morriam
todos quase sem redenção. Muitos eram os que findavam seus dias na rua, de dia ou de
noite. De pessoas assim que faleciam em todas as partes, as casas estavam cheias.21
O abandono dos ritos coletivos e a solidão involuntária do doente terminal
configuravam uma nova e terrível experiência de morte. A presença dos corpos
pútridos, manchados de púrpura e mal-cheirosos piorava ainda mais a ante-visão de
óbito repugnante. A descrição de Bocaccio fornece o quadro abjeto: apareciam, no
começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou nas axilas, algumas
inchações. Algumas destas cresciam como maçãs; outras, como um ovo; cresciam umas
mais, outras menos; chamava-as o populacho de bubões. Dessas duas partes do corpo
logo o tal tumor mortal passava a repontar e a surgir em toda parte. Em seguida, o
aspecto da doença começa a alterar-se e colocar manchas de cor negra ou lívidas nos
enfermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outro lugares do
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corpo.(...) quase todos, após o terceiro dia do surgimento dos sinais, faleciam. Era
como se todo o ar estivesse tomado e infectado pelo odor nauseabundo dos corpos
mortos, das doenças e dos remédios. 22
O defunto, até então cerimoniosamente velado, tornava-se um estorvo grotesco e
nauseante, que deve ser apressadamente despachado, às vezes por desconhecidos: um
único modo de proceder era praticado pelos vizinhos (...) retiravam das residências os
cadáveres, colocavam os corpos à frente da porta da casa, onde, sobretudo na parte da
manhã, eram vistos em quantidade inumerável pelos que perambulavam pela cidade e
que, vendo-os, adotavam medidas para o preparo e remessa dos caixões. No Triunfo
da morte (1562), de Brueghel, esqueletos – espécie de exército da Morte – retiram os
corpos desordenadamente espalhados pelo chão da cidade. O caos da passagem
arrasadora da doença é mostrado de maneira estupefante na obra: mortos e vivos
confundem-se no mar de gente consumida pela Peste. Escasseavam-se os caixões, as
valas transbordavam, os cães devoram os cadaveres: A tal estado chegou a coisa que
não se tratava, quanto aos homens que morriam, com mais carinho do que se trata as
cabras. 23
O espetáculo do terror era próximo a qualquer homem, do camponês ao
nobre. Quando a morte é a esse ponto desmascarada, “indecente”, dessacralizada, a
esse ponto coletiva, anônima e repulsiva, uma população inteira corre o risco do
desespero ou da loucura, sendo subitamente privada das liturgias seculares que até ali
lhe conferiam nas provações dignidade, segurança e identidade.24
*
O fato dos homens dos quinhentos ou seiscentos preocuparem-se cada vez mais
com o fim de seus corpos explicita o início de um processo de identificação desses
112
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indivíduos com sua matéria. Causava horror a decomposição da carne - era a
comprovação da fragilidade da condição humana. A importância do corpo material
começa a aparecer nesse momento. Essa relação pode ser apontada pela adoção da
prática da presença do cadáver no altar da Igreja para as primeiras missas do luto –
quando se tratava da morte de alguma figura ilustre, logicamente. Quer dizer, existe aí o
início de um sentimento de presença do indivíduo através de seu corpo, ainda que
morto.
No início do período moderno, difundiu-se a prática das inscrições funerárias,
que além de conservar a identidade do enterrado propunham uma nova idéia a respeito
do anonimato das fossas comunais. Elas continuaram sendo usadas até o século XVIII,
mas nas paredes das Igrejas tornou-se comum a aplicação de pequenas plaquetas
contendo informações simples sobre cada defunto – nome, data de falecimento e às
vezes seu ofício. À elite, clerical, política e econômica, eram reservadas sepulturas
visíveis e inscrições detalhadas sobre suas vidas, dentro das Igrejas ou em terrenos
pertencentes a ela. Essas inscrições funerárias tinham, sobretudo, o objetivo de
preservar de alguma maneira a memória do morto, mas não o local do enterro. 25 Essas
diferenças entre pobres e ricos eram também presentes nos cortejos e nos
sepultamentos, os quais podiam ser cumpridos em total indigência ou com toda a
pompa, dependendo da condição social do morto, pertencente a uma sociedade ainda
altamente hierarquizada. Contudo, essas práticas que visavam evitar o anonimato
demonstram uma gradual, mas crescente, valorização do corpo enquanto um traço do
indivíduo, que deixa de ser representado somente por sua alma. O corpo da
medievalidade, desprezado e desimportante, tornou-se, em larga medida, a presença do
morto.
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*
Dessa imagem do sujeito identificado pelo seu corpo, mesmo morto, floresce o
reconhecimento da fragilidade da condição humana, condenada à carne que se
decompõe. O homem, antes de temer seu fim, passa a temer a efemeridade da vida. A
conseqüência natural dessa corporificação da morte – antes relativa ao espírito, imortal
– foi um profundo apego às coisas è as pessoas, ou seja, ao que experimentamos e
conhecemos concretamente. No momento histórico em que foram lançadas as bases da
civilização moderna, um sentimento cada vez maior do homem em relação a sua própria
existência tornou a morte um evento pessoal, retirando-a de seu caráter comunal. Dar-se
conta do próprio fim confundiu-se com o medo em ser esquecido, o que se traduziu
nessa afeição por tudo que fez parte de sua vida. Porque a morte mudou sua essência –
de destino de todos para evento particular – tornou-se mais dramática para cada
indivíduo.
E, portanto, ao rever sua vida, o sujeito se apercebe de seus erros e fracassos,
que são, como todas suas decisões, pessoais. A impossibilidade da reversibilidade
traduz-se em sentimento de fracasso perante a vida, que não é inerente à condição
humana: não existia até a Baixa Idade Média. Morrer não causava medo, mas se tornava
um acontecimento traumático pelas perdas que pressupunha. Trazia à tona fracassos
individuais dos homens que cada vez mais dependiam somente de si mesmos. A morte-
passagem, cuja essência era a esperança de imortalidade, dava lugar gradativamente
para uma morte-fim, mais absoluta, objetiva, e por isso, mais intolerável.
