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A INTERIORIDADE DA EXPERINCIA TEMPORAL DOANTROPLOGO COMO CONDIO
DA PRODUO ETNOGRFICA12
Cornelia Eckerte Ana Luiza Carvalho da Rocha
Introduo
O mtodo etnogrfico aponta para uma tica de interao, de interveno e de
participao construda sobre a premissa da relativizao, onde o tema da interpretao
desponta como central. Guardadas as divergncias terico-analticas, trata-se de toda uma
gerao de antroplogos que priorizaram o ponto de vista do "outro" compreendido a partir doprocesso interativo em campo: o encontro intersubjetivo entre o pesquisador e os sujeitos
pesquisados.
A alteridade reside na singularidade do discurso mico traduzida pelo antroplogo nas
pesquisas, tema este que tangencia uma "hermenutica do si", da qual no se pode afastar a
produo/construo do conhecimento antropolgico em suas bases mais profundas3. Como
se ver, a seguir, no por acaso que o campo da matriz disciplinar da Antropologia
atingido por tais temas especficos do discurso filosfico contemporneo ("a dialtica da
ipseidade e da mesmidade" na correlao entre o "si" e o "diverso do si").
Trata-se de um momento singular da produo terica e conceitual da Antropologia,
quando a experincia temporal do sujeito do investigador comea a ser incorporada como
centro de suas preocupaes desde o momento em que seu objeto de pesquisa desloca-se
das ditas sociedades primitivas s sociedades complexas.
Acompanhando este "ponto de revoluo", o antroplogo passa a interrogar-se a
propsito de "quem fala designando-se a si mesmo como locutor (dirigindo a palavra a um
interlocutor), desencadeando-se a toda uma reflexo sobre o estatuto indireto da posio do
1 Revista de Antropologia, publicao do Departamento de Antropologia, Faculdade de Filosofia, Letras eCincias Humanas, Universidade de So Paulo, volume 41 nmero 2, So Paulo 1998, ISSN 0034-7701. P. 107a 136.2Agradecemos ao Cnpq pelo concesso de bolsa produtividade no projeto integrado Estudo antropolgico deitinerrios urbanos, memria coletiva e formas de sociabilidade no mundo urbano contemporneo, Fapergs
pelo financiamento do Projeto Banco de Imagem, do Laboratrio de Antropologia Social/PPGAS/UFRGSsediado no ILEA/UFRGS.3
A linha de argumentao aqui apresentada tem por base as obras de P. RICOEUR, 1991 e l994 e a obra de J. PIAGET,1997.
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si4.
Pretende-se com este artigo refletir sobre o mtodo etnogrfico referido ao tema da
identidade narrativa do antroplogo, em especial, o problema de sua identidade pessoal5no
que tange a alcanar, em Antropologia, uma tica da ao.
Assim quer-se aqui problematizar metodologicamente a mediao narrativa como
constituinte, em Antropologia, do mtodo etnogrfico que, se acredita, possa elucidar os
paradoxos da identidade pessoal do antroplogo como fundamento da produo torico-
conceitual desta matriz disciplinar na contemporaneidade.
A produo antropolgica sob a gide do deslocamento do sujeito da conscincia
Em seus estudos das culturas e sociedades humanas, os antroplogos passam, ento, a
confrontar-se com o fenmeno da interioridade do tempo. Isto , por exigncias de
"deslocamento" do sujeito cognoscente na produo da "objetividade" cientfica, isto , o
antroplogo constata que suas reflexes, oriundas da anlise de suas prprias experincias
vividas em campo, traduzem assertivas relativas a problemtica do si6.
Nestes termos, as estruturaes do real produzidas pelo antroplogo, consideradas
segundo percepes subjetivas objetivadas, tanto quanto as prticas e aes sociais dos
grupos por ele investigados passam a ser analisadas como "ordens de significado de pessoas
e coisas"7. Por esta via, a matriz disciplinar da Antropologia8 desloca suas ordens de
preocupaes epistemolgicas para o "carter reflexivo do si"9 na produo de seus
4Marcel MAUSS, j em 1902, recomendava aos etngrafos "buscar os fatos profundos, inconscientes quase,porque eles existem apenas na tradio coletiva". Mauss recorre noo de inconsciente para melhor dar contada natureza das representaes coletivas ("categorias do entendimento"): "Para Mauss, a noo de inconsciente
parecia indispensvel para explicar no apenas a categoria, mas igualmente o costume, os hbitos em geral".CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988. p. 38.5O problema da identidade pessoal, segundo P. RICOEUR, apresenta a questo da identidade-idem, evocando asquestes permanncia do tempo, em que a mesmidade relaciona-se a um conceito de relao, a um critrio de
continuidade ininterrupta e de similitude. Trasladado para o mtodo etnogrfico, o tema da identidade pessoal doantroplogo, no corpo deste mtodo, significaria paradoxos que a se ligam em termos da irredutibilidade daexperincia etnogrfica enquanto busca de uma invariante relacional do antroplogo com a alteridade, onde secoloca em jogo o quem sou eu do investigador, logo o aspecto da identidade-ipse, irredutvel determinaode umsubstrato .6 A inteno deste artigo aqui evidenciada.O que se quer problematizar metodologicamente a mediaonarrativa como constituinte, em Antropologia, do mtodo etnogrfico que, se acredita, possa elucidar os
paradoxos da identidade pessoal do antroplogo como fundamento da produo torico-conceitual desta matrizdisciplinar na contemporaneidade.7SAHLINS, M. 1979. p. 1 0.8 Para Roberto Cardoso de Oliveira, uma matriz disciplinar a articulao sistemtica de um conjunto de
paradigmas, a condio de coexistirem no tempo, mantendo-se todos e cada um ativos e relativamenteeficientes. CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988, p. 15.9
Sero aqui mencionadas inmeras expresses que tm sua origem nas obras de P. RICOEUR supracitadas, dasquais nos apropriamos para fazer avanar a anlise sobre histria de vida em Antropologia, tendo como suporte otema da identidade narrativa.
