Documento para su presentación en el VIII Congreso ... · Agradecimentos do autor à instituição...
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Planificación Urbana, Arreglo Institucional y Participación Ciudadana –
España y Brasil en perspectiva comparada
Documento para su presentación en el VIII Congreso Internacional en Gobierno,
Administración y Políticas Públicas GIGAPP. (Madrid, España) del 25 al 28 de
septiembre de 2017.
Autor: Goulart, Jefferson
Email: [email protected]
Resumen: La participación en la formulación e implantación de políticas públicas
remite a la teoría democrática, aquí abordado en los límites de sus enunciados
normativos y de sus normas en la España contemporánea. El marco institucional de la
participación política en la planificación urbana es identificado en los principios
constitucionales y en la Ley de Suelo, en los que se constata un bajo grado de
institucionalización de preceptos participativos. Al final, algunos apuntes comparativos
con el caso brasileño, en el que rige un alto grado de exigencias participativas en la
concepción y ejecución de la política urbana.
Abstract: The participation in the formulation and implementation of public policies
refers to the democratic theory, here dealt with in the limits of its normative statements
and its norms in contemporary Spain. The institutional framework of political
participation in urban planning is identified in the constitutional principles and in the
Ley de Suelo, in which there is a low degree of institutionalization of participatory
precepts. In the end, some comparative notes with the Brazilian case, which governs a
high degree of participatory demands in the conception and execution of urban policy.
Palabras clave: Planificación urbana; participación ciudadana; España; Planes de
Ordenación Urbana; Política Urbana.
Nota biográfica: Doctor en Ciencia Política por la Universidade de São Paulo (USP)
con posdoctorado en Sociología Urbana por la Universidad Complutense de Madrid
(UCM), profesor de la Universidade Estadual Paulista (UNESP) e investigador del
Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec); Brasil.
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Introdução: democracia, participação cidadã e planejamento urbano1
O modelo de democracia que se consolidou na Europa ocidental na segunda
metade do último século, no pós-guerra, e que se espraiou alhures consagrou a
interpretação schumpeteriana segundo a qual sistemas democráticos equivalem à
escolha de minorias que detêm autoridade para tomar decisões em nome da maioria do
povo. Nessa acepção, o poder popular é limitado à formação dos governos, pois as
minorias legítimas são efetivamente os tomadores de decisões vinculatórias para todos
(Schumpeter, 1984; Miguel, 2005).
A justificação do conceito certamente é mais complexa – envolve múltiplas
exigências, principalmente: liberdades individuais e coletivas, direito à contestação,
instituições políticas sólidas, regras do jogo estáveis, acesso minimamente igualitário a
recursos de poder materiais e imateriais, eleições periódicas, expectativa de alternância
no exercício do poder, imposição de limitações ao governo –, mas seu fundamento
primário é inequívoco quanto ao caráter procedimental da democracia. A essa
concepção de democracia como método decisório a literatura atribuiu a nomenclatura de
modelo liberal-pluralista.
Para os países latino-americanos que restabeleceram sistemas politicamente
democráticos, O’Donnell (1998) acrescenta que a cidadania se revela truncada em razão
de cenários de extrema pobreza e desigualdade social, aos quais, para efeito de análise
do regime político, deveriam ser acrescentadas as variáveis da fragilidade dos direitos
civis e de uma accountability fraca. Para este autor, no caso da América Latina, “um
componente ‘politicista’, ou baseado unicamente no regime, é necessário mas
insuficiente para uma definição adequada de democracia” (O’Donnell, 1998: 39).
As democracias que se consolidaram historicamente, contudo, seriam
basicamente governos representativos, cujas transformações ainda não foram suficientes
para assegurar autênticos “governos do povo”, ou seja, “o governo representativo não
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Este texto apresenta resultados parciais de pesquisa pós-doutoral realizada no Departamento de
Sociología II (Ecología Humana y Población) da Universidad Complutense de Madrid (UCM), Espanha,
desenvolvida entre 2015 e 2016, com Bolsa de Pesquisa no Exterior concedida pela Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Agradecimentos do autor à instituição financiadora e ao
supervisor, Luis Cortés Alcalá (UCM).
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foi concebido como um tipo particular de democracia, mas como um sistema político
original baseado em princípios distintos daqueles que organizam a democracia” (Manin,
1995: 34).
Afora seu afastamento de qualquer aspiração valorativa de conteúdo –
democracia literalmente como “governo do povo”, como sistema de igualdade em
sentido amplo ou ainda como dispositivo de participação popular em decisões de
interesse público –, pode-se dizer sinteticamente que as principais contestações ao
conceito liberal-pluralista de democracia são de duas ordens: (i) de um lado, a radical
apartação entre as esferas política e social, o que remete o estatuto de igualdade política
a um alto grau de abstração porque ignora as inequidades no exercício de direitos civis e
as desigualdades socioeconômicas próprias de sociedades capitalistas, ou seja, o
princípio liberal de que todos são iguais perante a lei e o Estado tem caráter meramente
normativo e sua verificação empírica não resiste aos fatos; (ii) e, de outro, pela “redução
da política a um processo de escolha, no qual, por uma premissa metodológica,
considera-se que todos os cidadãos são guiados por um ‘entendimento esclarecido de
seus interesses’... uma agregação mecânica de preferências preexistentes” (Miguel,
2005: 12). Abstraída qualquer pretensão substantiva, importam basicamente as formas
através das quais a democracia se realiza porque suas exigências centrais são a
legitimidade e a representação. Enfim, na verdade temos governos representativos, os
quais chamamos de “democracias”.
Em que pesem todos os senões a esse sistema político em que a participação do
povo se limita basicamente à eleição de governantes, nem mesmo essa modalidade de
democracia vigorou na Espanha durante o largo período do regime autoritário
conduzido pelo franquismo. Somente no final da década de 1970 e a partir do decênio
seguinte se afirma o processo de democratização do país, com um ingrediente
profundamente inovador, a saber, a emergência de movimentos citadinos de larga
influência societária e política. A rigor, foram expressões que precederam e influíram
decisivamente no restabelecimento democrático e, por isso mesmo, a transição
correspondente (de um regime autoritário para uma democracia) não se resumiu à
dimensão estritamente institucional, como parte da literatura politológica interpretou
esses processos (Linz; Stepan, 1996).