*
114
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A sociedade do período moderno foi aquela cujas crenças transitaram entre as
doutrinas cristãs (ainda muito marcantes na mentalidade popular) e as descobertas
científicas e técnicas de seu tempo. Por um lado, a população simples dos campos e das
cidades assiste aos cerimoniais fúnebres do período barroco, caracterizadas por uma
incrível mobilização cuja ênfase era as manifestações exteriores da fé. A morte
barroca26 era a da paixão pelo protocolo, do apego ao evento da morte. As longas
procissões, elementos gloriosos como cavalos, flores, carruagens, carpideiras, multidões
extenuadas, conferiam a pompa proporcional ao prestígio do morto. Esses rituais
faustosos, realizados quando do óbito de reis e membros da corte, objetivavam
imortalizar esses indivíduos enquanto imagem – afinal, os séculos modernos foram o da
extrema importância da aparência. Se glória era um atributo que deveria ser
constantemente mostrado, o princípio mantinha-se no espetáculo dos funerais. O Além
era organizado como a estrutura absolutista, marcando a distancia entre as cortes e o
povo; essas formalidades elitistas na morte legitimavam as desigualdades sociais na
vida.
Entretanto, outra vertente ideológica caminhava na direção oposta aos rituais
cristãos e aristocráticos da morte. O Humanismo renascentista promoveu a
dessacralização do corpo, percebido como pura matéria e não mais como criação divina
- somente ao espírito era promulgado, mesmo que parcialmente, uma essência
sobrenatural. E foi nesse corpo vulgarizado, tornado pura materialidade, que se
debruçaram as ciências durante o período moderno. Esmiuçaram o corpo numa
verdadeira devassa, a fim de descobrirem suas partes e seu funcionamento. Entre os
séculos XVII e XVIII, o cadáver virou alvo principal da curiosidade médica, um enorme
fascínio pelo funcionamento da vida se converte numa obsessão científica pelo corpo
morto.27
Ao encerrarem a morte na esfera médico-científica, puseram fim sua
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familiaridade aos homens comuns e esvaziaram-na de seus significados espirituais,
atentando somente à matéria. Racionalizando a morte, libertavam a todos das mentiras
religiosas, do terror da morte-castigo e de toda a rede exploratória da Igreja – como a
venda de indulgências e de missas para as almas, os dízimos - e por extensão, das
monarquias, que tinham no discurso divino seu alicerce hierárquico. Para os filósofos
das Luzes, o tempo do medo, do fanatismo e da superstição estava encerrado. O sono
da razão, como dizia a célebre gravura de Goya, gera monstros. Basta acordar a razão
e os monstros do medo e do pavor da morte se dissiparão.28
Se a alma identificava a subjetividade, os corpos eram meros objetos de estudo -
não pessoas. Não foi à toa, portanto, que o imaginário artístico moderno foi
profundamente invadido por inúmeras aulas de anatomia. Possivelmente a mais famosa
delas seja a Aula de anatomia do Doutor Nicolas Tulp de Rembrandt, de 1632. A
composição impressiona não apenas pelo interesse ávido de um grupo de homens sobre
um cadáver, mas pela disposição dos personagens, cada um com suas particularidades,
feições e olhares. Não apenas o corpo morto e sem alma, mas também o conceito de
indivíduo encontra-se ali em sua plenitude.29
Aberto o cadáver, separada a pele e os órgãos, músculos e fluídos, tendões e
ossos: o que se têm nada mais é do que uma série de componentes de matéria orgânica.
Todas as peças reunidas, colocadas em ordem produzem um corpo vivo. O
desenvolvimento das técnicas mecânicas e de autômatos ofereceram a metáfora
imediata à esse corpo desmontado, fragmentado: o homem passou a ser concebido como
máquina.
A grande revolução na concepção dos corpos veio então no Iluminismo. La
Mettrie, ao expressar o modelo do homem-máquina, radicaliza Descartes30 afirmando
que também o pensamento funciona mecanicamente, logo, não existe um espírito
116
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misteriosamente metafísico, apenas o automatismo humano da capacidade de raciocínio.
O corpo então passa a ser a pedra de toque da experiência humana e o centro das
preocupações científicas. Por um lado, a linhagem rousseauniana pressupunha a ação
humana como influenciada pelo meio, por outro, La Mettrie propõe o corpo como
centro do debate médico e social, já que é ele o responsável por tudo o que se faz e se
deseja. Se o Renascimento dessacralizou o corpo, o Iluminismo dessacraliza
irreversivelmente o homem em sua totalidade existencial, pela negação do divino e
exaltação da racionalidade. Passou-se da idéia do corpo-invólucro da alma para a do
corpo que é pura matéria e cujo funcionamento é pura mecânica, incluindo-se aí a
capacidade de pensar. A idéia de alma, com todas as suas implicações sobrenaturais,
seria substituída pela razão, resultante ela mesma, de processos físico-químicos. A
morte, cientificizada, invade o imaginário coletivo, tanto na sensibilidade literária que
pensa o corpo-máquina31 quanto na filosofia erótica, na qual o desejo é pulsão humana,
devendo ser satisfeito em nome na liberdade e da felicidade egoísta do corpo. 32
*
Era extremamente emergencial pensar a existência humana após dois séculos de
corpos vasculhados e despedaçados. O Iluminismo tenta entender o homem – em suas
relações sociais, com o meio e consigo mesmo. O século XIX inicia-se então pela
consciência do corpo material como única realidade humana – a razão, efeito da
mecânica física, se tornou o atributo humano mais importante já que controlava o corpo:
seus instintos, comportamentos e desejos são todos manipulados e limitados pela
racionalidade.
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Esse momento seguinte às Luzes foi o de uma verdadeira crise desse indivíduo
sem alma nem unidade, mecânico, autômato. Essa sensação de fragmentação fora
aprofundada pela visão pública dos guilhotinados do Terror revolucionário, que não só
trouxe o cadáver cotidianamente à vista como movimentou todo um novo imaginário
popular do corpo cindido pela perda da cabeça.