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conceitos e teorias, onde o tema da identidade narrativa e autoral ganha importncia
na polmica encerrada pelas produes etnogrficas em Antropologia.De Bronislaw Malinowski Marcel Mauss, passando pela obra de Franz Boas,
apreende-se, pela via da tradio empiricista, que o mtodo de uma observao completa,
participante e viva das sociedades estudadas, em que o antroplogo deve realizar um percurso
de "imerso no cotidiano de uma outra cultura"10, pressupe uma particularidade tico-moral:
um grau de neutralidade axiolgica do investigador em campo. A necessidade de dominar a
lngua do "outro" permitir-lhe-ia, por exemplo, traduzir a "semntica" do agir humano dado
em cada cultura, reservando-se ao dirio de campo os dilemas da mesmidade do carter do
antroplogo dissociado da manuteno do si11.
Neste momento da reflexo antropolgica, gera-se o conceito de "etnocentrismo",
onde a ipseidade substituda pela mesmidade no debate sobre a identidade do antroplogo.
Encobre-se, aqui, o fato de que a dialtica do si, gerada na descentrao do sujeito do
antroplogo12, redutvel ao carter das identificaes (valores, normas, ideais, modelos) nas
quais o investigador/comunidade investigada se reconhecem, desvendando-se alteridades,
ficando latente a problemtica da ipseidade13.
Nos termos de uma sociopsicognese das teorias e conceitos da Antropologia, a tarefa
do etngrafo se consolida, assim, como sendo a de investigar "um sentido em configuraes
muito diferentes, por sua ordem de grandeza e por seu afastamento das que esto
imediatamente prximas do observador"14.
Fica evidenciado que a prtica antropolgica como a "busca da gramtica da vida
humana e social a partir da diversidade presente"15ainda no desabrochara para o problema
filosfico da hermenutica do si, ficando presa ao empiricismo e s armadilhas das filosofias
do Cogito.
Assim, o mtodo etnogrfico nascia e tomava forma nas tradies empiricistas da
10"Culturas eram totalidades que deveriam ser recompostas pelo antroplogo e descritas como tais, embora nose apresentassem experincia dessa maneira". CALDEIRA. 1988. p. 137.11A tcnica do dirio de campo, que funda a narrativa etnogrfica, procede, neste cas o, segundo os dilemas daalteridade do antroplogo face aos nativos, tendo por base uma operao de comparao consigo mesmo,sem o suporte de uma reflexo a respeito de si, com base na problemtica da dimenso temporal do seu eumesmo, onde a pergunta quem sou eu? desliza para o que sou eu?.12Cf. expresso de J. PIAGET, 1997.13O aspecto tico aqui envolvido se traduz no fato de o antroplogo relativizar, num processo descentrado deseus hbitos e identificaes adquiridas (seu eu mesmo) sem, no entanto, explicitar a seus vnculos com acapacidade de designar-se, a si prprio, como um outro, jogando-se no campo da indeterminao e do
julgamento moral da manuteno do si.14LEVI-STRAUSS. In: MAUSS. 1985.15 LEVI-STRAUSS. In: MAUSS. 1985.
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Escola Funcionalista e Culturalista, diferenciando-se na tradio intelectualista-racionalista16,
mas convergindo num mesmo ponto. Ou seja, a ausncia de uma reflexo em torno da
problemtica da distenso temporal interior que preside a configurao da identidade pessoal
do antroplogo e a mediao da narratividade que preside o mtodo etnogrfico, tornando-o
instrumento eficaz de inteligibilidade das vidas humanas, no pela compreenso do si, mas
pela via da interpretao do si do pesquisador.
Ao contrrio, o que se coloca a "objetividade" atravs da certeza de que o Cogito, via
neutralizao da ipseidade, d sobre a verdade de uma verso "subjetiva" de regras
inconscientes e universais da cultura humana, "as estruturas permanentes" nos termos de
Lvi-Strauss17. Em particular, com o estruturalismo, o estatuto do sujeito epistmico do
antroplogo no confrontado com os paradoxos e as perplexidades da sua identidade pessoal
no quadro da dimenso temporal tanto do si quanto da prpria ao do seu pensamento sobre
o mundo.
Se faltava ao mtodo etnogrfico nas tradies empiristas problematizar sobre a
legibilidade das "histrias" dos grupos/indivduos humanos contidas nas suas etnografias,
onde o questionamento da identidade pessoal do pesquisador segue apenas o critrio do
questionamento da identidade-idem, presenciava-se, na tradio intelectualista da
Antropologia estrutural, um modelo de unificao do sujeito epistmico do antroplogo na
vacuidade do Cogito como parmetro de procedimentos de estudo das culturas e sociedades
humanas, em que a questo da ipseidade por princpio eliminada por perda de suporte da
mesmidade18.