4
O caso madrilenho é paradigmático a esse respeito. Na capital do país,
proliferaram múltiplos movimentos nas décadas de 1970-1980 que envolviam
associações de vizinhos, aposentados e de donas de casa, organizações comunitárias
juvenis, de mulheres e de consumidores, entidades cívicas e muitas outras.2 Esses e
outros movimentos ganharam notabilidade em um contexto de crise urbana, pela
“experiência própria dos habitantes das grandes cidades que provém da crescente
incapacidade da organização social capitalista para assegurar a produção, distribuição e
gestão dos meios de consumo coletivo necessários à vida cotidiana” (Castells, 1980:
20). As demandas desses movimentos citadinos eram de dois tipos: em primeiro lugar,
de conteúdo, no sentido de reivindicarem ações distributivas e políticas públicas sociais
(habitação, educação, saúde, transportes etc.) capazes de partilhar minimamente a
riqueza social e de elevar a qualidade de vida dessas populações; em segundo lugar, não
menos importante, eram reivindicações de forma decisória, no sentido de tornar mais
acessíveis e participativas as decisões relativas às suas reivindicações, em suma,
democratização.
As décadas que se seguiram à democratização mudaram a fisionomia
sociopolítica espanhola – marcada pela intensa urbanização e metropolização, pela
terceirização da economia e crise do padrão fordista de produção, pela primazia do eixo
econômico na agenda urbana e acentuada especulação imobiliária (Costa et al., 2013),
além da estabilização do sistema político3 –, todavia, a exigência da participação
societária nas decisões públicas permaneceu na agenda do país, ainda que essa evolução
registre, de um lado, certo arrefecimento da vitalidade original daqueles movimentos e,
de outro, algum nível de institucionalização dessas experiências com o estabelecimento
de “concejalías de participación ciudadana”.4 Participação cidadã, portanto, significava
e continuou significando o alargamento dos espaços decisórios de políticas públicas
2 Sobre a experiência participativa do Plan General de Madrid de 1985, ver Salgado (2011).
3 Até 2015 o cenário espanhol foi um modelo bipolar em que o poder era alternado entre o Partido
Popular (PP) e o Partido Socialista Obrero Español (PSOE), cujos resultados eleitorais eram suficientes
para produzir maiorias parlamentares. A partir das eleições de dezembro de 2015 esse quadro foi alterado
com a ascensão de dois novos partidos políticos relevantes: Podemos (à esquerda), que se tornou a
terceira força política do país, e Ciudadanos (à direita). Para uma análise do cenário político atual, ver
Goulart (2016). Sobre a expressão e os dilemas contemporâneos de Podemos, ver Maass (2017).
4 Sobre o tema, ver especialmente: Alguacil (2006); Echalecu Castaño (2001); Iglesias (2011); Martí-
Costa; Pybus (2013); Parés (2010); Salgado (2011).
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para além da representação e do sufrágio, movendo-se necessariamente da sociedade
civil em direção a outra arena: rumo ao Estado e às suas instituições.
Em termos minimalistas, “la participación ciudadana se entende, en gobernanza,
como implicación de la ciudadania en el desarrollo de la ciudad en tanto que espacio de
responsabilidad compartida” (Esteve; Gorgorió, s/d: 157), ou seja, participação cidadã
representa o processo de envolvimento dos diversos segmentos societários por meio de
entidades e organizações sociais com os objetivos de tomar ciência de seus interesses,
desafios e necessidades e de tomar parte de processos decisórios de políticas públicas
que lhes dizem respeito. Gobernanza seria, pois, a materialização desse
compartilhamento decisório e a forma objetiva de participação dos cidadãos.
Diferentemente do passado recente, quando os movimentos sociais citadinos
aspiravam construir espaços para serem ouvidos e atendidos, “ahora la participación es
um valor en sí misma del que depende la legitimidade del poder local” (De La Fuente,
2010: 94). Trata-se de uma mudança crucial à medida que as ideias de transparência e
accountability passaram a integrar o repertório da administração pública quase que de
forma imperativa, mesmo que essa exigência seja meramente retórica em boa parte das
vezes.
Consolidada institucionalmente a democracia e em meio às diversas
transformações socioeconômicas e urbanísticas que caracterizam o último período,
Martí e Bonet (2008) identificam seis modalidades de movimentos urbanos
contemporâneos, a saber: 1) aqueles relacionados à provisão e ao acesso à moradia e aos
serviços urbanos; 2) outros distinguidos pela defesa mais geral da comunidade; 3)
alguns que contestam as novas políticas de desenvolvimento urbano baseadas nos
grandes eventos, os quais produzem invariavelmente algum tipo de gentrification; 4)
associações e grupos que gerem serviços e programas comunitários; 5) movimentos de
excluídos (pobres, marginalizados, imigrantes); 6) e os protestos urbanos glocalizados
(de escala local, porém com agenda de alcance global). Não obstante as especificidades
sociais, identitárias e de agenda pública e/ou setorial que distinguem cada um desses
movimentos, todos se definem basicamente como “una red interactiva de individuos,
grupos y organizaciones que dirigen sus demandas a la sociedad civil y a las autoridades
e intervienen con cierta continuidade en la politización del espacio urbano” (Martí;
Bonet, 2008: 6), e cada qual tem formas participativas mais ou menos convencionais e
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diferentes estruturas de oportunidades políticas tanto para se organizar e mobilizar suas
bases sociais quanto para pressionar e penetrar no sistema político na perspectiva de
verem atendidas suas demandas. Nesse cenário, ressurgem os movimentos urbanos
“como consecuencia de las oportunidades que se abren ante: 1) la emergencia de la
gobernanza, 2) el cuestionamiento creciente de los límites de la democracia
representativa, y 3) la trasformación de las ciudades, que sitúa de nuevo a lo urbano en
el centro de las preocupaciones de la ciudadanía” (Telleria; Ahedo, 2016: 105 – sem
destaque no original). Pois é essa tripla confluência de fatores que permite aos
movimentos citadinos se apropriarem de metodologias participativas comunitárias para
dotar de conteúdo suas orientações e ações mobilizadoras.