Objeto e sujeito de análise, o homem do século XIX não sabe mais o que é. Por
um lado, observa-se a exaltação da medicina como a grande ciência do corpo,
promovida a nova divindade. O saber relativo à saúde referia-se, sobretudo, à
possibilidade de se alcançar a felicidade que, numa sociedade materialista, vem por
intermédio do corpo, da matéria. O bem-estar físico era garantia de uma vida
promissora já que o corpo passara a ser o instrumentalizado e mercantilizado.
Considerava-se a doença uma alteração da máquina, um defeito, necessários reparos e
consertos. O corpo era então, o mais precioso bem, o patrimônio material primeiro de
toda pessoa. Assim, ao mesmo tempo em que ocorre uma supervalorização do corpo (na
saúde, na higiene), paradoxalmente acontece sua banalização (no mercado, no trabalho
industrial). Doente, esse corpo deve ser consertado para continuar útil. Morto, torna-se
coisa inoperante. Porém, com a perda da alma pela dessacralização do homem, esse
corpo morto é tudo o que resta de um indivíduo. Sendo seu bem maior, é tornado
herança aos vivos – sem utilidade produtiva, mas com toda a carga projetiva daquele
que se foi.33
*
A ascensão da burguesia impõe a mentalidade da classe que preserva o corpo,
pois dele retira os frutos de seu trabalho. É por ele que expressa sua virtude, através de
118
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feitos, só possíveis em vida, obviamente. Contrapunha-se à honra aristocrática,
reconhecida pela reputação, que se mantém depois da morte, e sem a qual não valia a
pena viver. A honra era atributo de quem arrisca a própria vida - e a burguesia não o faz.
Porque conserva e cuida do corpo, desenvolvendo ainda mais uma consciência
individual, cujo auge atinge no século XIX, o homem também muda seu olhar em
relação ao corpo morto. A total racionalização do corpo e do modo de pensar faz com
que, pela primeira vez na sociedade ocidental, a morte seja entendida como uma
ruptura.
Não mais passagem para a vida eterna, não mais possibilidades de além vida: a
morte é um fim. Além de intensificar a angústia do homem diante de seu próprio fim,
essa nova percepção traz à baila um novo protagonista dos ritos da morte: o
sobrevivente, aquele que fica e chora o morto. O período anterior à expiração deixa de
ter qualquer caráter tranqüilo vindo a ser palco de intensa dramatização, da dor e do
sofrimento mais profundo. Não mais familiar ou cotidiana, a morte se torna o grande
evento da vida.
A tragicidade expressa pelas súplicas dos sobreviventes reflete não apenas a
comoção da perda do ente querido, mas principalmente a enorme intolerância com a
morte em si. Mudou o foco: o drama vitoriano passa a ser a morte do outro, negada,
incorfomada. O medo pelo desaparecimento de outrem foi o estopim do fenômeno
contemporâneo do culto ao morto34, cujas representações mais patentes eram a
preocupação com a sepultura e a freqüência ao cemitério.
Se na Idade Média os mortos eram simplesmente abandonados nas fossas
comunais anonimamente e, mesmo nos séculos seguinte, uma das poucas mudanças
nesse quadro foi a adoção das inscrições fúnebres – com o objetivo de salvaguardar a
memória do morto e não seu local de sepultamento, a partir do final do século XVIII a
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fixação de um local específico para o enterro do corpo tornou-se prática normativa. E de
fato, o principal motivo para essa nova atitude foi possibilitar a visitação ao morto, ato
desconhecido até então. Os cemitérios do século XIX deixavam de ser extensões dos
terrenos da Igreja para se tornarem um espaço distinto, divididos em lotes, projetados
por arquitetos para que fossem locais de passeio e visita. As necrópoles ocupam locais
acessíveis dentro das cidades, nas quais desde então coabitam vivos e mortos.
O túmulo tornava-se o signo da presença do indivíduo que, contudo, estava
morto. Esse tipo de mentalidade em nada pressupunha a idéia da imortalidade
dogmática do cristianismo, não se referia em absoluto a almas. Era, sobremaneira, uma
incapacidade dos sobreviventes em aceitarem a perda concreta do defunto: apegavam-se
aos restos mortais. Tornou-se essencial essa possibilidade do morto não ser totalmente
retirado do convívio de sua família, que tanto sofre. Na irrealização do enterro no
terreno da casa familiar – que seria o ideal e prática da elite, que fosse conservado em
uma nova casa, só sua, propriedade privada da familiar que por extensão, seria seu lar:
sua fossa particular no cemitério. Desde então a concessão do terreno do cemitério
tornou-se um tipo de patrimônio de compra, garantido por lei, o que foi uma grande
inovação na época.35 Visitava-se o morto como se visita um parente ou um amigo,
conduta que conferia uma espécie de presença ao defunto, uma sobrevida e, em larga
medida, sua imortalidade.
*
O apego ao corpo morto se deu durante o século mais racionalista e materialista
da história até então. Popularizou-se o agnosticismo e a consciência – no período
moderno limitada aos homens esclarecidos – de que não havia pós-morte, logo os
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homens apegavam-se ao que se têm e ao que se é: o próprio corpo material. Preservar o
que resta do ente amado é tentar apreender essa essência fugidia que nos mantêm vivos.
E porque o corpo passa a ser a instância total da vida, o resto mortal indicaria ainda uma
existência: a presença do indivíduo mesmo que na ausência da vida. O protagonista da
dor era agora aquele que ficava e não mais o que agonizava. Prolongar a existência ao
máximo possível, sofrer junto ao moribundo, às vezes sofrer mais que ele, eram as
missões desse novo personagem do drama da morte. Aos poucos, apoderava-se do
evento do outro, alienando o doente de seu próprio fim: já na segunda metade do século
XIX tornou-se recorrente a prática de se ocultar ao moribundo a gravidade de sua
doença. Os parentes poupavam o indivíduo da verdade para que não entregasse os
pontos e não se fosse mais rápido; sentiam o aniquilamento do outro para que esse
continuasse desejando viver. Toda a devoção para com o doente transferia-se para o
corpo morto quando a inevitabilidade da morte acometia. Negava-se, então, a morte,
mesmo que ela já fosse fato.
