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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Educação TALITHA CARDOSO HANSTED “EU SEGURO MINHA MÃO NA SUA”: Teatro na educação e construção da identidade CAMPINAS / SP 2020

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Faculdade de Educação

TALITHA CARDOSO HANSTED

“EU SEGURO MINHA MÃO NA SUA”:

Teatro na educação e construção da identidade

CAMPINAS / SP

2020

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TALITHA CARDOSO HANSTED

“EU SEGURO MINHA MÃO NA SUA”:

Teatro na educação e construção da identidade

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Educação da Faculdade de

Educação da Universidade Estadual de

Campinas como parte dos requisitos exigidos

para a obtenção do título de Doutora em

Educação, na área de concentração Educação.

Orientador: Prof. Dr. José Roberto Montes Heloani

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL

DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA TALITHA CARDOSO HANSTED,

E ORIENTADA PELO PROF. DR. JOSÉ ROBERTO MONTES HELOANI.

CAMPINAS / SP

2020

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

“EU SEGURO MINHA MÃO NA SUA”:

Teatro na educação e construção da identidade

Autora: Talitha Cardoso Hansted

COMISSÃO JULGADORA:

Prof. Dr. José Roberto Montes Heloani

Profa. Dra. Mitsuko Aparecida Makino Antunes

Profa. Dra. Cecília Pescatore Alves

Profa. Dra. Marcia Gomes Gregório

Profa. Dra. Monica Markunas

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na

Secretaria do Programa da Unidade.

2020

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Para Alice.

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AGRADECIMENTOS

Agradecer àqueles que auxiliaram no processo de construção de um trabalho que se

confunde com nossa própria vida é tarefa quase tão árdua quanto a própria escrita da tese.

O risco de deixar algum nome de fora, nesta curta seção, me assombra mais que a

possibilidade de não ter mencionado algum autor, em todo o trabalho. De antemão, peço

desculpas por algum lapso. A ausência, nesta página, não espelha o que me vai ao coração.

Agradeço, inicialmente, ao Prof. Dr. José Roberto Montes Heloani, cuja forma de me

orientar refletiu um dos pontos chaves deste estudo – a alteridade. Mais que se preocupar

com a pesquisa, importou-se com a pesquisadora. Acima de questões teóricas, atentava

para a saúde daquela que se desdobrava tentando ser mãe, professora e doutoranda de

uma só vez. Deu-me tempo. Espaço. Liberdade. Suas cobranças mais contundentes foram

por descanso e calma. Sem sua tranquilidade, compreensão e sabedoria, eu não chegaria

até aqui. Ao menos não inteira.

Tampouco teria chegado ao fim deste processo – ou a qualquer lugar – sem meus pais,

Liana e Luiz, e meu marido, Daniel. A eles, agradeço por me terem oferecido tudo aquilo

de que alguém em processo de doutoramento precisa: tempo, compreensão, amor. E

alguns puxões de orelha.

Há mais uma dificuldade neste espaço de agradecimentos: o abismo entre as palavras e o

sentimento – este muito mais profundo que aquelas, a despeito do cuidado com que elas

sejam selecionadas. É o caso da Profa. Dra. Maria da Glória Gohn, a quem não bastam

palavras para expressar a gratidão. A ela, toda minha admiração e todo meu carinho.

Carinho é também o que me transborda, ao recordar a participação de meus alunos e ex-

alunos. Eles são a pesquisa em si. Mais que isso: são minha motivação acadêmica e

profissional. Alguns são amigos da vida toda e para a vida toda. Agradeço a cada um,

imensamente.

Do mesmo modo, agradeço aos não alunos participantes do estudo, que com tanta

generosidade se dispuseram a partilhar suas histórias e memórias.

Ao Prof. Dr. Marcelo Lazzaratto e à Profa. Dra. Marcia Strazzacappa Hernandez,

agradeço pelas enriquecedoras contribuições à pesquisa.

À direção do Instituto Educacional Imaculada e às Filhas de Jesus, obrigada por todo o

apoio e por toda a confiança em meu trabalho.

À Profa. Vera Bonilha, mestra incomparável, com quem nunca me canso de aprender,

obrigada por cada apontamento e por cada ensinamento.

À Profa. Dra. Marcia Gomes Gregório, agradeço pela atenciosa colaboração na etapa

inicial do trabalho.

À querida Sofia Adelina, ex-aluna e artista de sensibilidade ímpar, meu muito obrigada

por ter embelezado o trabalho com sua arte.

A Ana Keiko, Juliana Hilal, e Telma Martins, agradeço pelas imagens cedidas.

Enfim, assim como no teatro, uma tese não se faz a uma só mão. Agradeço a todos os que

seguraram a minha, e me ajudaram a fazer aquilo que “eu não posso e não quero fazer

sozinha”.

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“E desde então, sou porque tu és

E desde então és

Sou e somos...

E por amor

Serei... Serás... Seremos.”

Pablo Neruda

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RESUMO

Esta pesquisa de Doutorado versa sobre a contribuição do teatro, em contextos educacionais,

para a construção da identidade dos alunos. O estudo busca compreender se, como e por que a

atividade teatral, em especial no período da adolescência, pode impactar a construção da

identidade, de modo a influenciar as representações que os indivíduos têm e buscam para si

próprios, seus relacionamentos pessoais, escolhas profissionais e trajetórias de vida. A

investigação abrange também os impactos identitários, na vida adulta, do fazer teatral

vivenciado durante a fase escolar. Para tanto, apresenta narrativas de sujeitos que participam

e/ou participaram de grupos teatrais escolares quando adolescentes. Os entrevistados relatam

memórias anteriores, concomitantes e posteriores ao teatro vivenciado na escola e refletem

sobre a contribuição da experiência para a construção de sua identidade. O material é analisado

à luz da Psicologia Social e da Filosofia, tendo como principais referenciais teóricos Antônio

da Costa Ciampa, Axel Honneth e Claude Dubar. Nesta análise, o teatro destaca-se como lugar

de encontro com o outro, propício à socialização, à experiência do reconhecimento e ao

exercício da alteridade. Os resultados indicam a potencialidade do teatro para engendrar

processos de metamorfose identitária de sentido emancipatório. Especificidades do fazer teatral

como a relação com personagens, espectadores e colegas de grupo despontam como

significativos propulsores dos processos de construção e reconstrução da identidade. Conclui-

se que o teatro, no exercício do encontro com outro, oferece ao sujeito possibilidades múltiplas

de encontros consigo mesmo.

Palavras-chave: Teatro. Educação. Identidade. Socialização. Emancipação

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ABSTRACT

This doctoral research deals with the contribution of theater in educational contexts to the

construction of student’s identity. The study aims to understand if, how and why theatrical

activity, especially during adolescence, can impact identity construction in order to

influence the representations that individuals have and seek for themselves, their personal

relationships, professional choices and courses of life. The research also covers the

identity impacts in adult life of the theatrical experience during the school phase. To

achieve this goal, the thesis presents narratives of individuals who participate and/or have

participated in school theatrical groups when adolescents. Interviewees report previous,

concomitant and subsequent memories to theatrical activities at school, and reflect on the

contribution of that experience to the construction of their identity. In the light of Social

Psychology and Philosophy, the analysis takes Antonio da Costa Ciampa, Axel Honneth

and Claude Dubar as main theoretical references. In this approach, theater stands out as a

meeting place with the other, conducive to socialization, the experience of recognition

and the exercise of otherness. Results indicate the potential of theater to engender identity

metamorphosis processes of emancipatory nature. Specificities of theatrical performance,

such as the relationship with characters, spectators and groupmates, emerge as significant

drivers of the processes of identity construction and reconstruction. In conclusion, this

study shows that theater, in the exercise of meeting with the other, offers the individual

multiple possibilities of encounters with himself.

Keywords: Theater. Education. Identity. Socialization. Emancipation

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

IEI Instituto Educacional Imaculada

LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

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SUMÁRIO

PRÓLOGO – notas para um memorial...............................................................

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APRESENTAÇÃO

Teatro na Escola: com a palavra, a professora .........................................................

Afinal, o que é teatro? ..............................................................................................

INTRODUÇÃO.......................................................................................................

17

19

22

Problema de pesquisa.............................................................................................. 24

Justificativa.............................................................................................................

27

Objetivo................................................................................................................... 32

Hipótese.................................................................................................................. 33

Método.................................................................................................................... 33

Nosso “Script”....................................................................................................

39

ATO I

1 RODAS QUE DESCORTINAM IDENTIDADES.........................................

43

1.1 Roda de conversa e o fazer teatral: aspectos teórico-metodológicos............... 43

1.2 Organizando as rodas... ................................................................................... 48

1.3 Roda com alunos.............................................................................................. 50

1.3.1 Destaque de uma entrevista ...................................................................... 75

2 UMA REVISITA AO QUINTAL COMUM ..................................................

76

2.1 Roda com ex-alunos ........................................................................................ 78

2.1.1 Destaque de uma entrevista ......................................................................

111

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3 OUTROS QUINTAIS....................................................................................... 114

3.1 Depoimentos..................................................................................................... 115

3.1.1 “O teatro me reiniciou como ser humano.”............................................... 115

3.1.2 “O teatro me ajudou a me enxergar capaz.”............................................. 119

3.1.3 “Tenho certeza que com o teatro minha vida teria sido outra.”................ 120

3.1.4 “Aquilo me fascinou... a magia do teatro, a possibilidade de ser outro.” 121

ENTREATO

4 CENAS, HISTÓRIAS E MEMÓRIAS: UMA MIRADA AFETIVA E VISUAL...

124

ATO II

5 TEATRO COMO METAMORFOSE E EMANCIPAÇÃO............................

5.1 Do teatro à Psicologia e vice-versa: em que Shakespeare nos auxilia a

compreender alguns fundamentos.....................................................................

5.1.1 “Mas o que há em um nome?”.............................................................

5.2 Teatro e emancipação.......................................................................................

5.3 O outro-personagem: quando a metamorfose da cena engendra a

metamorfose da vida.........................................................................................

5.3.1 Ser é ser ação.............................................................................................

5.4 O outro-eu: humanidade, alteridade, identidade...............................................

140

140

143

148

155

166

171

6 TEATRO COMO ESPAÇO DE SOCIALIZAÇÃO.........................................

6.1 Socialização: em que a teoria de Dubar nos auxilia a compreender

o encontro com o outro-colega e com o outro-espectador..............................

6.2 Reconhecimento: aspectos da teoria de Honneth, em diálogo com achados

da pesquisa......................................................................................................

178

180

189

CONCLUSÃO.........................................................................................................

199

EPÍLOGO................................................................................................................

206

REFERÊNCIAS .....................................................................................................

ANEXOS..................................................................................................................

207

215

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PRÓLOGO - NOTAS PARA UM MEMORIAL

UMA CONVERSA INTRODUTÓRIA NO PALCO INTERIOR DA PROFESSORA-PESQUISADORA-MÃE.

— Como faz o carro? – pergunto eu à minha filha de quase um ano. E o “BRR”

que ela emite me maravilha mais que a melhor das canções.

— Como faz o macaco? – prossigo, apenas para ouvir gritinhos em “A”,

iluminados por um lindo e parcialmente desdentado sorriso de autossatisfação.

— E careta, como é? – e então ela contrai o músculo do pescoço ao mesmo tempo

em que projeta o maxilar para frente, deixando-me embasbacada com a expressividade

da performance.

De repente, ela se cansa de responder a meus comandos, agarra-se à beira do sofá,

levanta-se e ensaia seus primeiros passinhos cambaleantes, olhando-me como quem diz:

— Viu o que já sei fazer?

E eu, Mãe, Professora e Pesquisadora, refestelada no tapete da sala, inicio mais

uma conversação mental entre esses três papéis que coabitam meu palco identitário:

— Não é linda? – diz a Mãe.

— Como tantas outras – a Professora responde, sem ser ouvida pela Mãe, que

continua:

— E como é inteligente! Vejam só!

— Existem múltiplas inteligências. A qual você refere? – intervém a

Pesquisadora.

— Ora, a todas! – quer crer a Mãe. E a Professora protesta:

— Não seja ridícula! Você tem inúmeros alunos; sabe bem que toda criança tem

suas facilidades e dificuldades.

— Mas vejam como é espirituosa e engraçada! – a Mãe insiste.

— É você, com sua reação, que reforça esse comportamento nela – vem a

Pesquisadora na linha behavorista. — E não se engane: esse é apenas mais um estágio do

desenvolvimento, comum a todas as crianças – sussurra uma piagetiana que também mora

lá dentro.

E em meio a esta conversa, ganha força uma voz, que não consigo distinguir ao

certo se vem da Mãe, da Professora ou da Pesquisadora. Não importa; poderia vir de

qualquer uma delas. Ou de todas, em uníssono. A voz questiona:

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— Mas se todas as crianças passam por essas fases, o que as diferencia? O que as

torna únicas? Se os marcos do desenvolvimento são semelhantes para todos os bebês,

quando e como adquirem ou desenvolvem seus traços pessoais, suas vontades individuais,

os seus gostos particulares? Como se vai delineando a personalidade? Como se dá a

construção da identidade?

E a Pesquisadora assume de vez o colóquio:

— Ora, nós bem sabemos que essas perguntas (nada originais, a propósito) já

foram exploradas por uma série de pesquisadores. Questionamo-nos sobre a socialização!

Diga-se de passagem, não sei se de fato nos questionamos ou se reproduzimos,

transferindo para a situação real da maternidade que agora vivenciamos, toda a teoria que

temos estudado nos últimos tempos. De todo modo, todas sabemos que é o processo de

socialização que nos ensina a sermos humanos e, portanto, “iguais” nessa humanidade:

no andar, no falar, nos gestos, na compreensão de signos... Ao mesmo tempo, é esse

mesmo processo que nos vai diferenciando uns dos outros. São as diferentes experiências

de socialização e a maneira como o indivíduo as assimila dentro de seu esquema de

referência que vão construindo a identidade.

—E eu? E eu? Onde entro nesse processo? – provoca a Mãe, num rompante

egocêntrico, apenas para ouvir da Pesquisadora:

— Bem, em basicamente tudo... Para a Psicanálise, por exemplo, o “eu” se forma,

a priori, na relação com a Mãe. O vínculo estabelecido com a figura materna durante os

primeiros meses de vida influenciará a maneira como a criança se relacionará com outros

e consigo mesma durante toda a sua vida. Para cientistas sociais, a Mãe é considerada o

primeiro “outro significativo”, responsável pelo processo de socialização primária, por

meio do qual a criança se torna membro da sociedade. Para...

A Professora (de teatro, é preciso que se enfatize) atenta desde o início e

associando tudo o que é dito à sua própria experiência docente – que, diga-se de

passagem, em nada se relaciona ao desenvolvimento de bebês – interrompe:

— Ora, o teatro é uma experiência altamente socializadora! Então, durante a

adolescência, fase em que os alunos tanto buscam entender quem são, o fazer teatral pode

ter um impacto significativo na construção das identidades, não?

A Pesquisadora se interessa. Gosta da hipótese. Hipótese que a Professora quer

logo transformar em certeza; quer responder à própria pergunta e dizer que sim, que sabe

que seus alunos são transformados pela experiência com teatro, que vê isso acontecendo

todos os dias...

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Mas a Pesquisadora alerta:

— É preciso ter cautela com assumpções precipitadas.

Ao que a Professora contra-argumenta:

— Ora, já fizemos um Mestrado na área; chegamos juntas à conclusão de que o

ensino do teatro tem um forte caráter emancipatório, que pode se refletir por muito tempo

nas trajetórias dos sujeitos. Lembra? Você mesma entrevistou meus ex-alunos e todos

mencionaram uma série de impactos da experiência teatral em diferentes aspectos de suas

vidas.

— Estudávamos cidadania, não identidade. Embora a identidade seja uma

importante dimensão da cidadania, nosso foco não era a construção identitária – pontua a

Pesquisadora.

— Sim, mas muitos de nossos entrevistados, se não todos eles, afirmaram

espontaneamente, sem sequer ser questionados a esse respeito, que o teatro moldou suas

personalidades; que são hoje quem são por conta dessa experiência. O próprio termo

“identidade” foi mencionado por alguns.

— Sim, sim. É um bom ponto de partida. Mas você saberia me contar mais sobre

identidade? Aliás, há uma série de autores que tratam do tema, e de maneiras bastantes

distintas, quando não divergentes. Em qual deles você se apoia para falar do conceito?

A Professora pensa por um instante e responde:

— Bem, há um em especial, Antonio da Costa Ciampa, que usa referências teatrais

para falar de identidade! E em uma de suas obras utiliza como exemplo Severino,

personagem da famosa peça de João Cabral de Melo Neto, que montei com meus alunos

em 1999. Essa montagem, a propósito, foi decisiva em minha própria trajetória e nas de

muitos dos participantes. Um deles, por exemplo, decidiu que queria ser ator por conta de

sua participação nessa peça. Outro superou a timidez e foi tão impactado pela experiência

que hoje, aos 35 anos, está cursando faculdade de Artes Cênicas!

— Está bem. Você tem material e argumentos interessantes. Parece-me um bom

ponto de partida. Que tal nos aprofundarmos nele?

— E como seria isso?

— Sugiro uma pesquisa sobre o teatro durante a adolescência e a construção da

identidade.

— Ótimo! – anima-se a Professora.

— Mas é preciso aprofundamento – adverte a Pesquisadora. — Essa parte pode

deixar comigo. Você entra com suas experiências. Ciampa será um de nossos referenciais

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na questão da identidade. E esses seus ex-alunos podem ser alguns de nossos

entrevistados. O que acha?

A Professora entusiasma-se. Ela e a Pesquisadora, então, olham para aquela que

permanecera calada durante boa parte do diálogo e perguntam:

— E você, o que acha?

A Mãe permanece em silêncio por mais alguns instantes. Não quer perder um

instante do desenvolvimento de sua filha, e bem sabe como uma pesquisa consome tempo,

mente e nervos. Consente, contudo:

— Podem seguir com a investigação. Mas vão com calma, para que eu continue

aqui, ajudando a construir esta outra identidade, tão importante para todas nós, e ainda

tão dependente de mim.

É dela a palavra final.

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APRESENTAÇÃO

TEATRO NA ESCOLA: COM A PALAVRA, A PROFESSORA

EM QUE O RELATO DE UM FILME E DE UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL TRAZ À TONA UMA

QUESTÃO IMPORTANTE

“Se jogue”. Essa é a frase que a professora de teatro representada no filme

Amenina no País das Maravilhas (2009) constantemente diz a seus alunos. A certa altura

da trama, o diretor do colégio adentra o auditório onde são realizados ensaios com os

estudantes, no exato momento em que um grupo de crianças realiza uma atividade que

lhe chama a atenção: um a um, cada aluno sobe uma pequena escada e atira-se, de costas,

em direção ao grupo, que fica na parte de baixo, de braços estendidos, para amparar

queda. Perplexo com o que vê, o diretor pergunta:

— O que é isso?

— “Queda livre” – responde a professora de teatro.

— “Queda livre”? Bom, isso parece ser um pouco imprudente, não acha?

— Bobagem. É libertador.

— Perigoso!

A cena, que desse modo contada pode parecer caricata ao leitor, soou-me,

particularmente, bastante familiar. Quando comecei a ministrar aulas de teatro na

instituição de ensino de caráter confessional onde trabalho até a presente a data, uma

pessoa encarregada da supervisão do corredor observou, pelo lado de fora da janela da

sala onde eram realizadas as atividades teatrais, o mesmo exercício do filme, sendo por

mim conduzido com um grupo de adolescentes. Ela, então, entrou na sala, e pediu para

que a atividade se encerrasse, afirmando: “isso não é teatro”. Naquele dia, fui chamada à

direção da escola para prestar esclarecimentos sobre aquilo que havia sido descrito à

diretora como algo que “não é teatro”. Minha reação e resposta foram similares à

apresentadas no filme – perplexidade e um esclarecimento: “eles estavam treinando

confiança”.

Sim, confiança. É preciso confiança para se atirar de costas. Confiança na

presença do outro. Confiança no grupo. Confiança em si próprio. Esse singelo exercício,

que é na realidade uma atividade bastante corriqueira em aulas e treinamentos de teatro,

representa, em última análise, uma metáfora daquilo que um ator – amador, estudante ou

profissional – enfrenta ao subir no palco: um salto no escuro, para o qual é preciso confiar.

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Em si. No outro. No todo. Não seria também uma metáfora para a própria vida de qualquer

sujeito?

Não por acaso, a professora representada em A menina no País das Maravilhas

repete constantemente aos seus alunos: “Arrisque. Se jogue”. Não apenas durante a

realização do exercício “queda livre”, mas também em diversas outras situações, em

especial quando seus alunos estão no palco, sem saber o que fazer. Também não por acaso

a protagonista da trama, uma garota de 9 anos, com Síndrome de Tourette1, encontra no

teatro escolar o único ambiente onde os sintomas de seu distúrbio não se manifestam. A

atividade é o exato contrário daquilo que seu psicólogo lhe diz: “Na escola, existem certas

regras. Não pode falar certas horas, não pode dizer certas coisas ”. No teatro ela pode.

Ali, ela encontra sua própria voz.

Como no filme, encontrar “a própria voz”, o seu “lugar no mundo”, o local onde

“se pode ser você mesmo”, uma “segunda casa” são afirmações que costumo ouvir, com

grande frequência, de muitos de meus alunos e ex-alunos, quando se referem ao teatro.

Para a professora do filme mencionado, sua postura nas cenas descritas corrobora uma

sequência de mal-entendidos que acabam por culminar com sua demissão. Para mim, a

experiência pessoal anteriormente relatada, com o passar dos anos e a valorização que

atividade teatral foi conquistando na escola em questão, tornou-se uma lembrança

pitoresca de uma época em que foi preciso lutar pelo reconhecimento da atividade.

Identidade, autonomia, emancipação, autoconhecimento, luta por

reconhecimento... todas essas questões – levantadas pelo filme indicado e também

experimentadas quase diariamente em minha prática profissional – estão fortemente

vinculadas ao ensino do teatro e serão abordadas com maior profundidade no decorrer da

tese. Contudo, neste início de trabalho, é interessante nos determos em uma questão

anterior, que parece emergir de tudo o que até aqui foi exposto: se para alguns, “isso não

é teatro”... Afinal, o que é teatro?

1 De acordo com Albin e Mink (2006, p. 175), a síndrome de Tourette (ST) é “uma doença

neurocomportamental, regulada pelo desenvolvimento, caracterizada por movimentos involuntários,

estereotipados e repetitivos”.

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AFINAL, O QUE É TEATRO?

A pergunta sobre a qual nos propomos a refletir neste início de trabalho, de

resposta aparentemente simples, encerra reflexões bastante pertinentes para investigações

que, como esta, buscam relacionar a atividade teatral a questões ligadas ao

desenvolvimento humano. Voltemos, então, ao questionamento: afinal, o que é teatro?

Arrisco dizer que, grosso modo, existem dois tipos de resposta à pergunta: uma mais

pragmática – a daqueles que não estão familiarizados com essa linguagem artística – e

outra mais “orgânica” – a daqueles com uma certa vivência teatral, sejam eles

profissionais, estudantes, estudiosos, amadores ou simplesmente amantes do teatro.

“Ora, teatro é a apresentação de uma peça” ou “teatro é o local onde são

realizadas apresentações”, costumam responder os menos familiarizados.

Possivelmente, se a pergunta fosse dirigida àquela pessoa mencionada na seção anterior,

que acreditava que determinada atividade não era teatro, a resposta seria alguma dessas,

ou outra similar. E não estaria equivocada. Sim, teatro são apresentações de peças; e sim,

evidentemente é também o nome dado ao local onde por tradição essas encenações

costumam ser vistas. A própria palavra “teatro”, do grego théatron, quer dizer “lugar de

onde se vê”. Porém, essas mesmas e corretas respostas carregam em si outros significados

e entendimentos mais aprofundados que aparentam à primeira vista. Para compreendê-

los, é interessante conhecer outras possibilidades de respostas.

Certa vez, uma de minhas alunas escreveu, para o texto do programa2 de uma peça

teatral que montávamos em sua escola: “teatro: lugar onde se dividem encenações e

duplicam-se alegrias”. Nesse enunciado, estão claramente inseridas as mesmas ideias de

teatro como apresentação e como local destinado a essas apresentações. Contudo, a

experiência teatral vivenciada pela estudante permitiu que a esses entendimentos fosse

associado um significado mais aprofundado, relacionado à característica que representa

o próprio fundamento da arte teatral: a coletividade (HANSTED, 2013). Os dizeres “eu

seguro minha mão na sua”, que dão título a esta tese, expressam essa coletividade de

forma inequívoca. São eles que abrem aquela que é conhecida, nos meios teatrais, como

2 Chamamos “programa” o material gráfico destinado ao público, contendo informações sobre determinado

espetáculo teatral. Na escola onde estudam ou estudaram os sujeitos desta pesquisa, temos o costume de

elaborar tais programas com sinopses das peças, informações sobre o processo de montagem, fotos dos

alunos envolvidos, lista de personagens e seus respectivos intérpretes, ficha técnica, agradecimentos e

outras informações, textos ou imagens que cada grupo julgar relevante.

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a “oração do teatro” – uma espécie de ritual coletivo, realizado momentos antes do início

de uma apresentação –, amplamente mencionada pelos sujeitos desta pesquisa como a

síntese do fazer teatral, conforme será visto já no capítulo 1.

Essa ideia de coletividade e todas as relações de troca dela decorrentes podem ser

também vislumbradas nas definições e nas reflexões sobre teatro expressas por diversos

artistas e estudiosos ligados à arte teatral. Patrice Pavis (1999), por exemplo, compreende

que a definição mínima de teatro está inteira contida nesta afirmação de Jerzy Grotowski:

“[...] o que se passa entre ator e espectador. Todas as outras coisas são suplementares”

(GROTOWSKI, 1971, p. 31 apud PAVIS, 1999, p. 337). Para Bertold Brecht, como

destaca Peixoto (1998 p. 9, grifos nossos): “[...] a verdadeira relação de ordem política,

ideológica e social do teatro é conseguir estabelecer o diálogo entre o espetáculo e a

plateia. [...] Seu papel é o de estabelecer o espaço da discussão”.

Augusto Boal (1980, p. 1), em concepção análoga, entende que “[...] todo teatro é

necessariamente político porque políticas são todas as atividades do homem, e o teatro é

uma delas”. Alain Girault define teatro como “[...] o estabelecimento de uma corrente de

‘comunicação’ entre o ator e o espectador” (1975, p. 14 apud PAVIS, 1999, p. 373, grifo

do autor e itálico nosso). A ideia do teatro como comunicação também está presente na

definição de Kühner e Kühner (1989, p. 28-29): “O teatro é um processo cultural de

comunicação, [...] um método de ampla influência possível na comunidade visada ou na

própria sociedade como um todo”. Como já destacado em dissertação de Mestrado, a

importância da arte teatral, em termos culturais, é para Federico Garcia Lorca de tal

ordem, que o dramaturgo chegou a afirmar: “mede-se a cultura de um povo pelo seu

teatro” (apud HANSTED, 2013).

Para Guimard (2010, p. 83, grifos nossos), teatro é “uma arte de equipe e de

escuta”. Nessa mesma linha, Ledubino (2009, p. 1, grifos nossos) afirma: “o Teatro é, por

excelência, uma arte coletiva que tem na colaboração entre seus membros um

pressuposto irrefutável para sua realização”. E é exatamente a colaboração que Michael

Boyd, ex-diretor artístico da Royal Shakespeare Company, considera a quintessência da

arte teatral (NEELANDS, 2009). Além disso, vale também lembrar que diversos

especialistas – a exemplo de Boal (2011), Cabral (2006), Courtney (1980), Koudela

(1992, 1999), Lazzaratto (2003), Reverbel (1989, 1997), Ryngaert (1991, 2009), Spolin

(1999, 2000), entre outros – entendem o teatro e, em especial o aprendizado dessa

linguagem, como jogo.

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Coletividade, troca, diálogo, comunicação, política, participação, escuta,

colaboração, cultura, jogo... Em todas essas definições e reflexões pode-se vislumbrar

uma mesma ideia; de tal modo que poderíamos responder à pergunta “o que é teatro?”,

dizendo que é a arte do encontro, da alteridade, das relações. Ou, simplesmente: teatro é

relação (HANSTED, 2013). Simples assim. Relação, a priori, com o outro, em diversas

instâncias: o outro-colega, o outro-diretor, o outro-personagem, o outro-autor, o outro-

espectador. São relações que se constroem tanto na cena quanto fora dela; tanto nos

momentos de apresentação quanto nos de criação. Relações, não raro, distintas daquelas

que se constroem no dia a dia: são “extra cotidianas” e, por isso mesmo, extraordinárias.

Relações que, como pudemos comprovar na pesquisa de Mestrado já citada, são propícias

ao desenvolvimento de valores ligados à cidadania, uma vez que tendem a ser pautadas

“pela troca, pela construção conjunta, pelo compartilhamento de ideias e convivência com

as divergências” (HANSTED, 2013, p. 244).

Mas teatro não é relação apenas com o outro – é consigo mesmo. Ou, melhor

dizendo, é um encontro com o “outro-eu”. Quando assistimos a uma encenação,

refletimos sobre nós mesmos, sobre nossa condição humana, nossos sentimentos, nosso

ridículo, nossas dores, horrores e amores. Quando temos a oportunidade de atuar,

precisamos dar vida a nosso personagem e, para isso, muitas vezes é preciso encontrá-lo

em nós mesmos, ou buscá-lo fora de nós. O que eu carrego dele? O que não carrego? O

que carrego, mas escondo? Dar vida é corporificar. É dar corpo e voz; sentimento e

verdade. É metamorfosear-se, ainda que pelo breve instante da atuação. Uma

metamorfose “poético-orgânica”, como coloca Lazzaratto (2008, p. 223), que defende

que o ator, ao escavar as entranhas de si mesmo para dar vida a determinado papel,

manifesta heterônimos: “O ator é vários, ele contém multidões dentro de si. Quando ele

realiza seu ofício, ele dá outro nome àquela criatura que vivencia aquelas tais

circunstâncias. Heterônimo. Um outro em/de si” (LAZZARATTO, 2008, p. 247, grifo

nosso).