Transpor os contornos da representação se mantém como o desafio principal dos
movimentos urbanos. Tais observações sobre seus perfis contemporâneos não autorizam
visões pessimistas e tampouco otimistas sobre sua capacidade de mobilização, mas
permitem observar que estes identificam os limites da democracia representativa como
obstáculo à conquista de suas demandas inclusivas. As brechas participativas e
decisórias que se abrem (materializadas nas formas de referendos, consultas públicas,
decisões concertadas com associações civis etc.) resultam da própria capacidade de
organização societária para inserir suas demandas na agenda pública, das normas
vigentes e das frestas consentidas pelos atores institucionais, ou seja, seria um equívoco
interpretar essa relação efetivamente dialética e dialógica como se fosse constituída de
dois polos antagônicos e estanques: uma sociedade civil supostamente benfazeja e
universalista na difusão de direitos e incentivos e um Estado supostamente homogêneo
e impermeável e refratário a qualquer fórmula democratizante. Há, com efeito, ambos
os ingredientes, mas seria um grave engano metodológico e interpretativo desconsiderar
a dimensão política da interação entre esses polos e ignorar as muitas diferenças que
marcam tanto as distintas orientações político-ideológicas dos governos quanto dos
movimentos urbanos. Governos e políticas importam, e fazem diferença.
O sentido comum desses movimentos permanece sendo o de aprofundar e
aprimorar as fórmulas de gestão urbana em perspectiva democratizante, de modo a
corrigir ou no mínimo atenuar o déficit democrático das instituições representativas.
Processos participativos seriam a chave dessas “novas” modalidades decisórias,
entendidas como a ampliação dos foros nos quais são decididas políticas públicas
mediante amplo envolvimento dos cidadãos (e de suas formas associativas) e decisões
7
compartilhadas por meio de consultas prévias. A nomenclatura pode variar bastante,
mas tais correntes são geralmente identificadas nas expressões “democracia
participativa” e/ou “democracia deliberativa”.5
Seja qual for o modelo idealizado para democratizar o governo representativo,
estão em curso mudanças importantes nas características e na expressão contemporânea
dos movimentos societários. Assim, “los movimientos urbanos están adaptándose a los
cambios en las ciudades, los modos de gobierno y la acción colectiva, aprovechando las
oportunidades que se abren con la gobernanza” (Telleria; Ahedo, 2016: 109). Tais
movimentos têm suporte nos ideários da democracia participativa e da democracia
deliberativa e se traduzem em expressões organizativas originais, mais horizontais,
cujas ações se orientam no sentido do “refortalecimiento de la sociedad civil, así como a
una estrategia de influencia que pretende aumentar su incidência en la gestión
democrática de las ciudades” (Idem).
Isso não significa, porém, tratar a participação de forma quase mítica, como se
esta estivesse imune às imperfeições que caracterizam qualquer invento humano e,
como “remédio milagroso”, tivesse a virtude mágica de solucionar todas as injustiças e
desigualdades que permeiam as configurações social e urbana. Nesse sentido, alguma
dose de ceticismo e distanciamento crítico são ingredientes altamente desejáveis, senão
obrigatórios, para abordar o problema. Ademais, é preciso reconhecer que “el éxito de
su acceso depende de los recursos que son capaces de movilizar, de su capacidad
organizativa y de su aptitud para dominar el juego de interrelaciones con las autoridades
administrativas” (De La Fuente, 2010: 106). Ou seja, os resultados quantitativos e
qualitativos dos mecanismos participativos dependem da capacidade de organização
societária, da correspondente moldura institucional e da ação dos atores institucionais
(sobretudo dos governos, que detêm controle sobre normas e recursos), de sorte que “la
apertura de espacios para el debate, la consulta o la codecisión altera la lógica de la
representación mediante el reconocimiento por parte de las autoridades políticas de una
5 A literatura sobre as tipologias democráticas é bastante ampla e controversa. Aqui tomamos a ideia de
“democracia participativa” no sentido precursor de Pateman (1992), como uma modalidade que alarga os
foros decisórios em todos os níveis (escolas, fábricas etc.) e que contribuiria decisivamente para estimular
o interesse e o envolvimento do cidadão comum em todos os níveis da vida pública. Para a noção de
“democracia deliberativa”, a formulação teórica pioneira é de Habermas (1997), mas se pode pensá-la nos
termos de Chevallier como aquele tipo que “permite abrir el proceso decisional en dirección a la sociedad
civil, escuchar la voz de los ciudadanos (…), esforzándose por recoger diretamente el punto de vista de
los interesados”. Para uma sintaxe comparativa convincente dessas teorias, ver Miguel (2005).
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línea paralela de representación de intereses particulares a la que se le reconoce la
capacidad de intervenir en decisiones que afectan a la colectividad en su conjunto”
(Idem). Nesse sentido, ambas as partes (movimentos da sociedade civil e autoridades do
Estado) precisam reconhecer reciprocamente em seus interlocutores diferentes fontes de
legitimidade de poder, interação esta cuja resolução é altamente complexa porque não
só não há simetria nas prerrogativas de poder desses atores como situações de impasse
remetem as decisões ao âmbito institucional.
Estão bastante evidenciadas as “flaquezas e insuficiencias de una política
estrictamente institucional, que estabelece como únicos cauces de participación las vías
previstas da democracia representativa” (Blanco; Subirats, 2012: 7), de modo que a
ampliação de foros decisórios e a consolidação da gobernanza têm sido objetivos
constantes dos movimentos urbanos no propósito de alargar a participação cidadã.
Não obstante, vale a pena destacar que as disciplinas que abordam esse
fenômeno em suas múltiplas dimensões – notadamente a sociologia urbana e a ciência
política – ainda não produziram uma análise categórica dessas experiências, não raro
enaltecendo acriticamente seus princípios sem que a esse juízo de valor correspondam
estudos consistentes, e não é incomum que “las experiencias de democracia
participativa quedan envueltas em las nubes rosáceas del romanticismo, percibidas
como algo intrinsecamente positivo, sin pararnos a reflexionar objetivamente cuál ha
sido hasta ahora el balance de las mismas” (De La Rosa, 2014: 347).