Esse comovente e exaltado culto aos mortos não tem origem cristã, pois essa se
referia totalmente à salvação da alma. Sua origem foi influência das ciências do
positivismo racionalista e empiricista, que retiram qualquer instância metafísica da
realidade: sem mais valores espirituais, o homem se apegava ao que lhe restava: a
materialidade corpórea. E como num ato de negação da própria morte – com a qual
perderá o controle sobre seu corpo – se apossava do corpo do outro. A noção
oitocentista, burguesa e capitalista, do corpo como o bem mais valioso do homem
atribui a esse apego o caráter do bem material: o corpo do morto valendo-se de herança
para os que ficam. Essa posse ocorria de maneira direta através do vínculo com o resto
corpóreo, mas também por intermédio de uma prática altamente eloqüente nesse
sentido, e popular somente no período vitoriano: a fotografia post-mortem.
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Foto tirada em 1888, por fotógrafo de nome Robson, na cidade de Petrolia, Canadá. Os pais posam com afilha morta ao centro. A pose foi conseguida graças ao suporte que a segura, visível por detrás de seus
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pés. Apesar da suposta vivacidade da foto, seu estado é denunciado pela posição artificial das mãos e pelos olhos pintados nas pálpebras fechadas. Fonte: http://www.petroliaheritage.com/people.html
Todas as informações que se têm dessa fotografia são as que contam em sua moldura. Apesar de já estarhá 9 dias morta, a filha da senhora Jeanette Glockmeyer foi posicionada de maneira muito realista, com
um vestuário muito elegante, postura ereta e livro nas mãos. Inscrições no papel fotográfico eram bastantecomuns, indicando o tempo de falecimento e contendo algum tipo de despedida ao morto. Fonte:
http://ame2.asu.edu/projects/haunted/ISA%20index/book%20of%20the%20dead/book%20of%20the%20dead%20photos.htm
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A maior parte das fotografias post-mortem disponíveis para pesquisa não possuem informações sobre osfotografados. É possível somente analisar a imagem em si, que aqui apresenta uma família em estúdio, pais e filhos. Interessante notar que o evento da morte não era escondido ou afastado das crianças, que
posam de maneira aparentemente tranqüila ao lado dos gêmeos mortos. Esse tipo de imagem do morto jáno caixão é muito freqüente, principalmente depois que o serviço funerário se populariza e se encarrega
de arrumar o morto, melhorando a sua aparência. Fonte: http://billblanton.com/pm.htm
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Devido ao rigor mortis, muitas vezes o corpo não pode ser recolocado em postura viva. Ainda assim,
procura-se dar a impressão de que o morto, na verdade, somente repousa tranquilamente. Fonte:
http://www.101room.net/wordpress/wp-content/themes/sculpt/print.php?p=118
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A pequena Pearl foi fotografada em seu leito, e pela imagem quase seria possível dizer que dorme. Essatentativa de fazer o morto se passar por vivo dormindo é muito comum, principalmente no caso dos
bebês. Aliás, a maior parte das fotografias post-mortem disponíveis são de crianças ainda muito novas, oque indica não só que a mortalidade nos primeiros meses de vida possivelmente era bastante alta comotambém mostra que a família fazia questão do registro do falecimento, às vezes o único que teriam do bebê que não vingou. Por conter as datas de nascimento e falecimento, é possível que a foto de Pearl
tenha sido produzida como um memento mori, ou seja, uma lembrança do morto. Nesse caso, a foto podeter sido distribuída aos parentes e amigos que, eventualmente, sequer tiveram tempo hábil de conhecer a
bebê. Fonte: http://billblanton.com/pm.htm
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Essa pequena já não teve a mesma sorte de Pearl, que faleceu com a aparência tranqüila do bebê quedorme. Possivelmente essa foto não foi tirada imediatamente após o falecimento, visto que já é
perceptível alguns primeiros sinais da decomposição do corpo. Mesmo assim, a posição realista, sentada,“segurando” um pequeno objeto na mão direita, foi tentativa de tornar a foto mais agradável, assim como
a coloração aplicada a posteriori. Fonte:http://ame2.asu.edu/projects/haunted/ISA%20index/book%20of%20the%20dead/book%20of%20the%20
dead%20photos%20page2.htm
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Nas décadas seguintes ao seu aparecimento, em 1839, a fotografia se
popularizou rapidamente.36 Com o barateamento da técnica fotográfica, mesmo a classe
média e operária buscava em algum momento da vida o registro de sua imagem.
Tornou-se comum o retrato individual ou de família, ou ainda de algum acontecimento
importante. A morte, ao se tornar um acontecimento marcante no núcleo familiar, e
ainda ser próxima e domiciliar, passou também a ser registrada. A fotografia post-
mortem foi uma prática comum do período vitoriano, alimentada pelo apego ao morto e
o desejo de registrar seu último momento de convívio – a derradeira imagem do
indivíduo no mundo.
Em seus primeiros anos de existência, a fotografia requeria certo tempo para a
captação da imagem, fazendo com que os fotografados permanecessem imóveis durante
alguns segundos. O resultado, muitas vezes, eram poses tesas, posturas incômodas,
rostos graves e sérios. Esse momento de rigidez era enfim capturado e eternizado.
Estáticos, como cadáveres, eram alvos vivos da ação fotográfica. Momentaneamente
embalsamado, desapropriado de si mesmo, o sujeito torna-se objeto da foto: pura
imagem. Assim sendo, fotografar alguém é, em larga medida, cometer um homicídio
no qual, no extremo da metáfora, a câmara pode assassinar – o disparo (shot ), é o
segundo fatal da realização da foto.