No quadro do mundo colonial que inspira tais tradies e paradigmas em
Antropologia, ausenta-se uma referncia s "dinmicas interacionais e dialgicas que
subjazem, a intersubjetividade, graas qual o sujeito epistmico do antroplogo aparece num
perptuo processo de descentrao, na tentativa de "pr-se no lugar do outro", assumindo
perspectivas e posturas alheias a sua identidade pessoal19.Abre-se, assim, espao para se problematizar, no corpo das prticas antropolgicas, o
tema da constituio do si-mesmo do etngrafo como um outro, confrontado na escritura
de seu texto com o lugar de autoria/autoridade de sua produo terico-conceitual, segundo
16Seguimos CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988.17 LVI-STRAUSS, "no que seguido por Dumont que, semelhana de Mauss, agrega a dimenso doinconsciente aos elementos de base da ideologia", cf. CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988. p. 45.18 A respeito, ver os comentrios de G. DURAND sobre a hermenutica redutora que preside o pensamento
antropolgico de C. LVI-STRAUSS, em obras como DURAND. 1976 e 1979.19SOARES. 1994. p. 105.
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uma hermenutica da existncia, na impossibilidade do tratamento impessoal da identidade no
plano conceitual.
A dramtica temporal na interioridade da conscincia do antroplogo
No mundo ps-colonial, uma vez confrontada a produo torico-conceitual em torno
do tema do mtodo etnogrfico, a Antropologia e seus temas correlatos do
relativismo/etnocentrismo realiza um giro interpretativo na busca de melhores critrios para
situar o tema da identidade pessoal do antroplogo. Neste contexto, a noo de identidade
narrativa20 e a questo da "hermenutica do si" parecem ser uma das vias de acesso
compreenso do mtodo etnogrfico "aplicado s pessoas e s comunidades" estudadas pelos
antroplogos.
Na tradio intelectualista (firmada pela Escola Francesa de Sociologia), o mtodo
etnogrfico encontra-se preso s armadilhas de uma abordagem longitudinal da identidade
pessoal do antroplogo, sendo concebido como forma de apreenso de representaes
simblicas coladas ao vivido. Em Mauss, por exemplo, o mtodo etnogrfico uma forma de
apreenso do fenmeno social como total, posto que recompe o social integrado num sistema
com significado, segundo o conceito de fato social total21.
A partir de um tributo tradio intelectualista, Jean Piaget apontou, entre os anos
40/50, a debilidade de uma orientao filosfica com base na fenomenologia do sujeito socialpara o caso dos estudos das categorias de entendimento humano, em prol do debate dos
diferentes nveis hierrquicos de estruturao do esprito, individual e coletivo, nos termos de
uma psicognese22.
Inspirado nos estudos da tradio intelectualista francesa, esse autor reconhece o
relativismo como mtodo de investigao e amplia sua feio do debate a localizado, no que
aqui nominamos a identidade pessoal do antroplogo, ao propagar a tese central de que
adialtica sujeito/objeto se processa nos termos de um construtivismo reflexivo: tantoconhecimento "uma exteriorizao objetivante" do sujeito quanto uma "interiorizao
reflexiva" do real.
Se re-situada, neste contexto, a dialtica da identidade-idem e identidade-ipse, no
20Cf. P. RICOEUR, "Elaborei ento a hiptese segundo a qual a identidade narrativa, seja de uma pessoa, sejade uma comunidade, seria a do lugar procurado desse cruzamento entre histria e fico". RICOEUR. 1994, p.138.21LEVI-STRAUSS. In: MAUSS. 1974.22
Vale a pena situar a crtica feita pelo construtivismo ps-piagetiano ao fato de, em seus estudos, Piaget terignorado na construo do sujeito epistmico o lugar das motivaes simblicas e das pulses subjetivas naformulao dos esquemas de pensamento humano.
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caso da identidade pessoal do antroplogo, se reveste da polmica do polimorfismo das
estruturas cognitivas presentes no trajeto antropolgico de conformao do sujeito epistmico.
Reunir uma hermenutica do si com as descobertas da epistemologia gentica pode
significar aqui um esforo na tentativa de elucidar os paradoxos que sustentam os critrios de
identidade pessoal do antroplogo na configurao do mtodo etnogrfico em Antropologia,
fazendo dialogar as instncias da dimenso temporal que preside o ato de conhecimento
humano e o processo cognitivo que o faz reflexivo.
Seja atravs dos desdobramentos entre identidade-idem (mesmidade, idntico a si e
imutvel atravs do tempo) e identidade-ipse (identidade pessoal e flexiva, talhada pela
alteridade) para a compreenso do "primado da mediao reflexiva sobre a posio imediata
do sujeito...", seja atravs da epistemologia gentica, e a ordem de suas preocupaes com as
condies possveis nas quais os dados da conscincia atingem o grau de compreenso
"objetiva" das aes executadas pelos sujeitos sociais, o debate em torno do ato interpretativo
que preside o mtodo etnogrfico na pesquisa dos signos e dos smbolos culturais, das regras
e dos valores sociais que configuram a experincia da vida coletiva s tem a enriquecer.
Visto sob a escala do construtivismo piagetiano, o pensamento sociolgico elaborado
por Durkheim, em fins do sc. XIX, confrontado aos sistemas teleolgicos de sociedades
tribais, os quais eram o centro de interesse da Escola Sociolgica Francesa, configura-se, em
nveis distintos de hierarquia, como aspectos indissociveis de toda a formao do real que
experienciou a espcie humana ao longo de sua evoluo e maturao.
Nas obras de seus seguidores, Marcel Mauss, Claude Lvi-Strauss ou Louis Dumont,
as categorias do entendimento persistem no centro das indagaes antropolgicas23, sendo que
cabe ao antroplogo a reconstruo formal, por excelncia, das ordens de significados
oriundos da cultura/sociedade humana, capaz de explicar valores sociais ou decifrar cdigos
simblicos de sociedades "outras", buscando desvendar ideologias e representaes numa
perspectiva comparativa com sua prpria ideologia-cultura de socializao.Em decorrncia, poder-se-ia dizer que a problemtica do si atingiria, aqui, patamares
de tipos distintos de esquemas de pensamento. O relativismo significaria no apenas a
passagem de categorias de entendimento egocntricas (operaes cognitivas modeladas pela
lgica individual) para sociocntricas (operaes cognitivas modeladas pela lgica social).