O marco institucional da participação
Sumariados os termos conceituais do debate, cumpre agora elencar os
dispositivos institucionais da participação na Política Urbana, cujas normas se situam
basicamente em três fontes: na Constitución de España (CE), na legislação ordinária e
na Ley de Suelo.6
6 Há, ainda, as regras e dispositivos específicos dos Planes de Ordenación Urbana em sua tramitação
autonômica e/ou municipal, contudo, não é possível se reportar detalhadamente a tais ordenamentos para
cotejá-los em razão da amplitude do escopo. A utilização de tais fontes de dados implicaria outra
investigação comparada, o que foge ao escopo do presente estudo.
9
Os dispositivos constitucionais são genéricos e expressam mais princípios do
que regras detalhadas, a saber: os cidadãos podem exercer sua soberania e têm “derecho
a participar en los asuntos públicos, directamente o por medio de representantes” (Art.
23); o Estado é responsável pela promoção de condições igualitárias e assim
“corresponde a los poderes públicos promover las condiciones para que la libertad y la
igualdad del individuo y de los grupos en que se integra sean reales y efectivas; remover
los obstáculos que impidan o dificulten su plenitud y facilitar la participación de todos
los ciudadanos en la vida política, económica, cultural y social” (Art. 9.2); finalmente,
garante-se que “las decisiones políticas de especial trascendencia” podem “ser
sometidas a referéndum consultivo de todos los ciudadanos” (Art. 92.1), o qual deve ser
“convocado por el Rey, mediante propuesta del Presidente del Gobierno, previamente
autorizada por el Congreso de los Diputados” (Art. 92.2).
No plano infraconstitucional, a Ley Reguladora de las Bases del Régimen Local7
prevê a “creación de órganos territoriales de gestión desconcentrada “para facilitar la
participación ciudadana en la gestión de los asuntos locales” (Art. 24); na sequência, os
artigos 69 a 72 são dedicados à informação e participação cidadãs, prevendo “la más
amplia información sobre su actividad y la participación de los ciudadanos en la vida
local” (Art. 69) e que “todos los ciudadanos tienen derecho a obtener copias y
certificaciones acreditativas de los acuerdos de las corporaciones locales y sus
antecedentes, así como consultar los archivos y registros” (Art. 70.3); além disso, se
prevê consulta popular direta mediante convocação do Alcalde ratificada pelo Pleno e
devidamente autorizada pelo governo central: “someter a consulta popular aquellos
asuntos de la competencia propia municipal y de carácter local que sean de especial
relevância para los intereses de los vecinos, con excepción de los relativos a la Hacienda
local” (Art. 71).
Ainda no plano da regulação territorial, a Ley de Medidas para la
Modernización del Gobierno Local8
ratificou o papel das Juntas Municipales de
Distrito e dos Consejos Sectoriales, respectivamente, como órgãos territoriais
descentralizados e facilitadores da participação cidadã e de suas associações na agenda
7 Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/pdf/1985/BOE-A-1985-5392-consolidado.pdf>. Acesso em
28 jun. 2016.
8 Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/pdf/2003/BOE-A-2003-23103-consolidado.pdf>. Acesso
em 28 jun. 2016.
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municipal. Trata-se, pois, de um “aspecto cualitativamente definidor del modelo
participativo español, ya que se da un papel protagónico a la participación de base
asociativa en perjuicio de la participación del ciudadano individual y se fomenta su
intervención en los asuntos locales” (De La Fuente, 2010: 98).
O quadro institucional da participação é completado com a legislação específica
que trata da ordenação territorial e mais especificamente do planejamento urbano, a Ley
de Suelo.9 O tema aparece de forma difusa e relativamente dispersa, assim destacado:
[Como garantia da ordenação territorial e urbanística]: derecho a la
información de los ciudadanos y de las entidades representativas de
los intereses afectados por los procesos urbanísticos, así como la
participación ciudadana en la ordenación y gestión urbanísticas (Art.
4.2.c);
[Como direito do cidadão]: acceder a la información de que dispongan
las Administraciones Públicas sobre la ordenación del territorio, la
ordenación urbanística y su evaluación ambiental, así como obtener
copia o certificación de las disposiciones o actos administrativos
adoptados, en los términos dispuestos por su legislación reguladora”
(Art. 5.c) e “participar efectivamente en los procedimientos de
elaboración y aprobación de cualesquiera instrumentos de ordenación
del territorio o de ordenación y ejecución urbanísticas y de su
evaluación ambiental mediante la formulación de alegaciones,
observaciones, propuestas, reclamaciones y quejas y a obtener de la
Administración una respuesta motivada, conforme a la legislación
reguladora del régimen jurídico de dicha Administración y del
procedimiento de que se trate (Art. 5.e);
Esse conjunto de enunciados, com efeito, consagra o princípio geral do direito à
informação e fortalece a ideia de participação dos cidadãos nas decisões públicas, mas a
rigor não desenvolve detalhamento sobre como se realizariam. São declarações
normativas. Com base nesse arcabouço, temos um cenário de baixa institucionalização
participativa e de alta dependência dos governos autonômicos e municipais na
concepção e execução de políticas urbanas e de planos urbanísticos, pois a estes
compete regulamentar e efetivar as instituições participativas. A participação, portanto,
não é propriamente uma política de Estado, ainda que possa ser incorporada e praticada
em diversos processos localizados de elaboração e implantação de Planes de
9 Disponível em: <https://www.boe.es/boe/dias/2015/10/31/pdfs/BOE-A-2015-11723.pdf>. Acesso em 28
jun. 2016.