Neste ponto, podemos retomar a definição de teatro como local “onde se vê”.

Veem-se encenações, sim, mas mais que isso: vemos o outro e vemos a nós mesmos.

Talvez por isso Arthur Schopenhauer (apud COUY, 2012, p. 1) tenha certa vez afirmado:

“Não ir ao teatro é como fazer a toalete sem espelho”. Interessante notar que nessa

analogia é justamente o espelho que falta na ausência do teatro. Falta o lugar onde se vê...

onde nos vemos. Falta ver-nos fora de nós, no outro, nas relações.

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INTRODUÇÃO

Partindo da ideia de que teatro, como colocado na Apresentação, é uma relação,

em que se constroem conhecimentos sobre si mesmo e sobre os outros, é de se supor que

sua prática esteja fortemente vinculada a questões identitárias. Afinal, por mais distintas

que sejam as correntes que estudam o conceito de identidade, uma questão parece ser

comum a todas elas: a identidade se constrói na relação – relação com outro e, a partir

dela, consigo mesmo. Nesse sentido, Alves (2017a, p. 37) postula: “o Homem se constitui

no processo de relação social”. Heloani e Uchida (2007, p. 197), ao abordarem os

conceitos de identidade desenvolvidos tanto por Ciampa quanto por Habermas, indicam

que “a identidade vai sendo construída mediante reiteradas identificações do próprio

indivíduo em relação a si mesmo e ao meio social”. Mead (1973 apud HONNETH, 2003,

p. 136) também destaca a importância das relações sociais e afirma que apenas quando o

indivíduo “assume as atitudes do grupo social organizado ao qual ele pertence [...], ele

pode desenvolver uma identidade completa e possuir a que ele desenvolveu”. Essa

relevância do processo de socialização é bastante enfatizada por Dubar (2005, p. 135-136,

grifo do autor):

[...] a identidade nada mais é que o resultado a um só tempo estável e

provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural,

dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os

indivíduos e definem as instituições.

Segundo Sposito (2014), a importância do outro na construção da identidade é

também central no entendimento de Alberto Melucci, para quem existe uma mobilização

dos afetos no processo em que um indivíduo se reconhece como pertencente a

determinado grupo: “a identidade não se constitui somente a partir de dimensões

cognitivas, os indivíduos são ‘afetados’ pela presença do outro” (SPOSITO, 2014, p. 118,

grifo do autor). O reconhecimento do outro é central para Honneth (2003, p. 220), autor

que postula que, para o sujeito “[...] chegar a uma autorrelação bem-sucedida, ele depende

do reconhecimento intersubjetivo de suas capacidades e de suas realizações”. Ideia

congruente é desenvolvida por Habermas (1983, p. 22 apud HELOANI; UCHIDA, 2007,

p. 194), que afirma: “ninguém pode edificar sua própria identidade independentemente

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das identificações que os outros fazem dele”. Ou, como bem resume Ciampa (1987, p.

86): “Só se é alguém através das relações sociais”.

Subjaz a todas essas afirmações o entendimento de que a identidade não pode ser

considerada imutável, permanente, fixa. Se ela se constrói nas relações sociais, é evidente

que também se vai modificando à medida que se transformam os processos de

socialização vivenciados pelos indivíduos. Por esse motivo, Melucci (1995), ao estudar

as identidades, fala de processos de identização, uma vez que existe um processo

contínuo, tanto para grupos quanto para indivíduos, de tentar definir quem são, com quem

se identificam e de quem se diferenciam. Ao tratar das contribuições do sociólogo italiano

para o estudo das identidades, Sposito (2014, p.118) chama atenção para a ideia de

movimento permanente: “a identidade é um processo contínuo de interação, de

negociação compartilhada e de ativação de relações”.

Desenvolvendo concepção análoga no tocante à identidade como fenômeno não

dado a priori, Dubar (2005, p. 135) explica: “a identidade nunca é dada, ela sempre é

construída e deverá ser (re)construída em uma incerteza maior ou menor e mais ou menos

duradoura”. A ideia de identidade como um processo em permanente construção e

reconstrução é também bastante presente na obra de Ciampa (1987, p. 16), para quem

“identidade é metamorfose”, ou seja, trata-se de um fenômeno não estático e em constante

mutação.

Ao compreender o teatro como relação e a identidade como processo que se forma

e transforma por meio das relações, vislumbra-se uma pergunta, que é mote para a

realização desta pesquisa: pode o fazer teatral impactar a construção e a reconstrução

identitária? A partir desse questionamento, outra questão correlata emerge, advinda da

prática profissional da pesquisadora (professora de teatro há aproximadamente 20 anos):

se considerarmos a adolescência como um momento em que o indivíduo busca encontrar-

se, e a escola como local privilegiado de encontro com o outro, não seria o ensino do

teatro, durante a adolescência, uma atividade potencialmente formadora e transformadora

de identidades, justamente por ampliar as possibilidades desses encontros?

A respeito dessa ampliação de possibilidades, é imprescindível considerar o

grande potencial emancipador que a atividade teatral oferece. Seja por possibilitar a

vivência de diferentes papéis, seja por seu caráter marcadamente coletivo, ou ainda por

promover o contato com uma linguagem artística, o teatro tem a potencialidade de alargar

exponencialmente o repertório do aluno sobre maneiras de ser e estar no mundo. Trata-

se, portanto, de prática altamente propensa à conquista da autonomia. Afinal, como

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também já afirmado em trabalho de Mestrado, “quando o indivíduo elabora e emite seus

próprios discursos sobre a realidade, pode questioná-la e reinventá-la, tornando-se

protagonista de sua própria história” (HANSTED, 2013, p. 45).

Aqui, vale mais uma vez retomar o filme mencionado na Apresentação, em que a

personagem da professora de teatro constantemente repetia a seus alunos: “Arrisque. Se

jogue”. É emblemática a cena em que os alunos chegam para a primeira aula de teatro,

após terem sido selecionados para o elenco da peça Alice no País das Maravilhas: eles

correm para se sentar à beira do palco, com seus textos em mãos, e ficam à espera de

algum comando da professora. Ela, contudo, permanece sentada na plateia, sem dizer

coisa alguma.

— O que vamos fazer? – pergunta um.

— Eu não sei. O que vamos fazer? – devolve a professora.

— Não vai dizer pra gente o que é para fazer? – questiona outro.

— Não, me digam vocês.

Não demora muito para que os alunos percebam que eles podem encenar sozinhos,

arriscando, “se jogando” na cena. Ao final desse primeiro ensaio, a professora aplaude os

pequenos, dizendo:

— Bravo! Bem-vindos ao País das Maravilhas!

Os dizeres, obviamente, fazem referência ao título da peça que vão montar;

contudo, carregam uma analogia que também serve de resposta à pergunta que lançamos

há pouco (“Afinal que é teatro?”): o teatro é esse país (capaz) de maravilhas.

PROBLEMA DE PESQUISA

QUESTÕES NORTEADORAS E ALGUNS ESCLARECIMENTOS

As reflexões até aqui apresentadas conduziram à questão que constitui o mote para

a realização desta pesquisa: se a identidade se constrói na relação com o outro e consigo

mesmo, e se o teatro é justamente uma relação, em que se pode encontrar a si próprio via

encontro com o outro, não estaria, então, essa arte profundamente ligada a processos de

formação e transformação identitária? Essa indagação norteia este trabalho, que se propõe

a estudar a relação entre teatro e identidade, tomando por base o fato de estarem ambos

fundamentados nas relações sociais.

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O foco da investigação é direcionado para o teatro em contexto educacional,

realizado com estudantes na faixa etária entre 13 e 19 anos, usualmente definida como

fase da adolescência. Tal enfoque, além de vir ao encontro dos questionamentos

suscitados pela prática docente da pesquisadora, de certa maneira reforça ainda mais as

ligações entre teatro e identidade. Afinal, escola e adolescência destacam-se,

respectivamente, como local e fase da vida privilegiados para a construção das relações

sociais.

Interessa-nos, portanto, investigar o papel do teatro na educação no que diz

respeito à sua contribuição para a construção da identidade dos alunos. O estudo busca

compreender se, como e por que a atividade teatral, em especial no período da

adolescência, pode impactar a construção de identidades, de modo a influenciar as

representações que os indivíduos têm e buscam para si próprios, seus relacionamentos

pessoais e suas escolhas profissionais.

Assim, no decorrer da pesquisa, procuramos responder a questionamentos como

os seguintes: quais as influências do teatro, quando realizado em ambiente escolar, para

a identidade dos alunos? De que maneira a atividade teatral pode contribuir para a

construção da identidade durante o período da adolescência? As possíveis transformações

provocadas pelo teatro têm impacto nas trajetórias de vida desses estudantes? Indivíduos

que fizeram teatro na escola durante a adolescência percebem influências dessa

experiência em sua vida adulta? De que forma as experiências com o teatro, durante a

fase da adolescência, influenciam ou impactam a visão de mundo dos estudantes? As

possíveis metamorfoses identitárias provocadas pelo teatro contribuem para o processo

de emancipação dos sujeitos? De modo resumido, o que buscamos verificar é se o

indivíduo que faz teatro é, em alguns aspectos, diferente – não de outros sujeitos que não

passaram por essa experiência, mas diferente de si próprio, no que tange ao que ele era

antes de fazer teatro e do que possivelmente seria no presente, se não tivesse feito.

Para tanto, são apresentadas e analisadas rodas de conversa e entrevistas com

adolescentes (entre 13 e 19 anos) e indivíduos adultos, de ambos os sexos, que integram

ou tenham integrado grupos de teatro escolar dirigidos pela pesquisadora. Os

entrevistados relatam memórias anteriores, concomitantes e posteriores ao teatro

vivenciado na escola, e refletem sobre a contribuição da experiência para a construção de

suas identidades pessoais e profissionais. Nesses relatos, os sujeitos comparam a

percepção sobre si próprios que tinham antes de fazer teatro com aquela que têm no

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presente, após passarem por essa experiência. Assim sendo, tencionamos entender se e

como o teatro pode ampliar as possibilidades identitárias do sujeito.

O material é analisado, buscando aportes teóricos em abordagens das Ciências

Humanas, tendo como principais referenciais teóricos Antônio da Costa Ciampa

(1987,1989) (com destaque para os termos e os aspectos ligados ao universo teatral de

que o estudioso lança mão para explorar o conceito identidade), Axel Honneth (2003)

(cuja teoria do Reconhecimento se relaciona aos desdobramentos da pesquisa) e Claude

Dubar (2005) (quanto ao entendimento sobre a socialização e sobre os processos de

construção da identidade).

Diante do exposto, cumpre esclarecer ainda que nossa intenção, aqui, não é a de

justificar a presença do teatro nas escolas por sua suposta contribuição ao

desenvolvimento psicológico dos alunos. Houve uma época, em especial durante a

primeira metade do século XX, em que concepções mais tarde denominadas

“contextualistas” preponderavam: para essas correntes, as finalidades educacionais de se

trabalhar com arte em escolas estariam ancoradas na dimensão psicológica do processo

de aprendizagem (KOUDELA, 1992). Assim, trabalhar com arte, para seus defensores,

seria justificável por atender a demandas emocionais das crianças. Todavia, esse trabalho

muitas vezes era entendido como deixar as crianças livres para explorarem seu potencial

criativo. No caso do teatro, Slade (1978), por exemplo, defendia que os alunos deveriam

dedicar-se à exploração do drama infantil, sem, contudo, haver a interferência externa do

adulto ou o direcionamento para o aprendizado de técnicas e códigos específicos da

linguagem teatral. Compreender as especificidades de uma linguagem artística, para os

defensores das concepções contextualistas do ensino da arte, não só não era considerado

importante, como também indesejável, uma vez que poderia tolher a expressão criativa

das crianças e, por conseguinte, prejudicar seu desenvolvimento psicológico.

A partir da década de 1960, porém, estudiosos ligados ao ensino da arte

começaram a questionar a concepção segundo a qual a criança desenvolve,

espontaneamente, sua expressão artística, e passaram a investigar quais seriam as

contribuições singulares das linguagens artísticas para a educação. Surgia, desse modo,

a abordagem “essencialista” ou “estética”3 do ensino da arte, e é a esse entendimento que

nos alinhamos: defendemos e praticamos o ensino do teatro como linguagem artística,

3 A dicotomia entre as dimensões “instrumental” e “estética” auxiliam a compreender as diferentes

propostas de ensino no campo das artes. No entanto, é preciso ponderar que, na prática, tais dimensões,

muitas vezes, se interpenetram (JAPIASSU, 2009).

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dotado de conteúdos próprios, cujo aprendizado, por si só, já se justifica, posto que pode

ampliar de modo singular a experiência humana dos sujeitos. Como bem resume Martins

(2017, p. 12), “o teatro educa por ser teatro”. O trabalho teatral desenvolvido na escola

onde estudam (ou estudaram) os participantes desta pesquisa, portanto, não tem

finalidades outras que não o próprio teatro. Interessa-nos que o aluno explore, apreenda

e aprenda essa linguagem artística. Desdobramentos psicológicos, quando aparecem, são

consequência desse aprendizado da linguagem, exatamente porque o teatro, como arte,

tem a potência de nos fazer acessar espaços poéticos.

Pereira (2013) pondera que produzir arte, em qualquer das linguagens, é produzir

no sujeito um outro tempo; é permitir que se converse com si próprio, olhando o outro

(fora e dentro de nós). Coloca, ainda, que “a arte é a experiência das sutilezas, o

desvelamento das entranhas de nós mesmos” (PEREIRA, 2013, p. 29). Por isso,

acreditamos que o teatro, como fazer artístico, possa ser transformador; por isso,

pressupomo-lo construtor e reconstrutor da identidade. Aí reside uma questão primordial

de nosso foco investigativo: entender se e como o ensino do teatro, em suas

especificidades artísticas, pode contribuir para a construção da identidade. Em outras

palavras, interessa-nos descobrir o que o teatro tem de específico (diferente de todas as

outras disciplinas escolares, e até das demais linguagens artísticas), que configura uma

contribuição única para formação identitária. Neste ponto, é importante que já se adiante

que, ao falarmos de identidade, seu caráter de identidade humana será bastante enfatizado,

como poderá ser visto já nos capítulos iniciais da tese. Como aponta Eisner (1972 apud

KOUDELA, 1992, p. 18), “o valor primeiro da arte reside [...] na contribuição única que

traz para a experiência individual e para a compreensão do homem”. Essa experiência

individual única e essa compreensão do homem são a tônica de nossa abordagem da

identidade.

JUSTIFICATIVA

OS PORQUÊS – CIENTÍFICOS, SOCIAIS E PESSOAIS – QUE CONDUZIRAM A ESTA TESE

O potencial educativo do teatro tem sido explorado desde a Antiguidade. A

despeito dos distintos objetivos pedagógicos valorizados em cada período, a arte teatral

sempre foi concebida como uma aliada à educação. Hoje, os estudos na área da pedagogia

do teatro são caracterizados pela existência de diversas concepções teóricas e uma vasta

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gama de propostas metodológicas. Entretanto, por mais distintas que possam ser as

abordagens do teatro em processos educacionais, é consenso entre estudiosos que a

atividade tem muito a oferecer ao desenvolvimento dos alunos. Do ponto de vista do

indivíduo, o fazer teatral tem o potencial de proporcionar ao aluno um contato

aprofundado com seus próprios recursos corporais, a ampliação da capacidade de

comunicação, o desenvolvimento da criatividade e o aprimoramento do senso estético.

Do ponto de vista coletivo, a atividade teatral pode favorecer o desenvolvimento

da sociabilidade, da solidariedade, do senso de responsabilidade, da aceitação do outro e

do reconhecimento das diferenças culturais – temática fundamental para o

desenvolvimento de uma cultura cidadã de direitos. Como ressaltam Strazzacappa

Hernandez e Vianna (2001, p. 122), o estudo do teatro pode proporcionar “[...] o

aprendizado da vivência em grupo, da criação coletiva, da partilha de diversos pontos de

vista”. Além disso, na atualidade, muitos autores convergem no sentido de frisar que o

teatro, em processos educacionais, pode e deve contribuir para o processo de emancipação

dos sujeitos (DESGRANGES, 2011; HANSTED, 2013).

Contudo, o espaço dedicado ao teatro em instituições de ensino no território

nacional é, de modo geral, ainda incipiente, mesmo após a nova Lei de Diretrizes e Bases

da Educação Nacional (LDB, Lei n.o 9.394/96) (BRASIL, 1996) ter estabelecido, há mais

de 20 anos, o ensino da arte como componente curricular obrigatório nos diversos níveis

da Educação Básica. Não raro, o teatro é compreendido como atividade supérflua e menos

importante que outros componentes curriculares. A esse respeito, Japiassu (2009) destaca

que o ensino das artes é concebido por muitos professores, funcionários de escolas, pais

de alunos e até pelos próprios estudantes, como supérfluo, ligado a atividades de lazer e

recreação, ou como um “luxo”, permitido somente a estudantes de classes econômicas

mais favorecidas. Pupo (2011) também critica a não valorização do teatro em ambientes

escolares e entende que tal lacuna precisa ser preenchida com urgência, especialmente

quando se concebe a escola como instituição fundamental ao desenvolvimento da

sociedade democrática.

O papel do teatro na escola e sua contribuição para a formação da cidadania foi

objeto de estudo de pesquisa de Mestrado desenvolvida por esta pesquisadora, na

Faculdade de Educação da Unicamp, entre os anos de 2011 e 2013. Na dissertação

elaborada durante o processo, foi apresentado o trabalho teatral desenvolvido em uma

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instituição da rede particular de ensino da cidade de Campinas4 e realizadas entrevistas

com alunos e ex-alunos de teatro da referida escola. Os estudos levaram à compreensão

de que a exploração e a apropriação da linguagem teatral constituem atividade propensa

à instauração de processos emancipatórios e à conquista da autonomia, contribuindo

significativamente para a formação do cidadão crítico, reflexivo, participativo e

consciente de seu papel na sociedade.

Tal entendimento motiva a pesquisadora a querer dar continuidade aos estudos

iniciados no Mestrado, abordando, agora, pontos que se foram delineando como

importantes eixos temáticos para o prosseguimento da investigação sobre os impactos do

ensino do teatro, e aprofundando-se em uma das questões fundamentais para uma

cidadania plena, ou seja, a construção da identidade dos indivíduos. O interesse

investigativo sobre tal enfoque surgiu durante a realização de entrevistas para o Mestrado,

uma vez que a questão identitária apareceu de modo recorrente e espontâneo nas falas de

quase todos os sujeitos.

Entendemos que investigações sobre o ensino do teatro e suas consequências para

a formação dos estudantes, como é o caso deste trabalho, podem contribuir tanto para a

ampliação do debate sobre o tema como para a valorização dessa linguagem artística – ao

mesmo tempo tão importante e tão pouco valorizada – na educação. Além disso, o estudo

de consequências de trabalhos teatrais desenvolvidos em instituições escolares que

valorizam e incentivam o teatro em seus projetos pedagógicos pode contribuir para a

elaboração de políticas públicas e trabalhos teatrais adaptados a outras instituições e

campos do saber.

Como sujeitos da pesquisa para este Doutorado, foram selecionados alunos e ex-

alunos que participam ou participaram, durante a adolescência, de grupos de teatro

dirigidos pela pesquisadora, na mesma instituição de ensino, foco da pesquisa de

Mestrado. Cada uma dessas escolhas – a inclusão de alunos e ex-alunos, o enfoque na

adolescência, o fato de os sujeitos serem conhecidos da pesquisadora e a opção pela

mesma instituição de ensino – tem também suas justificativas. Vamos a elas.

Facilidade de contato com os sujeitos, possiblidade de colher uma quantidade

significativa de depoimentos, e ter um conhecimento aprofundado sobre como foram os

processos e as vivências teatrais a que cada um dos entrevistados se refere são motivos

que levaram à escolha tanto dos sujeitos quanto da escola na qual fizeram teatro. Além

4 Instituto Educacional Imaculada (IEI).

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deles, destaca-se a proposta de continuidade da pesquisa iniciada no Mestrado. O leitor

interessado em maiores detalhes sobre a metodologia do trabalho com teatro desenvolvida

na instituição onde os sujeitos estudaram e fizeram teatro durante a adolescência poderá

obtê-los com uma consulta à dissertação. Ademais, não se pode deixar de mencionar que,

ao lado das contribuições teóricas, científicas, acadêmicas ou sociais que (esperamos) esta

tese possa oferecer, figuram, para sua elaboração, justificativas de cunho pessoal. Foram

também essas últimas que determinaram a seleção dos sujeitos: conhecer melhor os

próprios alunos e ex-alunos, com quem fortes laços afetivos são em geral estabelecidos,

e desvendar as contribuições que o teatro proporcionou às suas vidas estão dentre as mais

importantes motivações para a realização deste estudo.

A participação, como sujeitos de pesquisa, tanto de estudantes quanto de ex-

estudantes – o que implica o trabalho com indivíduos de diferentes faixas etárias – se

justifica pela oportunidade de compreendermos a influência do teatro em diferentes fases

da vida. Os relatos dos adolescentes auxiliam no entendimento, com maior clareza, acerca

dos processos de metamorfose identitária que o teatro tem o potencial de desencadear,

tendo em vista que esses sujeitos podem estar, no presente, vivenciando esses processos.

Já os ex-alunos têm mais a contribuir no que diz respeito aos significados, em longo prazo,

dessas transformações, já que em suas narrativas a memória de um tempo mais longínquo

– e, portanto, um olhar ressignificado – protagoniza as narrativas.

A opção pelo recorte na adolescência tem motivos de ordem prática e teórica. A

justificativa de teor prático recai sobre o fato de a maior parte dos alunos da pesquisadora

ter entre 13 e 17 anos. Os sujeitos entrevistados de mais idade (hoje na faixa dos 35 anos),

inclusive, começaram, todos, a fazer teatro durante a adolescência5. A julgar apenas por

esses motivos, poderíamos dispensar a utilização do termo “adolescência” (cujas

definições são, por vezes, controversas) e fazer menção apenas ao recorte etário,

referindo-nos, na descrição de nossos sujeitos, somente às suas idades. Contudo, falamos

5 Os sujeitos de mais idade entrevistados (participantes do primeiro grupo de teatro da escola em foco),

estavam, à época em que começaram a fazer teatro (ano de 1997), nas então denominadas 7.ª e 8.ª séries do

Ensino Fundamental. A título de esclarecimento ao leitor, vale observar que, à época da formação do

primeiro grupo de teatro do IEI, a pesquisadora, então estudante da instituição, atuava nas encenações do

grupo, mas era também sua “diretora”, e, como tal, propunha os textos a serem encenados, organizava os

ensaios, ajudava na construção dos personagens e era a responsável pelo grupo. Em 1999, ao deixar a

escola para cursar Artes Cênicas, continuou, voluntariamente, conduzindo os trabalhos de teatro na

instituição. No ano de 2000, foi contratada provisoriamente como professora de teatro e, em 2001, foi

efetivada na instituição. Com o passar dos anos, o teatro foi, gradativamente, ganhando mais espaço dentro

da escola. Hoje, é oferecido a alunos desde o 5.º ano do Ensino Fundamental até o 3.º ano do Ensino Médio.

Esse histórico será novamente abordado, com informações adicionais, no capítulo 2 (seção “Roda com ex-

alunos”).

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de identidade. E, ao estudar tal categoria, não foram poucas as vezes em que nos

deparamos com a expressão “crise da adolescência”. Habermas (2003 apud HELOANI;

UCHIDA, 2007), por exemplo, menciona duas crises de amadurecimento, a primeira na

fase edipiana e a segunda na adolescência. Parsons (1955 apud DUBAR, 2005) também

compreende esse período da vida como momento de segunda grande crise, fundamental

ao processo de socialização. Ciampa (1987, p. 96), mesmo não abordando

especificamente o tema, faz menção à adolescência como “duplicidade, divisão, conflito”.

Tal perspectiva, acreditamos, enriquece o viés da pesquisa: ao enfocarmos a adolescência,

direcionamos nosso olhar a uma fase fundamental à construção identitária. Além disso,

temos a oportunidade de verificar se o teatro, de alguma maneira, auxilia os sujeitos, se

não a superarem, talvez ao menos a atravessarem de modo menos “turbulento” esse

período de crise.

O recorte etário correspondente à adolescência é compreendido, dentro de uma

perspectiva piagetiana, como fase do desenvolvimento em que se conquista a autonomia

moral. Esse entendimento é partilhado por Habermas (1990, p. 17), que afirma que apenas

na adolescência o indivíduo consegue, paulatinamente, libertar-se do dogmatismo da fase

precedente: “com a capacidade de pensar por hipóteses e de trabalhar com discursos, o

sistema de delimitações do EU torna-se reflexivo”. Assim, consideramos apropriada a

escolha por sujeitos que fizeram ou fazem teatro durante a adolescência, pois, tendo em

vista a aquisição de bases para uma consciência crítica, têm melhores condições (em

comparação com crianças, por exemplo) de refletir sobre o que ocorre com eles próprios,

em termos identitários. Todavia, o recorte na adolescência, de modo algum, representa

uma suposição de que essa é a melhor fase da vida escolar para se fazer teatro, ou aquela

em que os efeitos na construção identitária são mais contundentes. Como bem coloca

Ciampa (1987, p. 141, grifo do autor): “quando um momento biográfico é focalizado não

o é para afirmar que só aí a metamorfose está se dando; é apenas um recurso para lançar

mais luz num episódio onde é mais visível o que se está afirmando”.

No que tange ao escopo específico da pesquisa – investigar os impactos do fazer

teatral escolar na construção da identidade de estudantes adolescentes –, este estudo

propõe uma articulação entre a Pedagogia Teatral e os campos da Psicologia Social e da

Filosofia. Não raro, essas duas últimas áreas se utilizam de termos ligados ao universo

teatral (como “papel”, “personagem”, “drama”, “ator”, “cenário”, entre outros) para

estudar o fenômeno identitário. Contudo, poucos são os trabalhos que traçam um caminho

inverso, tal como o proposto nesta pesquisa: o de aplicar conhecimentos da Psicologia

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Social e da Filosofia ao campo do Teatro para, dessa forma, melhor entender os impactos

da atividade na formação e no desenvolvimento dos sujeitos.

O estudo aqui apresentado representa, portanto, um aprofundamento investigativo

de uma perspectiva ainda pouca explorada, tendo como objeto de estudo indivíduos que

fazem ou fizeram teatro na escola durante a adolescência e que, ao lançarem um olhar

sobre a experiência vivida, no passado e no presente, podem apontar para uma ampliação

do entendimento da importância do teatro na educação e nos processos de construção e

reconstrução de sua identidade. Desse modo, esperamos que o trabalho possa contribuir

com novos conhecimentos para os campos envolvidos (Pedagogia do Teatro, Psicologia

Social e Filosofia), no tocante ao entendimento da atividade teatral como potencial

formadora e transformadora de processos identitários.

OBJETIVO

Esta investigação tem como objetivo geral estudar os possíveis impactos

identitários de experiências teatrais vivenciadas em contextos educacionais, durante o

período da adolescência. Como objetivos específicos, destacam-se: apontar as principais

transformações, em termos identitários, que a atividade teatral escolar pode exercer em

adolescentes; verificar se as metamorfoses apontadas pelos sujeitos entrevistados

constituem processos emancipatórios; destacar as principais causas de metamorfoses

identitárias provocadas pela experiência com o teatro; compreender de que forma

especificidades do fazer teatral (como a relação palco-plateia, o caráter coletivo e a

interpretação de papéis) podem propulsionar processos de formação – e transformação –

de identidades; apresentar visões de indivíduos de diferentes idades acerca dos impactos

do fazer teatral vivenciado durante a adolescência; compreender se a experiência de fazer

teatro na escola durante a adolescência pode contribuir para a construção de trajetórias de

vida, de modo a influenciar a identidade pessoal e profissional dos sujeitos; verificar se o

possível impacto da atividade teatral realizada durante a vida escolar continua

reverberando anos após a experiência, de modo a participar também de metamorfoses

posteriores.

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HIPÓTESE

EM QUE SE APRESENTAM DOIS PRESSUPOSTOS E UMA TESE A SER VERIFICADA

Esta pesquisa, conforme até então disposto, trabalha com a hipótese de que o

ensino do teatro, durante a adolescência, pode impactar processos identitários. Tal

suposição sustenta-se em dois pressupostos, cada qual relacionado a um dos grandes

campos sobre os quais versa a investigação – teatro e identidade. O primeiro dos

pressupostos, embasado na concepção com que trabalha Ciampa (1987), é o de que

identidade é metamorfose em busca de emancipação (abordagem que será retomada e

desenvolvida na análise final dos dados). O segundo pressuposto é de que o teatro, em

processos educacionais, tem o potencial de contribuir com o processo de emancipação

dos sujeitos (HANSTED, 2013).

Ora, se a construção da identidade passa pela busca da emancipação, e se o teatro

é atividade com forte potencial emancipador, é de se supor que a atividade teatral possa

impactar a construção identitária, de modo a favorecer o processo de emancipação dos

indivíduos. Eis a tese para a qual procuramos comprovação.

MÉTODO

EM QUE SE EXPLICITAM OS CAMINHOS ESCOLHIDOS PARA CONDUZIR A INVESTIGAÇÃO

Para compreender o impacto do fazer teatral na construção e na reconstrução da

identidade, esta pesquisa parte de narrativas de indivíduos que fizeram teatro durante a

adolescência. Em relatos conduzidos pelos meandros da memória, os participantes

resgatam experiências significativas para cada um e refletem sobre si mesmos.