No caso do pensamento sociolgico, tratar-se-ia de fazer operar a interdependncia da
conscincia individual da lgica social a partir do ato de descentrao da conscincia
23CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988. p. 45.
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individual, levando-se em conta sua interdependncia da lgica social, desdobrada em
operaes mentais lgico-abstratas24.
Poder-se-ia observar, a ttulo de exemplo, que o prprio objeto de investigao
antropolgica pertence ao campo das representaes coletivas, uma vez que o paradigma
racionalista que funda tal tradio de pensamento, privilegiando a conscincia - ou, nos
termos de Gilbert Durand, as filosofias do Cogito - nos seus estudos acerca das categorias do
entendimento humano estabelece uma hierarquizao de nveis entre as operaes lgicas e
racionais do "homem da civilizao", com as quais ele opera o entendimento do mundo, das
categorias de entendimento dos povos ditos primitivos25.
Diferentemente de mile Durkheim e Marcel Mauss, se em Louis Dumont, o tema da
identidade pessoal do antroplogo enriquecido com a noo de pessoa e o tema da
"identidade de atribuio", trazendo tona, dentro de certos limites, a dependncia do mtodo
etnogrfico em Antropologia 26ao esquema espao-temporal que o contm, em Lvi-Strauss,
a univocidade da estrutura inconsciente do esprito humano que est na raiz da investigao
etnogrfica27, sendo no carter vazio de tais estruturas que reside sua eficcia heurstica.
Em termos do que interessa a este artigo, foroso se reconhecer que, no
estruturalismo lvi-straussiano, as categorias de entendimento empregadas pelo antroplogo,
com base numa reduo translingstica, resolvem a problemtica do relativismo em
Antropologia pela via da "opacidade do inconsciente" e de sua funo simblica. J em
Dumont, as categorias de entendimento utilizadas pelo antroplogo sofrem a crtica de seus
critrios de atribuio, sendo que a fora do questionamento da lgica da referncia
identificante do antroplogo eclipsaria a problemtica da ipseidade.
Em particular, o mergulho ortodoxo no estruturalismo lvi-straussiano aporta
dificuldades ao trabalho antropolgico no que se refere tanto ao "privilegiamento da razo
24Explorando-se os comentrios de Jean Piaget sobre a tradio intelectualista francesa e a explicao que trazseu paradigma racionalista em Antropologia, poder-se-ia aprofundar, inclusive, alguns aspectos importantesacerca da formao socio-psicogentica dos conhecimentos cientficos em Antropologia e de sua evoluohistrica, o que no vem ao caso neste artigo.25A respeito do assunto ver ROCHA. 1998.26 Cf. P. RICOEUR, 1991, impossvel no esquecer que, dentro do propsito deste artigo, na perspectivadumontiana da teoria da hierarquia, trata-se aqui unicamente das propriedades reflexivas da enunciao, umavez que a ordem cultural atuaria como fonte de particulares de base e instrumento de referncia identificante paraos sujeito biolgicos.27Se, cf. DURHAN. 1984. p. 9, o estruturalismo "contribui para recolocar a importncia da dimenso simblicada vida social, pelo biais do conceito de estrutura que se coloca no prprio cerne dos fenmenos
culturais, pois implica o reconhecimento de uma lgica prpria da produo simblica", cabe reconhecer queele o faz s custas de uma hermenutica redutora que elimina o pluralismo coerente do smbolo.
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analtica em detrimento, quase uma anulao, da razo dialtica"28, quanto supremacia do
momento sincrnico. Tornava-se necessrio encontrar, na histria dos contatos entre
sociedades e na prpria histria da disciplina, os limites e as eficcias do ato interpretativo na
construo do conhecimento antropolgico29.
Se no pensamento estruturalista tem-se "uma codificao de leis regulares"30pela via
do sujeito do Cogito, no paradigma interpretativista, o ato de conhecer realizado pelo
antroplogo depende da capacidade de interrogar-se sobre o poder de auto-designar-se face
alteridade do outro.
A proposta interpretativa, em que a figura de Clifford Geertz paradigmtica, valoriza
a experincia etnogrfica e o trabalho artesanal das etnografias (essas so fices no sentido
de "algo feito", "algo construdo"31).
No contexto desta tradio, o encontro etnogrfico relaciona-se tanto ao contexto do
encontro histrico em si, quanto construo da narrativa, uma vez que o sentido que
proporciona um entendimento sobre o mundo, e a racionalidade apenas uma expresso desse
entendimento. A racionalidade, tambm ela, est mesmo inserida dentro de um ponto de vista.
Assim, s h racionalidade se houver sentido32.
Estudar a cultura , portanto, estudar um cdigo de smbolos partilhados pelos
membros dessa cultura"33 interpret-lo e no decodific-lo, como prope Lvi-Straus, numa
"tentativa no de exaltar a diversidade, mas de tom-la seriamente em si mesma, como um
objeto de descrio analtica e de reflexo interpretativa"34.