Essa transmutação do indivíduo em imagem, em espectro, faz, então, do instante
fotográfico uma microexperiência de morte.37 Ao mesmo tempo em que eterniza um
momento fugidio, algo que já foi, a foto faz da imagem um prolongamento do sujeito:
esse é, possivelmente, seu atributo mais instigante. Fotografar é apropriar-se da coisa
fotografada38
e, no caso dos indivíduos tornados registros, transforma-os em pseudo-
presenças: memórias materiais da transitoriedade da vida, tentativas de amenizar o
sofrimento causado com a futura ausência, cabalmente vindoura pelo curso da história.
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Apesar de construir um vínculo entre passado e presente, a foto é por definição o
registro de um instante que nunca mais se repetirá existencialmente. Se o momento da
fotografia é um momento de morte, a câmera proporciona uma realidade manipulável –
possibilidade de negar a continuidade do tempo.
Se a fotografia torna morto o vivo – agora um espectro, fantasma de si mesmo,
desapropriado de sua imagem – ocorre o oposto ao se retratar um defunto. O registro
post-mortem era feito nos primeiros dias do luto, preferencialmente o mais rápido
possível, para que os sinais iniciais de decomposição não se tornassem visíveis. Era
feito em casa ou em estúdio. Seu aspecto mais intrigante era a constante tentativa em se
obter uma imagem viva do finado. Para tal, era ajeitado de maneira realista, em pose
sentada, às vezes mesmo em pé, com objetos em mãos. Vestia-se e maquiava-se o
cadáver para que tivesse uma aparência agradável e realista. Quando o rigor mortis ou a
causa mortis tornavam impossíveis esses estratagemas, deitava-se placidamente o
corpo, arranjando-o tal que parecesse descansar ou dormir.
Assim, de certa maneira, a fotografia certifica que o cadáver está vivo enquanto
cadáver : é a imagem viva de uma coisa morta. Anima o morto, fazendo-o forçosamente
posar – como vivo. Na foto, a presença de um objeto registrado é assim como a vida de
um indivíduo que foi retratado: jamais é metafórica, salvo quando se fotografam
cadáveres.39 Se a foto do vivo busca a permanência do fugidio (a própria vida), com o
morto acontece o contrário: ela ressuscita fugazmente aquilo que é permanentemente
morto. Esse é o grande paradoxo – e simultaneamente o grande fascínio – que se têm
diante do retrato post-mortem. A imagem do corpo amado é eternizada e ele é tornado
imortal, porque eterno, mesmo já morto. Em essência, a fotografia post-mortem não
seria, então, uma lembrança do falecido, mas antes a negação de sua morte. Sua
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mensagem não é mostrar o morto, mas provar que esteve vivo até aquele momento. Por
isso a necessidade em dar vida à pose.
O advento da fotografia e sua popularização estão intimamente relacionados à
consciência individual e à crise da morte no século XIX. No período no qual o ser
baseava-se no ter, incluiu-se nessa idéia a própria existência: ter um corpo resulta em
ser vivo. Assim, reter o corpo morto, possuir sua imagem fotográfica é manter o
indivíduo morto, vivo. Ao vincular o passado com o presente, os que se foram nunca se
vão de fato. Permanecem como iconografia utopicamente animada: mumificados, como
um duplo vivo de um original morto. Projeções silenciosas de ausências, falsificações
da verdade.
O retratismo post-mortem revela a angústia do homem vitoriano diante do fim. É
sua tentativa desesperada de imobilizar o tempo e não permitir sua passagem: burlar a
seqüência histórica reapresentando um momento de vida forjado. Na sociedade que
afasta a esfera mítica, morrer deixa de ter qualquer explicação ou significado maior e a
vida, qualquer sentido. Depara-se então, com o horror trágico do óbito: a evidência de
que é, simplesmente, fato. Intransponível, inefável. Busca-se dramaticamente fugir da
platitude da vida apegando-se apaixonadamente ao pouco que resta: ao corpo, à sua
imagem derradeira ainda que na morte. Imortalizar o morto é sua última negação.
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Bibliografia
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Tradução: Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. Tradução: Julio
Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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Abril, 1971, Col. Os Imortais da Literatura Universal.
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Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução: J. Guisnburg e Bento Prado
Junior. São Paulo: Nova Cultural, 1987, Coleção Os Pensadores.
DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. Tradução: Eugenio
Sila e Maria Regina Osório. São Paulo: Editora Unesp e Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo, 1999.
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos/Envelhecer e morrer . Tradução: Plínio
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
FROIDMONT, Hálinand. Os versos da morte. Tradução: Heitor Megale. São Paulo: Ed.
Imaginário, 1996.
MORAES, Eliane Robert. Lições de Sade. Ensaios sobre a felicidade libertina. São
Paulo: Iluminuras, 2006.
MORIN, Edgar. O homem e a morte. Tradução: Cleone Rodrigues. Rio de Janeiro:
Imago, 1997.
131
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NOVAES, Adauto (org). O homem-máquina. A ciência manipula o corpo. São Paulo:
companhia das Letras, 2003.
SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
VOVELLE, Michel. A história dos homens no espelho da morte. In: BRAET, Herman e
VERBEKE, Werner (orgs.). A morte na Idade Média. São Paulo: Ed.USP, 1996.
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http://xroads.virginia.edu/~ma04/hess/Emmeline/opening.html
http://www.anamorfose.be/postmortem.htm
http://ame2.asu.edu/projects/haunted/
http://www.petroliaheritage.com/people.html
http://www.101room.net/wordpress/wp-content/themes/sculpt/print.php?p=118
Notas
1A citação é de Georges Duby, medievalista francês. Duby é herdeiro direto da chamada Escola dos
Annales, que, em contraposição à historiografia tradicional que limita seus estudos à registros oficiais e
dados factuais prioriza o estudo de sistemas de valores e suas mudanças no decorrer do tempo e das
diferentes regiões.Para essa corrente, que ficou conhecida como História das mentalidades, idéias e
estruturas sociais fazem, juntas, em igual importância, o amálgama da História. (DUBY. Ano 1000, ano
2000. Página 122.)
2 Idem, página 74.
3 ELIAS. Envelhecer e morrer. Páginas 84-7.
4 Os versos foram retirados de um poema do século XII, do monge francês Helinánd de Froidmont. A
esse texto é atribuída a primeira imagem da Morte personificada. Segundo Heitor Megale, responsável
pela Apresentação da tradução em português, é em Os versos da morte que, pela primeira vez na
literatura, a morte toma a aparência da estranha personagem armada ora com uma clava, ora com uma
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foice. Essa representação, em suas múltiplas variações, invadiu o imaginário coletivo entre 1150 e 1250.