Alves (2017a, p. 35), ao pesquisar o processo de identidade de adolescentes,

também se vale da “narrativa, mediada pela linguagem e pela memória”, baseando-se,

para tal escolha metodológica, no entendimento de Habermas (1983, p. 22):

[...] pode existir uma evidência esmagadora quanto à identidade corpórea de

uma pessoa, mas para ter certeza quanto à identidade da pessoa temos que

abandonar a atitude proposicional e interrogar com atitude prática o

interessado sobre sua identidade, pedindo-lhe para identificar-se por si mesmo.

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Ao “narrar-se”, o sujeito não apenas conta uma história. Ele se constrói e

reconstrói, em um movimento que possibilita, no presente da narrativa, a coexistência do

passado e do futuro: “é no presente que se articula o movimento entre o vivido (passado)

e o que deve ser vivido (futuro), no presente estão contidos o passado e o projeto de futuro

que me definem e se transformam a cada momento” (ALVES, 2017a, p. 390). Como bem

coloca Lazzarato (2011, p. 76), “[...] ao recordar, o indivíduo reconstrói os estilhaços de

lembranças e os reorganiza coerentemente de acordo com sua circunstância presente”.

Assim, na reconstrução de vivências apresentadas nesta pesquisa, em que histórias e

reflexões trazidas à tona pelos entrevistados contribuem para a elucidação do objeto de

pesquisa, interessa-nos olhar o passado não como “aquilo que passou”, mas como uma

experiência que se reflete no presente e nos ajuda compreendê-lo, uma experiência que

nos permite lançar o olhar para o futuro.

A memória não é jamais como aparece superficialmente, ou seja, como uma

retrospectiva, um resgate passivo e seletivo de fatias do passado que vêm,

como um decalque, compor ou ilustrar nosso presente; seu movimento, ao

contrário, é antes de mais nada o de prolongar o passado no presente. A

memória não é regressiva (algo que parte do presente fixando-se no passado);

ela é prospectiva e, mais do que isso, é projetiva, lançando-se em direção ao

futuro. (SEIXAS, 2002, p. 45)

Esta é, portanto, uma pesquisa qualitativa que transita pelos campos da História e

da Memória, tais como compreendidos por Benjamin (1993), Burke (1992, 2002, 2005),

Le Goff (1996), Ricoeur (1968) e Seixas (2001, 2002). Nessa perspectiva, entendemos

que “o tempo histórico encontra, num nível muito sofisticado, o velho tempo da memória,

que atravessa a história e a alimenta” (LE GOFF, 1996, p. 13, grifo do autor). Memória

entendida por Marieta Ferreira (2000, p. 111) como “[...] a construção do passado pautada

por emoções e vivências”; por Squire (2003 apud LAZZARATTO, 2011, p. 82), como

“[...] o cimento que une nossa vida mental, o arcabouço que mantém nossa história

pessoal e torna possível crescermos e mudarmos ao longo da vida”; e por Júlio Pimentel

Pinto (1998, p. 307) como “[...] lugar de refúgio, meio história, meio ficção, universo

marginal que permite a manifestação continuamente atualizada do passado”.

Não por acaso, história e arte são campos fundamentalmente ligados à memória,

como bem lembra Lucilia de Almeida Neves Delgado (2003, p. 16), fazendo referência

ao universo mitológico grego:

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Menemosyne é mãe das musas que protegem a história e a arte. História que é

a construção da experiência humana através dos tempos. Arte, que traduz os

sentimentos e emoções dos seres humanos e representa os valores e as

expectativas de uma época.

Refletindo justamente sobre os impactos de um fazer artístico, são as vozes dos

sujeitos que, neste estudo, conduzem o olhar da pesquisadora – e, consequentemente, do

leitor – para questões significativas do ponto de vista identitário. Significativas porque

carregadas de significados para aqueles que são exatamente os sujeitos da experiência.

Vale, neste ponto, recorrer à definição de Jorge Larrosa (2002a, p. 25-26, grifo do autor

e itálico nosso): “É experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos

acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência

está, portanto, aberto à sua própria transformação”.

Com essa perspectiva, entendemos que as narrativas dos alunos e dos ex-alunos

de teatro a partir das quais são tecidas as reflexões apresentadas nesta tese constituem

fragmentos de verdadeiras experiências, na acepção de Larrossa anteriormente exposta,

podendo, portanto, indicar processos de metamorfose identitária. Pela própria substância

da memória, esses fragmentos não retratam em sua totalidade o que se passa ou passou

ao longo do período em que cada sujeito participou de atividades teatrais – afinal, “o eu

se lembra muitas vezes daquilo que ele quer lembrar e não necessariamente de todo o

ocorrido” (LAZZARATTO, 2011, p. 81). Contudo, exatamente por serem trazidos à tona

por aqueles que são os sujeitos da experiência, jogam luz sobre os pontos que aqui nos

interessam investigar: os aspectos potencialmente formadores e transformadores da

identidade.

Identidade que, como já colocado, forma-se e transforma-se na relação com o

outro, aspecto que é também o fundamento do fazer teatral. Tendo isso em vista, optamos,

prioritariamente, por um procedimento metodológico de cunho coletivo: as rodas de

conversa.

[...] Rodas de Conversa consistem em um método de participação coletiva de

debate acerca de determinada temática em que é possível dialogar com os

sujeitos, que se expressam e escutam seus pares e a si mesmos por meio do

exercício reflexivo. Um dos seus objetivos é de socializar saberes e

implementar a troca de experiências, de conversas, de divulgação e de

conhecimentos entre os envolvidos, na perspectiva de construir e reconstruir

novos conhecimentos sobre a temática proposta. (MOURA; LIMA, 2014, p.

101)

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Por meio das rodas de conversa, os sujeitos da experiência não apenas rememoram

o que se passa ou passou com eles, mas têm a oportunidade de partilhar suas histórias,

encontrar-se nas narrativas dos outros e reconstruir, juntos, momentos que juntos foram

vivenciados. Assim, se o teatro tem no fazer conjunto seu substrato, julgamos pertinentes

e significativas a rememoração e a reflexão conjuntas sobre experiências ali vivenciadas.

O sujeito é sempre um narrador em potencial. O fato é que ele não narra

sozinho, reproduz vozes, discursos e memórias de outras pessoas, que se

associam à sua no processo de rememoração e de socialização, e o discurso

narrativo, no caso da roda de conversa, é uma construção coletiva. (MOURA;

LIMA, 2014, p. 99)

No capítulo 1, discorreremos com maior detalhamento acerca do método das rodas

de conversa e de sua compatibilidade com os objetivos da pesquisa. Por ora, cumpre

relembrar que os participantes do procedimento são sujeitos que integraram e/ou integram

grupos teatrais escolares dirigidos pela pesquisadora, em uma instituição particular de

ensino da cidade de Campinas. A opção pela roda de conversa também se adéqua ao fato

de a pesquisadora conhecer os sujeitos: ela se insere como participante das rodas tanto de

forma objetiva (propondo reflexões) quanto simbólica (afinal, foi professora de teatro de

todos os entrevistados e, direta ou indiretamente, participou de todas as histórias e as

memórias por eles levantadas).

A roda de conversa é, no âmbito da pesquisa narrativa, uma forma de produzir

dados em que o pesquisador se insere como sujeito da pesquisa pela

participação na conversa e, ao mesmo tempo, produz dados para discussão. É,

na verdade, um instrumento que permite a partilha de experiências e o

desenvolvimento de reflexões sobre as práticas educativas dos sujeitos, em um

processo mediado pela interação com os pares, através de diálogos internos e

no silêncio observador e reflexivo. (MOURA; LIMA, 2014, p. 99)

Ao todo, participaram das rodas de conversa 47 sujeitos, dentre os quais 26

adolescentes e 21 indivíduos adultos. Foram realizadas duas rodas: a primeira, composta

primordialmente por alunos de teatro; a segunda, por ex-alunos. De acordo com o que

será descrito com maiores detalhes no capítulo subsequente, os participantes foram

convidados a refletir sobre a contribuição da experiência teatral para a construção de sua

trajetória e identidade. Ao final de cada procedimento, foram feitas breves entrevistas

individuais com alguns dos participantes, para discorrer com maior detalhamento sobre

tópicos abordados na roda. Após os procedimentos, realizou-se a transcrição deles, e o

material passou por inúmeras sessões de leitura e releitura, com vistas à delimitação dos

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eixos de análise. As rodas de conversa com alunos e ex-alunos serão apresentadas,

respectivamente, nos capítulos 1 e 2.

Além das rodas e das entrevistas individuais, foi criado pela pesquisadora um

grupo em rede social intitulado Teatro IEI de Todos os Tempos, reunindo alunos e ex-

alunos da instituição escolar em foco (além de alguns pais de estudantes e também de

funcionários da escola que já tenham participado de peças teatrais na referida escola). A

criação desse grupo (assunto que será retomado, com mais informações, no capítulo 1)

teve dois principais motivos: “reencontrar” e convidar voluntários para participar da roda

de conversa com ex-alunos e colher material para o novo espetáculo teatral que estava

sendo preparado para a escola (fortemente inspirado por esta tese, então em andamento),

em que seriam celebrados os mais de 20 anos de teatro na instituição6. No grupo em

questão, havia uma explicação, em linhas gerais, sobre os objetivos desta pesquisa e

também sobre a montagem do referido espetáculo, e a solicitação de material fotográfico

e depoimentos individuais que pudessem contribuir com os trabalhos. O material recebido

a partir desse pedido contribuiu para composição do capítulo Cenas, histórias e

memórias: uma mirada afetiva e visual, que tem por intuito apresentar um panorama

visual e memorialístico da trajetória do teatro na instituição selecionada, apresentando-a

como uma história composta por muitas histórias, em que se vão construindo identidades.

Os depoimentos enviados por ex-alunos foram também incluídos na análise dos dados da

pesquisa, somando-se ao material colhido por meio das rodas de conversa e entrevistas

individuais.

No decorrer da investigação, consideramos relevante verificar se os impactos

apontados pelos sujeitos da pesquisa seriam similares em indivíduos que também

houvessem feito teatro durante a adolescência, porém em diferentes locais e contextos (e

que, portanto, não tivessem sido alunos da pesquisadora). Por isso, foram entrevistados

quatro sujeitos com vivências teatrais distintas, e esse material (exposto no capítulo 3) foi

incluído na análise dos dados (capítulos 5 e 6).

Os dados coletados foram analisados por meio do método “análise de conteúdo”,

tal como proposto por Bardin (1979). Trata-se de um conjunto de técnicas de análise das

6 O espetáculo Geração Trianon, dirigido pela pesquisadora e apresentado em fevereiro de 2019, celebrou

duas décadas de teatro no Instituto Educacional Imaculada. Foi uma remontagem da primeira peça teatral

apresentada na instituição, em 1998, quando a pesquisadora era ainda aluna da instituição e dirigia os

colegas em montagens teatrais. Nos dias de apresentação da nova encenação, fotos e depoimentos colhidos

no grupo acima citado foram expostos no auditório da escola, de modo a formar uma instalação que

convidava a plateia a uma viagem na história do teatro na instituição e uma imersão no significado da

atividade para muitos dos alunos e ex-alunos que por ali passaram no decorrer desses 20 anos.

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comunicações que se vale de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição dos

conteúdos das mensagens, com a finalidade de inferir conhecimentos relativos às

condições de produção (e também recepção) das mensagens. Como explica Chizzotti

(2006, p. 98), “o objetivo da análise de conteúdo é compreender criticamente o sentido

das comunicações, seu conteúdo manifesto ou latente, as significações explícitas ou

ocultas”. Para tanto, Bardin (1979) propõe que o conteúdo das comunicações seja

analisado com base em núcleos temáticos, ou categorias de análise, levantados à luz dos

objetivos da pesquisa. Assim, no estudo aqui proposto, a análise das entrevistas leva em

conta, em um primeiro momento, a frequência de determinados conteúdos nas respostas

dos sujeitos. Depois, tenciona-se compreender as significações latentes desses conteúdos

manifestos, com o intuito de identificar “ideologias, tendências e outras determinações

características dos fenômenos que estamos analisando” (MINAYO, 2000, p. 76).

Ainda da perspectiva metodológica, entendemos que, se os sujeitos da pesquisa

são alunos e ex-alunos de um dado colégio, situado em determinado tempo e espaço,

podemos afirmar que esta tese parte de um estudo de caso. De acordo com Yin (2015), a

opção por essa metodologia é apropriada quando se trabalha com questões do tipo “como”

e “por que”. São exatamente esses os questionamentos para os quais buscamos resposta,

ao procurarmos entender de que modo (como) o fazer teatral pode impactar processos de

construção e reconstrução da identidade, e a causa (por que) desses possíveis impactos.

Heloani e Capitão (2007) explicam que o estudo de caso se aplica à investigação das

particularidades de um caso específico, ainda que o propósito final seja chegar a um

conhecimento passível de generalização. Como bem coloca João Pedro da Ponte (2006,

p. 106), trata-se de

[...] uma investigação que se assume como particularística, isto é, que se

debruça deliberadamente sobre uma situação específica que se supõe ser única

ou especial, pelo menos em certos aspectos, procurando descobrir a que há nela

de mais essencial e característico e, desse modo, contribuir para a compreensão

global de um certo fenómeno de interesse.

É justamente esse o caminho traçado nesta tese: partir do estudo da identidade de

alunos e ex-alunos de teatro de determinado colégio, para, então, conjecturar sobre os

potenciais impactos do fazer teatral sobre processos de construção e reconstrução

identitária. Nesse percurso, levamos em conta que nem todos os trabalhos com teatro

desenvolvidos em ambiente escolar são semelhantes e, possivelmente, as decorrências de

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cada processo também não são similares em diversos aspectos. Afinal, são muitas as

formas de se trabalhar com a linguagem teatral em contextos escolares. Há, na atualidade,

uma multiplicidade de metodologias para o trabalho com teatro, além da possibilidade de

cruzamento entre as diversas práticas existentes, conforme já apresentado em dissertação

de Mestrado (HANSTED, 2013). Daí a necessidade de analisar cada caso em suas

singularidades.

Estudando um caso específico, levando em conta suas particularidades e buscando

entender se existe na situação estudada elementos que podem ser apontados como

importantes para a construção identitária, é possível também compreender se alguns

desses elementos, de algum modo e em alguns aspectos, podem ser encontrados ou

adaptados em situações diversas (outras instituições de ensino, por exemplo). Portanto, a

opção pelo estudo de caso como ponto de partida em nosso encaminhamento

metodológico sustenta-se em dois principais motivos: a especificidade da experiência

teatral vivenciada pelos sujeitos e a possibilidade de generalização do conhecimento

propiciado pela pesquisa – generalização tanto no que tange a possíveis contribuições

para trabalhos teatrais desenvolvidos em outros contextos quanto ao entendimento das

relações entre teatro e identidade.

Esperamos, com os procedimentos metodológicos apresentados, que a pesquisa

componha um painel de representações atuais de experiências vivenciadas e memórias

passadas que, reunidas e devidamente analisadas, apontem para a dimensão da

importância do teatro escolar na formação e na transformação da identidade.

NOSSO “SCRIPT”

No intuito de seguir o itinerário de pesquisa proposto – exposição de narrativas de

sujeitos da experiência e posterior análise dos dados coletados à luz do referencial teórico

–, este trabalho se subdivide em dois blocos principais (ou dois atos, como preferimos

chamá-los): primeiro, o empírico, e, na sequência, o teórico-analítico. Essa opção por

trajeto oposto aos usualmente empregados em pesquisas científicas será retomada no

capítulo 1, em apresentação mais detalhada de aspectos metodológicos da pesquisa. Aqui,

cabe esclarecer que os capítulos 1, 2 e 3 (Ato I) se prestam à apresentação das rodas de

conversa e entrevistas, e que os capítulos 5 e 6 (Ato II) se destinam à análise dos eixos

temáticos (tópicos de maior relevância ao recorte da pesquisa, que aparecem de forma

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recorrente nas narrativas dos sujeitos), à luz dos referenciais teóricos da pesquisa. O

capítulo 4 apresenta-se como um Entreato, em que se mostra o já mencionado panorama

visual e memorialístico da trajetória do teatro na instituição selecionada.

De forma mais específica, no capítulo 1 será apresentada a roda de conversa

realizada com alunos do IEI. Antes dessa apresentação, destacamos aspectos teórico-

metodológicos do procedimento selecionado, relacionando-os a importantes questões

relativas ao fazer teatral. O capítulo 2 terá como foco a roda de conversa de com ex-alunos

e, no capítulo 3, os depoimentos de sujeitos que fizeram teatro em outros contextos.

Nesses três capítulos iniciais, a exposição das narrativas dos entrevistados será

acompanhada de apontamentos que têm a função de destacar os tópicos de maior

relevância ao recorte da pesquisa, relacionando-os a aspectos conceituais, explanados

com maior aprofundamento nos capítulos subsequentes.

Os capítulos 5 e 6 se prestarão à análise dos dados expostos na primeira parte do

trabalho. No capítulo 5, tomaremos como grandes categorias analíticas a metamorfose e

a emancipação, pontos fundamentais ao entendimento do conceito de identidade. No

capítulo 6, apresentaremos como categoria norteadora a socialização – essencial ao

entendimento da identidade – que, além de ter estreita relação com o fazer teatral, também

desponta, nas narrativas dos sujeitos da pesquisa, como uma das grandes responsáveis

pela construção identitária. Evidentemente, quando se pensa identidade, os conceitos de

metamorfose, emancipação e socialização se interpenetram e se imbricam de tal forma

que, muitas vezes, uma categoria central a um capítulo estará presente também no outro.

A divisão proposta, portanto, tem finalidade estritamente analítica, de modo a agrupar,

no capítulo 5, questões relacionadas às representações dos indivíduos sobre si próprios e,

no capítulo 6, questões de ordem relacional.

Cada um dos capítulos teóricos apresenta dois eixos temáticos que, além de

oferecerem a possibilidade de diálogo com nosso referencial, representam aquilo que,

desde o começo da tese, vem sendo apontado como o fundamento da arte teatral – a

relação com o outro. Essa propensão à alteridade, tão própria do teatro, fica também

evidente nas narrativas dos sujeitos que, ao buscarem falar sobre a própria identidade,

tantas vezes associaram sua percepção sobre si ao encontro com o outro. Desse modo, os

eixos temáticos abordados nos capítulos 5 e 6 serão: o “outro-eu”, o “outro-personagem”,

o “outro-espectador” e o “outro-colega”. Os três últimos – outro-personagem, outro-

espectador e outro-colega – abarcam questões relativas à construção identitária a partir,

respectivamente, da vivência de diferentes papéis, da relação palco-plateia e das relações

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intragrupo. São, portanto, eixos associados às singularidades do fazer teatral, e aparecem

nas mais diversas narrativas dos sujeitos entrevistados como os grandes motivadores de

processos de construção da identidade. Já o eixo outro-eu engloba as metamorfoses

identitárias em si, em especial aquelas que indicam fragmentos emancipatórios. Os eixos

“outro-eu” e “outro-personagem” (ligados a descobertas e buscas de caráter mais

individual) virão no capítulo 5; já os eixos “outro-espectador” e “outro-plateia” (de

caráter relacional), no capítulo 6.

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ATO I

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CAPÍTULO 1

RODAS QUE DESCORTINAM IDENTIDADES

“Teatro é isso: é a história que a gente forma. Cada coisinha que acontece

aqui vira história.”

Olívia, aluna de teatro (Roda de Conversa)

1.1 - RODA DE CONVERSA E O FAZER TEATRAL: ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Tal como em uma peça teatral, em que as primeiras cenas cumprem a função de

apresentar ao espectador os personagens e ambientar a trama, para depois se aprofundar

e desenvolver conflitos, esta tese apresenta, já nos capítulos iniciais, os sujeitos

investigados e o contexto no qual se inserem suas experiências com o teatro. Trata-se de

uma inversão dos moldes acadêmicos mais tradicionais, em que a teoria costuma

anteceder os resultados práticos da pesquisa. Tal inversão mostrou-se, no decorrer da

pesquisa, não apenas compatível com o objetivo de entender o impacto do fazer teatral na

construção da identidade – processo fundamentalmente subjetivo – como indispensável a

uma análise fidedigna daquilo que os próprios sujeitos da experiência compreendem

como importante em suas trajetórias.

Assim sendo, optamos por apresentar nos capítulos 1 e 2 as rodas de conversa

realizadas com alunos e ex-alunos, respectivamente. Por meio delas, é possível conhecer

aspectos importantes acerca dos sujeitos e familiarizar-se com o universo teatral do qual

eles fizeram ou fazem parte. É possível, ainda, reconhecer o que de mais recorrente e

expressivo ao escopo da pesquisa aparece nos depoimentos colhidos, para, a partir desse

reconhecimento, desenvolver a análise teórica dos capítulos subsequentes. A opção pelo

procedimento de rodas de conversa como principal instrumento de produção de dados

serve bem ao propósito apresentado. Afinal, como colocam Moura e Lima (2014, p. 99-

100), “trabalhar com narrativas evidencia-se como um estudo em que o pesquisador

procura treinar o olhar para compreender as categorias que emergem do discurso dos

sujeitos”.

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Contudo, a escolha pela roda de conversa como método investigativo vai além da

possibilidade de reconhecer categorias investigativas. Já mencionamos, na Introdução,

que pesou na decisão por tal metodologia o fato de ela encerrar, dado seu caráter de

construção conjunta, similaridade com o teatro, atividade fundamentalmente coletiva.

Aqui, retomamos essa perspectiva, acrescentando que o procedimento se relaciona, de

modo significativo, à própria experiência teatral vivenciada pelos sujeitos da

investigação.

Dinâmica em geral pouco presente na educação formal escolar devido a fatores

como a padronização, a homogeneização e a “organização de espaços, tempos e

currículos, estruturados de tal maneira a deixar poucas oportunidades para a manifestação

das diferenças e singularidades” (WARSCHAUER, 2004, p. 3), a roda é “velha

conhecida” dos alunos de teatro da instituição pesquisada: para os sujeitos desta pesquisa

que ainda fazem teatro ali, estar em roda é procedimento corriqueiro; para os ex-alunos,

colocar-se em roda é, de certa forma, voltar aos tempos de teatro na escola.

Existe uma estreita ligação entre toda a simbologia que a roda carrega e o próprio

fazer teatral. Fazer teatro, em especial em processos colaborativos (caso da escola a que

nos referimos neste estudo) é colocar-se em pé de igualdade, em posição de escuta, de

partilha. É, de fato, colocar-se “em roda”. Muitas das aulas começam com esse

procedimento. Outras tantas são encerradas com ele. Em roda nos apresentamos,

organizamos ensaios, discutimos cenas, criamos, recriamos, resolvemos conflitos. Em

roda também nos concentramos, momentos antes de cada apresentação. E nessa

concentração, de mãos dadas, rezamos a já mencionada “oração do teatro” – amplamente

mencionada por sujeitos em ambas as rodas de conversa e em muitos depoimentos

enviados via rede social.

Procedimento comum a grupos teatrais, tanto nos meios profissionais, quanto

entre amadores e estudantes, a “oração do teatro” é, por vezes, também conhecida como

“oração do ator” e pode apresentar algumas variações de grupo para grupo. A versão

utilizada na escola investigada é a seguinte: “Eu seguro minha mão na sua, para que tudo

aquilo que eu não posso e não quero fazer sozinho, possamos fazer todos juntos. Merda!”.

Nesse momento em especial de roda, o aluno sente toda a potência coletiva do fazer

teatral. Sente-se parte. E entende que teatro é relação. O procedimento é descrito da

seguinte forma por uma estudante, em depoimento enviado à pesquisadora via rede social:

[...] naquela roda tem verdade, tem vontade de fazer a melhor apresentação da

vida, tem carinho, não tem ninguém melhor que ninguém, mas principalmente

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tem MUITO amor!! A energia que é transmitida naquele momento é tão boa

que parece fazer carinho na alma. Naqueles minutos antes da peça somos todos

iguais sem nenhuma distinção, estamos todos vulneráveis e é lindo de ver o

compromisso que estabelecemos uns com os outros! (EDUARDA, grifo da

aluna)

Não à toa, o momento da oração do teatro, muitas vezes chamado pelos alunos de

“a roda”, é um dos aspectos que mais aparecem nos depoimentos colhidos: ela representa

a própria síntese do fazer teatral. E se iniciamos a tese afirmando que teatro é relação e

que a identidade se constrói a partir das relações (com o outro e consigo mesmo),

podemos compreender que, nesse momento em particular de roda, a construção da

identidade se apresenta de forma muito concreta. Ali, o indivíduo se percebe em relação

com o outro – relação profunda, de dependência; relação da qual ele precisa, para ser

“mais”. Assim, entendemos que os dizeres em questão se associam também ao próprio

processo de socialização. Por esses motivos, a expressão “eu seguro minha mão na sua”

– recorrentemente repetida nas falas dos sujeitos desta pesquisa – despontou, ao longo

dos estudos, como título apropriado a esta tese.

Não seria mais congruente, portanto, escolhermos outro procedimento para colher

os depoimentos de nossos sujeitos. Ao realizar as rodas de conversa desta pesquisa,

pudemos constatar que a decisão foi acertada: tanto na roda composta majoritariamente

por alunos (que já se conheciam, pois faziam parte de um mesmo grupo teatral) quanto

naquela da qual participaram ex-alunos de diferentes épocas, logo se instaurou um clima

de cumplicidade, em que os sujeitos demonstraram grande disponibilidade para ouvir e

partilhar narrativas. E naqueles encontros de histórias e memórias, não raro permeados

por momentos de intensa comoção, o tempo muitas vezes pareceu como que suspenso.

Exatamente o oposto daquilo que Flávio Desgranges (2013, p. 20) descreve, ao falar da

temporalidade frequentemente achatada por uma urgência opressora, característica de

nossos dias:

O estreitamento da temporalidade, ante a pressa de um cotidiano que nos

oprime e condiciona a uma racionalidade operacional, pode ser pensado

também como desestímulo aos atos coletivos e aos eventos que promovam a

convivência e a comunicação humana.

Para o autor, processos artísticos podem ser pensados como (re)encontros com a

“temporalidade perdida”, uma vez que carregam a potência de recuperar experiências

atemporais de manifestações inconscientes e fomentam relações humanas, viabilizando

que saberes propiciados por determinadas vivências, ao serem compartilhados, sejam

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ressignificados como verdadeiras experiências. Utilizando-se de uma imagem que

corresponde à sensação despontada pelas rodas de conversa realizadas e também ao

próprio fazer teatral, Desgranges (2013, p. 20, grifos do autor) fala de um “tempo

dilatado”, aberto ao movimento da subjetividade e à construção dos conhecimentos:

Os choques provocados pelo cotidiano tenso da vida moderna – tal como os

traumas para Freud - acarretam uma fratura na experiência e na linguagem,

pois fazem convite a uma função psíquica meramente funcional. O que nos

rouba o acesso ao tempo dilatado, tempo de vagar da subjetividade,

temporalidade própria à produção de conhecimentos; e dificulta que nos

disponibilizemos para os encontros, e deixemos de perceber e retribuir o olhar

que nos é dirigido por pessoas e objetos durante a vivência cotidiana.

Essa mesma ideia de que a construção do saber e a abertura para o encontro com

o outro são inibidas pelo frenesi dos dias atuais é explorada por Delgado (2003, p. 22,

grifos nossos). Em sua reflexão, a autora chama a atenção para a importância das

lembranças narradas como fundadoras de laços de pertencimento e sociabilidade:

No tempo presente, no mundo marcado pela cultura virtual e pela velocidade

muitas vezes descartável das informações, tendem a desaparecer os narradores

espontâneos, aqueles que fazem das lembranças, convertidas em casos, lastros

de pertencimento e sociabilidade. Nessa dinâmica de velocidade incontida,

desenfreada, perdem-se as referências, diluem-se os substratos da vida,

reduzem-se as possibilidades de construção do saber.

Esses sentimentos de pertencimento e sociabilidade que as narrativas têm a

potência de despertar – quase tangíveis em muitos momentos das rodas de conversa

realizadas – são justamente a essência do fazer teatral escolar. São também, como

veremos ao longo de todo este trabalho, fundamentais à formação da identidade. Já a

possibilidade de construção do saber, a que Delgado (2003) e também Desgranges (2013)

fazem menção nas citações vistas, parecia igualmente palpável no tempo dilatado do ouvir

e do falar que as rodas de conversa oportunizaram: uma memória desencadeava outra; a

reflexão de um suscitava a reflexão do outro; os pontos comuns e as diferenças foram

aparecendo e sendo apontados pelos próprios entrevistados.

Mas não só isso. Ao partilhar narrativas, os sujeitos tiveram a oportunidade de

repensar e ressignificar suas próprias histórias. Como bem colocam Figueirêdo e Queiroz

(2012, p.1-2), na dinâmica das rodas de conversa, “ao mesmo tempo em que as pessoas

falam suas histórias, buscam compreendê-las por meio do exercício de pensar

compartilhado, o qual possibilita a significação dos acontecimentos”. Portanto, o

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procedimento investigativo pelo qual optamos está também intrinsecamente relacionado

à questão identitária. Larrosa (1994, p. 69, grifo nosso) coloca que o sujeito se constitui

para si próprio no transcorrer do tempo. Contudo, o tempo da vida, articulador da

subjetividade, não se restringe à linearidade e à sucessão dos acontecimentos:

O tempo da consciência de si é a articulação em uma dimensão temporal

daquilo que o indivíduo é para si mesmo. E essa articulação temporal é de

natureza essencialmente narrativa. O tempo se converte em tempo humano ao

organizar-se narrativamente. O eu se constitui temporalmente para si mesmo

na unidade de uma história. Por isso, o tempo no qual se constitui a

subjetividade é tempo narrado. É contando histórias, nossas próprias

histórias, o que nos acontece e o sentido que damos ao que nos acontece, que

nos damos a nós próprios uma identidade no tempo.