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Ordenación Urbana. Assim, o planejamento urbano em geral e os planos urbanísticos
em particular poderão ser mais participativos quanto mais mobilizados forem os
movimentos societários, existirem dispositivos institucionais específicos que os
garantam ou os estimulem e mais existirem governos (autonômicos e locais) suscetíveis
à democratização de processos decisórios. Em suma, na Espanha “se precisa la
institucionalización de canales de participación ciudadana” (Echalecu Castaño, 2001:
136), ainda que esta não assegure per se resultados qualitativamente superiores.
Não por acaso, a análise sobre os dez erros mais básicos e frequentes no
urbanismo espanhol destaca as falhas na tramitação das informações públicas na etapa
de concepção do planejamento urbano, ou seja, “la fase de participación ciudadana es
quizás la más importante en el proceso de elaboración del plan, en la medida en que
permite que los ciudadanos y las entidades sociales presenten las propuestas concretas
sobre el modelo de ciudad que desean o sobre el régimen urbanístico que deba tener una
zona concreta (parcela, edificio, urbanización, barrio, equipamiento, etc.)” (Medrano,
2015: 18). Este autor demonstra que o problema é tão relevante que há diversos casos
em que a Justiça invalidou planos urbanísticos justamente pela ausência de períodos e
mecanismos de participação e consulta.10
Ademais, é indispensável registrar que, na ordenação institucional espanhola,
compete às Comunidades Autônomas (CCAA) a apreciação e aprovação dos Planes de
Ordenación Urbana, o que atenua em alguma medida as prerrogativas dos governos
locais em matéria de legislação urbanística. A CE atribui às CCAA o encargo pela
“ordenación del territorio, urbanismo y vivienda” (Art. 148), na prática cabe a estas
esferas de governo legislar e organizar o processo de ordenamento territorial e
desenvolvimento urbano tanto no plano municipal como em escala regional.
Na reforma da Ley de Suelo de 1992, houve uma tentativa de redefinir essas e
outras normas – cujos itens mais controversos eram o aproveitamento lucrativo das
áreas de superfície e a definição institucional sobre as competências de gestão da
política urbana –, mas a sentença 61/97 do Tribunal Constitucional deliberou pela
competência “exclusiva” das comunidades autônomas em matéria de política urbana.
Esses registros institucionais sobre as competências dos diferentes níveis de governo em
10
Exemplos a esse respeito ocorreram com a suspensão dos Planos de Toledo e Castellón e do Plan de
Ordenación Territorial de la Costa del Sol Occidental, na província de Málaga.
12
matéria de política urbana são importantes para evidenciar que, quaisquer que sejam os
métodos de elaboração e implantação de políticas públicas, sua execução transcende o
controle dos governos locais.
De modo geral, a participação em ordenação urbana e em processos de
formulação de Planes é modesta, e sua intensidade está mais vinculada a legislações e
condutas de governos autonômicos e municipais que incorporaram tal requisito por
convicção programática ou ideológica ou ainda pelas pressões societárias. Esse cenário
é confirmado pelo levantamento de De La Fuente (2010), o qual revela alguns dados
emblemáticos. Primeiro exemplo: dos 21 distritos de Madri, metade dos
correspondentes Conselhos Territoriais (50.5%) é composta por representantes de
associações vecinais, muitas das quais altamente dependentes financeiramente do
próprio Ayuntamiento; outros 32.52% da delegação é dominada por representantes
vinculados a grupos e partidos políticos; e somente 17.52% da representação é
constituída por moradores aleatórios; segundo exemplo: das 26 consultas populares
autorizadas no país entre 1986 e 2007, somente 7 foram relacionadas diretamente ao
tema da ordenación urbana.
A experiência madrilenha também revela que a participação (inclusive quando
trata da agenda do planejamento urbano) sempre foi desigual na medida em que é uma
prerrogativa experimentada majoritariamente pelos segmentos sociais que dispõem de
melhores meios para praticá-la, isto é, “la participación en esa fase se rigidiza en base al
conocimiento de los límites del derecho urbanístico y es ejercida fundamentalmente por
los agentes económicos, que de esta forma transforman el documento en base a un
marco socio-económico que les es propicio” (Salgado, 2011: 61). Isso não significa que
os segmentos socioeconômicos de baixo da pirâmide social não participem, apenas
comprova padrões desiguais de envolvimento em que o acesso a bens materiais (renda,
riqueza, poder) e imateriais (conhecimento, cultura etc.) são variáveis importantes para
determinar diferentes graus de interesse e participação. Nesse sentido, as regras
impostas previamente são determinantes para aquilatar a amplitude e a intensidade da
participação, vale dizer, “el problema de la participación en el planeamiento, es
participar con unas reglas de juego impuestas y recortadas (Villasante, 1984: 229)” e na
experiência madrilenha do período de implantação democrática, por exemplo, “el fuerte
impulso inicial favorable a la participación, así como la apuesta por la formación e
13
información, en el caso del PG85 se demuestran insuficientes en la búsqueda de un
programa de máximos” (Salgado, 2011: 61).
No período mais recente há formas e dispositivos inovadores que se distinguem
pela tentativa de aprofundar a experimentação participativa como princípio do governo
madrilenho, com o estímulo do Ayuntamiento sob a gestão do agrupamento Ahora
Madrid11
, os quais se materializam na abertura de espaços de participação em diversos
projetos políticos (Presupuesto Participativo) ou urbanísticos (Remodelación de La
Plaza España, Madrid Puerta Norte, Plan Madrid Recupera. Recupera tu casa.
Recupera tu barrio. Recupera tu ciudad), e ainda quanto à revisão do Plan General e a
respectiva agenda de consultas, normas urbanísticas e Memoria Participación
(documento do qual constam desde o programa eleitoral do governo atual até
regulamentos, propostas distritais etc.).
O estudo de Martí-Costa e Pybus (2013) sobre 93 casos de Planes de
Ordenación Urbanística Municipal (POUM) participativos na Cataluña, realizados e
concluídos entre 2002 e 2009, revela que em 37.6% dos casos prevaleceu o caráter
informativo e em outros 9.97% dominou a forma de apoio às decisões, enquanto em
apenas 16.1% ocorreram modelos deliberativos. Consideradas as principais variáveis
explicativas dessa análise (o marco legislativo institucional, as características da equipe
redatora e a ideologia do governo12
), “la primera conclusión a la que llegamos es la poca
importância que aún tiene la participación, tanto a nivel formal como a nivel
substantivo”, ensejando uma “participação simbólica mínima” (Martí-Costa; Pybus,
2013: 11-12).