(FROIDMONT, Hélinand. Os versos da Morte. Página 44.)
5 É do célebre historiador francês Phillipe Áries o conceito da morte domada da medievalidade. Seu livro
A História da morte no Ocidente foi texto fundamental para esse capítulo, ao qual devo as informações
mais pontuais sobre as práticas que envolviam a morte desde a Idade Média até o século XIX. O autor vai
além, chegando à analise da morte até a contemporaneidade. Áries ficou muito conhecido nos meios
acadêmicos pelas coleções A história social dos jovens e principalmente A história da vida privada, da
qual foi um dos idealizadores e para a qual escreveu e organizou até o ano de sua morte, 1984.
6 O historiador francês Jean Delumeau toma como objeto de estudo o medo e suas diversas manifestações
na cultura ocidental dos séculos XIV ao XVIII – o medo da Peste sendo uma delas e o estopim para a
imagética das Danças Macabras. (DELUMEAU. História do medo no Ocidente. Página 85.)
7 Fosse um grande cavaleiro como Guilherme Marechal, fosse o simples (e ao mesmo tempo complexo)
moleiro Menocchio, as mortes se davam de maneira similar no que diz respeito à resignação perante um
fato da vida. A história de Guilherme, conde londrino que nasceu em 1145 e viveu até 1219, foi contada
pelo medievalista francês George Duby. Sua morte é a do tipo “clássica” do período: ele pressente seu
fim, doa todos os seus bens, despede-se dos filhos e amigos, entra para uma Ordem Religiosa para
assegurar seu destino eterno. Aceita a morte e espera. Suas últimas palavras, ditas à família e aos
companheiros da cavalaria: “Estou morrendo. Confio-vos todos a Deus. Não posso mais permanecer
convosco. Não posso me defender da morte.” E expira em seguida. (DUBY, Georges. Guilherme
Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo. Tradução de Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1987.)
Domenico Scandella, o “Menocchio”, nascido em 1532 e morto em 1601, teve sua peculiar história
contada por Carlo Guinzburg, historiador italiano. Morador do Friuli, foi um moleiro diferente de todos
os outros, diferente de qualquer morador comum dos vilarejos italianos durante a Renascença. Menocchio
sabia ler e escrever e teve contado com textos que revolucionaram seu modo de pensar cristão. Foi
denunciado ao Santo Ofício sob acusação de heresia, pois tentava disseminar suas idéia na vila em quemorava. Após quatro audiências, foi condenado pela Inquisição. Executado em decorrência de suas idéias,
Menocchio chega a pedir perdão pelas suas pregações, mas de fato nunca muda seu original pensamento.
Não concorda com a instituição Igreja, rica e corrupta, e acredita que o Inferno era somente uma de suas
mentiras. Lamentava-se apenas de trazer a vergonha para sua família, e passou a desejar a morte após ser
submetido às torturas. (GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. Tradução: Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.)
8 O único momento em que eram permitidas as manifestações excessivas de emoção era o período do
luto, após a morte do moribundo, quando seus próximos exprimiam toda a dor da perda : Os assistentes
rasgavam suas roupas, arrancavam a barba e o cabelo, esfolavam as faces, beijavam apaixonadamente o
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cadáver, caíam desmaiados e, no intervalo de seus transes, teciam elogios aos defuntos, o que é um das
origens da oração fúnebre. (ARIÈS, História da morte no Ocidente. Página 109.)
9 FROIDMONT, Hélinand. Os versos da Morte. Página 54.
10 Segue a citação completa, do antropólogo francês Edgar Morin: Toda uma tendência anti-sexual vai se
expandir com o cristianismo; ele traduzirá o desejo obscuro, não somente de limitar o desastre da
sexualidade, não somente de merecer a imortalidade através da assexualidade mas talvez também de
voltar ao período pré-sexual da vida no qual a morte não existe. (MORIN. O homem e a morte. Página
213.) O texto de Morin, O homem e a morte, seu primeiro livro, publicado em 1951, é um dos mais
famosos estudos acerca das representações do imaginário da morte nos diferentes períodos e povos. É
uma referência na área de História da morte, em detrimento de ser uma análise antropológica.
11 Nessas sociedades, os defuntos são vivos de um gênero particular, com quem é preciso contar e compor
e, se possível, ter relações de boa vizinhança. Eles não são imortais, mas amortais durante um certo
tempo. Essa amortalidade é o prolongamento da vida por um período indefinido, mas não
necessariamente eterno. Em outros termos, a morte não é identificada como algo pontual, mas sim
progressivo. (DELUMEAU. História do medo no Ocidente. Página 91.)
12 Considera-se o texto do poeta francês Hélinand de Froidmont, Os versos da Morte, feito entre 1194 e
1197 o primeiro a apresentar essa iconografia de morte que invadiu o imaginário coletivo dos séculos
seguintes – e em larga medida perdura ainda hoje.
13 Tomo emprestado do arquiteto e historiador de artes e arquitetura Carlos Antonio Leite Brandão essa
possibilidade em se pensar o paradoxo do individuo como o homem em divisão. Em seu capítulo “O
corpo do Renascimento” presente na coletânea de textos O homem-máquina, organizada por Adauto
NOVAES, Brandão comenta a respeito da arte renascentista e de sua imagética do corpo: [no
Renascimento] emergirá o claro-escuro de Da Vinci, a situar o homem sob a luz da natureza mais do que
da história; emergirá a subjetividade de Michelangelo, expressa sob a luz artificial da ribalta moderna
em que o fulgor infinito da alma luta para vazar a opacidade finita do corpo; emergirá, enfim, o
“indivíduo” moderno, individuos , ser “em-divisão”. Divisão essa que primeiro fratura a alma e a
subjetividade para depois cindir radicalmente a res cogitans do espírito e a res extensa do corpo.