Em consonância com tal entendimento, Lazzaratto (2011, p. 81) destaca: “Eu

conto porque eu lembro. Ao me lembrar me defino e reforço minha identidade”.

Maldonato (2005, p. 492), defendendo a perspectiva narratológica e o caráter

fundamentalmente relacional da identidade, entendida por ele como uma história de vida,

aquilo que deixamos para trás e que só pode ser expresso por meio da narração dessa

história e dos encontros que a caracterizam, afirma: “narrando minha história eu torno a

nascer”.

Isso posto, revisitando e ressignificando suas próprias histórias e memórias, os

sujeitos desta pesquisa não apenas contavam sobre suas identidades, como as desvelavam,

reforçavam, construíam e reconstruíam. E no exercício de escuta e partilha proporcionado

pela roda de conversa, as possibilidades de descoberta e redescoberta de si próprio

ampliaram-se. Afinal, a idiossincrasia própria da roda, a ressonância coletiva e os espaços

de reflexão por ela propiciados oportunizam “a compreensão de dados que, talvez, não

viessem à tona se não fossem despertados pelo interesse no diálogo e na partilha”

(MOURA; LIMA, 2014, p 104). Assim, foi possível rememorar experiências vivenciadas

juntos (e compreender que para cada um, muitas vezes, seu significado é único),

identificar-se com experiências vivenciadas por terceiros, entender a si próprio a partir da

narrativa de outrem, reconhecer-se nas buscas e nas metamorfoses alheias.

Ainda, em conversas paralelas e momentos de descontração, pudemos colher

algumas das mais importantes contribuições para nossa pesquisa, a exemplo de uma

conversa entre três alunas, oportunamente registrada por nosso cinegrafista atento, em um

intervalo no procedimento. No diálogo, motivado pelas reflexões que haviam emergido

nos depoimentos colhidos em roda até aquele momento, as meninas parecem

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compreender, entusiasmadas, algumas das ideias levantadas por este estudo: a experiência

do fazer teatral depende das pessoas que ali estão; para cada um a experiência é única, ao

mesmo tempo em que é comum a todos; essa caraterística do teatro é fundamental para a

construção da própria identidade. “E tudo isso é fascinante!”, refletem elas.

1.2 - ORGANIZANDO AS RODAS...

Como já colocado, foram realizadas duas rodas de conversa: a primeira, composta

primordialmente por alunos de teatro na faixa etária da adolescência; a segunda, por

sujeitos adultos, ex-alunos de teatro. Todos os sujeitos, a despeito das distintas faixas

etárias, foram (ou ainda são) estudantes da mesma instituição escolar e ali participaram

de processos e aulas teatrais sob a orientação da pesquisadora. Para maiores detalhes

sobre o histórico e a metodologia das aulas de teatro na escola mencionada, vide Hansted

(2013).

Os convites para a participação nas rodas ocorreram, em um primeiro momento,

via redes sociais, e tiveram grande aceitação por parte dos alunos e dos ex-alunos. No

caso da primeira roda de conversa, cujos participantes haviam integrado o elenco de uma

peça teatral recém-apresentada na escola, os sujeitos foram contatados por meio de um

grupo fechado de rede social, criado para os membros do espetáculo em questão.

Para a segunda, foi preciso entrar em contato com ex-alunos de teatro de diversas

épocas. Com esse intuito, e também com o de colher material para o novo espetáculo

teatral que estava sendo preparado para a escola, a pesquisadora criou um grupo aberto

em rede social, denominado Teatro IEI de todos os Tempos, como já mencionado em

Metodologia. Em poucos dias, o grupo já contava com quase 300 participantes. Ali, foi a

princípio solicitado que os integrantes postassem fotos das peças teatrais de que haviam

participado e/ou depoimentos a respeito do que a experiência significara para eles.

Centenas de fotos e dezenas de depoimentos foram enviados – material que, por carregar

forte ligação com todo o conteúdo colhido durante as rodas, será, conforme já dito,

apresentado no capítulo Cenas, histórias e memórias: uma mirada afetiva e visual (a ser

incluído na versão final da tese). Posteriormente, foi realizado o convite para a

participação na roda de conversa, já apresentando a data, local e horário em que o

encontro seria realizado. Os interessados em participar foram então reunidos em um grupo

fechado menos numeroso, em que maiores informações sobre o evento foram enviadas.

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Alguns dias antes de cada roda, foram entregues aos participantes (e a seus

responsáveis, no caso dos sujeitos com menos de 18 anos) um convite formal para a

participação no evento, com informações detalhadas sobre a pesquisa, e o Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido7 (ANEXO A), para que todos, na data marcada para

o procedimento, já chegassem com as autorizações devidamente assinadas. Na véspera,

foi encaminhada uma mensagem aos sujeitos, lembrando sobre o encontro e sugerindo

que cada um refletisse sobre algumas questões que seriam abordadas durante a conversa:

1 - Sou/fui uma pessoa diferente por ter feito teatro? Se sim, diferente como?

(Diferente do que eu era antes de fazer teatro? Diferente do que eu seria hoje se não tivesse

feito? Diferente de outras pessoas, que não fazem teatro?).

2 - O teatro mudou a forma como me vejo e/ou como os outros me veem?

3 - Por que o teatro provoca essas transformações? (Se o teatro teve impactos em

minha identidade, quais características da atividade provocaram estas mudanças?).

4 - Minha trajetória de vida (relacionamentos, escolhas, vida profissional, etc.) foi

e/ou continua sendo impactada pela experiência teatral?8

A seguir, apresentaremos boa parte do que foi partilhado durante cada uma das

rodas de conversa. Com a finalidade de familiarizar o leitor com o universo teatral de que

os sujeitos fazem parte e, de certa forma, com os próprios sujeitos, buscamos preservar a

essência das narrativas de cada participante. À exceção de raros trechos, os comentários

estarão na ordem em que aconteceram durante a roda de conversa, mesmo porque

frequentemente um depoimento de determinado entrevistado estimulava outros sujeitos a

também falarem, para expor percepções similares (ou, às vezes, antagônicas).

À medida que expusermos os dados colhidos, também já destacaremos, em

negrito, questões que servirão de base para análise posterior. Os trechos em destaque são

aqueles que: aparecem com maior frequência nas falas dos entrevistados; carregam

relação direta com o aporte teórico sobre o qual se apoia a pesquisa; mencionam

especificidades do fazer teatral propulsoras de processos de construção identitária; e /ou

indicam possíveis metamorfoses desencadeadas pelo fazer teatral, as causas dessas

7 No caso dos participantes menores de 18 anos, foi entregue o Termo de Assentimento, para autorização

dos responsáveis (ANEXO B). 8 A pergunta de número 4 foi enviada apenas para os participantes da segunda roda de conversa, uma vez

que era direcionada para sujeitos adultos.

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transformações e fragmentos emancipatórios nos novos modos de existir possibilitados

pela experiência.

Após ambas as rodas de conversa, foi solicitado que um dos participantes – cujas

colocações chamaram atenção especial no que diz respeito à construção da identidade –

permanecesse no auditório por mais alguns instantes, para uma breve entrevista

individual, conforme mencionado em Metodologia. Trechos dessas entrevistas serão

também expostos a seguir.

Por fim, destacamos que, apesar de optarmos por analisar teoricamente os dados

colhidos em capítulos posteriores, é interessante observar que, durante as rodas de

conversa, uma das reflexões que aparecem com mais constância nas falas de quase todos

os participantes é aquela já apresentada a título de introdução: a ideia de teatro como

relação com o outro. Esse outro – seja outro-espectador, outro-personagem, outro-colega

ou outro-eu –, como se notará, está presente na maior parte das ponderações acerca dos

impactos do teatro na construção da identidade.

1.3 - RODA COM ALUNOS

Aqui, expomos depoimentos colhidos durante a primeira roda de conversa, da qual

participaram, primordialmente, alunos de teatro ainda na faixa etária da adolescência.

Conforme já colocado, todos os 26 sujeitos desta roda haviam feito parte do então mais

recente espetáculo teatral9, produzido com alunos da escola e dirigido pela pesquisadora.

Participou também do procedimento o sujeito Valter10 (29 anos), ex-aluno de teatro do

colégio em questão, que também compusera o elenco da peça mencionada.

A roda de conversa aconteceu exatamente duas semanas após a última

apresentação da referida montagem, cuja preparação durou ao todo um ano, entre março

de 2017 e março de 2018. Foi, portanto, um longo processo, que envolveu procedimentos

como: escolha da peça, adaptação do texto (originalmente um romance) para o teatro,

divisão dos papéis, criação e preparação dos personagens, criação de cenas, ensaios e

quatro apresentações. O processo de construção das personagens envolveu, inclusive, a

visita a um centro de saúde dedicado ao tratamento de pessoas com transtornos mentais,

já que muitos dos papéis a serem criados eram de pessoas consideradas “loucas”. As

9 Espetáculo O Tempo de Antônio, apresentado em 2018. 10 Os nomes verdadeiros dos participantes foram substituídos por fictícios.

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apresentações do espetáculo, com um público médio de 500 pessoas por noite, ocorreram

no mesmo auditório onde foi realizada a roda de conversa. O elenco era composto por

alunos de todas as séries do Ensino Médio (incluindo estudantes do terceiro ano em 2017,

que à época da apresentação, em 2018, já não eram mais alunos da escola).

De modo que a roda de conversa teve um tom de despedida não apenas porque

marcou o encerramento de um processo longo e intenso, como também porque, para

muitos dos que ali estavam, aquele seria seu último dia de teatro: recém-ingressos na

universidade, estavam deixando o colégio. Alguns deles haviam feito teatro desde a

infância e agora chegava o momento da despedida. A roda foi oportunamente marcada

para a data mencionada porque seria uma ocasião interessante para um balanço do que

todos os anos de teatro significaram para a vida de cada um dos participantes.

O encontro teve início com uma breve fala da pesquisadora, explicando em linhas

gerais o estudo e retomando os questionamentos que haviam sido enviados no dia

anterior. Nessa fala, foi colocado que os participantes não precisariam se preocupar se

outros sujeitos dissessem algo parecido com o que estavam pensando em dizer, pois um

dos objetivos do estudo seria exatamente encontrar pontos de concordância. Foi também

pedido para que os participantes ficassem muito à vontade para discordar de colocações

de outros sujeitos ou dizer que não identificam qualquer impacto do teatro em suas vidas

ou identidades, se fosse esse o caso. Tendo em vista que alguns dos entrevistados

começaram a fazer teatro ainda crianças, foram instruídos a focar suas reflexões em torno

das experiências teatrais vivenciadas durante a adolescência. Foram ainda passadas

instruções sobre a dinâmica e a organização da roda: como o procedimento estava sendo

filmado, cada participante que desejasse falar levantaria a mão, esperaria que a câmera se

posicionasse à sua frente, e, para fins de edição, diria seu nome e o número de sua fala.

Assim, se um sujeito chamado João, por exemplo, estivesse falando pela segunda vez,

deveria dizer “João 2”. Uma vez que a intenção era a de que o procedimento fosse, de

fato, uma conversa, todos os participantes poderiam fazer quantas intervenções achassem

necessárias. Poderiam, portanto, comentar falas de outros sujeitos, acrescentar algo à sua

própria fala anterior, expor reflexões suscitadas por falas de terceiros, ou fazer qualquer

outro tipo de comentário, sempre que se sentissem motivados a tal.

Após esses esclarecimentos, seguiram-se breves instantes de silêncio e, então, o

ex-aluno Valter11 (29 anos) pediu a palavra. Começou seu depoimento, dizendo que, ao

11 Cumpre informar que esse sujeito havia sido aluno de teatro entre os anos de 2002 e 2006. Mais tarde,

voltou a frequentar a escola para participar de peças teatrais dos grupos de Ensino Médio, como ex-aluno

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contrário de muitos alunos, que procuram a atividade por serem tímidos, já entrou no

teatro “com excesso de falta de timidez” (VALTER). Nesse sentido, a experiência o

ajudou a “transformar esse comportamento até um pouco extravagante”. Esta

transformação, como fica claro na sequência de seu depoimento, relaciona-se,

principalmente, com o olhar externo: apesar de ser visto, fora das peças, como “o cara

bobo, o cara extremamente agitado”, ao fazer teatro, passou a ser reconhecido também

como alguém “com uma disciplina pra fazer alguma coisa em cena”. Por isso, o

participante considera que a participação no teatro modificou a maneira como as

pessoas o enxergavam. Se sua maneira de falar em público e se expressar não causava

surpresa ao público escolar, que já o conhecia pela extroversão, sua participação no teatro

surpreendia as pessoas de outro modo: “Nossa, como ele sabe reduzir um pouco daquilo

e transformar aquilo em um personagem, como ele tem alguma disciplina” (VALTER).

Motivado por esse depoimento, o próximo a pedir a palavra foi Nei (18 anos).

Afirmou que, como Valter, nunca tivera problemas de timidez e acrescentou que, dentre

as muitas contribuições positivas que o fazer teatral lhe trouxe, estava confiança em si

mesmo: “percebi que era muito capaz” (NEI). A tônica de sua fala foi a vida escolar:

“antes de entrar aqui [...] eu não acreditava que eu podia ser alguém muito importante,

que eu era muito inteligente, porque minhas notas na escola nunca foram o excelente

acadêmico”. Essa percepção a respeito de si mesmo foi modificada ao passo que o aluno,

no teatro, desenvolvia a “capacidade de decorar e, mais do que decorar, entender o que

estava falando”. O aprendizado foi transferido para os estudos, em especial nas

disciplinas ligadas às humanidades, como geografia e história: “além de decorar o que eu

estava estudando, eu procurava entender o que eu estava fazendo. [...] eu comecei a ir

melhor na escola e comecei a confiar mais em mim” (NEI). Esta autoconfiança reflete-

se também na identidade profissional que o aluno projeta para si:

Hoje eu sei que, no futuro, eu vou ser uma pessoa muito boa no que eu vou

fazer, porque, hoje, por mais que eu não seja ainda o aluno excelente

acadêmico, eu sei que quando eu entrar na faculdade, fazer o que eu quero

fazer, eu vou ser uma pessoa muito boa. (NEI)

Além da autoconfiança, Nei ainda destacou que a participação em apresentações

teatrais o auxiliou a ficar bastante calmo e sem ansiedade em situações de exposição.

(procedimento frequente em montagens de espetáculos do colégio, que, às vezes, contam também com a

participação de professores e outros funcionários da instituição).

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Após esse depoimento, um contratempo: uma queda de energia no local fez com

que precisássemos realizar um intervalo na roda de conversa. “Extraoficialmente”,

contudo, os relatos feitos até então motivaram o diálogo já mencionado anteriormente, do

qual podemos destacar o seguinte trecho, em que algumas alunas refletem sobre questões

fundamentais à pesquisa:

— [...] Eu acho que o que constrói muito a “vibe” do teatro são as pessoas

que estão no teatro. As pessoas são diferentes e elas crescem de maneiras

diferentes. Cada uma tem uma experiência própria e única.

— Exatamente!

— Pra você construir a sua própria identidade.

— Ai, gente, isso é muito legal!

— Por isso que eu acho que o teatro é muito importante pra você ter uma

identidade autônoma [...] Você é autêntico, sabe?

Minutos depois, a roda foi retomada. A aluna Valéria (17 anos), então, aproveitou

para comentar sobre a conversa que acabara de ter, durante o intervalo do evento, com

alguns dos colegas. Falavam sobre as razões que os haviam trazido para o teatro e que

muitos não sabiam exatamente quais seriam esses motivos. Contudo, “a partir do

momento que a gente está aqui, a gente sabe por que a gente veio [...] acaba que na

adolescência, é onde a gente faz amigos e acaba virando uma família, vira a sua casa”

(VALÉRIA). Vale observar que a associação do teatro à ideia de família e de casa seria

retomada muitas outras vezes no decorrer da roda de conversa.

Na sequência, o aluno Gustavo (17 anos) pediu a palavra. Identificara-se com o

primeiro depoimento, de Valter, a ponto de reconhecer nas palavras do ex-aluno

exatamente o que ele próprio, tantas vezes, não consegue explicar quando questionado

por colegas sobre o porquê de sua participação no teatro (situação que, como se

notará, acontece também com outros alunos). Reconhece-se como muito agitado e

extrovertido, com alguns comportamentos que, por vezes, podem causar, aos outros, certo

estranhamento; e, no teatro, encontrou um espaço onde pode mostrar e dar vazão à sua

personalidade expansiva: “O teatro me ajudou mais a, tipo, mostrar como eu realmente

sou. Esse cara extrovertido [...] eu grito no corredor, eu danço durante a prova [...] Mas

é assim mesmo que eu sou, gente” (GUSTAVO).

Na narrativa de Gustavo, podemos reconhecer mais uma ideia que também seria

retomada muitas outras vezes no decorrer desta roda de conversa e naquela realizada com

ex-alunos: o teatro como espaço onde se pode “mostrar quem se é”. Tal concepção está

presente logo no depoimento seguinte, da aluna Paula (15 anos). Sua fala é a primeira em

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que aparece, de forma inequívoca, uma especificidade do fazer teatral (a construção de

um personagem) como determinante no processo de construção da identidade. Ela

contou que durante boa parte de sua adolescência buscou encontrar sua identidade

“emprestando” dos outros certas máscaras, e que, ao passar pela experiência de construir

um personagem, tomou consciência desse processo e passou a se concentrar na busca de

sua própria identidade.

Essa busca pelo autoconhecimento resultou em aceitação e reconhecimento

externo: “começando a mostrar pras pessoas quem eu era, as pessoas ao redor de mim

passaram a gostar de quem eu era também” (PAULA). A aceitação que aluna passou a

sentir foi determinante também nas relações sociais de amizade por ela construídas no

teatro. Ao falar sobre essas relações, a aluna também recorreu à associação do teatro às

ideias de casa e família e, a elas, acresceu outro conceito que também apareceria em

depoimentos subsequentes – o amor: “no teatro, eu encontrei os meus melhores amigos

da vida, outra família, eu encontrei amor” (PAULA). A associação do teatro ao amor –

ideia que mais tarde aparece em outros depoimentos de alunos e de ex-alunos e que

também se destaca nos depoimentos enviados via rede social – remete à teoria do

reconhecimento de Honneth. Como será abordado de forma mais detalhada no capítulo

6, o amor constitui a forma mais elementar de reconhecimento, sendo fundamento da

autoconfiança e indispensável para projetos de autorrealização.

Paula mencionou ainda que, assim como Nei, o teatro também a ajudou a “ir muito

melhor na escola”, visto que passou a entender o que decorava. Ao final da roda de

conversa, esta aluna foi entrevistada individualmente, para discorrer com maior

detalhamento sobre seu processo de construção identitária, como se verá ao final desta

seção.

Joaquim (16 anos), o próximo aluno a falar, comentou que considera que o teatro

teve importante papel na construção de sua identidade, pois, quando começou a participar

da atividade, no 5.º ano do Ensino Fundamental, “nem tinha identidade” (JOAQUIM),

não sabia do que gostava, nem mesmo quem era. Em sua percepção, o que há de mais

importante no teatro vai muito além da ajuda para falar em público ou se expressar:

É questão de sentimento, porque antes, depois e durante a peça mesmo, você

sente muita coisa, então é uma mistura de sentimentos que você nem consegue

entender e isso é bom pra você construir sua identidade, porque você percebe

que você consegue sentir muita coisa. (JOAQUIM)

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Essa percepção de que o teatro propicia uma avalanche de sentimentos, muitas

vezes difíceis de serem explicados ou compreendidos, seria ainda mencionada por outros

sujeitos no decorrer da roda. Outro ponto levantado por Joaquim que também seria

posteriormente retomado por diferentes participantes foi a questão da coletividade,

característica fundamental do fazer teatral, como já colocado na Introdução. O aluno

destacou que antes e durante uma peça teatral existe um “sentimento de coletivo muito

grande”, pois tudo precisa ser feito em equipe: “Você não pode errar uma fala, senão a

outra pessoa vai errar. Você não pode deixar uma coisa no lugar errado, senão você vai

estar atrapalhando a outra pessoa” (JOAQUIM). É interessante observar também que,

ao falar sobre a coletividade, o participante mencionou peças de que participou como staff

(contrarregra), destacando o reconhecimento que sentiu ao exercer tal função: “você faz

um negócio que você ganha retribuição por nada, tipo, você coloca um cenário ali e você

tá fazendo a peça acontecer” (JOAQUIM). Para o entrevistado, toda a avalanche de

sentimentos despertados pelo fazer teatral culmina no momento da oração do teatro,

citada na abertura deste capítulo:

[...] chega no final, no último dia que a gente teve, na oração e, tipo, você

estava chorando, porque você não vai mais sentir tudo aquilo que você estava

sentindo, aquele nervosismo. Não é um nervosismo normal de fazer uma

prova, é um nervosismo de querer dar o seu melhor. (JOAQUIM)

Esse desejo de dar o melhor de si, inclusive, seria mencionado, posteriormente,

não somente nesta, mas também durante a roda de conversa com ex-alunos e em

depoimentos enviados via rede social.

Assim como Joaquim, Amelie (17 anos) relatou suas participações como staff em

espetáculos teatrais, afirmando que tais experiências foram as que mais a sensibilizaram

no teatro (mais, inclusive, do que participar de peças interpretando personagens). O

reconhecimento que recebeu por suas contribuições nessa função muitas vezes

“invisível” modificou a maneira como ela agora enxerga as pessoas e os trabalhos

“invisíveis” da vida real. Em sua fala, podemos reconhecer mais um conceito que seria

retomado em outros momentos de ambas as rodas – a empatia:

O que eu mais gosto de ser staff é que você é importante por pequenas ações

que você faz. Isso me ajudou na minha vida real, fora do teatro, a valorizar as

pessoas que estão atrás da cortina na vida real. Aquelas pessoas que, sei lá,

de manhã, você chega na escola, a sala está limpa e [...] você nem pensa nisso,

só está limpa, mas teve alguém que teve que limpar, sabe? Eu acho que isso

me ajudou a valorizar cada coisinha que eu não vejo quem faz na minha vida,

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mas que faz a diferença pra mim. Cumprimentar essas pessoas no corredor,

puxar um papo, tudo, porque essas pessoas fazem diferença pro nosso dia a

dia. Então o staff me mostrou a diferença que essas pessoas fazem. (AMELIE)

Na sequência, Olivia (16 anos) retomou a questão dos sentimentos, levantada por

Joaquim. Mencionou que muitas pessoas de seu círculo de relações não compreendem

por que ela passa tantas horas dentro do teatro, participando das peças de seu próprio

grupo e ajudando em espetáculos de outras turmas. Destacou que está no teatro não por

obrigação, mas porque isso significa muito para ela e porque “o sentimento de estar aqui

é muito bom” (OLIVIA). A aluna também disse achar difícil explicar todo esse sentimento

e a felicidade dele decorrente.

[...] eu nem sei explicar o que o teatro significa pra mim [...] o sentimento que

eu tenho por aqui, eu não vou achar em nenhum outro lugar. Por isso, [...] eu

não consigo entender quando as pessoas falam pra mim: “Você tá perdendo

seu tempo”. Porque eu não estou perdendo meu tempo, eu estou fazendo a

coisa que eu mais gosto de fazer. (OLIVIA)

Como Joaquim, Olivia também citou a oração teatral como um momento

significativo, em que costuma se emocionar. Comentou, ainda, que, em conversa com

outra integrante do grupo, falavam que, quando uma peça acaba, existe a sensação de

estar perdendo um amigo – não porque nunca mais poderão se falar, mas porque

comunicar-se com o outro fora do universo teatral é diferente:

Hoje em dia a gente tem vários jeitos de falar com todo mundo, mas não é isso.

Não é eu conversar com alguém por uma mensagem. Não é. É uma coisa

diferente. É um negócio que faz falta. Você sente... não dá nem pra explicar.

(OLIVIA)

Essa colocação de Olívia remete à ideia de mundo da vida, sobre o qual fala

Jürgen Habermas (2003), em sua teoria da ação comunicativa: um mundo

intersubjetivamente compartilhado, constituído a partir da interação linguística entre os

sujeitos, fundador de laços de pertencimento e do processo de socialização, fundamental

ao desenvolvimento da autonomia e emancipação. Para o autor, na ação comunicativa (e

não instrumental), “[...] os atores, ao entenderem-se sobre algo no mundo, estão

participando simultaneamente em interações através das quais desenvolvem, confirmam

e renovam sua pertença aos grupos sociais com sua própria identidade” (HABERMAS,

2003, p. 198). A ampliação das habilidades comunicativas, como se notará em

depoimentos subsequentes tanto deste capítulo quanto do seguinte, desponta como um

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dos principais impactos identitários do fazer teatral, sendo mencionada por diversos

alunos e ex-alunos de teatro.

Após a fala de Olivia, o ex-aluno Valter, primeiro participante a se manifestar,

pediu novamente a palavra. Referiu-se à fala de Paula, que havia comentado sobre como

teatro a ajudara a encontrar-se, e colocou:

O teatro me ajudou a também encontrar quem eu queria ser para os outros.

Me ajudou quando eu ainda estava na escola a escolher a profissão que eu ia

ter, porque eu escolhi não sair do palco. Talvez não nesse palco tão literal,

mas eu falei: “Pô, eu quero ser professor. Eu quero estar em um lugar que eu

ainda possa ser ouvido, onde eu ainda tenha minha liberdade de me

expressar”. Então, com certeza, o teatro me ajudou a achar meu caminho do

futuro. (VALTER)

Como notamos nesse depoimento de Valter, surge mais uma vez a figura do

“outro”, em uma importante relação com a construção da identidade: ao fazer teatro, o

então adolescente descobre quem quer ser para o outro. Em capítulo posterior, veremos

que Dubar (2005) usa exatamente o termo “identidade para o outro” para, ao lado do que

entende por “identidade para si”, explicar o processo de socialização e a construção de

identidades sociais e profissionais. Aparecem ainda, na fala em destaque acima, mais

algumas questões que seriam retomadas por outros alunos nesta roda de conversa, e

também na roda realizada posteriormente com ex-alunos de teatro: a construção da

identidade profissional e o espaço teatral como local onde se pode ser ouvido e onde

existe liberdade para se expressar.

Aproveitando essa ideia de liberdade levantada por Valter, Olivia refletiu sobre a

experiência de representar um personagem no teatro como um processo libertador,

que viabiliza a não preocupação com o julgamento externo. Confessou que, apesar de

não a considerarem tímida, por vezes fica insegura ao falar com as pessoas, e que o

teatro a auxilia nesse sentido:

[...] quando a gente sobe no palco pra apresentar um personagem, eu não

sinto a mesma coisa que eu sinto quando eu estou conversando com alguém.

Eu não sinto que eu preciso ficar preocupada no que eu estou falando, porque

eu não sou eu, eu estou interpretando alguma outra coisa. E eu acho isso muito

legal, porque [...] traz uma liberdade enorme. Por um pequeno período de

tempo, você não é você, você é aquilo que você tá interpretando. Então você

tem chance de dar vida a uma coisa completamente diferente do que você é.

(OLIVIA)

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A ideia de liberdade também subjaz ao comentário seguinte, em que Amelie

reflete sobre o motivo pelo qual seus colegas afirmam que se “encontraram” no teatro:

“acho que o porquê disso é porque aqui é um lugar muito acolhedor. Tipo, você chega

aqui e se você errar, tudo bem” (AMELIE). A aluna acrescentou, ainda, que no teatro

existe o engajamento da criatividade e a possibilidade de amadurecimento, pois “você

se torna uma pessoa mais aberta a críticas” (AMELIE).

O próximo aluno a falar, Alexandre (18 anos), resgatou a questão da coletividade

e buscou compreender sua especificidade no campo do teatro. Para tanto, faz uma

analogia com esportes coletivos, lembrando que eles também exigem cooperação.

Contudo, observa que, no teatro, não existe competição. Enquanto nos esportes “é um

contra o outro”, no teatro todos se unem em torno de um objetivo comum: “você está

fazendo algo pra apresentar pra muitas pessoas, é algo que você desenvolve um

sentimento coletivo e que vai ser puramente pra você divertir outras pessoas”

(ALEXANDRE). Aqui, é interessante chamar a atenção para o fato de que o entrevistado

insere o outro-espectador, especificidade do fazer teatral, no objetivo partilhado com o

outro-colega. Em sua percepção, é esse objetivo partilhado que faz com que, no

decorrer de um processo de montagem teatral, participantes que, a princípio mal se

conheciam, se aproximem de tal modo que, às vésperas das apresentações, sintam-se

como parte de uma mesma família. Neste ponto, o aluno também mencionou o momento

da oração teatral, na roda realizada no último dia de apresentação de um espetáculo, e o

sentimento de proximidade e amizade entre todos.

O aluno Olavo (17 anos) identificou-se com as colocações de Alexandre e com a

analogia entre teatro e esportes coletivos, acrescentando a essa ideia o sentimento de

amor, já levantado por Paula: “[...] quando a gente vem pra cá, é exatamente um time

que a gente forma, sabe? Na verdade, é muito mais que um time, porque a gente se ama

muito aqui” (OLAVO). Destacou que, no teatro, se aprende a lidar com cada um, e

retomou a reflexão sobre a não competição: “o mais legal é que a gente não está indo

contra ninguém, a gente está agradando as outras pessoas” (OLAVO). Para o aluno, um

dos melhores sentimentos que se pode experimentar é exatamente esse prazer de “agradar

as outras pessoas, fazer elas terem um momento bom” (OLAVO). Além disso, também

afirmou que uma das situações que mais o agradam é sentir-se recompensado por um

grande esforço. Afirmou que, às vezes, não se dedica a tarefas de que não gosta, mas

que, quando gosta de algo, sente-se bastante recompensado ao “trabalhar muito, muito,

muito” e obter um bom resultado. Nesse ponto, podemos entrever mais uma vez a questão

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do reconhecimento, como decorrência da disciplina e do esforço que o teatro demanda,

pontos já levantados por outros participantes.