11
Coalizão de esquerda que governa a capital desde maio de 2015, sob a liderança da prefeita Rafaela
Carmena. Sobre a questão, há uma Área de Gobierno de Participación Ciudadana, Transparencia y
Gobierno Abierto. Disponível em: <http://www.madrid.es/portales/munimadrid/es/Inicio/El-
Ayuntamiento/Contactar/Directorio-municipal/Areas-de-gobierno/Area-de-Gobierno-de-Participacion-
Ciudadana-Transparencia-y-Gobierno-
Abierto?vgnextfmt=default&vgnextoid=2e0911135f5fd410VgnVCM2000000c205a0aRCRD&vgnextcha
nnel=5dcf6e6e17ed6310VgnVCM1000000b205a0aRCRD>. Sobre urbanismo e o Plan de Ordenación,
também há portal específico. Disponível em:
<http://www.madrid.es/portales/munimadrid/es/Inicio/Vivienda-y-
urbanismo/Urbanismo?vgnextfmt=default&vgnextchannel=2af331d3b28fe410VgnVCM1000000b205a0a
RCR>.
12 A esse propósito, as diferenças de métodos entre governos de centro-direita e de centro-esquerda
confirmam razoavelmente as expectativas: os segundos têm uma proporção três vezes superior aos
primeiros na adoção de modelos deliberativos.
14
O exemplo específico de Pamplona-Iruñea não foge à regra da limitação
participativa às consultas protocolares, uma vez que “la práctica de la participación
ciudadana en el Plan Municipal de Ordenación Urbana parece apoyarse exclusivamente
en las figuras que la legislación vigente establece”, a saber, “el periodo de exposición
pública en el que la ciudadanía hace ver sus sugerencias y posteriormente en la
aprobación del plan el periodo de alegaciones” (Castaño, 2001: 132). Não surpreende
que a interpretação deste caso seja normativa, invariavelmente orientada sobre os
contrastes entre regulamentos idealizados e a realidade limitada e como a participação
deveria ser, e não como é na realidade: “é necessário...”, “deveriam existir...” etc. “Pero
además en casi todas ellas [reuniões] ha habido críticas de la ‘parte social’ por falta de
información sobre los proyectos” (Idem: 136).
A análise comparativa sobre Pamplona, Bilbao e Barcelona toma como
principais variáveis a estrutura de oportunidades políticas [EOP] e as estratégias
adotadas pelos movimentos urbanos [MU], e chega a contextos díspares quanto à
intensidade participativa e à superação dos limites da representação: “la importancia del
paradigma de la identidad en el caso de Pamplona y Bilbao, unido al cierre de las
oportunidades de acceso, les posibilita alimentar de forma más acabada el marco
maestro de la democracia participativa” (Telleria; Ahedo, 2016: 110). Nesses dois
casos, os movimentos urbanos foram capazes de desenvolver planos comunitários por
sua própria conta que “quizá no obtengan resultados prácticos tan espectaculares como
los alcanzados en Barcelona, pero que les permiten uma mayor autonomía que garantiza
la continuidad de su centralidad en ambos barrios en la actualidad” (Idem).
Tal evolução explicaria as razões pelas quais, por ocasião do fechamento das
oportunidades políticas na década passada, os movimentos urbanos perderam
rapidamente sua centralidade e dinamismo. Em todos os casos, a lógica defensiva
permitiria acumular forças para futuramente obter melhores resultados no acesso ao
sistema político.
Já a análise abrangente de Iglesias e colaboradores (2011), a propósito dos atores
e governos locais e sobre as políticas urbanas em sete importantes cidades espanholas
no período contemporâneo – Madri, Barcelona, Valencia, Sevilla, Bilbao, Murcia e
Vigo –, apresenta um cenário em que os processos participativos em Planes de
Ordenación Urbana não são objeto de análise porque a agenda do planejamento urbano
15
foi dominada pela planificación estratégica. Através desta e de seus produtos – os
planes estratégicos – se formaria uma nova governança e assim se estabeleceriam novos
consensos entre governantes e governados. Em outras palavras: “con el liderazgo de los
gobiernos locales, el plan estratégico actúa como unificador de esfuerzos y dinamizador
de los temas claves de la ciudad. Se trata de un instrumento de gobernanza que establece
un marco de cooperación público-privada, con la participación de los agentes
económico-sociales” (Iglesias et al., 2011: 28). Nesses termos, pretende-se que, por
meio da formulação do plano urbanístico, seja possível “generar un contexto de
confianza, de facilitación de diálogo y de construcción de espacios de consenso, además
de marcar un horizonte común para los actores más importantes de la ciudad” (Idem:
29). O desdobramento dessa escolha metodológica – cuja ideia de parceria “público-
privada” ocupa lugar central – é que a agenda do planejamento urbano e as demandas
participativas são substituídas por outras variáveis e determinações: primazia da pauta
econômica (globalização, competitividade econômica, novas tecnologias etc.),
mercantilização generalizada (inclusive da cultura e de seus símbolos), adoção de
lógicas decisórias baseadas no mercado e participação reduzida à concertação com
segmentos privados.
Para Parés (2010), a legitimidade de políticas públicas concebidas e implantadas
por meio de processos participativos pode ser identificada na percepção dos novos
atores que se incorporam às decisões, substantivamente nos resultados produzidos e
metodologicamente nos meios utilizados, ou seja, uma concepção oposta à tradição do
modelo liberal-pluralista, que reduz a legitimidade democrática à formação dos
governos. As análises que abordam processos participativos e experiências de
regeneração urbana, contudo, se limitam às regras, estruturas e ao funcionamento dos
espaços estáveis de participação cidadã dos casos barcelonês e aragonês, o que
certamente representa um obstáculo metodológico para conclusões generalizantes face à
restrição da base empírica desse estudo.