Aproximando as dimenses sensveis e inteligveis do processo de construo de
conhecimento, o paradigma interpretativista abdica de uma prtica positivista, j que o
mtodo etnogrfico encerra-se no prprio ato de traduo35. Entretanto, permanece ainda
presa armadilha das filosofias da conscincia, uma vez que preconiza que o mtier do
antroplogo se centra no ato de "transformao da histria exteriorizada e objetivada em
historicidade, viva e vivenciada nas conscincias dos homens e, por certo, do antroplogo"36.Chega-se, aqui, finalmente questo epistemolgica do abandono de uma reflexo
mais criteriosa da dmarche simblica que configura o mtodo etnogrfico, a favor da
28CARDOSO DE OLIVEIRA. 1983. p. 197.29CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988.30AZZAN JUNIOR. 1993. p. 22.31AZZAN JUNIOR. 1993.32AZZAN JUNIOR. 1993. p. 16-17.33LARAIA. 1989 p. 64.34
GEERTZ Apud. CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988. p. 15.35CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988. p. 97.36CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988. p. 97.
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supremacia da vontade subjetiva de sua unificao formal por parte do antroplogo. Um
problema de considerao inevitvel para qualquer investigao etnogrfica que se pretenda
consistente com a atualidade da Antropologia nos quadros do pensamento humanista
contemporneo37.
Conquista-se "a realizao de anlises que levam conjuntamente em considerao ao
e representao no contexto de circunstncias especficas que se desenvolvem atravs do
tempo"38 ainda que num esforo de supresso dos contrrios, dos antagonismos e das
alteridades que interpelam constantemente o mtier do antroplogo, segundo o princpio do
tiers exclu.
Finalmente, seja a polmica da objetividade/subjetividade, seja a controvrsia do
relativismo/etnocentrismo em Antropologia, ambas sucumbem tentao "dialtica" de
excluso, tanto no ato de compreenso do paradoxo que subjaz s aes/intenes humanas
quanto na forma como a se coloca o sujeito cognoscente do investigador nos termos de um
princpio da no-dualidade lgica entre as ordens sensvel e inteligvel do conhecimento.
A posio interpretativa do antroplogo em relao a seu "objeto" de estudo reside no
s na aceitao da co-naturalidade de ambos; sendo "sujeito" humano como ele, o
antroplogo encontra-se, ele prprio, assujeitado em seus atos de conscincia, atravs da
linguagem, s formas simblicas que presidem suas funes cognitivas. Ou seja, s diversas
vias que o esprito humano segue em seu processo de objetivao no mundo.
Foi para sair do impasse de um esprito a priorique reina soberano sobre as formas de
arranjo da vida social, em que o indivduo se sente presa da armadilha da "natureza humana",
no processo de equilibrao entre inteligncia individual e vida coletiva, que a pistm
Ocidental construiu operaes mentais mais complexas a partir da mxima de um
sociomorfismo: " necessrio explicar o homem pela humanidade e no a humanidade pelo
homem".
O mtierdo antroplogo deriva-se, assim, deste processo antropossociopsicogenticodas representaes racionais no Ocidente moderno. Segue-se a idia de que certas formas de
pensamento humano so o reflexo das preocupaes coletivas do grupo a que pertencem,
chegando muitas vezes radicalidade da afirmao de que "no a conscincia do homem
que determina sua forma de ser, seno sua forma de ser social que determina sua
37CARDOSO DE OLIVEIRA. 1988.38FELDMAN-BIANCO. 1987. p. 11.
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conscincia"39.
Para alm da importncia de se discutir o contexto em que se d o processo de
construo etnogrfica, as determinaes polticas, histricas e conjunturais da construo do
enunciado e a avaliao da apreenso terica feita pelo pesquisador40, o que hoje deve ser
ponderado pelas cincias humanas o fato de que o conhecimento humano, em sua
pluralidade, segue todo um outro percurso que no o da causalidade finalista e fatalista da
formulao de ordens complexas de estruturao do conhecimento41.
De acordo com tais formulaes, todo o conhecimento (mesmo o produzido
pelo antroplogo em torno da sua identidade pessoal na Antropologia) o conhecimento
transcendente de uma totalidade na qual cada coisa se situa em relao unidade do
conjunto, numa rede de correspondncias e similitudes simblicas cuja causalidade no
se reduz a conexes de coisas a sries infinitas e simples. Isto em razo de que a funo
simblica que preside as operaes cognitivas essencialmente funo eufmica,
obedecendo a um dinamismo prospectivo a partir do qual o homem tende a organizar as
suas formas ordinrias de conhecimento do e no mundo e a subsidiar at mesmo suas
operaes lgico-formais.
O mtodo etnogrfico e a prtica do "si-mesmo como um outro"
Como sugere Peirano, "somente a incluso de um questionamento num contexto
terico mais amplo poderia, em ltima instncia, abrir espao para um dilogo maior entre os
praticantes da disciplina. Este tipo de dilogo implicaria combinar os problemas do encontro
etnogrfico, a construo de etnografias e a reflexo terico-sociolgica"42.
Na atualidade, os antroplogos esto atentos aos limites do mtodo etnogrfico,
embora continuem reconhecendo sua eficcia metodolgica como instrumento-chave na
formao de competncias em Antropologia. Apreende-se, pela investigao etnogrfica, a
relao entre ao e representao, "desse modo, a prtica social adquire forma e sentido, masno estritamente determinada, admitindo-se todo um espao de arbtrio, criatividade,
improvisao e transformao"43.
39 Esta expresso oriunda dos postulados de um construtivismo ps-piagetiano que incorpora sociopsicognese do processo cognitivo tanto as vises de homem que o sustentam quanto o trajeto arqueolgicoque d suporte ao nascimento da figura homo sapiens sapiens. Ver a respeito, ROCHA. 1993.40Ver CALDEIRA. 1988.41 Ver a respeito E. CASSIRER, 1972, obra que poderamos fazer interlocutar tanto com PIAGET. 1970, S.
VIGOTSKY, 1995 e H. WALLON, 1945 quanto com C. LEVI-STRAUSS, 1970 e LVY-BRHL 1925.42PEIRANO.1985. p. 262.43DURHAN. 1984.