Em seguida, a aluna Clara (16 anos) contou que, diferentemente de alguns colegas,

sempre foi introvertida, muito tímida, e que não gostava de falar em público. Em seu

entender, o teatro a ajudou, de forma significativa, a perder a timidez e a insegurança

perante os outros. A entrevistada ponderou que interpretar personagens é como viver

outras realidades dentro de si mesmo. Lembrou que que os alunos não escolhem as

personagens e que, portanto, quando recebem um papel, precisam desenvolver

diferentes olhares sobre situações muitas vezes distantes de suas realidades. Todo esse

processo, em seu entender, propicia a autodescoberta12 e faz com que se ampliem as

possibilidades identitárias:

[...] cada personagem que a gente recebe [...] é sempre uma surpresa. Você

sempre tem que aprender a lidar com aquilo e você precisa se expressar de

um jeito que você vê aquilo [...] é o seu olhar diante de uma outra coisa. Eu

acho que isso também ajuda a gente, como muitos disseram, a se descobrir.

Então, às vezes, você experimenta ser outra coisa que você nunca pensou em

ser e, de repente, aquilo combina, você gosta, você agrega muito à sua

personalidade individual com tudo o que você vive no teatro e com todas as

outras pessoas que você conhece, outros personagens de peças. (CLARA)

A fala seguinte, de Nei, seguiu a mesma linha de reflexão sobre as contribuições

identitárias decorrentes do processo de vivenciar personagens. Em sua percepção,

contudo, o que ocorre com ele é diferente daquilo que outros colegas vivenciam: enquanto

alguns alunos “descobrem” quem são quando constroem seus papéis, para Nei são os

personagens que o constroem. O aluno afirmou que, de certa forma, metamorfoseia-se

em seus personagens por certo tempo, incorporando ao seu modo de ser, fora do teatro,

muito daquilo que é característico do papel que interpreta em cena:

Os personagens que eu tive no teatro construíram muito a minha

personalidade [...] Eu viro o meu personagem por um tempo. Então essa é a

forma como o teatro me ajudou a construir a minha identidade. Ele me ajudou

a construir minha identidade conforme eu fui pegando cada coisa que um

personagem me deu e juntando pra minha personalidade. Diferentemente dos

outros que conseguiram se abrir e descobrir quem realmente são, os

personagens que me descobriram.

12 A noção de “descoberta” de si mesmo, constante nos comentários dos entrevistados, pode induzir à

interpretação de que a identidade é algo “encoberto”, que existe a priori, pronto para ser encontrado. Tal

ideia está em desacordo com a concepção de identidade em constante construção, na qual se fundamenta

esta pesquisa. Contudo, julgamos importante destacar tal percepção nos depoimentos dos entrevistados, e

a creditamos ao fato de o teatro favorecer uma experiência intensa de construção, desconstrução e

reconstrução da própria identidade, possibilitando ao sujeitos atingir a condição de “ser para si” (CIAMPA,

1987), como será visto no capítulo 5.

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A aluna Valéria deu sequência à reflexão sobre a especificidade da interpretação

teatral e sua contribuição para a construção da identidade. Relembrou um exercício

realizado em uma aula de teatro, em que os alunos deveriam explorar sonoramente

algumas palavras que lhes eram apresentadas pela professora, e associou esse tipo de

atividade ao aprendizado de como lidar com sentimentos e expressá-los: “Como é que

eu vou apresentar uma pedra com toda a minha força? Com todo o meu sentimento?

Então a gente aprender a lidar com os nossos sentimentos melhor [...] e também

expressar eles melhor e no momento certo” (VALÉRIA).

A mesma participante retomou também a questão levantada anteriormente por

Clara, sobre os alunos não escolherem os papéis que interpretarão nos espetáculos, e

destacou como é interessante perceber que se determinado papel lhe foi atribuído é porque

alguém “viu que você ia se encaixar”. O olhar do outro foi reforçado em sua fala, como

potencializador da ampliação do repertório pessoal de maneiras de ser e estar no

mundo:

É muito legal ver como alguém vê você nas situações. [...] ‘Quando que eu

vou me imaginar como tal personagem?’ e alguém te vê e, no final, dá muito

certo. Então você vai se descobrindo de várias maneiras e abre um leque do

que você pode ser na sua vida. (VALÉRIA)

Valéria, ainda, recuperou, em sua fala, uma ideia já explorada por outros

participantes: a de não competição dentro do grupo teatral. Ao fazê-lo, chamou atenção

para a “batalha” pessoal que o fazer teatral implica, retomando a questão do “dar o

melhor de si”:

[...] eu acho que tem uma competição aqui, mas é você contra você. É sempre

você querendo se superar e dar o seu melhor, porque ninguém está aqui

obrigado, todo mundo está aqui porque algo te trouxe aqui e, geralmente, é

você mesmo que te trouxe, né? Então é sempre isso de se superar e dar o seu

melhor e vencer a sua própria batalha, de ou timidez ou de fazer o seu melhor

mesmo. (VALÉRIA)

Em seguida, Aurora (17 anos), em um depoimento emocionado, disse não poder

imaginar sua vida sem teatro. Sua mãe teve grande importância nesse processo, pois

sempre a incentivara a participar de atividades teatrais. A participante lembrou-se de sua

primeira aula, ainda criança, naquele mesmo auditório onde realizávamos a roda de

conversa, e afirmou ter sido aquele um dos momentos mais importantes de sua vida: “[...]

eu lembro, como se fosse ontem, eu entrando por essa porta: eu me encontrei. Eu

encontrei tudo o que eu estava esperando na minha vida, eu encontrei todos os

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significados [...]” (AURORA). Lembrou-se também do orgulho de sua mãe, ao vê-la

pela primeira vez no palco: “Ela se viu também. E eu acho esse sentimento tão importante.

A gente transmite amor pelo que a gente faz” (AURORA). Destacou o amor e a paixão

com que os alunos se dedicam à atividade e afirmou que o teatro, além de transmitir

sentimentos ao público, “transmite pro seu próprio ser” (AURORA). Reouve o momento

da oração, em que todos dizem “eu seguro minha mão na sua”, e afirmou:

Realmente, você vai segurar a mão da pessoa na sua e você vai falar assim:

“Você está junto comigo mesmo! A gente vai subir nesse palco e a gente vai

fazer o melhor espetáculo”. E é uma sensação tão boa, é uma sensação que

só quem faz teatro consegue transmitir isso. Eu gostaria muito que todo mundo

conseguisse, um dia, sentir. Ter essa sensação. Então, pra mim, o teatro, eu

acho que é uma das coisas mais importantes na minha vida [...] (AURORA)

A oração do teatro e a percepção de que ela traduz a essência do fazer teatral

estiveram presentes no depoimento seguinte, de Isabel (14 anos). Ela relatou que, em

todos os momentos de roda, existe uma troca de olhares quando os participantes dizem

“eu seguro minha mão na sua”: “O teatro é exatamente aquilo. Tudo aquilo que eu não

vou fazer sozinho, eu vou fazer com alguém, e esse alguém eu tenho que confiar

totalmente. Eu aprendi a confiar mais nas pessoas”. Em seu depoimento, a aluna também

ressaltou que no teatro aprendeu a fazer relações e a conviver com pessoas mais velhas,

já que, enquanto ainda estava no Ensino Fundamental, começou a participar como staff

em peças do Ensino Médio, em cujos elencos não conhecia ninguém. Afirmou ter sido

muito bem acolhida, destacou que a convivência com os participantes do teatro era

totalmente diferente daquela que tinha com seus amigos e ressaltou que o convívio com

alunos mais velhos a ajudou a amadurecer. Disse ter aprendido no teatro que não

adianta “só fazer a sua parte e pronto, porque, se você só fizer a sua parte, você está

sendo meio egoísta” (ISABEL). Frisou, ainda, a sensação que tinha todas as vezes em que

entrava no teatro: “parecia que tudo ficava lá fora [...] tudo o que era ruim na minha

vida, eu largava lá fora e eu ficava aqui, focada totalmente nisso e era isso que eu ia

fazer” (ISABEL). Dessa afirmação, podemos depreender mais uma ideia que apareceria

com frequência nesta mesma roda de conversa e também na roda com ex-alunos: o

caráter “terapêutico” do fazer teatral.

O comentário de Isabel a respeito da necessidade de fazer mais do que apenas “a

sua parte” conecta-se à segunda fala do aluno Gustavo, que contou como o teatro o ajudou

a deixar de ser uma pessoa egoísta:

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Eu sempre fui um cara meio neurótico com as minhas coisas. As minhas coisas

eram as minhas. [...] Mas, assim, quando eu entrei no teatro, eu descobri que

nada é meu. Nada é meu. O figurino que eu estou usando agora não é meu. Eu

vou ter que emprestar pra um cara que vai entrar em uma próxima cena e ele

vai ter que me dar uma coisa. E esse espaço que eu estou aqui não é meu. [...]

E nada é meu, sabe? Isso eu aprendi muito aqui, muito aqui. Muito.

Absurdamente. E, hoje, eu sou muito feliz por causa disso. (GUSTAVO)

Ao comentar sobre essa metamorfose, o participante lembrou-se, com orgulho, de

que uma das colegas do grupo de teatro, há pouco tempo, havia elogiado seu altruísmo.

Para explicitar o motivo de sua identificação com o elogio, o aluno deu exemplos de como

costuma agir, de forma solidária, em situações vivenciadas em momentos de

apresentações teatrais:

[...] agora, eu sempre penso: “calma, eu não posso fazer isso, porque senão o

cara que vai usar essa roupa depois de mim vai ficar prejudicado. Onde eu

vou deixar essa garrafinha? Porque senão ele vai sair correndo e vai

tropeçar”. [...] Então eu sempre penso no outro, como que o outro não vai se

prejudicar se eu fizer alguma coisa, entendeu? (GUSTAVO)

Outra participante que, assim como Gustavo, afirmou gostar da metamorfose

percebida em si mesma e desencadeada pela participação no teatro foi Júlia (16 anos). Ela

começou seu depoimento dizendo ter mudado muito desde que começara a participar das

atividades teatrais, no 5.º ano do Ensino Fundamental. Acredita que, se não tivesse feito

teatro, seria hoje alguém completamente diferente: “se eu não tivesse começado isso, eu

não seria metade do que eu sou ou eu teria um terço da vida que eu tenho hoje” (JÚLIA).

As relações sociais de amizade estabelecidas e estreitadas no teatro têm papel

significativo nessa percepção de que sua vida seria diferente sem a experiência teatral.

Foi no teatro que ela conheceu “as pessoas mais importantes” de sua vida e aproximou-

se da maior parte de suas amigas. Além disso, sua percepção sobre si própria também

se alterou ao longo dos anos em que fez teatro: considerava-se “meio bobona” antes de

ingressar na atividade e , aos poucos, começou a “ficar um pouquinho menos”, ou a

decidir em que momentos poderia ser assim. Destacou que o teatro facilitou sua

concentração e disse ser muito grata pela experiência porque já não é “aquela Júlia meio

bobona, que poderia ser meio medíocre”. Para finalizar, destacou o ganho na autoestima

decorrente da participação nas atividades teatrais: “[...] eu gosto de quem eu sou hoje.

Eu gosto de quem eu tenho do meu lado e eu gosto de tudo o que o teatro me

proporcionou” (JÚLIA).

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Cecilia (17 anos), assim como colegas que haviam falado antes dela, contou que

começou a fazer teatro ainda criança e afirmou que o primeiro orgulho de sua vida foi

apresentar uma peça. Para a aluna, a experiência de estar em um palco e ver toda a plateia

aplaudindo propiciou uma sensação “incrível”, que ela passou a desejar ter sempre em

sua vida, e que a impulsionou a continuar fazendo teatro em outros anos. O impacto da

primeira experiência de reconhecimento vivenciada no teatro também aparece, de

forma bastante similar, em depoimentos de outros alunos, nesta mesma roda, e de ex-

alunos, como se poderá ver no capítulo seguinte.

Cecilia destacou, contudo, que a importância da atividade teatral, em sua

percepção, é muito maior que a sensação advinda dos aplausos em dia de apresentação:

no teatro ela construiu laços de amizade, perdeu a timidez – que afirmou ser muito

grande quando mais nova –, e percebeu que podia se comunicar sem medo do

julgamento externo: “comecei a perceber que eu podia me comunicar com as pessoas

sem morrer de vergonha, sem que elas me julgassem o tempo todo, que eu não ia morrer

se eu fizesse isso” (CECILIA). Neste ponto, é interessante observar que a participante –

recém ingressa em curso de Jornalismo à época da Roda de Conversa – não apenas

superou o medo com relação à comunicação como fez dela sua escolha profissional: “Eu

escolhi Jornalismo principalmente por causa do teatro, porque o teatro me ensinou que

eu era uma boa comunicadora e que eu podia passar a minha mensagem para mais

pessoas" (CECILIA).

A colocação de Cecilia acerca da contribuição do teatro para a comunicação foi

retomada por muitos outros participantes. O medo do julgamento externo e a superação

desse receio foram, igualmente, a tônica dessas reflexões. Simone (15 anos), por exemplo,

destacou:

[...] o teatro ensina você que você consegue se comunicar [...] E foi a maior

[...] a grande diferença que o teatro fez na minha vida, porque eu era muito

antissocial antes de eu entrar. Eu tinha muito medo de, por exemplo, conversar

com as pessoas, porque eu sou meio paranoica e eu imaginava que, na cabeça

delas, elas pensavam: “Nossa, o que essa babaca tá falando?” (SIMONE)

Ao refletir sobre comunicação, Simone colocou que o teatro ensina os alunos a se

relacionarem. Para a aluna, os processos de criação coletiva próprios do teatro e o fato

de todos terem um objetivo comum têm papel importante nesse aprendizado, que a

própria participante chamou de “crescimento social”:

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[...] quando você está no teatro [...] você tem que aprender a se relacionar,

porque vocês são uma equipe, vocês estão trabalhando juntos pra realizar

alguma coisa, que é a peça. Então você tem que aprender a se relacionar, tem

que aprender a conversar com as pessoas e, tipo, pensar com elas pra vocês

criarem esse projeto e chegarem aonde vocês têm que chegar. Então eu acho

que essa é a maior diferença no teatro: esse crescimento social que você tem.

(SIMONE)

Simone ainda acentuou, em sua fala, aquela que talvez seja a grande motivação da

própria pesquisadora para a realização desta pesquisa:

[...] o teatro transcende gerações[...] sempre vai ter pessoas que vão entrar

por aquela porta procurando alguma coisa e querendo descobrir alguma

coisa, talvez sobre elas mesmas, talvez sobre o que está ao redor delas, sobre

o mundo [..] é inexplicável isso. (SIMONE)

Essa reflexão de Simone sobre a procura pelo teatro motivada pelo desejo de

querer descobrir algo motivou Júlia a pedir novamente a palavra para dizer que havia sido

esse o seu caso. Disse ter entrado para o teatro por ser muito curiosa, e enfatizou que o

que a faz querer continuar é a sensação que tem ao estar no palco, experimentada desde

sua primeira apresentação, ainda criança: “A hora que eu entrei por ali, não sei o que

aconteceu, foi uma vibração muito doida dentro de mim”. Essa sensação – que a

entrevistada comparou à fome, já que sente seu estômago revirar – é o que a faz voltar ao

teatro todos os anos, “em busca desse sentimento de novo”. Ao dizer isso, a aluna afirmou

que não participa das atividades somente porque gosta das pessoas que estão ali: “[...] é

um negócio mais pessoal também, porque é uma sensação absurda que eu não sabia que

existia e é muito confortável, é gostoso” (JÚLIA).

Bárbara (15 anos), na sequência, afirmou que seu maior orgulho foi ter entrado

para o teatro e que ali, naquele auditório, se dera seu maior amadurecimento. Disse ter

começado a fazer teatro em uma fase de sua vida em que “não estava muito legal” e que,

nele, conhecera as melhores pessoas que poderia ter conhecido. Destacou, como outros

participantes, a ideia de família e chamou a atenção para as relações de amizade

estabelecidas com pessoas que talvez não tivesse a oportunidade de conhecer. Referiu-se,

também, à construção de personagens e à contribuição desse processo para sua

construção identitária: “cada personagem que eu ganhei, cada construção desse

personagem, foi deixando um resquício em mim que me faz quem eu sou hoje”. Declarou,

ainda, assim como Júlia, ter muito orgulho da pessoa que é hoje, bastante diferente

daquela que entrou no teatro, “sem saber o que queria”. Disse não poder estar mais

maravilhada com o que encontrara no teatro e explicou com as seguintes palavras o

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motivo de sua transformação: “ter entrado aqui me deu um rumo” (BÁRBARA). Não

deu, contudo, detalhes acerca desse “rumo”. Para ela, assim como para outros colegas, é

difícil explicar com palavras todo o sentimento propiciado pelo teatro.

No depoimento subsequente, de Catarina (17 anos), aparece mais uma

especificidade do fazer teatral – a experiência estética do espetador. A participante

afirmou que sua paixão pelo teatro provavelmente tenha iniciado ainda na infância, pois

os pais tinham o hábito de levá-la a espetáculos. Além disso, o pai fazia teatro, e ela

assistia a suas apresentações. Ela não se recorda com detalhes das peças, mas se lembra

“dos atores no palco, da movimentação, do rosto que eles faziam, das expressões, das

emoções que eles passavam”. A experiência como espectadora era, para ela, impactante:

“pra mim, só estar na plateia já era uma emoção extraordinária, já era uma honra. Eu

me sentia muito honrada de estar lá. Eu não sei, eu me sentia outra pessoa já na plateia”

(CATARINA).

Começar a fazer teatro, contudo, representou para a entrevistada significativas

transformações, pois se considera alguém que tem medo de se falar e se expressar em

público e se sente muito nervosa quando pensa que todos a estão olhando. Hoje, contudo,

lida melhor com o medo do julgamento: considera-se muito mais desinibida, graças ao

potencial do teatro de ensinar a “se expressar e sem medo de encontrar uma opinião

errada no caminho” (CATARINA). A metamorfose desencadeada pelo teatro tem, para

a aluna, relação com uma questão proferida anteriormente por outros participantes – a

ampliação de perspectivas proporcionada pela atividade: “O teatro fez eu expandir

muito os meus horizontes de como pensar, de como agir com as pessoas [...] eu acho

que a minha mente está muito mais aberta pra receber novas coisas” (CATARINA). Essa

ampliação do repertório sobre maneiras de ser e agir no mundo carrega clara relação com

o processo emancipatório, como será visto em capítulos subsequentes. Cumpre ainda

observar que a participante considera “extraordinário” quando se consegue exteriorizar,

levando para “fora” do ambiente teatral, tudo o que se sente ali.

Esta potencialidade de exteriorizar sentimentos, na qual se pode vislumbrar,

mais uma vez, a ideia de liberdade associada ao fazer teatral, apareceu de modo marcante

também no depoimento de Flávia (17 anos). Ela contou que durante certa fase de sua vida

(que, vale acrescentar, correspondeu a grande parte de sua adolescência), fez parte de um

círculo de amigos com os quais não se identificava: “eu fiquei muito tempo num grupo

de amizades que [...]não era muito bom pra mim, onde eu não me encaixava, então eu

ficava tentando me encaixar e ser uma pessoa que não sou eu”. Ao entrar para o teatro,

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contudo, há dois anos, os novos laços que ali construiu, pautados na identificação,

permitiram-lhe experimentar uma significativa liberdade de expressão: “[...] conheci

pessoas que são muito importantes na minha vida hoje em dia [...], amizades que

encaixam comigo. Foi uma sensação muito grande de que eu podia respirar agora. Eu

podia me expressar do jeito que eu quisesse” (FLÁVIA).

Como se verá mais adiante, na roda realizada com ex-alunos, o teatro foi muitas

vezes citado como um lugar de construção de laços baseados na identificação.

Flávia observou, ainda, que por muitos anos de sua vida tentou se “isolar do resto

das pessoas”, com medo do julgamento externo, e citou como exemplo de sua mudança

nesse aspecto uma festa com colegas do teatro, ocorrida poucos dias antes da roda de

conversa: disse que havia sido uma das primeiras a chegar ao evento e que ficara

conversando com outra integrante do grupo, sem se importar se “estava sendo irritante”,

comportamento que jamais teria se não houvesse feito teatro. Como forma de sintetizar

sua transformação em termos de autoconfiança e comunicação, afirmou:

[...] a Flávia que veio pro teatro em 2016 em hipótese alguma, [...] ia falar

numa rodinha dessas. Só que a Flávia de agora não achou tão ruim [...]. Se

expressar é muito mais legal do que guardar o que você tem dentro de si por

medo de falar as coisas que você quer falar. (FLÁVIA)

A mesma aluna, em seu depoimento, abordou também a questão da empatia e a

relacionou à experiência de perceber, por exemplo, que diferentes participantes do teatro

podem interpretar uma mesma fala de maneiras completamente distintas, a partir de

diferentes vivências e maneiras de pensar. Esse processo, para a estudante, nos permite

“entender as outras pessoas”, perceber que elas são diferentes de nós. Trata-se de um

aprendizado que ela afirmou transferir para situações cotidianas, como quando alguém

age de maneira grosseira. Diante de uma situação dessas, antes de fazer teatro, a aluna

provavelmente pensaria algo como “nossa, que pessoa chata”; hoje, porém, ela imagina

que a pessoa pode simplesmente “estar tendo dia ruim ou qualquer coisa assim. Porque

as pessoas agem do jeito que elas agem por uma razão. E eu acho que o teatro me fez

entender isso muito bem” (FLÁVIA).

Para Yasmin (19 anos), a experiência teatral, vivenciada desde tenra idade, foi

impactante na construção de sua autoimagem e autoestima. Ela afirmou sempre ter sido

alguém com tendência a se desvalorizar, sentindo-se inferior aos outros. Essa percepção

acerca de si mesma foi transformada em uma passagem que se relaciona ao modo como

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sua mãe a enxergava no teatro. Relaciona-se, também, à transferência para a vida de uma

percepção acerca do fazer teatral – a de que todos são igualmente importantes:

[...] teve uma vez que eu estava conversando com a minha mãe e ela estava me

contando de uma filha de um amigo dela que fez teatro, [...] e que ela não ia

voltar no ano seguinte, porque o personagem dela tinha sido muito

insignificante pra peça, [...] Aí minha mãe falou que ela não me enxergava

fazendo isso, desistindo do teatro porque eu achava que o meu personagem

era insignificante. E eu falei que, realmente, não. Porque não existe essa de

personagem insignificante, todos são igualmente importantes pra peça. Foi

naquele momento que eu tive esse click, que eu comecei a pensar: “Poxa, eu

enxergo o teatro desse jeito e por que eu não enxergo a minha vida desse jeito?

Por que só o teatro é assim? Por que eu não me enxergo igualmente importante

quanto às outras pessoas como eu enxergo os personagens, igualmente

importantes?”. Então eu acho que isso foi um crescimento muito grande que

o teatro me proporcionou, que foi de perceber que, apesar daqui ser um

universo paralelo, [...] as coisas não precisam ser totalmente diferentes lá

fora. Se aqui dentro os personagens são todos importantes – os staffs, como

a Amelie falou, são importantes –, lá fora também. Então eu parei, não parei

totalmente, mas o tanto que eu me desvalorizava antes era infinitamente maior

do que foi ao longo dos anos recentes. Eu acho que esse foi um crescimento

muito importante que só o teatro poderia ter me proporcionado. (YASMIN)

O depoimento da aluna desencadeou a fala de outra participante, que descreveu

como teve no teatro o mesmo aprendizado – a igual importância de todos –, só que por

caminho inverso. Ao contrário de Yasmin, Aurora relatou que sempre se achara superior

aos demais, inclusive no teatro. Julgava-se capaz de desempenhar os melhores

personagens e não enxergava valor na função, por exemplo, dos contrarregras. A

transformação ocorreu quando “de um dia pro outro”, um “choque” a fez “ter o pé no

chão e olhar a realidade, enxergar a realidade, e pensar assim: ‘Meu, eu não sou melhor

que ninguém, pelo amor de Deus. O que eu estou pensando, sabe?’”. O “choque” a que

participante se referiu diz respeito a um processo de seleção de personagens para o

espetáculo Sonho de uma Noite de Verão, em 2016. A aluna, que até aquele ano havia

sempre interpretado papéis com muitas falas, acreditava que seria escolhida para uma das

protagonistas. Porém, ficou incumbida de interpretar um papel que julgava de menor

grandeza (uma das fadas do séquito de Titânia, rainha das Fadas). Na ocasião, a

participante ficou, a princípio, visivelmente irritada com essa divisão de papéis e quase

desistiu de fazer teatro. Entretanto, ao longo do processo de montagem, mudou por

completo sua postura: dedicou-se não apenas à construção de sua própria personagem,

mas à criação de figurinos, cenas, maquiagens e coreografias do espetáculo como um

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todo. O aprendizado, que em seu entender demorou a acontecer, teve grande impacto em

sua construção identitária:

[...] nossa, demorou muito pra eu perceber que todo mundo era igual, que todo

mundo tinha o mesmo papel no teatro, que, juntos, a gente formava um grupo

e eu agradeço, assim, 100% ao teatro. Eu acho que, sem ele, eu nunca

aprenderia isso e nunca seria quem eu sou hoje. (AURORA)

Após esse depoimento, a participante Olivia pediu para acrescentar novos pontos

às suas falas. Observou que tem a tendência de se desconcentrar e que o teatro a ajudou a

“criar um pouco de foco”. Esse aprendizado, em sua percepção, se deu porque teve de

“aprender a focar pra poder fazer o melhor personagem que [...] podia fazer”.

Mencionou também a situação vivenciada no dia anterior, quando, em uma grande

limpeza, a mando da vigilância sanitária, auxiliara a professora a jogar fora grande parte

dos cenários e figurinos que estavam guardados havia anos nos depósitos anexos ao

auditório. Lembrou-se do ano em que havia sido staff em todas as peças apresentadas na

escola. E expressou seu pesar em se desfazer daqueles materiais que, de certo modo,

faziam parte de sua história: “[...] a gente teve que se virar e fazer acontecer, então, [...]

ontem, a gente estava tendo que se desfazer, muita coisa que eu olhava e falava: ‘Nossa,

mas como jogar isso fora? Tem tanta história por trás disso’”. E, nessa reflexão

provocada pelo sentimento de rememorar o que vivera, sintetizou com uma simplicidade

esclarecedora boa parte daquilo que se investiga nesta tese: “E o teatro é isso: é a história

que a gente forma. Cada coisinha que acontece aqui vira história” (OLIVIA).

A ideia de liberdade, já explorada em comentários anteriores, voltou a surgir no

depoimento seguinte, de Fernanda (17 anos). A participante declarou que, muito embora,

quando criança, fosse desinibida e cheia de amigos, vivenciou uma fase, já na

adolescência, em que tinha muita dificuldade para se relacionar: “eu não conseguia

levar uma conversa adiante com ninguém que não fosse com pessoas que eu conhecia”.

Como outros colegas, afirmou que se preocupava muito com o julgamento alheio e que

a experiência de fazer teatro – e ali aprender sobre as pessoas – foi libertadora:

Não sei o que acontece que você está no teatro, você vai entendendo as

pessoas, você vai entendendo as coisas, você vai aprendendo sobre as pessoas

[...] eu me libertei. Agora, eu consigo conversar com as pessoas[...] eu entendi

que pouco importa o que as pessoas vão pensar do que eu estou fazendo, se eu

sou estranha, porque se eu estou feliz e se eu não estou machucando ninguém,

[...] por que eu não vou ser eu, sabe? Que desnecessário ficar se tolhendo a

vida inteira, ficar medindo palavras, sabe? Eu não sei, eu devo completamente

isso ao teatro, completamente. Eu não sei o que acontece nesse lugar quando

você está fazendo uma peça, eu não sei o que acontece, parece mágica, mas

acontece. Não sei, é incrível. (FERNANDA)

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Esta fala estimulou Nei a pedir novamente a palavra para observar: “O teatro me

ensinou uma coisa que foi exatamente isso: entender as pessoas. E, mais que isso,

aprender a apreciar”. Ele contou que antes de fazer teatro sempre tivera a “tendência

horrível, repugnante, de pisar nas pessoas”, sempre observando seus defeitos e nunca as

qualidades. E foi justamente “a ver as qualidades” que o teatro o ensinou. A

transformação foi tão significativa que hoje tem o hábito de elogiar mesmo aqueles que

conhece pouco: [...] eu chego pra uma pessoa que eu não tenho o mínimo de intimidade

e eu falo, tipo assim: “Você é muito incrível. Você já percebeu que você tem esse jeito

[...]? [...] isso me fez ser uma pessoa muito diferente” (NEI).