Dados dispersos, análises comparadas relativamente limitadas e estudos de caso
não autorizam conclusões definitivas sobre os processos participativos em política
urbana e nos Planes de Ordenación Urbana na Espanha – mesmo porque adotam
diferentes metodologias e bases comparativas também diversas –, mas sugerem pistas
importantes que merecem destaque. As normas participativas são limitadas e genéricas,
remetendo sua efetividade aos arranjos promovidos pelos governos autonômicos e
16
municipais, o que de fato enseja uma baixa institucionalização. Do ponto substantivo,
todos os relatos indicam uma gobernanza restrita, posto que as formas participativas são
predominantemente consultivas. E embora não haja uma análise exaustiva sobre as
tensões entre as fontes de legitimidade – da representação e da participação – é
plausível presumir que prevalece a primeira, ou seja, os governos permanecem
mantendo um alto controle sobre as decisões relativas ao planejamento urbano em geral
e aos Planes de Ordenación Urbana em particular. Essa primazia é determinada
fundamentalmente pelas razões mencionadas – fragilidade institucional das esferas
compartilhadas e pela concentração de prerrogativas de poder pelos atores
institucionais, que, dentre outras competências, ainda deliberam sobre as próprias regras
participativas – e também pela própria complexidade das normas urbanísticas, cujo
conhecimento técnico se torna um domínio adicional sobre o processo de tomada de
decisões.
Participação e planejamento urbano: considerações sobre o caso brasileiro
A Constituição brasileira de 1988 foi pioneira na difusão de direitos de cidadania
e na democratização: a representação é a base do sistema democrático, e mesmo
reconhecendo que “todo o poder emana do povo”, admite que este “o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente” (Art. 1º). A essa compreensão se sucederam a
institucionalização de dispositivos excepcionais como o referendo e o plebiscito, além
de mecanismos partilhados como conselhos de políticas públicas e outras formas de
participação civil nas decisões públicas (consultas, audiências públicas etc.). Outra
originalidade: os municípios foram reconhecidos como entes federativos, aos quais
compete “executar a política de desenvolvimento urbano” (Art. 182).
O inédito capítulo da Constituição dedicado à Política Urbana (Art. 182/183)
também enunciou o princípio da função social da cidade e a Lei Federal nº 10.257/2001
(Estatuto da Cidade) – que regulamentou tais princípios constitucionais – é categórica
quanto à exigência participativa: “gestão democrática por meio da participação da
população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na
17
formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de
desenvolvimento urbano” (Artigo 2º). 13
Os princípios participativos, contudo, têm caráter normativo, e sua efetivação
está relacionada a outras variáveis que transcendem o marco jurídico, dentre as quais
merecem registro: os gargalos institucionais, os contextos socioeconômico e político,
além da conduta dos atores institucionais e da capacidade organizativa dos movimentos
e entidades civis. Comparativamente ao arranjo institucional espanhol, as exigências
participativas no âmbito do planejamento urbano no Brasil estão bem mais
normatizadas, isto é, existe um complexo sistema de exigências participativas inscritas
na legislação que independem do governo de turno. Esse arcabouço que se refletiu na
concepção da política urbana tem origem no ideário que sintetizou a luta pela reforma
urbana (Rolnik, 2009), o qual se assentava em três pilares: no princípio da função social
da propriedade e da cidade, na cidadania dos moradores de assentamentos precários e na
participação “direta” dos cidadãos nos processos decisórios sobre a política urbana.
Esse cenário permite que Avritzer (2008) identifique três modelos de desenho
participativo no Brasil democratizado, a saber: o Orçamento Participativo (“de baixo
para cima”, o qual permitiria o livre acesso dos cidadãos e, portanto, torná-lo
efetivamente mais democrático); os conselhos gestores de políticas públicas (“de
partilha”, pois combinam representação institucional e civil); e os Planos Diretores (“de
ratificação pública”, uma vez que não são objeto de prévia formulação participativa). O
fato de serem homologatórios – à medida que existem normas legais que exigem
protocolos participativos – tornaria os Planos Diretores menos dependentes dos atores
institucionais, contudo, com menor potencial democratizante porque as decisões
substantivas seriam tomadas ex ante, prescindindo da participação popular. Assim, “os
casos de ratificação são os mais efetivos quando há necessidade da sanção por parte do
judiciário e do ministério público para a manutenção das formas de participação
previstas em lei” (Avritzer, 2008: 60).
13
Outros enunciados emblemáticos da mesma legislação ainda merecem registro: “garantia da
participação da sociedade civil no controle dos instrumentos de políticas urbanas” (Art. 4º, parágrafo 3º);
“instituição de instrumentos de gestão democrática da cidade” (Art. 43, incisos I, II, III e IV); “garantia de
controle direto das atividades dos organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações
urbanas” (Art. 45); “debates, audiências e consultas públicas” e nas “conferências municipais sobre temas
urbanos” (Art. 43, inciso II); “gestão orçamentária participativa” (Art. 44); “uso do referendo popular e
do plebiscito, conforme previsão constitucional e da Lei Federal nº 9.709/1998” (Estatuto da Cidade,
2002: 229-231).
18
Normas participativas obrigatórias, porém, não tornam essas experiências
homogêneas, posto que as diferentes condutas dos atores institucionais e mesmo a
capacidade organizativa da sociedade civil são variáveis decisivas para um juízo
conclusivo sobre seu alcance em tornar mais acessíveis e participativas as decisões
relativas ao planejamento urbano. Mas é preciso observar que tais normas são
relativamente genéricas – debates, audiências e consultas públicas, conferências e
mesmo a constituição de conselhos de planejamento –, o que confere uma autonomia
razoável aos governos locais que as implantam.
A literatura tem demonstrado que, mesmo após a vigência do novo marco
regulatório da política urbana – sintetizado pela Constituição (1988), pelo Estatuto da
Cidade (2001) e pela criação do Ministério das Cidades (2013) –, as experiências
participativas têm sido limitadas (Goulart; Terci; Otero, 2016; Maricato, 2015; Rolnik,
2009; Santos Jr.; Montandon, 2011). Tal constatação tem várias e complementares
explicações. A primeira delas é que, embora democraticamente inovador, o marco
institucional da participação previsto na Constituição “ainda e frágil e incompleto”,
afinal “municípios experimentarem processos inovadores de participação, difusão de
mecanismos de participação, na maioria das vezes, ficou restrita à instituição de
conselhos de políticas públicas e à realização de conferências setoriais” (Santos, 2011:
255-256).