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No se trata, pois, de destruir uma ordem cientfica estabelecida, mas "desconstruir"44
a ordem para melhor avaliar nossos papis na construo de uma temporalidade mais
humanitria.
Segundo se afirma, freqentemente, as interpretaes nascem no processo da
investigao antropolgica, que produto, a um s tempo, do tema objetivado pelo
pesquisador e do encontro de duas subjetividades. Pesquisador e sujeitos pesquisados
vivenciam, no tempo de durao do trabalho de campo, uma espcie de jogos de interaes e
de negociao de interesses, onde informaes so trocadas assim como afetividades,
angstias, tenses, frustraes etc.
O dinamismo do mtodo etnogrfico se afirma, assim, como frmula metodolgica
coerente quando se detalha o esquema espao-temporal da constituio da pessoa do
antroplogo na "operacionalizao" do entendimento dos "conjuntos de significados" que lhe
foram transmitidos e desenvolvidos. E onde sua "ao humana", face s propriedades dos
grupos/indivduos observados, entidades diretamente localizveis, " mediada por um projeto
cultural no contexto das complexidades dos processos sociais"45.
Dizer, portanto, que os dados etnogrficos recolhidos pelo antroplogo em campo e
sua conseqente "descrio densa" nascem de uma relao intersubjetiva e dialgica colocar
nfase no carter reflexivo que encerra o conhecimento antropolgico, mas no o bastante
para o caso que se pretende estudar aqui.
Trata-se de ir mais alm e pontuar, neste processo, o que est verdadeiramente em
jogo, ou seja, o ato de configurao e reconfigurao do tempo que encerra a ao
interpretativa em Antropologia.
Encoberto sob o vu do relativismo/etnocentrismo em Antropologia, o que est em
jogo, entretanto, o fato de que so as convergncias e divergncias inesperadas entre os
dados recolhidos em campo e as expectativas/intenes do pesquisador ali situado, a lhe
exigir uma submisso a um princpio formal de composio para os mesmos, que confrontamo antroplogo a sua identidade pessoal. No bojo do tema do relativismo/etnocetrismo
encontra-se o problema tico-moral da busca da coerncia interna de sua produo etnogrfica
que nada mais do que o esforo da ao reflexiva do seu sujeito cognoscente face
descontinuidade de um tempo vivido rememorado e a seu compromisso com a manuteno
do si.
Atravs da composio narrativa que retoma o tempo da ao "em campo", o
44DERRIDA apud MARCUS. 1986.45FELDMAN-BIANCO. 1987. p. 11.
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antroplogo faz coincidir as redes de relaes nas quais os atores/comunidades se
movimentaram com as que registrou em seu dirio de campo, numa referncia s negociaes
cotidianas do sentimento de pertencimento ou excluso (negao voluntria ou excluso
involuntria), onde todos os elementos do conjunto esto numa relao de intersignificao.
Antes de ser texto, o mtodo etnogrfico fornece o contexto de descrio,
considerando a mediao simblica, indutora de narrativa, a envolvida nos termos da sua
legibilidade na textura da ao antes mesmo de ser submetida interpretao.
Agenciando fatos, situaes, acontecimentos, personagens e seus dramas num todo
ordenado (para alm de uma lgica acrnica ou cronolgica), o antroplogo emprega os
recursos da configurao narrativa, busca re-presentar a ao. Para tanto, realiza uma
atividade de configurao, que faz do mtodo etnogrfico uma soluo potica para os
paradoxos de considerar junto, numa totalidade coerente, os episdios vividos e registrados
em campo, rumo a uma fenomenologia da conscincia temporal de si, que fundante para
compreender seus atos de interpretao.
Neste plano, reconhece-se que no mais pode haver confuso entre a propriedade da
enunciao narrativa do antroplogo, e suas marcas especficas de interpretao, e o
enunciado das coisas contadas. Entre ambos emerge a compreenso do mtodo etnogrfico
comopoesis ao transformar acontecimentos emhistria 46. A riqueza do mtodo etnogrfico
reside, justamente, nesta tenso entre diversas modalidades simblicas do controle do tempo
que configuram a mediao narrativa: a vivncia e a escritura que se desdobram na distenso
temporal do si.
No h ambio racionalista que d conta do fenmeno paradoxal que preside o
mtodo etnogrfico. Nenhuma garantia que o antroplogo possa, no campo e na escritura de
sua obra, descronologizar sua experincia reflexiva, a um s tempo, subjetivao e
objetivao do ser, alterao e distoro de si.
No h ambio racionalista que d conta do fenmeno paradoxal que preside omtodo etnogrfico. Nenhuma garantia que o antroplogo possa, no campo e na escritura de
sua obra, descronologizar sua experincia reflexiva, a um s tempo, subjetivao e
objetivao do ser, alterao e distoro de si.
O mtodo etnogrfico permanece vigoroso, portanto, mesmo quando adota um estilo
de narrativa realista, uma vez que sempre deixa-se captar pelo abismo dos fluxos de
46
Traslada-se, sem muita sofisticao, as consideraes de P. RICOEUR, 1994. Vol II, a respeito da mimese I emimese II no plano da anlise do mtodo etnogrfico.
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conscincia do antroplogo. Em seus jogos de composio configuradora da etnografia, o
antroplogopermanece assujeitado pela poesis que encerra a funo simblica da
conscincia, onde o ser se d a conhecer.
Pela nfase na reconstruo dos sistemas de valores, ethos, formas de vida social,
mitos, rituais e crenas sobre os quais o mtodo etnogrfico se objetiva, o antroplogo no
pode prescindir da inteligncia narrativa que suporta seu ato de conhecimento.