As reflexões acerca do entendimento sobre as pessoas e das transformações no

modo de se relacionar tiveram continuidade no depoimento seguinte, de Alexandre, que

acrescentou ao debate um ponto importante: o que há de humano nas relações

estabelecidas e aprendidas no teatro. Em sua narrativa, o contato físico, por meio do

abraçar, aparece como representação de um contato humano caloroso, carregado de

cumplicidade e significado, oposto à “frieza” de outras relações, estabelecidas fora do

ambiente teatral:

Uma coisa que eu tenho certeza que foi o teatro que me ajudou foi a ter menos

preocupação com a questão, sei lá, de contato humano, de você ter uma

relação mais calorosa com as pessoas. [...] Eu tenho uns amigos que não

fizeram teatro e, pra eles [...] se eu vou lá e abraço eles, eles ficam: “Meu

Deus, você tá me abraçando. Por que você está me abraçando?”. [...] E é uma

coisa que eu sei que acontece aqui no teatro, porque eu faço muito isso com

as pessoas do teatro.[...] É uma coisa que com as pessoas que não estão dentro

do teatro, dentro desse círculo, que não é uma relação tão próxima, que é uma

coisa fria, pô, sei lá, se encontro no corredor, só cumprimenta. É muito

diferente, porque as coisas que acontecem aqui são muito mais próximas, elas

são, sei lá... têm um nível muito maior. É muito gostoso o que acontece aqui

dentro. (ALEXANDRE)

Dando continuidade à reflexão sobre o contato humano, Valter também abordou

a questão do abraço e contou como foi transformado pelas relações de proximidade

estabelecidas no teatro. Reafirmou que sempre foi bastante extrovertido: “uma pessoa

que sentava na mesa do almoço e contava uma piada e a galera ria. ‘Pô, que da hora

esse cara’”. Contudo, em oposição a essa facilidade de agradar a todos, sentia-se

desconfortável e deslocado em situações de maior intimidade:

[...] quando chegava à noite, eu tenho dois irmãos, eu via minha irmã mais

nova abraçar minha mãe e meu irmão abraçava minha mãe, eles se abraçavam

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entre si, [...] e eu que, pô, a alma da festa, não sabia um abraço, cara. Não

sabia um contato humano sequer e se ficava sozinho um a um, eu já começava

a me achar irritante. (VALTER)

Foi no teatro, em especial nos momentos que antecediam apresentações, que se

deu o aprendizado acerca do quão gratificantes, reconfortantes, necessárias e

significativas são as expressões de afeto nas relações humanas:

[...] se o teatro não me ensinou tanto a ser extrovertido como eu sou [...], me

ensinou muito a relação um a um. Principalmente na hora da peça. Quando

chegou a hora da peça e bateu o nervoso e eu olhei a pessoa do lado

igualmente nervosa, e eu nunca me abrindo, com medo de seja lá o que for que

vai acontecer se eu me abrir ou com medo de encostar na pessoa com medo

da interpretação que ela vai ter desse meu contato... e aí eu recebi o abraço.

“Cara, você tá nervoso?”. “Eu estou”. E aí eu abracei de volta, e como se

quebrasse um cadeado dentro de mim, cara. Aí eu falei: “Pô, é da hora ser

humano”. É bom você estar do lado da outra pessoa, estabelecer um

relacionamento que não só uma piadinha, que não só: “Ah, aquele cara

distante ali”. Mas o cara que está do meu lado. E como é bom estar ao lado

das pessoas. (VALTER)

É interessante lembrar que Valter, como já colocado, é ex-aluno da instituição na

qual foi realizada a pesquisa. Ele tem cerca de dez anos a mais que a média dos

participantes desta roda de conversa. A diferença de idade, todavia, não interfere em seu

sentimento de pertencimento ao grupo, justamente, em seu entender, por conta do

contato humano que o teatro oportuniza, ao aproximar os participantes por meio de

relações solidárias. A questão da solidariedade – levantada por outros alunos ex-alunos

entrevistados e também recorrente nos depoimentos enviados via rede social – é bastante

significativa dentro da teoria do reconhecimento de Honneth, conforme será visto em

capítulo posterior.

Quando eu voltei no teatro, em 2016, eu já não conhecia mais ninguém. Já

não conhecia o pessoal do elenco. Mas na primeira coisa que eu tive que fazer,

[...] eu já sentia necessidade da ajuda de outras pessoas. [...] E aí esse contato

humano já ficou mais próximo de novo e eu, de novo, [...] me sinto

participante de um grupo com uma idade bem distante da minha, justamente

porque o teatro propicia isso. Propicia não apenas relacionamentos com a

plateia, com o público, mas ensina o relacionamento humano. Mudou a

minha vida. (VALTER)

A ideia de humanidade continuou sendo explanada no depoimento seguinte, em

que Clara retomou a afirmação de Catarina acerca da abertura de horizontes

proporcionada pelo teatro, acrescentando: “é como se você saísse da sua caixinha, você

percebesse que as outras pessoas são tão humanas quanto todo mundo deveria ser”. As

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“outras pessoas” a que a aluna fez menção são aquelas que fazem teatro – a participante

reconhece “humanidade” nelas, pois, em seu entender, no teatro não têm receio de

expressar suas falhas, pontos fracos ou erros. Mesmo mostrando suas fraquezas, cada

participante agrega ao grupo seus pontos fortes. Destacou também que as pessoas, no

teatro, “são muito abertas”, e, como outros colegas, afirmou que no teatro existe um

clima “acolhedor”. E foi justamente para desenvolver a ideia de acolhimento, que a aluna

retomou a questão da humanidade:

Além dos personagens te ajudarem a descobrir melhor o que você é ou o que

você quer ser, as pessoas também são muito abertas. Esse clima diferente é

muito acolhedor. [...] Aqui, está todo mundo pra se ajudar, né? O teatro é feito

de pessoas, é feito de humanos. As falas deles, as expressões corporais de

cada um, isso é o teatro. Você tem que saber muito bem como se relacionar

com todo mundo e ter um convívio muito bom com essas pessoas pra poder

subir no palco no dia da apresentação. (CLARA)

A aluna também fez menção ao momento da oração do teatro, em que todos se

dão as mãos, para juntos fazerem aquilo que não querem fazer sozinhos, que querem

“compartilhar”. Neste ponto, também chamou a atenção para uma especificidade do

teatro – a relação palco-plateia, do ponto de vista da realização do ator ao causar

reflexão no público:

Uma das certezas que a gente tem é que todo mundo que assiste a uma peça,

sai maravilhado. Sai realizado. Sai pensando coisas que nunca pensou antes,

refletindo sobre aquilo que a gente queria passar. Isso é incrível pra gente,

pros atores, pra quem viveu isso, é um sentimento inexplicável. É incrível.

(CLARA)

A imagem de “segurar a mão do outro” foi também explorada por Joana (17

anos), que exemplificou, com uma experiência recente, como sentira a necessidade da

ajuda do outro no teatro: lembrou que tinha muita dificuldade com uma fala de seu

personagem na última peça encenada na escola, e que, ao solicitar o auxílio dos colegas,

passou a compreender o texto e a dizê-lo da melhor maneira. O aprendizado, contudo,

não se restringe àquela fala específica – ao precisar do outro, no teatro, a aluna passou a

compreender mais sobre si mesma: “Eu precisei de outras pessoas pra entender uma fala.

Assim como [...] eu precisei delas pra me entender também [...]Eu precisei do teatro pra

isso: entender os laços que eu estou construindo e afirmar os laços que eu já tinha”

(JOANA). Nesse contexto, a participante também retomou a ideia de empatia, que se

aprende por meio do exercício da interpretação teatral:

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[...] Se colocar no personagem. Isso me fez criar empatia com os outros.

Porque eu entrei no personagem, eu senti o que ele estava sentindo. Então eu

consegui fazer isso muito mais fácil com as pessoas da minha vida pessoal. Eu

consegui entender elas de uma maneira mais fácil por já saber como é sentir

o que o outro sente, por me colocar no lugar dos personagens. Então isso me

ajudou muito no meu crescimento. Acho que foi essencial [...] (JOANA)

Na sequência, Melissa (17 anos) abordou, de forma direta – pela primeira vez na

roda de conversa – a questão da adolescência e como o fazer teatral pode auxiliar a

atravessar crises típicas do período. Disse ter entrado no teatro por sentir como se algo

estivesse faltando e relacionou esse sentimento à fase da vida em questão: “E, assim,

adolescência, né, gente? Se você está se sentindo completamente encaixado e

maravilhoso na sua vida, nossa, parabéns!”. Assim como Clara, apontou que no teatro

há a oportunidade de conhecer “muita gente que é muito aberta”; e, na mesma linha de

outros participantes que já haviam mencionado a sensação de “alívio” de problemas

pessoais ao participar das atividades teatrais, ponderou:

Se você está com algum problema, ou se você tem alguma questão, sei lá, com

sexualidade, transtorno mental, esse tipo de coisa, você vir pra cá é como se

fosse uma tarde na semana que essas coisas perdem um pouco o peso. Você se

sente melhor só por estar aqui nesse ambiente com essas pessoas. (CLARA)

Conhecer “gente diferente” também foi um dos aspectos para o qual Melissa

chamou a atenção, afirmando que para quem sente que não tem muitos amigos, o teatro

é um lugar que oferece “oportunidades maravilhosas”. Concluiu sua fala fazendo

menção a uma série de vivências propiciadas pelo teatro – como trabalho em grupo, o

momento da oração, o ato de subir ao palco – e dizendo que passar por tais situações

auxiliam “[...] não só se comunicar, mas com coisas da vida mesmo. E ajuda a construir

a sua identidade” (MELISSA).

A ideia abordada por Melissa e, anteriormente, já levantada por Isabel, de que os

problemas “perdem o peso” quando se está no teatro – à qual subjaz o reconhecimento de

um traço “terapêutico” na atividade – continuou a ser explorada por participantes que

se manifestaram na sequência. Graziela (16 anos), por exemplo, pontuou que, quando se

entra no teatro, “[...] você deixa tudo que está te agoniando, tudo o que está te dando

problema, lá fora. É uma porta que separa o seu lado calmo, aquilo que você quer ter

sempre, daquelas coisas que te dão nervoso, aquelas coisas que você não gosta”. A

participante colocou, ainda, que sempre foi uma pessoa extrovertida e brincalhona e que,

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ao entrar no teatro, “encontrou-se”: “Eu meio que achei um pouco da minha metade aqui,

só que a outra metade sou eu, ou seja, eu me completei comigo mesma. E eu acho isso

muito legal, porque, assim, aqui é realmente o lugar de você se achar, sabe?”

(GRAZIELA). Como Júlia, a aluna também observou que no teatro aprendeu a “separar

a hora de não ser bobinha e a hora de ser bobinha”. Chamou, ainda, atenção para a

relação com a plateia e o reconhecimento pós apresentações:

Às vezes, quando você faz uma peça e vê que está todo mundo te olhando, você

fica naquele nervoso. Mas quando você está lá fora, as pessoas vêm te dar

parabéns [...] por você ter apresentado [...] Você só fez o seu papel, que não

é só isso, é uma grande coisa. [...] Então eu acho que fazer teatro é isso: você

ter essa intensidade sempre e você ser muito gratificante pelas coisas que as

pessoas reconhecem em você. (GRAZIELA)

Para Aurora, o potencial “terapêutico” do teatro foi sentido de modo bastante

intenso – a atividade, e, em especial, um dos personagens que interpretou, em seu

entender, a “salvaram” no momento mais difícil de sua vida, vivenciado durante a

adolescência: a perda do pai. À época do acontecimento, ela estava no 8.º ano do Ensino

Fundamental, e sua turma de teatro preparava uma peça cômica. Com grande comoção, a

aluna contou sobre como o processo de montagem do espetáculo foi significativo em sua

vida, e refletiu sobre o contraste entre o personagem que interpretava e o luto pelo qual

passava:

Foi uma das minhas peças favoritas de fazer [...] Minha personagem era uma

bêbada [...], eu saía de casa, chorava o dia inteiro, ia pro teatro e esquecia de

tudo que tinha acontecido na minha vida e tentava fazer alguém rir. [...] no

teatro era um momento de eu simplesmente viver o personagem, então aquele

personagem é o mais importante pra mim, porque ele meio que me salvou. [...]

Eu tinha que fazer os outros rirem, meu personagem era muito engraçado e

por dentro eu estava... era uma nuvem preta e eu só queria chorar, chorar,

chorar. Pra mim, foi um alívio eu esquecer de tudo que estava acontecendo na

minha vida e conseguir dar vida àquele personagem. Eu lembro que quando

meu pai morreu, eu pensei assim: “Eu não vou conseguir terminar a peça”.

[...] E, no final, eu pensei que o teatro ia atrapalhar, e ele me ajudou a

perceber que o teatro fazia parte de mim e que aquilo me salvou. E eu

agradeço, sou muito grata por aquele ano, sou muito grata por aquela peça,

sou muito grata pelos amigos que eu fiz naquele ano e aquela peça meio que

salvou a minha vida. (AURORA)

No depoimento seguinte, Mirella (17 anos) retomou a ideia da coletividade,

associando-a à identificação entre os membros do grupo teatral – questão que, como se

verá adiante, foi bastante enfatizada na roda realizada com ex-alunos:

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[...] o teatro me ensinou muito a ter esse espírito de coletividade. [...] quando

a gente entra no teatro, encontra [...] um monte de gente que ama aquela

mesma coisa que você, você sabe que todo mundo vai dar, assim como você, o

seu melhor pra fazer aquilo dar certo, e eu acho isso totalmente incrível.

A participante, além disso, concordou com a afirmação já exposta por outros

entrevistados sobre a existência de “sensações e sentimentos que só o teatro traz”

(MIRELLA). Para exemplificar uma dessas sensações, explorou a questão da relação

palco-plateia, tanto da perspectiva do espectador quanto da do ator. Afirmou que, desde

sua entrada no colégio, há 12 anos, assistira a todas as peças ali apresentadas e que sempre

tivera muita vontade de fazer parte do teatro, mas lhe faltava coragem para tal. Há dois

anos e meio, contudo, a coragem veio, possibilitando-lhe experimentar o lado de quem

está no palco: “eu acho totalmente gratificante ter a oportunidade de despertar essa

paixão em outras pessoas, nas pessoas que estão assistindo. Eu acho, tipo, totalmente

maravilhoso. É inexplicável” (MIRELLA).

Na sequência, Valéria comentou que havia sido reprovada no primeiro ano do

Ensino Médio e que entrou no teatro no início do ano em que teria de refazer a série,

época em que se sentia “muito perdida” e “com medo de voltar” para a escola. Destacou

que no teatro conheceu “pessoas maravilhosas”, que a “ajudaram a passar por isso”. A

atividade, em seu entender, a ajudou a se organizar e a se “superar em todos os sentidos”.

Destacou que o que se aprende com a atividade pode ser aplicado “vida afora” e que

considera o teatro “um lugar sagrado que ajuda muito em tudo” (VALÉRIA).

O último depoimento pessoal desta roda de conversa teve como principal foco um

tema que apareceu de forma bastante recorrente no decorrer de toda a discussão: os

sentimentos despertados pela experiência teatral. Ao discorrer sobre sua identidade, a

aluna Inês (16 anos) descreveu-se como alguém extremamente racional, porém com um

“lado” mais sensível, que ela atribui à sua experiência teatral de mais de seis anos. É

interessante notar como a aluna pondera que o teatro, de certa forma, lhe “apresentou”

certas emoções, fazendo com que ela se permitisse experimentar e expressar

sentimentos:

[...] Tudo o que a minha mãe e meu pai falam pra mim é que eu sou muito

razão, sou muito cabeça. Eu penso muito, assim, matemática. [...] muito

racional. Pra mim é tudo quadradinho, tudo tem que ser assim. Se hoje eu

tenho um pouquinho mais de coração, se meu coração é um pouquinho menos

pedra, é porque o teatro me ajudou a falar assim: “Beleza, você tem

sentimentos. Você pode sentir coisas, isso não é errado”. Se eu consigo ter,

sei lá, 10% de empatia, de amor, de felicidade, de tristeza, de ser um

pouquinho mais sentimental, eu acho que foi porque o teatro me proporcionou

isso. Falou pra mim, tipo: “Ah, olha só. Esses sentimentos existem aí pra você.

Essas coisas estão aí. Você não pode fugir disso”. Então assim, eu ainda sou

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muito cabeça, muito matemática, mas acho que tem 10% ali de mim, uns 20%,

não sei, que são mais coração. Se eu consigo expressar mais meus sentimentos,

até falando aqui nesse momento, é por causa do teatro. (INÊS)

1.3.1 - DESTAQUE DE UMA ENTREVISTA

Como já colocado, uma das participantes da roda de conversa anteriormente

descrita foi convidada, logo após o encontro, a permanecer no auditório para discorrer

com maiores detalhes sobre suas percepções acerca da influência do teatro na construção

de sua identidade. Em sua fala, são abordadas questões relevantes, como autenticidade,

necessidade de pertencimento a um grupo, julgamento externo, reconhecimento e

escolha profissional, além de se poderem entrever três importantes especificidades do

fazer teatral: a construção de personagens, a relação intragrupo e a relação palco-

plateia. Sua descrição quanto à interpretação de papéis no teatro como reveladora de uma

não autenticidade na vida real faz lembrar os conhecidos dizeres de Hazlitt: “O homem

é um animal que finge – e nunca é tão autêntico como quando interpreta um papel”.

Antes de eu entrar pro teatro, eu era uma pessoa muito não autêntica. Eu não

sabia quem eu era. Então eu me forçava a ser o que, por exemplo, eu via uma

amiga minha sendo um tipo de pessoa e eu achava que eu precisava ser assim

porque eu achava que eu precisava me encaixar. Só que eu acabava não me

encaixando, porque não era quem eu realmente era, era quem eu estava

interpretando pra tentar me encaixar em algum tipo de grupo, porque eu não

me encaixava, eu não me via em nenhum lugar. E a partir do momento que eu

tive contato com a arte, em geral, o teatro, a dança, mas em especial o teatro,

eu tive contato com a construção de um personagem, eu recebi um

personagem e eu tinha que interpretar esse personagem. Como eu passei por

esse processo de ter que construir um personagem, eu percebi que eu fazia

muito isso na vida real também. Eu construí um personagem pra me encaixar

em um lugar e eu percebi que eu não podia fazer isso. Eu tinha que ser quem

eu era. Ao mesmo tempo, foi o mesmo período em que eu descobri o quão

apaixonada eu era pelo teatro, como eu era apaixonada pela arte, que foi um

dos motivos pelo qual eu quero fazer cinema. O teatro me ajudou muito a

decidir o que eu quero fazer pro futuro, quem eu quero ser pro futuro, o que

eu quero mostrar pros outros. Eu quero mostrar pros outros que eu sou uma

pessoa apaixonada pela arte, porque é isso que eu sou. Ao mesmo tempo que

eu pude me expressar, ser quem eu era, não mais construir um personagem na

vida real, mas só no teatro, eu pude expressar quem eu realmente era e as

pessoas ao redor de mim passaram a realmente apreciar quem eu realmente

era, e não quem eu tentava ser, quem eu construía pra ser. Foi por isso que

dentro do teatro eu fiz as conexões mais fortes, os laços mais fortes, amizades

que nunca vão acabar, porque é quem eu realmente sou e elas não me julgam

pelo o que eu sinto ou pelas coisas estranhas que eu faço, que muitas vezes

outras pessoas falaram. (PAULA)

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CAPÍTULO 2

UMA REVISITA AO QUINTAL COMUM

“[...] Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda,

puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas,

os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo

e dele brotam o ar as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume

do pão. Que mais quer, que mais quer?”

Julio Cortázar (Bestiario,1998)

Flávio Desgranges (2013, p. 25, grifos nossos), em relato pessoal sobre um

encontro fortuito com jovens adultos que, quando meninos, haviam sido seus alunos de

teatro, descreve suas impressões de um modo que se assemelha ao impacto que a roda de

conversa com ex-alunos, apresentada nesta seção, provocou na pesquisadora:

[...] para além da alegria de revê-los, me chamava a atenção o fato de

carregarem algo que nos marcava, que nos identificava, um algo que

certamente também estaria perceptível em mim, como se o espaço conquistado

pela experiência em comum, tal como um quintal invisível a olho nu,

concebido e acalentado por nós mesmos, ainda estivesse ali, presente, pronto

para ser revisitado a qualquer momento.

Revisitar esse quintal comum era, em última análise, a intenção de nosso encontro.

Mais que um procedimento com fins científicos, a roda de conversa com antigos

participantes de grupos teatrais representou, para os presentes, uma verdadeira

celebração:

Celebração é a palavra que abole a concepção de um alvo para o qual a pessoa

se dirigisse. A celebração é assim que não se tem que ir antes, para depois

chegar lá. Celebrando-se uma festa, a festa sempre está lá o tempo todo. Este

é o caráter temporal da festa: que ela é celebrada e não recai na duração dos

momentos que se revezam. (GADAMER, 1985, p. 63)

Assim foi a reunião com ex-alunos de teatro: um daqueles momentos em que se

tem a sensação de suspensão do tempo; um parêntese na roda frenética dos

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acontecimentos corriqueiros; um “puxar o pino do relógio”, na prosa poética de Julio

Cortázar, selecionada para a citação de abertura deste capítulo.

Abrir as portas do auditório da escola, em uma ensolarada manhã de sábado, para

21 sujeitos que naquele mesmo local, em outras épocas, haviam vivido parte significativa

de suas vidas – e onde também haviam “dado vida” a tantas histórias e personagens –, foi

de fato como abrir espaço para um outro tempo: o da memória; o tal “tempo dilatado,

tempo de vagar da subjetividade, temporalidade própria à produção de conhecimentos”

(DESGRANGES, 2013, p. 20), mencionado no capítulo 1. Tempo de reconstrução de um

outro tempo-espaço, em um espaço já conhecido, agora modificado pela passagem do

tempo (o auditório atualmente modernizado, com novas cortinas e poltronas,

equipamentos de iluminação e outros recursos que ali não havia anos atrás).

Antes do procedimento da roda em si, durante o momento de acolhida dos sujeitos,

foi interessante observar que cada ex-aluno que chegava trazia consigo e logo abria sua

“mala” – material ou imaterial – de recordações: das “malas materiais” trazidas para o

encontro foram retiradas diversas “relíquias” de antigas peças montadas na escola

(camisetas, cartazes, folderes, reportagens, textos e até mesmo figurinos), todas

guardadas com aquele esmero dispensado aos objetos que, por sua significação, encerram

memórias que se quer eternizar13. Das “malas imateriais”, foram logo saltando

lembranças, partilhadas com comoção entre antigos parceiros de cena, que agora se

reencontravam.

“Um teatro vazio dá-me a impressão de que a vida foi ontem”, disse um dos

participantes, logo após entrar no auditório, citando uma fala de um espetáculo montado

na escola, do qual havia participado. Relembrando outra passagem da mesma peça, um

antigo colega de grupo completou: “eu não sei, não posso explicar esse fascínio, mas um

dia sem o palco me deixa mais triste. Ai, esse cheiro, esse barulho das gambiarras, as

luzes, os aplausos, essa alegria toda... tudo isso é vida, a única que sei viver”14.

Outras falas, de outros espetáculos, foram igualmente rememoradas,

espontaneamente, por antigos participantes, muitos dos quais se sentiram impelidos a

subir ao palco e reproduzir cenas que ali haviam representado em anos anteriores. Uma

13 Estes objetos foram trazidos a pedido da pesquisadora, que, conforme já explicitado na Introdução,

estava, à época da realização da roda de conversa, conduzindo uma montagem teatral que visava celebrar

duas décadas de teatro na escola onde foi realizada a pesquisa. 14 Ambas as falas mencionadas são do espetáculo Geração Trianon, montado no IEI nos anos de 1998,

2006 e remontado em 2019, como mencionado na Introdução. Como se pode deduzir pelos trechos citados,

a peça apresenta elementos de metalinguagem.

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ex-aluna, integrante do primeiro grupo de teatro da escola, chegou a vestir o figurino da

peça que apresentara quando adolescente, para cantar a canção que interpretava no

espetáculo.

Em pouco tempo, diferentes gerações de ex-alunos já conversavam com certa

familiaridade, descobrindo similaridades entre as experiências ali vivenciadas em épocas

distintas. A identidade comum de ex-alunos de teatro da mesma escola parecia transpor

as barreiras que usualmente se interpõem entre desconhecidos. Logo, o quintal comum,

imaterial, estava instaurado de modo quase palpável, e pronto para ser revisitado.

Assim, depois de abraços, lágrimas, risadas, fotos e promessas de novos

reencontros, todos se sentaram no palco do teatro, para o início “oficial” da roda de

conversa. Roda esta que, dadas a comoção dos participantes e a rememoração detalhada

de experiências vivenciadas no passado (algumas há mais de 10, 15 ou mesmo 20 anos),

parecia materializar a ideia, já apresentada na Introdução, de memória como lugar de

refúgio – um refúgio interno, onde nos reencontramos e nos reconstruímos:

Na rememoração reencontramos a nós mesmos e a nossa identidade, não

obstante muitos anos transcorridos, os mil fatos vividos. [...] Se o futuro se

abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo passado é aquele

no qual, recorrendo a nossas lembranças, podemos buscar refúgio dentro de

nós mesmos, debruçar-nos sobre nós mesmos e nele reconstruir nossa

identidade. (BOBBIO, 1997, p. 30-31, grifo nosso)

Como no capítulo anterior, serão destacados os conteúdos mais recorrentes e de

maior relevância ao enfoque da pesquisa, e, à medida que puderam ser relacionados a

conceitos dos autores que embasam esta pesquisa, serão apresentados alguns

apontamentos de cunho teórico.

2.1 - RODA COM EX-ALUNOS

A roda teve início com uma fala da pesquisadora, com instruções sobre o

procedimento, similares às descritas na apresentação da roda realizada com alunos. Foi

solicitado que cada entrevistado, ao começar seu depoimento, dissesse sua idade e atual

ocupação. Esses dados serão também apresentados aqui, uma vez que interessa à pesquisa

apresentar visões de indivíduos de diferentes idades acerca dos impactos do fazer teatral

vivenciado durante a adolescência, bem como conhecer a identidade profissional dos

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participantes, compreendendo se tal identidade se relaciona, de algum modo, à

experiência com teatro vivenciada na escola.

Ainda durante a fala da pesquisadora, foi apresentado, brevemente, um relato do

início do teatro no colégio, para que os sujeitos mais jovens pudessem se familiarizar com

o contexto das histórias que possivelmente seriam rememoradas por aqueles que haviam

participado das atividades teatrais da escola há mais tempo. De modo resumido, foi dito

que o teatro do Imaculada teve início no ano de 1997, quando um grupo de alunos com

boas notas em disciplinas ligadas à área de Linguagem foram convidados por professoras

de Português e Literatura para elaborar um trabalho a ser apresentado em um evento

literário que ocorreria na escola. À época, não havia aulas de teatro na instituição. A

pesquisadora, que fazia parte desse grupo de estudantes e frequentava cursos de teatro

extraescolares, propôs a elaboração de uma peça teatral, sugestão que foi bem recebida

entre os colegas. Surgiba, assim, o primeiro grupo de teatro da instituição – formado

exclusivamente por alunos que, juntos, produziam suas próprias montagens. Essa mesma

história, como se verá daqui em diante, voltaria a ser explorada muitas vezes no decorrer

da roda, por ex-alunos que participaram dos primórdios do teatro na escola em foco. Em

suas falas, muitos outros detalhes foram rememorados, ora se somando, ora até mesmo

ratificando algumas das informações primeiramente apresentadas. Este constitui o rico

movimento das narrativas: elas revelam que um mesmo passado comum pode ter

diferentes versões, pois cada uma delas está intimamente ligada ao sujeito que vivenciou

a experiência.

O primeiro depoimento da roda, do ex-aluno Mauro (37 anos, publicitário e

professor), começou justamente acrescentando um dado diferente ao histórico da

formação do primeiro grupo de teatro: o participante afirmou que “era muito ruim em

Português” e que a professora dessa disciplina, com o intuito de melhorar a relação dele

com a linguagem, ofereceu “um pontinho a mais” na média, caso ele participasse do grupo

que estava sendo criado. Além dessa questão, o sujeito afirmou que, à época, também

tinha dificuldades com relacionamentos sociais e que o teatro foi, nesse sentido, muito

importante para a construção de sua identidade. A questão da liberdade encontrada no

ambiente teatral e nas práticas ali desenvolvidas (ponto bastante enfatizada na roda de

conversa com alunos, como já visto) foi determinante nesse processo de construção

identitária:

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[...] era uma forma de eu deixar extravasar, de deixar eu expressar coisas que

eu não podia fazer em casa, coisas que eu não podia fazer em outros grupos

sociais e, de repente, em um ambiente de teatro, que era um ambiente muito

livre nas práticas teatrais – nos exercícios teatrais, vamos dizer assim –, isso

me deixava extravasar [...] Nessa construção de quem eu sou, de coisas que

eu não podia compartilhar em outros grupos sociais, no teatro, eu tive essa

liberdade. (MAURO)

Esse “extravasamento” possibilitado pela liberdade de expressão encontrada

nas práticas teatrais seria retomado por outros participantes, durante esta roda. Outro

ponto levantado por Mauro (e também recorrente na roda de conversa com alunos) foi a

autoaceitação. O entrevistado – como fariam outros, na sequência – acabou refletindo

sobre como se dá o processo em si da formação da identidade: “eu acabei me aceitando

mais do jeito que eu era. A questão da construção da identidade também tem a ver com

a aceitação de si mesmo, nessa relação intersubjetiva”.