(BRANDÃO In: O corpo máquina. Página 291.)
14 É proveniente de René Descartes a formulação de uma concepção do corpo separado da alma, que
influenciou todo o pensamento moderno, e sobreviveu para além do período. No Discurso do método, o
pensador francês do século XVII teoriza acerca do corpo, que denomina res extensa, como matéria
orgânica de funcionamento autônomo ao espírito, que chama de res cogitans. Essa é responsável pela
dúvida metódica, o princípio de análise científica baseada no questionamento de tudo o que existe, seja
real ou metafísico. A capacidade de duvidar e buscar respostas às dúvidas são os fatores que nos definem
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como seres humanos, daí a sugestão da máxima cartesiana do cogito ergo sum: Notando que esta
verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos
céticos não seriam capazes de abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulos, como o primeiro
princípio da Filosofia que procurava. (...) compreendi por aí que eu era uma substância cuja essência ou
natureza consiste apenas no pensar e que, para ser, não necessita de nenhum lugar nem depende de
qualquer coisa material. De sorte que, esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente
distinta do corpo (...) (DESCARTES, Discurso do método. Páginas 46-7.)
15 O imaginário cristão, de maneira geral, começa, na Baixa Idade Média, a ser povoado pelas imagens do
Juízo Final, do Inferno e do paraíso – e também do Purgatório, invenção da Igreja do século XII – ou seja:
imagens de eventos pós-morte que são conseqüências das decisões tomadas em vida. Se até então a morte
era aceita porque pressupunha uma outra vida, eterna, essas novas instâncias do pós-morte submetem a
vida individual a um reexame.
16 Pelo fim da Idade Média, alguns fiéis substituíram a leitura individual ou a prece coletiva por uma
leitura individual, baixa, interiorizada, meditativa: fenômeno que certamente caracteriza uma maior
individualização das idéias e das crenças e a diminuição do sentido comunal da sociedade. (BARTHES, A
câmara clara. Página 145.)
17 ARIÈS. História da morte no Ocidente. Página 140.
18
A Peste entrou na Europa em 1348, proveniente da Ásia, pela chamada “rota da seda”, por Gênova eFlorença, e avança à França no mesmo ano. Teve seus piores eventos no decorrer dos 2 anos seguintes e
durou até 1720, com intervalos e em lugares diferentes em toda a Europa Ocidental, normalmente com
refluxos de 4 ou 5 anos.
19 DELUMEAU. História do medo no Ocidente. Página 125.
20 Idem, página 123.
21 BOCACCIO. Decameron. Página 17.
22 Idem, página 14.
23 Idem.
24Op. Cit.
25 Segundo Philippe Ariès, a prática que melhor comprova a preocupação em manter a memória do morto
foi a abundante produção de testamentos, feitos pelos homens de todos os estratos sociais. Neles, era
comum que o indivíduo cobrasse termos de compromisso aos que ficavam como encomendar missas e
orações à sua alma. Também cobravam a manutenção de suas placas funerárias nas igrejas. O que
importava era a evocação da identidade do defunto e não o reconhecimento do lugar exato da colocação
do corpo. (ARIÈS, História da morte no Ocidente. Página 62.)
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26 Conceito desenvolvido pelo historiador francês Michel Vovelle. Assim como as obras de Morin e de
Áries sobre a Morte, o pequeno artigo de Vovelle, A história dos homens no espelho da morte, é também
uma grande referência para esse ramo da historiografia. Além do conceito de morte barroca, Vovelle
desenvolve um pensamento contrário ao de Áries sobre a morte domada medieval, uma espécie de bastião
difícil de ser derrubado. Faz eco à Vovelle o texto de Elias sobre a morte nas sociedades ocidentais, A
solidão do moribundo / Envelhecer e morrer .
27 As representações imagéticas do corpo morto nesse período deixam de ser as do corpo em
decomposição, predominantes desde a Renascença, quando milhares foram acometidos pelas mortes da
Guerra dos Cem Anos, da Peste Negra e da fome, que deixavam o cadáver transfigurado, pútrido, em
carnes que se desfaziam em vermes e líquidos sórdidos às vistas de todas. Toma seu lugar a imagem do
esqueleto e do crânio com osso, mais fria e seca, mais científica, racional.
28 VOVELLE. A história dos homens no espelho da morte. Página 22.
29 O mesmo Rembrandt produziu outras obras de mesmo tema, como A aula de anatomia do Professor
Deyman, de 1656. As aulas de anatomia continuaram sendo retratadas pictoricamente, até a invenção da
fotografia que substitui aos poucos as pinturas. Ainda durante o século XIX era possível encontrar artistas
como Thomas Eakins que tratou do tema nas décadas de 1860 a 1890.
30 La Mettrie substituíra o dualismo cartesiano por um monismo materialista, segundo o qual só havia no
homem uma substância, e a alma nada mais era que uma função da matéria organizada. Destacamos
entre os efeitos positivos desse movimento a valorização do corpo. Mas de outro ponto de vista, o corpo
foi profanado, já que deixou de ser visto como um sacrário que continha uma coisa infinitamente
preciosa, a alma. O comentário é do cientista político Sergio Paulo Rouanet no capítulo “O homem-
máquina hoje”, escrito ao livro O homem-máquina, organizado por Adauto NOVAES. (ROUANET In O
homem-máquina. Página 53.)