A compreenso da narrativa , pois, significativa na formao de competncias em
Antropologia na medida em que ela esboa os traos da experincia temporal humana,
exigindo do etngrafo o domnio dos procedimentos de interpretao da ao semntica que o
preside.
Neste ponto h que se considerar um dos problemas das aprendizagens do mtierdoantroplogo, precisamente, saber inscrever a dialtica do si na configurao47da seqncia
dos acontecimentos contingentes observados em campo, numa ordem compreensiva do
mundo das aes humanas, onde a linguagem lanada fora de si mesma, por sua
veemncia ontolgica, uma vez que atravs dela que a coerncia interna de sua obra
conjuga a experincia temporal de seu ato interpretativo.
O declnio do mtodo etnogrfico? Do estar l ao eu estou aqui
No contexto destes comentrios, cabe aqui resgatar tambm a posio epistemolgica
advogada pelos ps-modernos48, segundo a qual a intersubjetividade concretizada na
experincia de campo reflete uma nova dimenso comparativa em Antropologia, atravs da
preocupao com um "ns". Esse ns se refere a uma crise da ipseidade na conformao da
identidade pessoal do antroplogo, onde se pensa a sua alteridade nos termos da uma
condio imutvel no tempo, sendo que o texto etnogrfico recobriria, em sua composio
formal, a ao etnogrfica experienciada em campo.
Trata-se, agora, de replicar o real vivido, copiando-o no corpo da escritura do textoetnogrfico. Nos termos da crtica de Paul Ricoeur teoria da narrativa, vendo reforar-se
mutuamente uma semitica do agente (actant) e uma semitica dos percursos narrativos, at o
47 Segundo P. RICOEUR, 1991, p.169: Aplico o termo configurao a essa arte de composio que fazmediao entre concordncia e discordncia.48Localiza -se a oficializao desse movimento no Seminrio realizado em Santa F, Novo Mxico, em 1984,do qual participaram, entre outros, James CLIFFORD, Mary L. PRATT, Vincent CRAPANZANO, Renato
ROSALDO, Stephen TYLER, Talal ASAD, George MARCUS, Michael FISCHER, Paul RABINOW etc. Entreeles, George MARCUS e Michel FISHER defendem a disciplina como crtica cultural.
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ponto em que aparecem como percurso do personagem49, visto aqui como a figura do
antroplogo. O mtodo etnogrfico dissolve-se, assim, no movimento da conscincia dos
personagens da ao relatada, at mesmo no ato de aniquilamento dos mesmos, em prol da
etnografia posta a servio da no-narratividade da identidade pessoal do antroplogo.
Na assertiva de que a Antropologia "no se desenvolve como perspectiva terica, mas
como resultado poltico da pesquisa"50 e na crtica ao formalismo do gnero realista que
contamina esta matriz disciplinar, os ps-modernos investem na desconstruo de seus
paradigmas pela crtica inconsistncia de sua escritura, em que o lugar autoral do etngrafo
encontra-se freqentemente encoberto tanto quanto suas intenes polticas veladas.
Talvez se possa aqui parafrasear Paul Ricoeur, afirmando-se que os ps-modernos,
confrontados ao carter dialgico da experincia etnogrfica51e em sua "vigilncia formal",
ao submeterem crtica a escritura etnogrfica em Antropologia, permanecem parasitrios da
motivao realista que a engendra. Tal realismo se dissimula, agora, sob a observao
impessoal do encadeamento da totalidade das vidas humanas que estuda na escritura do texto
etnogrfico, provocando uma crise interna ipseidade, pela eliminao da totalidade da
obra etnogrfica em prol da factualidade do acontecimento.
Desvendando, com os ps-modernos a justo ttulo, o carter ficcional da narrativa
etnogrfica, o argumento da verossimilhana foi deslocado da intriga que engendra a narrao
etnogrfica para os personagens da ao que a conduzem: o antroplogo e a comunidade
pesquisada.
Poder-se-ia dizer, sem equvocos, que os ps-modernos, ao final do percurso, no
sentido de explicitar a inteno representativa que motivava a conveno do gnero realista
em Antropologia, sucumbem ao esforo de libertar-se de qualquer paradigma ao criticarem as
condies formais que criam a iluso de proximidade do antroplogo com seus "objetos" de
estudo52pela neutralizao da questo da ipseidade at a sua crise.
Num ato de desapossamento do si e de decomposio da forma narrativa, os ps-modernos transpem os seus limites pelo tratamento impessoal dado a ela, eximindo o
antroplogo da responsabilidade da manuteno do si que est na origem das razes de suas
escolhas e julgamentos segundo os quais constri sua escrita etnogrfica.
49RICOEUR. 1994.50PEIRANO. 1985. p. 261.51 Embora no seja inteno deste artigo, valeria a pena confrontar a produo torico-conceitual dos ps-modernos com a crtica feita por G. DURAND, 1993, a respeito da insistncia, em Antropologia, em seconfundir smbolo e signo no momento em que a produo escrita se pretende uma estrutura discursiva
autnoma.52Impossvel no aproximar os comentrios que faz P. RICOEUR. 1994, p. 16-25, ao romance moderno e scrticas dos ps-modernos dirigida ao gnero realista em Antropologia.
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Para a Antropologia dita ps-moderna, no se trata apenas de "ler" e "traduzir" um
corpus estvel de smbolos e significados, como nos sugere Lvi-Strauss, ou interpretar as
interpretaes, segundo Geertz, "adere-se agora a uma definio de cultura temporal e
emergente, na qual os cdigos e representaes so suscetveis de serem semprecontestados"53.