A questão do impacto do teatro na identidade profissional também foi abordada

por Mauro. É interessante chamar a atenção para o fato de que esse sujeito, quando

adolescente, tinha dificuldades com a área de linguagem e com relacionamentos, e hoje é

publicitário e professor. A oralidade e a facilidade para falar em público, desenvolvidas

no teatro, foram aspectos que influenciaram seu desenvolvimento profissional,

auxiliando-o a se expressar melhor, ter melhores relacionamentos com clientes e expor

trabalhos publicitários. O sujeito observou que essas habilidades ligadas à Comunicação,

área que decidiu seguir profissionalmente, influenciaram a construção de sua identidade

no início da carreira e continuam até hoje impactando a maneira como é visto por outras

pessoas:

[...] sempre me perguntam: “Nossa, mas você tem uma desenvoltura muito

boa. Como você conseguiu desenvolver?”. Os próprios alunos, porque eu

também sou professor, os próprios alunos falam assim: “Nossa, você fala

muito bem. Por quê?”. “Ah, fiz muito tempo teatro”. Isso também me ajudou,

que me leva até hoje essa questão de poder me expressar, poder participar em

grupo [...] (MAURO)

A próxima participante a falar foi Amanda (37 anos, contadora). Em seu

depoimento, a questão da autoconfiança também foi levantada. Apesar de extrovertida,

ela tinha dificuldade de relacionamento na escola durante a adolescência: “eu era

completamente fora dos padrões. Eu era a gordinha, nem um pouco vaidosa, sofria o

bullying absurdamente na escola [...] era meio que excluída. Tinha poucos amigos”.

Esses amigos eram justamente alguns daqueles que estavam preparando as primeiras

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apresentações de teatro para escola, em 1997, e Amanda enxergou aí uma grande

oportunidade – ela sempre quisera participar de atividades teatrais, porém sua mãe nunca

havia permitido: “ela queria sempre que eu fizesse atividades esportivas para queimar

calorias, então eu sempre pratiquei muito esporte. [...] Teatro não queimava calorias,

então eu não podia fazer”. Ao saber que os amigos do colégio estavam envolvidos com

uma montagem teatral, a entrevistada resolveu tentar se juntar à equipe. Disse à mãe que

precisaria ficar na escola fora do período da aula para um evento, e foi ao auditório, onde

o pessoal de teatro realizava um encontro. A princípio, ficou apenas observando a reunião,

pensando em como poderia também fazer parte do grupo. Quando surgiu uma

oportunidade, prontificou-se a trazer muitos dos objetos e móveis que seriam necessários

para a montagem. Dessa forma, inseriu-se na equipe, a princípio como contrarregra e,

logo depois, assumindo papéis em encenações.

A ex-aluna destacou que os exercícios teatrais e as experiências de

improvisação15 vivenciadas no teatro foram muito importantes, do ponto de vista

identitário, pois a ajudaram a se tornar mais autoconfiante, o que melhorou a maneira

como ela, até hoje, se relaciona com as pessoas. Antes de fazer teatro, e acostumada com

experiências de rejeição, Amanda costumava ter dificuldade em estabelecer

relacionamentos com os outros: “Eu me armava muito, porque eu já estava preparada

para as pessoas não gostarem de mim, então o teatro me deixou mais confiante e isso eu

carreguei, assim, a vida inteira. Me envolvia melhor com as pessoas, fui fazendo mais

amigos [...] (AMANDA). Ao falar sobre essa expansão de seu círculo social propiciada

pelo teatro, Amanda abordou a questão do reconhecimento:

[...] gente que fingia que eu não existia – escola tem isso, né? –, depois que eu

estava no grupo de teatro do colégio, que foi ganhando uma certa notoriedade,

aí eu já não era mais uma ninguém que ficava ali no cantinho do pátio,

sentadinha com a panelinha, sabe? A minha panelinha foi começando a

crescer, porque todo mundo queria ser nosso amigo, queria conversar com a

gente e tal. Me trouxe um pouco para uma realidade que eu nunca tinha vivido.

(AMANDA)

Para a entrevistada, a experiência de “experimentar um sentimento que não é seu”

e “viver uma pessoa completamente diferente de você” contribuem para os processos de

auto aceitação e aceitação do diferente: “você começa a [...]entender que ninguém tem

15 Na época em que Amanda começou a fazer teatro, a pesquisadora era também aluna da instituição.

Contudo, trazia para o grupo de teatro muitos dos exercícios, dinâmicas e jogos que vivenciava em cursos

de teatro extraescolares.

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que ser igual a você, ninguém tem que te aceitar 100% do jeito que você é” (AMANDA).

A ex-aluna afirmou que a vivência com teatro foi tão forte que impactou, inclusive, seus

relacionamentos fora do ambiente escolar, não apenas na época da escola, mas durante

toda a sua vida, inclusive no trabalho. Contou, ainda, que hoje em dia é catequista e,

como tal, organiza cenas teatrais para missas dirigidas a crianças na igreja que frequenta,

utilizando tudo o que aprendeu durante o tempo em que fez teatro na escola. Certa vez,

ficou muito feliz e emocionada, ao receber, em seu grupo, uma criança que, atualmente,

faz teatro na mesma instituição. Finalizou seu depoimento da seguinte maneira: “Então,

assim, o teatro, para mim, mudou para caramba a minha vida. Me ajuda até hoje em

todos os sentidos” (AMANDA).

Na sequência, a ex-aluna Luana (29 anos, empresária, coach e palestrante) pediu

a palavra e iniciou sua fala dizendo: “o teatro, para mim, foi fundamental e salvou a

minha vida”. Como Mauro e Amanda, relatou sempre ter tido dificuldades com

relacionamentos, sendo inclusive “um pouco isolada”. Durante a adolescência, apesar

de ter muitos colegas, não tinha muitos amigos, pois sentia que não pertencia a nenhum

grupo. A participante começou a fazer teatro no ano em que vivenciou a perda de um

ente muito querido, situação que a levou a desenvolver depressão, chegando a considerar

o suicídio. O impacto da participação no teatro durante essa fase difícil de sua vida

assemelha-se àquela relatada por uma das participantes da roda com alunos, que contou

como a atividade também a havia ajudado a lidar com o luto. O envolvimento e a

dedicação intensa à atividade – que passou a ser, para ela “a graça da vida” –, os

sentimentos de inclusão e pertença e o acolhimento experimentados no teatro foram

fundamentais para que Luana conseguisse lidar com seus problemas:

[...] o teatro, para mim, surgiu como uma resposta aos meus problemas,

porque eu via nele um propósito, naquela época. Eu tinha uma vontade de

fazer alguma coisa com ele e eu me sentia incluída, então, assim, no teatro,

eu sentia que eu fazia parte de um grupo, eu pertencia a um grupo e as

pessoas me acolheram muito bem. Parece que eu achei o meu… Como é que

a gente pode falar? A minha turma. (LUANA)

Esse processo de encontrar a própria “turma” ofertou à ex-aluna também um

“encontro” com aspectos identitários. Ela começou a perceber que não era “a única que

era diferente das outras pessoas” e, nesse sentido, identificava-se com seus colegas do

grupo: “quem faz teatro é diferentão, né? [...] Eu acho que só quem faz teatro entende”

(LUANA).

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Outras questões levantadas por Luana também se conectam com depoimentos

apresentados anteriormente, tanto nesta seção como na anterior: comunicação,

identidade profissional, autoconhecimento, trabalho em grupo e empatia. Sobre o

primeiro desses aspectos, a ex-aluna destacou: “eu era uma pessoa muito tímida. Eu sou

um pouco até hoje, mas o teatro me tirou muito dessa timidez, desse medo excessivo que

eu tinha de falar na frente das pessoas”. Tanto que falar em público é, hoje, uma

exigência de sua atual prática profissional. Ela costuma proferir muitas palestras e

gravar vídeos e, assim como Mauro, é constantemente elogiada por sua desenvoltura:

“muita gente fala para mim assim: ‘Nossa! Você fala muito bem’. Eu falo: ‘Cara, é o

teatro’ (LUANA).

A entrevistada contou que, à época de prestar vestibular, queria fazer Artes

Cênicas, porém não teve, para tal, o apoio da mãe. Acabou optando por fazer Direito, pois

acreditou que a carreira, de algum modo, ofereceria oportunidades de continuar fazendo

o que gostava, como sua mãe costumava dizer: “Bom, você gosta de atuar, no Direito

você vai atuar”. Luana, então, tornou-se advogada e trabalhou na área por alguns anos.

Contudo, infeliz na profissão, percebeu que seria preciso realizar uma metamorfose:

mudou de carreira e hoje trabalha em uma área que tem, em seu entender, muito mais

ligação com a identidade que “descobriu” e construiu durante os anos em que fez teatro

na escola:

[...] hoje exatamente eu trabalho com isso. Não é teatro, mas hoje eu entendo

o quanto o teatro fez diferença e o quanto ele contribuiu para minha

identidade profissional hoje. Eu não seria a profissional que eu sou hoje, de

maneira alguma, se eu não tivesse feito teatro. [...] não seria a pessoa que eu

sou hoje, não geraria a transformação no meu cliente como eu gero hoje [...]

então eu devo a minha vida ao teatro, literalmente. (LUANA)

Essa mudança de carreira, na vida adulta, está para a entrevistada diretamente

ligada ao autoconhecimento proporcionado pela experiência com teatro durante a

adolescência. Ela revelou que, apesar de não ter essa percepção na época em que fazia

teatro, hoje tem convicção de que muito do que entende sobre si mesma veio da vivência

artística durante a vida escolar: “o teatro [...] foi meio que o gancho do meu

autoconhecimento”. Ela atribui esse desenvolvimento de um saber mais aprofundado

sobre si mesma ao exercício de se colocar no lugar de personagens, com sentimentos

diferentes dos seus. Essa prática, e também a vivência em grupo e o consequente

aprendizado de que todos precisam de todos, foram para a entrevistada responsáveis por

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aquilo que acredita ser a principal contribuição do teatro em sua vida: a empatia. A esse

respeito, ela contou que costumava viver em seu próprio “mundinho”; porém, no teatro,

percebeu que “[...] todo mundo tem que estar bem. Todo mundo tem que estar junto. E a

gente tem que fazer o negócio rodar. Não adianta deixar você de lado, você vem comigo.

Vem, eu vou te ajudar e a gente vai se ajudar” (LUANA). Esse aprendizado sobre

empatia e coletividade foi, para Luana, primordial para sua futura identidade

profissional: “hoje eu trabalho justamente com a empatia quando eu atendo o meu

cliente. Foram construções que foram levadas até hoje nos meus 29 anos” (LUANA).

Lina (33 anos, arquiteta e professora), em seu depoimento, também destacou a

empatia, desenvolvida por meio da atividade teatral durante a adolescência, como

impacto do teatro que reverbera, ainda hoje, em sua identidade profissional. Em sua

atuação como professora, ela ressaltou que é preciso “entender, conhecer, olhar o aluno,

saber o que tem do outro lado [...] É o saber, a cada momento, como falar, o que falar

[...] saber ler o teu público e como você vai saber se portar para ele”. Para a entrevistada,

muito desse conhecimento que ela tem vem do teatro.

A questão da empatia, apontada por Luana e Lina, foi, igualmente, enfatizada por

Sara (23 anos, atriz), próxima participante a expor seu depoimento. Em uma fala que

também se relaciona ao que alguns alunos haviam levantado da roda de conversa anterior,

a ex-aluna ponderou que a atividade teatral auxilia no aprendizado sobre relações

humanas. Nesse sentido, ela observou que não vê em outros grupos sociais o mesmo

tipo de relação que se pode encontrar no teatro: “É um tipo de relacionamento muito

fluido que eu vejo em outros grupos, grupos de pessoas que não fizeram teatro, é muito

estranho se relacionar com esse tipo de pessoa” (SARA).

É interessante aqui atentar para o sentido de “fluido” na afirmação da participante.

Ao dizer que os relacionamentos em grupos de pessoas que não fazem teatro são fluidos,

ela não quer, evidentemente, dizer que são relações que se estabelecem com maior

fluidez, no sentido de facilidade, naturalidade, poucos entraves. Pelo contrário: a

participante refere-se à superficialidade, fragilidade, ou, para utilizar o conceito de

Bauman (2004), à “liquidez” das relações. Qualidade essa, na visão de Sara, oposta àquela

encontrada em grupos teatrais, nos quais, segundo a participante: “a gente se acostuma a

se relacionar com o outro de uma forma natural. Assim, muito isso da empatia, de

entender como está o outro hoje, quais são os seus limites com o outro” (SARA).

Exemplificando esse aprendizado, a participante afirmou que o teatro influenciou

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inclusive a maneira como ela hoje olha para outras pessoas e nelas encosta, sem parecer

invasiva.

Ainda sobre o aprendizado no campo das relações do afeto, Sara definiu-se como

uma pessoa que se tornou mais “calorosa”, que entende a importância do outro em sua

vida, por conta da experiência com teatro – assim como alguns alunos haviam também

colocado, na primeira roda de conversa:

Eu não me basto sozinha. [...] Preciso de família. Preciso de amizade.

Preciso, sabe? E isso eu consegui no teatro [...] Mas a minha família é mais

fria, por isso que eu digo: não sou uma pessoa calorosa, mas virei. E agora

eu sinto que preciso de pessoas calorosas na minha vida e eu sinto isso por

causa do teatro. (SARA)

Outo aspecto levantado por Sara que impacta seu relacionamento com os outros e

que, em seu entender, foi desenvolvido pelo teatro, é a sinceridade: “o teatro me fez ser

uma pessoa muito sincera [...] Se alguma coisa me incomoda, eu falo”. O termo

“sinceridade” poderia ser compreendido como autenticidade, ou uma honestidade

consigo mesma no sentido de não camuflar seus pensamentos e sentimentos. A esse

respeito, a ex-aluna disse se sentir bastante incomodada quando alguém, ao saber que ela

é atriz, a pressupõe “fingida”. Para Sara, o que ocorre é exatamente o contrário: o teatro,

de certa forma, dá-lhe condições de extravasar o que pensa e, ainda melhor, fazê-lo de

forma empática: “Se eu tenho alguma coisa para te dizer, eu vou te dizer e eu meio que

sei como te dizer para não te magoar. Se isso é ser fingido, poxa…”. Evidentemente, essa

reflexão acerca da autenticidade está muito ligada à questão da liberdade, e também pode

ser vislumbrada naquilo que a participante afirmou sobre outro aprendizado

proporcionado pelo teatro: “não tenha medo de ser ridículo, então, eu não tenho medo.

[...] Vou fazer o que é meu, vou ser o que sou eu e é isso” (SARA).

A mesma participante ainda acrescentou que os processos vivenciados no teatro,

em termos de montagens de peças e de interpretação de personagens, acrescentam o que

chamou de “camadas” aos sujeitos, no sentido de construir e acrescentar novos dados à

identidade. Essa imagem apresentada por Sara remete às palavras de Lacan (1981, p. 144

apud DUBAR, 2005, p. 24) acerca da construção identitária: “o eu é um objeto constituído

como uma cebola; poderíamos descascá-lo e encontraríamos as identificações sucessivas

que o constituíram”. Como exemplo desse acréscimo de camadas à própria identidade, a

ex-aluna citou sua participação no espetáculo Auto da Compadecida, montado na escola

no ano de 2012, em que interpretou a própria Compadecia: a partir dessa experiência, a

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participante desenvolveu “uma relação muito forte com Nossa Senhora”, a ponto de hoje

pensar em escrever uma peça teatral sobre Maria, mesmo não se considerando católica.

Para a ex-aluna, o teatro beneficia essas relações que “transcendem” o que já trazemos

como construção identitária.

Na sequência, o ex-aluno Fábio (35 anos, advogado, ator, professor de inglês,

dublador e empresário) fez um extenso e pormenorizado relato sobre a história do início

do teatro na instituição em foco. Histórico que, como o participante frisou, confunde-se

com a história de sua própria construção identitária. Durante a fala deste participante,

houve algumas intervenções de outros sujeitos, que também haviam feito parte do

primeiro grupo de teatro do IEI. À medida que Fábio resgatava memórias de cenas e

experiências vivenciadas, esses outros ex-alunos iam também acrescentando a elas as suas

próprias lembranças.

Na abordagem de Fábio, ficou evidenciado que foi preciso haver uma luta por

reconhecimento para que o teatro pudesse ganhar certo espaço e notoriedade dentro da

escola: “a gente lutou muito, a gente brigou muito pra que o teatro acontecesse na escola.

No início, não pensem que foi fácil. A gente teve, sim, muitos obstáculos” (FÁBIO). Como

exemplo dessas dificuldades, o ex-aluno mencionou o fato de que, a princípio, os ensaios

tinham de ser realizados nas casas dos integrantes do grupo de teatro ou no pátio da escola,

porque só era permitida a utilização do auditório da instituição na véspera das

apresentações. Lembrou também que cenários e figurinos, nas primeiras montagens, eram

improvisados com roupas e móveis dos próprios participantes, ou então criados e

confeccionados por eles, com verba arrecadada via contribuição semanal de uma pequena

quantia, destinada à “caixinha do grupo”16.

Citou, ainda, um episódio bastante significativo do ponto de vista da luta pelo

reconhecimento, que ocorreu quando os participantes do teatro fizeram uma camiseta do

grupo – em um movimento muito claro de vontade de materializar a identidade coletiva

e afirmá-la diante do universo social escolar. Ao solicitar autorização da instituição para

utilizar a camiseta dentro da escola, a resposta que ouviram dos dirigentes foi: “Não,

vocês não podem, porque o grupo de teatro de vocês não é oficial. Não é uma coisa que

16 Como já mencionado, o teatro foi, gradativamente, conquistando mais espaço dentro da escola.

Atualmente, o auditório da escola é utilizado diariamente para as aulas de teatro, e as produções teatrais

contam com contribuição financeira da própria instituição e também de sua Associação de Pais e Mestres.

O teatro é hoje oferecido a alunos desde o 5.º ano do Ensino Fundamental até o 3.º ano do Ensino Médio,

tanto dentro da grade de disciplinas obrigatórias (no 7.º ano do Ensino Fundamental) quanto em caráter

extracurricular (demais anos). Contudo, para se chegar a esta situação, foi preciso lutar pelo reconhecimento

do valor da atividade, como indica a fala de Fábio.

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faz parte do Imaculada”. Sentindo-se, com a negativa, desrespeitados em sua

identidade, os alunos decidiram desafiar a proibição, combinando uma resistência

coletiva: “‘Não, a gente vai usar sim. A gente vai usar’. E a gente veio, naquela semana,

correndo risco de não entrar na escola, de os inspetores e as madres tirarem a gente”

(FÁBIO). Por fim, a escola acabou aceitando a utilização da camiseta do grupo de teatro,

prática que se repete até os dias atuais, durante as semanas anteriores e posteriores à

apresentação de espetáculos. No capítulo 6, o processo de luta por reconhecimento, tal

como a entende Honneth (2003), será abordado com maior profundidade. Fica claro, na

fala de Fábio e dos colegas que complementaram seu relato, que o empenho dos primeiros

participantes do teatro para conquistar espaço dentro da escola acabou por fortalecer a

identidade coletiva do grupo e com ela, evidentemente, também a identidade

individual de cada um de seus participantes.

Durante a roda de conversa, essa identidade coletiva dos participantes do

primeiro grupo de teatro foi, de certa forma, “reacendida”. Ao interagir com ex-alunos

de anos mais recentes, os pioneiros muitas vezes se referiram às dificuldades

enfrentadas coletivamente no passado, expressando seu orgulho em ter feito parte de

um processo que deu início às atividades teatrais da escola, e que, portanto, abriu espaço

para que os demais presentes àquela roda pudessem também vivenciar suas experiências

no teatro e, ali, “encontrar” uma identidade comum:

[...] eu fico muito feliz em saber que a gente deu o primeiro passo pra uma

coisa que a gente não sabia o que iria se tornar, que foi muito importante pra

escola, pra estrutura que existe hoje, mas, principalmente, pra gente, por uma

questão de autoconhecimento, pra gente se achar, pra gente saber que existe

sim uma tribo, um grupo, pras pessoas que são sensíveis, pros artistas, que

veem o mundo de uma forma diferente. O artista vê, ele sente o mundo de

uma forma diferente. A gente não vê o mundo só com os olhos, a gente sente

com todos os nossos sentidos. (FÁBIO)

Esse descobrimento da própria “tribo”, associado ao autoconhecimento, já

mencionado anteriormente por Luana, foi um tema recorrente nesta roda de conversa (e

também naquela realizada com alunos). Para Fábio, encontrar um grupo de

pertencimento com o qual se identificava – o que constitui o próprio processo de

socialização (DUBAR, 2005) – foi fundamental a sua construção identitária. O

participante colocou que, no início de sua adolescência, não se sentia confortável com os

rótulos pelos quais era reconhecido e segundo os quais costumava agir: por ser sobrinho

de uma pessoa com cargo importante da escola, sentia-se “como se fosse uma vitrine [...]

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tinha que ser sempre o certinho, o que tirava a nota mais alta” (FÁBIO); por falar baixo

e pouco, a mãe dizia que era tímido.

A reflexão do sujeito a respeito desse processo nos remete às teorias de Ciampa

(1987) e Dubar (2005), que serão retomadas em capítulos posteriores. Por falta de outras

referências, Fábio acreditava na identidade que lhe era atribuída, agindo de acordo com

ela, de modo a sempre repor a identidade pressuposta, sem ao menos compreender que

poderia reivindicar para si outra identidade: “imputam essa personalidade sobre você e

você acaba acreditando nisso, durante muito tempo, porque você é muito imaturo”

(FÁBIO). Até mesmo a identidade profissional do então adolescente de 14 anos já

estava, de certa forma, traçada: “[...] tinha sido uma formação imputada a mim. Então,

assim, eu já sabia que eu queria fazer Direito, que eu queria ser advogado” (FÁBIO). A

despeito disso, intuía que esses rótulos – tímido, bom aluno, futuro advogado – não o

definiam por completo.

Então eu ficava me perguntando assim: “Poxa, que tribo eu faço parte?”. A

escola, naquela época, ela não era como ela é hoje. Hoje, a escola tem teatro,

então, quando a pessoa entra na escola e vê tudo o que a escola pode oferecer,

ela já sabe as opções de tribos que existem e que ela pode se identificar.

Naquela época, [...] eu não entendia bem por que eu era o mais sensível [...]

[...] Então, assim, tem mais coisa aí além do que dizem que eu sou, mas não

existe uma tribo na qual eu possa me incluir. Eu não era o popular, eu não era

o esportista, que era o que existia na época, e também não queria fazer parte

dos excluídos [...] Eu achava que eu podia ser mais do que isso. (FÁBIO)

Foi no teatro que o sujeito descobriu que, de fato, poderia ser “mais” do que as

definições que costumavam lhe atribuir. Sua experiência com teatro, ainda na

adolescência, o ajudou a se autoconhecer e a perceber que sua identidade pode ter

múltiplas dimensões – um entendimento que tem ainda hoje e que se relaciona

profundamente com sua identidade profissional: “Eu tenho várias facetas. Eu não sou

uma pessoa só. Eu não sou limitado. Eu posso ser advogado e também ator [...] Posso

ser dublador [...]. Posso ser professor de inglês também” (FÁBIO). Todas essas são

atividades profissionais exercidas pelo entrevistado, que foi convidado a falar com

maiores detalhes sobre sua trajetória pessoal e profissional em entrevista a ser conferida

ao final desta seção.

O reconhecimento do público, ao realizar sua primeira apresentação, foi, para

Fábio, determinante no processo de “descoberta” de si mesmo. Ele se lembrou com

detalhes de sua primeira cena, apresentada no palco onde realizávamos a roda de

conversa: todas as falas eram rimadas e não havia abertura para improvisos. Era preciso

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enfrentar a timidez, a falta de experiência, o medo do público, a ansiedade. Sentimentos

partilhados com os colegas de cena. Ao final, a recompensa, do mesmo modo vivenciada

coletivamente:

Eu nunca vou me esquecer disso: a cena acabou [...] E aí quando a cortina se

fechou [...] a gente só escutava a galera berrando e batendo palma,

aplaudindo e tal. Nesse momento, eu me descobri. Foi uma coisa de milésimo

de segundo, assim, sabe, que eu falei: “Nossa, eu nunca senti isso que eu estou

sentindo agora. Essa sensação. É muito gostosa, é muito boa. O que será que

é?”. Eu não saí já falando: “Eu quero ser ator. Vou fazer Artes Cênicas e tal”.

Eu só sabia que aquilo tinha sido muito bom e que queria fazer de novo. E

isso aconteceu com todos nós. Tanto é que a gente lutou muito, a gente brigou

muito pra que o teatro acontecesse na escola. (FÁBIO)

Essa sensação prazerosa e intensa, difícil de explicar, remete aos depoimentos

de muitos dos adolescentes entrevistados na roda de conversa com alunos, como visto na

seção anterior. Para Fábio, esse foi o início de um processo de autoconhecimento,

desencadeado pelo teatro, para o qual contribuíram também outras vivências. Enfrentar

escola e família para poder se dedicar à atividade foi uma delas: “Uma família que já era

conhecida dentro da escola, porque já tinha toda uma tradição [...] Sobrinho de tal

pessoa, primo de tal pessoa, não sei o quê. ‘Vai ser do teatro? Não.’” (FÁBIO).

Descobrir o seu próprio ridículo foi outra experiência vivenciada no teatro que, de

acordo com o participante, ajudou no seu autoconhecimento. A esse respeito, o sujeito se

recordou de como, por meio de uma dinâmica teatral em que um aluno imitava o outro,

passou por um processo de desconstrução e reconstrução da autoimagem, que

contribuiu para seu amadurecimento:

[...] você começa a crescer, amadurecer e você vai desconstruindo aquela

autoimagem que você tem de você mesmo pra construir uma outra e você vai

começando a entender como as pessoas te enxergam não é exatamente como

você se enxerga. (FÁBIO)

Como forma de resumir sua percepção sobre a experiência teatral vivenciada na

adolescência e todas metamorfoses delas decorrentes, o sujeito afirmou: “o teatro [...]

ajudou a me abrir com relação a todos os aspectos da minha vida” (FÁBIO).

Já a percepção da próxima participante a falar foi diferente. Regina (35 anos,

gestora de RH), igualmente integrante do primeiro grupo de teatro da escola, acredita que

o teatro não transformou sua maneira de ser: nunca se incomodou por não ser popular,

sentia-se feliz com o grupo de amigos que tinha antes de fazer teatro e sempre foi

extrovertida. Contou que a princípio “detestava o teatro”, porque seus amigos a estavam

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deixando sozinha para participar de ensaios. Para ficar junto com eles, decidiu se unir ao

grupo.

Apesar de não acreditar que a atividade a tenha transformado, em termos

identitários, contou que o teatro agregou a ela muitas boas lembranças e sentimentos

que traz até hoje. Tanto que esta foi justamente a participante que, ao chegar ao auditório

para a roda de conversa, vestiu um figurino que havia utilizado quando adolescente e que,

vale observar, se encontrava em perfeito estado de conservação. A ex-aluna, em seu

relato, referiu-se ao espetáculo em que usou essa vestimenta – interpretava o papel de

fada –, afirmando ter sido aquele que mais a marcara: “A fada, pra mim, foi inesquecível.

[...]. A minha filha pode brincar com tudo, menos com a roupa da fada. A roupa da fada

eu coloco e falo: ‘Não mexe. Tira’. Eu tenho um carinho muito grande” (REGINA).

Em seu depoimento, Regina também afirmou que, ao ouvir depoimentos de outros

participantes na roda de conversa, deu-se conta de quão pioneiros ela e seus colegas

haviam sido. Disse também que agora percebe que todo o processo pelo qual passaram

juntos aprofundou a relação de amizade, e fez menção à identidade comum entre

aqueles que fazem teatro: “Quando eu entrei aqui, a gente se sente diferente, porque,

realmente, a turma do teatro [...] é diferente. Realmente, só quem fez teatro entende o

que é o teatro. É diferente” (REGINA).

As boas memórias que a participante carrega dos tempos de teatro envolvem

processos de montagem, ensaios e até mesmo as brigas entre integrantes do elenco. Ao

finalizar sua reflexão, contou que sua filha estuda em uma escola que oferece teatro e que

deseja muito que ela participe da atividade: “eu quero muito que a minha filha vivencie

o que eu vivenciei. Então, a minha preocupação hoje é que ela faça um teatro, que ela

participe, que ela tenha essa vivência” (REGINA).

Maria (30 anos, atriz e professora de teatro), na sequência, afirmou que o teatro

feito na escola, durante a adolescência, teve grande impacto em sua identidade. Contou

que dos 11 para os 12 anos de idade costumava realizar algumas produções pessoais

escritas, nas quais se definia como “desdotada”, palavra que ela mesma, ainda pré-

adolescente, inventara. A descrição de sua percepção sobre não se “encaixar” em

nenhum grupo conecta-se à de Fábio, com a diferença de que, enquanto ele se percebia

definido por muitos rótulos, a representação de Maria sobre si mesma era construída com

base em uma espécie de “não identificação”. Se, para Fábio, entrar no teatro foi descobrir

que a identidade que lhe atribuíam poderia ser reconstruída, para Maria significou a

construção de uma identidade num lugar onde, até então, só havia identificações

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“negativas”, no sentido de que a aluna se percebia como alguém que não se destacava

por nenhuma habilidade especial.

Eu me considerava uma pessoa desdotada. [....] Eu não era boa no esporte.

Eu era mediana na escola, não ia mal, mas também não ia bem. Não tinha

nada que eu me destacava, [...] Cantar, fazer música, eu não tinha a menor

noção. Então eu achava que eu era desdotada. Aí, de repente, eu entrei no

teatro… De cara, eu não achei que eu tinha dom, não, mas eu achei muito legal. (MARIA)

Essa entrada no teatro, aos 13 anos, foi fundamental, segundo a participante, para

sua construção identitária. Para Maria, assim como o que aconteceu com Fábio, o

reconhecimento do público, após a apresentação de sua primeira peça, redefiniu sua

autoimagem, possibilitando a reconstrução da representação que tinha sobre si

mesma:

Eu acho que eu fui muito bem, porque eu lembro de ter saído da peça e

encontrar uma turminha de meninas mais velhas, do colegial, sei lá, eu estava

na sétima série, e elas falarem: “Ah, você é que fez teatro, né? Nossa, foi muito

bom o que você fez. A gente gostou muito”. Aí eu: “Cara, tem alguma coisa

aí. Talvez eu não seja “desdotada”, né? (MARIA)

A identificação com a atividade – desta vez afirmativa, no sentido de a

participante entender que tinha facilidade com a linguagem teatral – evidentemente, teve

influência na identidade profissional de Maria, que é atriz e professora de teatro. Ela

acredita que, se não tivesse encontrado o teatro durante a adolescência, na escola, o

encontraria mais tarde, de alguma forma, porém esse processo demoraria muito mais

tempo. Hoje, nas aulas de teatro que ministra, utiliza algumas “lições” aprendidas em sua

fase de teatro na escola.