31 Esse novo corpo da ciência foi também pensado pelas fabulações literárias do século XIX que
problematizavam o relacionamento entre homens e máquinas. Em O homem de areia, de E.T.A.Hoffman, publicado em 1817, Olímpia, o autômato construído pelo professor Spalanzani, é (literalmente)
o objeto do amor de Natanael, apesar de todas as suas características mecânicas. O conto não só
estabelece o problema da similitude do autômato, mas, principalmente, da definição inexata da condição
de “humano”. É a confusão gerada quando o ser orgânico e o objeto mecânico se misturam e os limites de
um são questionados pelo outro. Esse questionamento é ainda mais efetivo em outro conto emblemático
sobre a relação homem-máquina , O teatro de marionetes de Heinrich von Kleist, publicado em 1811. Ao
refletir sobre a atuação perfeita das réplicas ao dançarem, o bailarino proclama sua superioridade diante
da imperfeição de homens que falham. Se para o Natanael de Hoffmann a boneca Olímpia representa o
ideal justamente porque não fala e não se expressa com paixão ou sentimentalismo (ou seja, por parecer
humana mas agir como máquina), em Kleist os autômatos superam os humanos por agirem sem a razão,
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de forma espontânea. Enquanto as marionetes deixam-se abandonar à música, a falha do bailarino é
exatamente não se “deixar levar”, não abandonar a razão e o pensamento: acaba por dançar com afetação.
Os dois textos são apenas exemplos do profundo impacto que a aproximação entre a natureza humana e a
racionalidade mecânica provocou na sensibilidade literária do período. (HOFFMAN, E.T.A. O homem de
areia. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. KLEIST, H. Sobre o teatro de marionetes. Tradução: Pedro
Sussekind. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.)
32 A filosofia libertina pregava a busca da felicidade enquanto estado físico e não espiritual. O homem
plenamente feliz era aquele que satisfazia todos os seus desejos em busca do prazer físico do corpo, que
afinal, é a única realidade humana. Para se alcançar esse hedonismo ilimitado, o homem devia ser livre,
autônomo. Como não possui alma, ou seja, não é criação divina, não deveria se submeter a regras
religiosas, sendo então o dono do próprio destino. O libertino do século XVIII era o filósofo dos prazeres,
sem culpas, sem preconceitos ou repressão, extremamente individualista, e por isso inescrupuloso, emseus desejos sensuais. Diz a filósofa e crítica literária Eliane Robert Moraes a respeito do Marquês de
Sade, o principal autor da filosofia libertina: Não esqueçamos que o princípio fundamental do sistema de
Sade é o egoísmo: o isolamento define a situação original do homem no mundo, e só a libertinagem tem o
poder de devolvê-lo a esse estado natural de solidão que é, por essência, cruel. (MORAES. Lições de
Sade. Página 136.)
33 Por outro lado, a sensibilidade romântica traz à baila um homem em crise diante da materialidade do
mundo. Os temas do Romantismo explicitam a preocupação em reencontrar a esfera mística e idealista do
homem, perdida na ciência materialista.
34 O culto contemporâneo ao morto nada tem a ver com o culto pré-cristão aos mortos pré-cristãos,
segundo Philippe Ariès. Houvera uma grande ruptura entre as atitudes mentais diante dos mortos da
Antiguidade e da Idade Média. (ARIÈS. História da morte no Ocidente. Página 73.)
35 ARIÈS. História da morte no Ocidente. Página 75.
36 O inventário [fotográfico] teve início em 1839 e, desde então praticamente tudo foi fotografado diria
Susan Sontag. A intelectual americana, além de ativista política, romancista e crítica prolífica, publicou,
em 1976, uma importante coletânea de ensaios sobre a atividade fotográfica, contemplando seus aspectos
sociais e humanos. A curiosidade mais empolgante sobre a autora, para esse trabalho, vem do fato de ela
mesma ter sido fotografada morta, na funerária, por sua companheira, a fotógrafa Annie Leibovitz, em
2004, após ter falecido vítima de leucemia aos 71 anos.
37 A fotografia representa esse momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um
sujeito nem um objeto, mas antes, um sujeito que se sente tornar-se objeto: vivo então uma
microexperiência da morte: torno-me verdadeiramente espectro. O depoimento é do filósofo francêsRoland Barthes, de seu texto A câmara clara, o último antes de sua morte, publicado em 1980. Barthes
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denomina Spectrum todo referente fotográfico: o alvo, aquilo que é fotografado: Porque essa palavra
mantém uma relação com o espetáculo e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda
fotografia: o retorno do morto. Para o autor a natureza da fotografia é a Morte: o que encaro na foto que
tiram de mim é a Morte: a Morte é o eidos dessa foto. (BARTHES. A câmara clara. Páginas 29 e 68.)
A proximidade entre a Morte e a Fotografia foi também pensada por Susan Sontag. Para a autora, fotos
são como vestígios espectrais pois equivalem à presença simbólica do fotografado. A transformação do
indivíduo em objeto, coisa inanimada, é para a autora tal como para Barthes: necessidade de negar os
efeitos do tempo da própria vida, transformando em mortos os fotografados e mantendo-os conosco, em
volumosos álbuns de família. Sontag vai além, ao afirmar que todas as fotos são memento mori: Tirar
uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa).
Justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-lo, toda foto testemunha a dissolução
implacável do tempo. (SONTAG. Sobre a fotografia. Página 26.)
Interessante notar como os termos utilizados por Barthes e Sontag se complementam: o primeiro
transforma o fotografado em alvo, que logo se torna espectro. A segunda se refere à câmera fotográfica
como arma fatal, aquele que é carregada, tem uma mira precisa e dispara na direção do alvo apontado. A
metáfora do assassinato no momento do shot , utilizada nesse capítulo, foi emprestada de Sontag.
38 SONTAG. Sobre a fotografia. Página 14.
39 Segue a citação completa, de Barthes: Na fotografia, a presença da coisa (em certo momento do
passado) jamais é metafórica, quanto aos seres animados, o mesmo ocorre com a sua vida, salvo quando
se fotografam cadáveres, e ainda: se a fotografia se torna então horrível, é porque ela certifica, se assim
podemos dizer, que o cadáver está vivo, enquanto cadáver: é a imagem viva de uma coisa morta.
O termo animar é extremamente feliz ao considerarmos a fotografia post-mortem, bastando aproximá-lo à
sua relação com o cinema de animação, que nada mais é do que a possibilidade de dar vida (animar) a
bonecos inanimados por intermédio de uma seqüência fotográfica.
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