Na expulso das convenes realistas, a hermenutica do si abandonada, entre os
ps- modernos, em proveito de uma reflexo sobre as condies formais de uma
representao verdica do real. Confunde-se o ato de construo da verossimilhana com o de
"representao"; ignora-se aqui o desdobramento epistemolgico que subjaz no ato de
configurao de uma descrio etnogrfica.
Poder-se-ia pensar que a questo da ipseidade foi por princpio eliminada dosjulgamentos dos ps-modernos a respeito da identidade pessoal do antroplogo. Ironias
parte, os ps-modernos explicitam, mais que o gnero realista, o plano da verossimilhana na
escritura do texto antropolgico, uma vez que a busca do princpio da concordncia sobre a
discordncia que faz parte, mais uma vez, da condio da inteligibilidade do si-mesmo do
antroplogo que "no cessa de preceder e de justificar-se a si mesma"54.
Segundo alguns ps-modernos, na etnografia realista ou modernista, a construo de
uma etnografia segue trs quesitos fundamentais: espao, tempo e perspectiva ou voz. Trs
requisitos que do conta das estratgias para estabelecer a presena analtica do etngrafo na
produo de seu texto: o dilogo adequado de conceitos analticos (onde se privilegiam
autobiografias, que melhor permitem avaliar as experincias histricas "carregadas na
memria e que determinam a forma de movimentos sociais contemporneos"), a bifocalidade
e a justaposio crtica das possibilidades55.
O carter bifocal da pesquisa etnogrfica, "um carter que ressaltado pelo significado
modernista do real", conduziria, paradoxalmente, "a uma diversidade cada vez maior das
ligaes entre os fenmenos, antigamente concebidos como dspares e pertencendo a mundos
diferentes"56.
53DWYER, 1979 e CLIFFORD, 1986 Apud. M. PEIRANO. 1985.p. 254.54Cf. P. RICOEUR. 1994. Vol II, p. 45.55
MARCUS. 1986. p. 10, 11, 12 e 14.56MARCUS. 1986. p. 20.
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guisa de concluso
Em sua crtica exacerbada ao positivismo instrumental em Antropologia, os ps-
modernos realam a dimenso poltica que engendra a escritura do texto etnogrfico pelo vis
da crtica da ausncia do sujeito da enunciao. Com os ps-modernos pode-se ainda falar da
unidade narrativa da vida? Ou estaremos diante da "morte do mtodo etnogrfico"?
Certamente a resposta negativa, uma vez que os mltiplos sentidos dos termos
"autor" e "posio do autor", antes de eliminar o ato interpretativo em Antropologia, pem em
destaque a presena, no seu interior, de uma "exegese espiritual" 57que acompanha toda a
produo do conhecimento humano.
No entanto, presos s armadilhas do "pensamento de ocasio", os ps-modernos
concluem que na organizao da realidade social contempornea que se coloca a exigncia
de "um quadro de referncia diferente" para a produo antropolgica, sendo ela mesma "um
projeto de auto-identidade que ainda no se completou ou que talvez no seja possvel
completar"58.
Ausenta-se, na crtica, a razo da qual deriva a crtica cultura no pensamento dos
ps-modernos, uma referncia s heranas escolsticas do pensamento antropolgico que o
fazem herdeiro de uma viso do Ser oposta ao no-Ser, separando o eu e o mundo, o sujeito e
o objeto do conhecimento.
Por isso, vale lembrar aqui a obra que inspira este artigo, O si-mesmo como um outro,
e os comentrios que faz Paul Ricoeur sobre os traos da experincia temporal que separam
identidade-idem e a identidade-ipse na formulao da identidade pessoal, para o caso do
mtier do antroplogo e seus desdobramentos epistemolgicos na gerao do paradoxo que
encerra o mtodo etnogrfico: fazer convergir o tempo da ao e o tempo da narrao.
A "falha secreta" do pensamento antropolgico contemporneo, inclusive dos ps-
modernos, talvez resida no enfoque moral mais do que tico do mtodo etnogrfico ao ignorar
a distncia que separa "a modstia da manuteno do si e o orgulho estico da inflexvelconstncia a si", que s faz colocar o antroplogo na humilde situao de um autor em busca
de seus personagens para melhor compreender seu lugar no mundo.
57
Cf. expresso cunhada por G. DURAND. 1979.58MARCUS. 1986.
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Ttulo em portugus
A interioridade da experincia temporal do antroplogo como condio da produo
etnogrfica.
Ttulo em ingls
The interiority of the temporal experience of the anthropologist like the condition of the
ethnographic production.
RESUMO
Este artigo traz uma reflexo sobre o mtodo etnogrfico enquanto encapsulando o tema da
identidade narrativa do antroplogo, em especial, enfocando o problema tico-moral da busca
da coerncia interna de sua produo etnogrfica atravs da anlise do processo de
construo do conhecimento antropolgico. Trata-se de pontuar, neste processo, o que est
verdadeiramente em jogo, ou seja, o ato de configurao e reconfigurao do tempo que
encerra a ao interpretativa em Antropologia.
ABSTRACT
This article brings a reflections about the ethnographic method while encapsulating the
identity theme describes by the anthropologist, in special, focusing the moral-ethic problem of
the searching of the internal coherence of its ethnographic production through the study of the
process of the anthropologic knowledge construction. It is to point, in this process, that is
really in the play, or, the act of configuration and reconfiguration of time that stops the
interpretative action in anthropology.
PALAVRAS CHAVES EM PORTUGUS
Mtodo etnogrfico, etnografia e narrativa, pesquisa antropolgica
PALAVRAS CHAVES EM INGLS
ethnographic method, ethnographic narrative, anthropologic research
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