Uma segunda causa (também institucional) está relacionada às formas de
organização do Estado brasileiro no campo do desenvolvimento urbano e às suas
relações com o sistema decisório, ensejando um cenário em que a descentralização da
gestão urbana, descolada de um modelo de organização estatal mais adequado e
(in)capaz de sedimentar estratégias urbanísticas de longo prazo, na prática condena “a
prática de planejamento urbano local a um exercício retórico que, assim como em outros
vários corpus normativos, funciona no mesmo registro da ‘ambiguidade constitutiva’:
trata-se de uma lei que pode ou não ser implementada, a depender da vontade e
capacidade do poder político local de inseri-la no vasto campo das intermediações do
sistema político” (Rolnik, 2009: 45-46).
A terceira razão limitante é que Planos Diretores são submetidos a liturgias
meramente homologatórias que ratificam conteúdos decididos pelos atores
institucionais (Avritzer, 2008). Tal constatação evidencia que “o caráter participativo na
19
elaboração dos Planos Diretores transcorre com largo controle exercido pelos atores
estatais, mesmo quando existiram formalmente espaços compartilhados como os
conselhos municipais de política urbana” (Goulart; Terci, Otero, 2016: 473).
Considerações finais
Os dados evidenciam que o grau de institucionalização participativa em matéria
de política urbana é bastante elevado no caso brasileiro (Quadro 1), como de resto
acontece em outras áreas de políticas públicas, o que promoveu um deslocamento
desses estudos – de seu lugar original, na sociedade civil, para espaços partilhados no
âmbito do próprio Estado, isto é, o objeto de análise se moveu para “espaços
participativos” (Lavalle e Vera, 2011). Ademais, a participação tem se processado
basicamente por meio de mecanismos representativos, o que desautoriza qualquer
pretensão de tratar tais experiências como “democracia direta” (Miguel, 2005).
Os espaços participativos no âmbito das políticas de planejamento urbano são
principalmente de dois tipos: primeiro, no período de formulação dos Planos Diretores,
para o qual a legislação indica diversos procedimentos (consultas e audiências públicas,
conferências, congressos etc.); segundo, na gestão urbana por meio de conselhos
partilhados de diferentes denominações e escopos, tanto gerais (planejamento) como
específicos (habitação, mobilidade etc.).
Na Espanha, diversamente, o grau de institucionalização dos canais de
participação é bastante modesto (Castaño, 2001), posto que os enunciados legais são
genéricos e imprecisos, remetendo a implantação de dispositivos participativos em
matéria de política urbana aos governos autonômicos e locais, sendo que aos primeiros
competem as prerrogativas de implantar suas correspondentes legislações de ordenação
do solo. Na prática, o espaço de participação se limita ao período de exposição pública
das propostas de legislação urbanística – notadamente dos Planes de Ordenación
urbana, além de planos de intervenção de escopo territorial mais localizado, tais como
projetos pontuais de requalificação urbana e similares –, no qual se fazem observações
críticas, sugestões e eventualmente propostas complementares.
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Além dessas particularidades, um derradeiro motivo também compromete o
ideal participativo, sintoma comum à Espanha e ao Brasil (Goulart, 2017): trata-se da
disseminação de uma concepção mercantilizada das cidades e da política urbana que
encontra amparo no empresariamento urbano e em diferentes modalidades de
planejamento estratégico das cidades, respectivamente uma forma de substituição do
tradicional modelo de gerenciamento da cidade (Harvey, 1996) e de supressão da esfera
pública (do conflito e, portanto, da política) que a reduz a mercadoria: “enquanto o
modelo modernista acionava noções e conceitos cuja universalidade parecia
inquestionável – racionalidade, ordem e funcionalidade –, agora é a cidade, em seu
conjunto e de maneira direta, que aparece assimilada à empresa”, de modo que
“produtividade, competitividade, subordinação dos fins à lógica do mercado, [são] os
elementos que presidem o que Harvey chamou de empresariamento da gestão urbana
(Harvey, 1996)” (Vainer, 2000: 85). Pensada sob a lógica da gestão empresarial, a
cidade passa a reclamar atores supostamente mais qualificados para essa missão, o que
obviamente limita os espaços decisórios aos mesmos protagonistas. Logo, “a melhor
solução é recorrer a quem entende do métier se de empresa se trata, convoquem-se os
empresários; se o assunto é business, melhor deixá-lo nas mãos de businessmen” (Idem:
87).
Quadro 1 – Comparativo dos Dispositivos Participativos da Política Urbana: Espanha/Brasil
REFERÊNCIA INSTITUCIONAL ESPANHA BRASIL
Enunciados Constitucionais
Princípios da Política Social e
Econômica (Art. 47)
Capítulo da Política Urbana
(Art. 182 e Art. 183)
Competência da Política Urbana
Comunidades Autônomas
Art. 148 da CE:
Competência “exclusiva” pela
“ordenación del territorio, urbanismo
y vivienda”
Sentença 61/97 do Tribunal
Constitucional
Município
Art. 182 da CF:
“política de desenvolvimento urbano
executada pelo poder público
municipal”
Sistema federativo impõe gestão
compartilhada em políticas públicas
Principal Instrumento de ordenamento
territorial e de regulação do uso do solo
Planes de Ordenación Urbana
[Ley de Suelo]
Plano Diretor
[CF e EC]
Grau de institucionalização
Baixo
[CE, Ley de Suelo, Ley Reguladora de
las Bases del Régimen Local]
Dispositivos participativos dependem
das decisões dos governos
autonômicos e locais
Alto
[CF e EC]
Institucionalizados: planos diretores,
conferências, conselhos gestores,
audiências públicas etc.
Fonte: elaboração própria.
21
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