Refletindo ainda sobre a identidade profissional, essa participante contou que, na

época em que prestou vestibular para artes cênicas, ouviu um “conselho” com o seguinte

teor: “[...] mas você vai fazer Artes Cênicas? Nada a ver. [...] esse pessoal do teatro não

tem personalidade. Porque quando você faz teatro, cada dia você é uma coisa, então você

não tem personalidade”. O comentário, do qual a ex-aluna discorda diametralmente,

suscitou nela uma reflexão, cujos contornos se ligam exatamente à possibilidade de

metamorfose potencializada pelo fazer teatral. Para Maria, é exatamente esse exercício

de viver outras possíveis personalidades que favorece a abertura para mudanças.

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Eu não tenho medo de mudar, eu não tenho medo de desmontar algumas

coisas que estão cristalizadas em mim, porque eu posso experimentar outras

coisas e eu acho que outras coisas, além do que eu sou, são valiosas, são

importantes, devem existir. (MARIA)

Esse “experimentar” o novo, o diferente e até mesmo o “proibido” foi bastante

enfatizado por Maria, ao se recordar das aulas de teatro que tinha quando adolescente e

do impacto que tiveram em sua construção identitária. Ela recordou que saía exausta

dessas aulas, porque o teatro era um espaço que possibilitava aos alunos o que ela chamou

de “se passar”: “eu não parava quieta: eu subia na mesa, eu abaixava [...] eu me passava

do ponto, assim, claramente. [...] Mas tá, porque tem que ter esse espaço. Uma pessoa

de 12, 13 anos não poder se passar em lugar nenhum?” (MARIA). Como se nota, esse

espaço de liberdade para extravasar, explorar possibilidades diversas, inclusive

corporalmente, é considerado, pela participante, fundamental durante a adolescência.

Ainda a esse respeito, a ex-aluna recordou-se de improvisações realizadas em sala

de aula em que eram exploradas situações improváveis e temáticas que os alunos

consideravam “proibidas” na escola (que, vale observar, é uma instituição de orientação

confessional católica). Por isso, a entrevistada enxerga o teatro como um “um espaço de

respiro” dentro do ambiente escolar. Esse lugar de ousadia, “dissidência”, “subversão”

e “rebeldia”, encontrado no teatro, faz lembrar as ideias de Marcuse (1977) sobre a arte

como um espaço de questionamento e invalidação de valores e normas dominantes,

profundamente comprometido com a emancipação humana.

A reflexão de Maria levou Mauro a pedir novamente a palavra para comentar

sobre o que o próprio participante chamou de “questão da formação do juízo moral de si

mesmo que o teatro nos possibilita”. Sua ponderação também vai ao encontro das ideias

de Marcuse (1977). Para o entrevistado, as noções de certo e errado são diferentes “lá

fora”, ou seja, fora do espaço do teatro. A liberdade encontrada no fazer teatral e o

exercício de vivenciar diferentes personagens, de acordo com Mauro, permitem a

construção do juízo moral a partir dos questionamentos: “o que é realmente certo pra

mim? O que é realmente errado pra mim?” (MAURO). É bastante interessante notar,

nesse comentário, que o ex-aluno relaciona a formação do juízo moral exatamente ao

exercício, propiciado pelo teatro, de extrapolar limites preestabelecidos, quebrar

“regras”, questionar valores e transitar livremente pelo campo do que se tem

convencionalmente como “certo” e “errado”. A reflexão do participante nos remete

também à concepção de formação do juízo do moral, de Piaget (1994), segundo o qual a

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passagem das relações heterônomas (de coação, em que há a obediência às regras) às

relações de cooperação (em que se age buscando reciprocidade) é fundamental ao

desenvolvimento da autonomia.

O depoimento seguinte, de Rodrigo (35 anos, médico e ator), outro integrante do

primeiro grupo de teatro do colégio, evidencia o potencial transformador da característica

que, como já colocado na Introdução, pode ser considerada fundamento do fazer teatral:

a coletividade. Em diversos momentos de sua fala, o sujeito, ao refletir sobre sua própria

história, ponderou sobre como se dão os processos de construção da identidade,

destacando a importância da socialização: “A gente constrói a nossa identidade

socialmente, coletivamente, e isso pra mim é bastante evidente quando eu vejo a minha

história com o teatro, a história do teatro aqui no Imaculada” (RODRIGO).

Rodrigo contou que, antes de sua experiência com teatro, era extremamente

introvertido: “Não conversava com quase ninguém. Ninguém na escola me conhecia, eu

não conhecia ninguém. [...]simplesmente não participava de vida social nenhuma.

Absolutamente mais do que tímido” (RODRIGO). Por sempre tirar boas notas, ele estava

entre aqueles alunos indicados por professoras de Português para elaborar um trabalho

para o evento literário que ocorreria na escola. Quando foi proposta a encenação de uma

peça, ficou apavorado: “Me dava um nervoso tão grande que era uma coisa de dar ânsia

de vômito[...] Eu mal conseguia falar com a pessoa que estava sentada na minha frente

na sala de aula, quanto mais falar no auditório” (RODRIGO). Tamanha era sua timidez

que não teve coragem sequer de dizer que não gostaria de participar da encenação, quando

foi aberta essa possibilidade, tendo em vista que a peça que seria montada tinha um

número de personagens menor que a quantidade de alunos no grupo: “Eu fui

absolutamente incapaz de falar que eu queria sair. Absolutamente incapaz. Porque fazer

isso demandava falar em público e isso era absolutamente fora de questão!”

(RODRIGO).

Assim, o adolescente que até então só tinha, literalmente, dois amigos em toda a

escola, viu-se em meio a um grupo de pessoas com as quais desenvolveu uma profunda

relação afetiva e das quais até hoje é amigo. Para o sujeito, o trabalho em conjunto teve

papel primordial na construção desse afeto e, inclusive, na identidade dos envolvidos: “foi

um afeto muito grande que acredito que se desenvolveu trabalhando junto, porque é

trabalhando junto que se vai construindo. E a gente constrói a nossa identidade na

relação com o outro” (RODRIGO).

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Acerca dessa construção coletiva da identidade, Rodrigo também ponderou que

ele e seus colegas de grupo foram construindo, juntos, um “ser adolescente”. Nessa

construção intersubjetiva de uma identidade adolescente, acredita que todos tenham se

influenciado mutuamente, de maneira significativa. Tanto que, ao chegarem ao 3.º ano do

Ensino Médio, diferenciavam-se dos demais alunos da escola por sua identidade

comum: eram o que o entrevistado nomeou de “a turminha do fundão da sala dos nerds”

– ou seja, um grupo que “falava [...] a aula inteira. E era a turma dos nerds”. Assim,

identificavam-se entre si e se distinguiam dos demais estudantes; reconheciam-se nesse

“ser adolescente” que haviam construído coletivamente. E, nesse “espaço” de

pertencimento, sentiam-se fortalecidos: “fazer teatro não fez com que eu deixasse de ser

alvo de bullying. Não fez. Mas colocou, pra mim, um lugar de proteção, que eu acho que

isso é importante” (RODRIGO).

Comentando sobre essa construção da identidade em que a presença do outro é

fundamental, Rodrigo destacou que, no primeiro espetáculo teatral do qual participou, seu

personagem, em determinadas cenas, precisava realizar uma movimentação corporal

relativamente simples. Contudo, para ele, o gesto oferecia grandes dificuldades: “eu era

absolutamente tapado fisicamente [...] além de tudo, eu era asmático, então não

praticava nenhum tipo de atividade física [...] não tinha o menor conhecimento do

próprio corpo” (RODRIGO). Ele contou que passou dois meses praticando o movimento

e que conseguiu executá-lo na apresentação. Porém, não foi, em seu entender, um feito

individual. Ressaltou que só conseguira superar a dificuldade porque o grupo acreditou

que ele seria capaz, e aproveitou o exemplo da vivência pessoal para conjecturar sobre

uma questão importante – a função social do teatro:

[...] aquele grupo, em algum momento, de alguma maneira sutil, acreditou que

eu poderia fazer. [...] “Vai, que uma hora você vai conseguir fazer”. Eu acho

que isso faz muita diferença no que a gente vai se desenvolver depois e eu acho

que isso é uma das funções sociais do teatro, inclusive, né? [...] O teatro, ele

está aí pra cuidar da sociedade. O teatro foi criado pra isso. [...] E eu acho

que até hoje o teatro está aí cuidando da sociedade. (RODRIGO)

Para Rodrigo, a função social do teatro está ligada à coletividade. Neste ponto,

sua fala conecta-se a muitas outras, de alunos e ex-alunos, que, como ele, enfatizaram que

no fazer teatral, em especial em uma produção coletiva, todos os envolvidos têm igual

importância: contrarregras, equipe técnica, protagonistas, figurantes, “todos estão no

mesmo patamar de produção criativa e [...] têm que ter o mesmo empenho na produção

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daquilo” (RODRIGO). Se alguém não faz sua parte, todo o grupo é prejudicado. Esse é,

para o entrevistado, um aprendizado social que pode e deve ser levado para fora do teatro:

A coisa só acontece quando a gente constrói junto e eu acho que o nosso

mundo precisa aprender isso, muito urgentemente. Eu acho que quem fez

teatro e faz teatro tem praticamente a responsabilidade social de [...] falar:

“Olha, meu amigo, tem um outro jeito de fazer relação e de construir coletivo,

que não é esse que está dado, que não é esse que está colocado pela

sociedade”. (RODRIGO)

Ainda refletindo sobre quais seriam as funções sociais do teatro, Rodrigo levantou

uma questão que, em ambas as rodas de conversa, se delineou como importante

desdobramento da experiência com teatro – a ampliação de perspectivas sobre modos

de ser. Em sua ponderação, o sujeito destacou que esse processo pode ocorrer tanto com

aqueles que atuam quanto com espectadores, e utilizou uma expressão interessante para

se referir à ampliação de perspectivas: “quando a gente faz teatro e quando a gente assiste

uma peça de teatro, a gente expande os nossos possíveis” (RODRIGO). A expressão

remete ao entendimento de Dubar (2005, p. 94, grifo nosso), para quem quanto mais

heterogêneos forem os atos de pertencimento (aqueles que exprimem o tipo de pessoa que

se quer ser), “[...] mais se abrirá o campo do possível” – ideia que será retomada no

capítulo 6. Expressando entendimento similar ao do autor, o ex-aluno, ao falar sobre essa

“expansão de possíveis”, refletiu sobre o processo de formação e transformação

identitária:

[...] a gente tem um leque do que é possível pra gente. A gente não pode

qualquer coisa. Não está dado pra gente escolher qualquer coisa. Tem um

certo tanto de coisa que a gente consegue escolher mediante a produção social

da nossa vida e o teatro coloca outras possibilidades, traz outros possíveis. E,

pra mim, naquela época, trouxe outros possíveis: outros possíveis de relação

social, outros possíveis de percepção do próprio corpo e outros possíveis de

futuro. (RODRIGO)

É interessante compreender essa afirmação sobre os “outros possíveis” que

Rodrigo menciona, a partir de sua trajetória de vida. Quando fala em “outros possíveis de

relação social”, o sujeito não se refere apenas à ampliação de seu círculo de amizades,

mas também à própria maneira de compreender a sociedade e de nela atuar, como

cidadão. A luta por reconhecimento empreendida pelo primeiro grupo de teatro do IEI

para conquistar espaço dentro da escola teve para o ex-aluno papel primordial na

construção de sua consciência política e cidadania. Completando a fala de Fábio, que

havia, como já exposto, relatado as dificuldades do grupo para legitimar o teatro na

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instituição, Rodrigo lembrou que, além de realizar ensaios em locais improvisados, a

equipe tinha, constantemente, de migrar de um espaço a outro: “a gente ocupava um

espaço e era expulso dele. Eram cenas frequentes a gente atravessando a escola

carregando cenário, com figurino [...] a gente migrando pra um lado e pro outro”. Esse

processo de luta pela legitimação da atividade e de construção coletiva de produções

teatrais foi fundamental na militância política que o sujeito viria a exercer anos mais

tarde:

[...] essa briga que a gente teve, nessa época, fez muito sentido pra mim. Muito,

muito sentido. Tanto sentido que eu tive uma atuação política muito forte

depois disso quando eu entrei na faculdade. Eu acho que isso teve muita

influência. Uma construção, uma produção da peça, mais do que a atuação.

Pensar o teatro como um todo – porque a gente precisava pensar o teatro

como um todo, porque não tinha apoio nenhum – me ajudou a pensar a

sociedade. Eu entro na faculdade de Medicina, na Unicamp, e eu vou fazer

militância estudantil. Vou fazer política, vou fazer política de ir pra rua, vou

fazer política de derrubar prefeito, de organizar movimento social e eu acho

que essa minha primeira experiência de organizar sociedade, que foi o que a

gente fez aqui, organizar o movimento social na escola pra tentar instituir o

teatro teve muita influência no militante político que eu me tornei depois”

(RODRIGO)

A identidade profissional que Rodrigo construiria no decorrer de sua trajetória

de vida também está ligada à “expansão dos possíveis” desencadeada a partir da

experiência com teatro na escola, ainda que naquela época parecesse não haver

possibilidade de negar a identidade que já lhe havia sido outorgada – a do “aluno [...] que

tirava a melhor ou a segunda melhor nota da escola inteira”. O sujeito, mesmo hoje não

apreciando definições identitárias estigmatizadas – “porque isso coloca umas certas

determinações sociais e as pessoas já taxam" – sentiu necessidade de apresentar desse

modo sua identidade adolescente, como uma personagem “fetichizada”. O “melhor

aluno” tornou-se para Rodrigo uma “identidade-mito” (conceito que será retomado no

capítulo 5): era sempre reposta pelo sujeito, em um movimento de constante repetição –

uma “mesmice” que impedia qualquer metamorfose em sentido emancipatório. Como

que para garantir a continuidade dessa reposição da identidade pressuposta, a futura

identidade profissional do sujeito também foi definida: ele disse à família que prestaria

Medicina. A partir de então, ficou cada vez mais difícil encontrar espaço para a superação

do estigma. Em determinado momento, sua mãe perdeu o emprego e, buscando evitar a

saída do filho da escola, foi conversar com a diretora: “‘Meu filho quer prestar Medicina

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na Unicamp, [...] e ele vai passar se vocês derem bolsa’. Já era. Já era. Já não havia

outra opção na minha vida que não prestar Medicina” (RODRIGO).

Fazer teatro era, para o pai do adolescente, incompatível com o objetivo de se

tornar um futuro médico: “Você não pode perder tempo com essas coisas, porque você

tem que passar em Medicina e você não vai passar”. Mesmo sem o apoio da família,

Rodrigo continuou participando do grupo teatral. No 3.º ano do Ensino Médio, o fez

escondido do pai. Contudo, a determinação de um futuro com base na expectativa de

uma permanente reposição identitária foi, de certo modo, como um aprisionamento. Já

não havia condições objetivas para concretizar qualquer outra identidade profissional,

ainda que, subjetivamente, o então adolescente que tirava as melhores notas já fosse

também aquele que estava “expandindo seus possíveis” no teatro, a ponto de sonhar em

ser ator: “não tinha mais possibilidade social pra eu pensar em ser ator, mas ainda assim,

na ficha de inscrição (do vestibular), eu ainda fiquei em dúvida [...] Até o último minuto,

eu pensei”.

Tornou-se, de fato, médico. Contudo, a “expansão dos possíveis” iniciada com a

participação no teatro da escola o ajudou a buscar, em sua trajetória, atividades nas quais

encontrava sentido – sentido artístico, propriamente dito, mas também um sentido social,

de coletivo, que havia sido despertado pela vivência teatral: “fiz [...]especialização em

Saúde Pública, Saúde Coletiva. Fiz Mestrado e Doutorado em Gestão em Saúde Coletiva

e sempre indo no teatro, vendo peças, indo ao cinema”. Entretanto, sempre que ia ao

teatro, uma pergunta o incomodava: “O que eu estou fazendo no público e não no palco?”

(RODRIGO). A questão, permanente – que evidentemente não se refere apenas a estar no

palco, mas a uma não identificação subjetiva com a identidade profissional objetiva – foi

enfim enfrentada quando o sujeito decidiu redefinir sua trajetória, agora com base em

uma “identificação genuína”. Uma redefinição que foi ao encontro daquela que era, para

o sujeito, sua “subjetividade autêntica” – conceito desenvolvido por Tertulian (1993)17, e

que expressa o movimento do indivíduo na busca de transcender o âmbito da

imediatidade, da inautenticidade e, portanto, da heteronomia, em direção à

autodeterminação, à autonomia, a “formas de consciência mais dotadas de valores

emancipados, livres e universais” (ANTUNES, 2009, p. 166). Em outras palavras, um

movimento na busca de uma vida mais dotada de sentido.

17 A ideia de subjetividade autêntica é apresentada por Tertulian (1993) a partir da análise da obra

Ontologia do Ser Social, de Gyorg Lukács.

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[...] eu estava acabando o doutorado e olhando para a minha perspectiva de

vida, no que eu poderia trabalhar dentro da Medicina [...] e falei: “Gente, não

vai sair coelho dessa cartola. Meu negócio é outro”. E aí eu voltei pra

faculdade. [...] Eu defendi a minha tese de doutorado e fiz a matrícula na

Cênicas no mesmo dia. (RODRIGO)

Ao assumir concretamente a identidade de estudante de Artes Cênicas, o sujeito

nega a identidade que o negava (a de exclusivamente médico, a quem cabia, no teatro,

a posição exclusiva de espectador), buscando “ser-para-si” – termo utilizado por Ciampa

(1987), que será retomado posteriormente. Dá-se, assim, por completo, o movimento de

metamorfose identitária iniciado ainda na adolescência, quando a experiência com teatro

possibilitou ao então “aluno que tirava a melhor nota na escola” abrir seus horizontes, ou,

em suas próprias palavras, expandir seus “possíveis”.

Essa metamorfose identitária, como Rodrigo observou, ocorreu na mesma época

em que Fábio também passou por uma transformação em termos profissionais que o

reaproximou do teatro (como será relatado ao final desta seção, em entrevista individual

com o sujeito). O participante relatou que à ocasião os dois se encontraram e conversaram

sobre essas mudanças, comentando: “tem um lugar de potência e de alegria que é muito

maior, mais amplo do que ser advogado financeiro ou do que ser médico” (RODRIGO).

Esse “lugar de potência” a que Rodrigo se refere é, evidentemente, o teatro – mas não o

teatro como espaço físico ou como a apresentação de espetáculos, e sim o teatro como

lugar onde se constroem relações. E foi com essa imagem que o ex-aluno encerrou seu

depoimento: “Eu acho que o teatro [...] tem uma potência de intervenção na vida. Tem

uma potência de construção de identidade, não pelo teatro em si, eu diria, mas pelo que

ele constrói de coletividade, de relações humanas e relações sociais” (RODRIGO).

Após a fala de Rodrigo, Mauro pediu mais uma vez a palavra para, como

pesquisador que estuda o processo de luta por reconhecimento18, relacionar o conteúdo

de falas da roda de conversa aos estudos de Axel Honneth (2003). Expressando um

entendimento que converge com as análises desta pesquisa, o sujeito disse enxergar, na

relação com o outro propiciada pelo teatro, a construção da autoconfiança, do

autorrespeito, do “juízo moral de si mesmo” (questão que ele já mencionara em

comentário anterior) e da autoestima – pontos que serão retomados a posteriori.

Na sequência, o ex-aluno Álvaro (29 anos, editor de livros e ator) destacou que

sua experiência com teatro na escola o colocou, pela primeira vez em sua vida, diante de

18 O entrevistado estuda o processo de luta por reconhecimento no campo de práticas racistas.

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uma questão importante: responsabilidade. O sujeito rememorou um episódio ocorrido

durante a preparação para sua primeira peça: em determinada cena, ele tinha uma fala

longa, que deveria ser memorizada para os ensaios. Porém, o então adolescente não estava

se “engajando muito, não estava fazendo muito a sério”. Então, houve um ensaio

importante desta cena, com a presença de um músico profissional, que só poderia estar

com o elenco uma única vez. Álvaro contou que, não sabendo direito a fala, improvisou

“mal” e acabou por prejudicar o ensaio. Por conta disso, foi repreendido pela professora

de teatro, que cobrava dele responsabilidade e comprometimento: “Foi a primeira vez

que alguém botou um negócio na minha vida chamado [...] ‘responsabilidade’. [...] A

gente só precisava ensaiar, é uma coisa simples. E eu não tinha feito” (ÁLVARO).

Álvaro conta que o episódio, naquele momento de sua vida, foi marcante e que

acarretou uma mudança significativa de postura: “a partir disso, eu falei: ‘Não, então eu

vou fazer. Eu vou fazer’. [...] eu agora eu tinha assumido esse compromisso: [...] fazer

isso do melhor jeito possível”. Para o ex-aluno, a vivência contribuiu para seu

amadurecimento, pois o colocou diante de questões que, inevitavelmente, mais cedo ou

mais tarde, teriam de ser enfrentadas, em especial na vida adulta:

Aqui [...] eu me enfrentei com essa questão. “Você assumiu uma

responsabilidade [...] e você tem que cumprir. Ou você cai fora. [...] Está tudo

bem também, mas, em outro lugar, você vai encontrar a mesma coisa. Alguém

vai te cobrar isso também, seja na sua profissão, na sua família, então você

tem que fazer”. (ÁLVARO).

Outro apontamento de Álvaro sobre o impacto do fazer teatral durante a

adolescência foi com relação à leitura. Para ele, a prática teatral de lidar com textos que,

mais do que memorizados, devem ser ditos com a devida motivação, verdade e

intencionalidade, transformou sua experiência como leitor. Antes de fazer teatro, o

participante “gostava de ler, mas não sabia direito” (ÁLVARO). Então, à medida que foi

enfrentando textos que deveriam ser ditos em cena, foi se dando conta de que o ator, seja

profissional ou amador, deve ter uma leitura diferenciada: precisa se aprofundar, buscar

as intenções do autor, colocar-se no lugar tanto de quem escreveu como do personagem

que fala, para que a plateia acredite na situação representada.

O ator não lê como todas as outras pessoas leem. [...] Não precisa ser teatro

profissional. Qualquer peça que você faça, [...] você não vai só falar aquilo

que está escrito, você tem que entender o que fez aquele cara falar aquilo, você

tem que ver porque chegou naquelas palavras. Você não pode dizer como se

você tivesse decorado. (ÁLVARO).

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Essa compreensão do ex-aluno converge com as colocações de Lazzaratto (2008,

p. 45) acerca da importância, no trabalho do ator, de dar vida ao pensamento do

personagem e não apenas às palavras que estão no texto: “A fala é uma seleção que tenta

significar o pensamento. Ela é a alternativa que se externaliza, mas isso não quer dizer

que contenha todos os sentidos e significados do pensamento”

Para Álvaro, esse exercício de compreensão daquilo que se lê abriu diversas

possibilidades, uma vez que o fez entender que um texto vai além do que está escrito no

papel: “Essa leitura diferenciada me abriu um mundo, porque aí eu comecei a entender

melhor os textos. Comecei a ler melhor” (ÁLVARO). Suas observações fazem lembrar a

dos alunos que, na roda de conversa anterior, haviam dito que o teatro os ajudara a se sair

melhor em disciplinas escolares porque passaram a compreender melhor aquilo que liam.

Às vezes, em um livro que nem é de teatro, [...] seja lá de qual ciência, também

é isso. O cara está condensando um mundo de experiências naquele papel,

naquelas letras. Então você começa a ter acesso pra isso. Coisa que, fora do

teatro, é muito mais difícil de acontecer. [...] o teatro te dá essa porta de

entrada. Fala: “Não, você vai ter que entender esse texto muito além do que é

essa decoreba fácil”. E falar de um jeito que psicologicamente aquilo tenha

embasamento. (ÁLVARO).

Essa leitura diferenciada do ator tem clara influência na identidade profissional

de Álvaro, que hoje trabalha como editor de livros: “sei que isso foi determinante pra

mim, porque eu descobri essa via de entrada nos universos dos autores”. A esse respeito,

o sujeito comentou que, ao se entender o que alguém escreveu, compreende-se “toda uma

experiência de vida”. Neste ponto, associou suas observações às de outros participantes

da roda, referindo-se à expressão “expansão dos possíveis”, mencionada por Rodrigo, e

ao “alargamento” da própria identidade por meio do exercício teatral de viver

possibilidades diferentes: “vivenciando [...] outras personalidades, você alarga a sua.

[...] É uma das coisas mais importantes. Você se torna cada vez maior, acolhendo e

recebendo essas coisas, esses textos, essas experiências, essas personalidades que você

vivencia” (ÁLVARO).

Essa mesma ideia foi desenvolvida também por Marcos (23 anos, publicitário), ao

retomar o comentário de Sara a respeito do julgamento equivocado que as pessoas que

fazem teatro costumam sofrer: “acham que por você representar muitos personagens,

você vira muito artificial e você passa a ser um cara que sabe mentir, sabe manipular,

mas, na verdade, não é isso” (MARCOS). Para o participante, fazer teatro, na verdade,

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auxilia a identificar “o que tem a ver com você e o que não tem”, facilitando o processo

de construção da própria identidade, “em volta de coisas que você admira” (MARCOS).

Essa possibilidade de construção identitária a partir de algo que é depositário de

admiração foi marcante na fala deste participante. Marcos, em seu depoimento, abordou

as questões da rotulagem, da coletividade e do pertencimento, já mencionadas

anteriormente, por outros ex-alunos. Ao fazê-lo, o sujeito observou que, em sua

percepção, a escola era como uma “bolha”, que de certo modo isolava os alunos do mundo

exterior. Esse “isolamento” facilitava a assunção de identidades estigmatizadas. Uma

vez taxada de determinada maneira, o estudante aceitava que aquela era sua identidade e

passava a repô-la: “era muito disso das pessoas colocarem um rótulo e de você aceitar

aquilo e construir sua vida a partir daquilo” (MARCOS). Em sua reflexão, o ex-aluno

relacionou o que ocorria no ambiente com a teoria de Michel Maffesoli (1987) sobre a

construção de tribos a partir de “totens”, entendidos como objetos de admiração: “esses

rótulos que davam pra você nunca eram pautados em cima de uma coisa cultuada, e sim

da percepção que pessoas alheias à sua ‘tribo’ tinham sobre você” (MARCOS). O teatro,

nesse contexto, representava uma oportunidade de vivenciar uma identificação plena de

sentido, pois era o local “onde você se encontrava pertencendo a uma tribo que, de fato,

havia um totem, havia um projeto mútuo ali, um negócio que todo mundo admirava e

que todo mundo queria construir junto” (MARCOS).

O senso de coletividade, o altruísmo e as relações solidárias decorrentes dessa

união em torno de um projeto comum eram, para o participante, algo que não acontecia

fora do ambiente teatral: “aqui, dentro do auditório, se via uma coisa que você não via

fora, que era aquilo de um estar ali pelo outro também, sabe? Se há qualquer coisa com

você, outra pessoa consertava, outra pessoa ajudava, saía da zona de conforto dela”

(MARCOS). Como exemplo, o participante se lembrou de uma ocasião em que machucou

gravemente seu pé momentos antes do início de uma apresentação. Então, um colega

(que, a propósito, estava presente à roda de conversa) veio em seu auxílio e fez um

curativo. A situação, para Marcos, foi bastante representativa no que tange à qualidade

das relações estabelecidas no teatro, pois ele e esse colega, dentro dos padrões identitários

normalmente estabelecidos na escola, poderiam ser considerados como pertencentes a

“tribos” distintas:

Lá fora, você sendo uma pessoa que pertence à tribo dos nerdões que gostam

de Star Wars [...] não tinha o direito de ter ajuda de uma pessoa que era dos

esportistas quando, sei lá, você caísse e ralasse o joelho, sabe? Não era aquela

pessoa que ia sair da zona de conforto dela pra vir aqui. (MARCOS)

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Para Marcos, essa qualidade das relações estabelecidas no teatro favoreceu o

resgate de sua autoestima, colocando-o em um local de proteção contra formas de

sofrimento que usualmente impingem indivíduos na faixa etária da adolescência, em

especial dentro do ambiente escolar: “Toda a dificuldade que existia lá fora de

pertencimento, de bullying e toda essa ansiedade [...] meio que sumia aqui dentro”. Esse

processo foi fundamental, em seu entender, na construção da identidade, pois favoreceu

o regate de sua autoestima. Suas colocações a esse respeito se relacionam a uma questão

que também havia se destacado durante a roda de conversa anterior: o potencial

‘terapêutico” do teatro. Assim como alguns dos alunos participantes da primeira roda,

Marcos contou que, quando ia para o teatro, parecia que seus problemas ficavam

amenizados.

Para ele, o acolhimento e o fato de se sentir representado pelas pessoas que

também faziam parte do grupo, incluindo colegas e professora, o auxiliavam a lidar com

sofrimentos de ordem psíquica, como “ansiedade, depressão e pânico”. Dificuldades

essas que voltaram a acometê-lo nos tempos de faculdade, quando parou de fazer teatro:

“Fui me tornando mais tímido. Eu comecei a ter dificuldades de falar em público.

Comecei a [...] ter que tomar Rivotril pra apresentar um trabalho [...] Foi virando uma

coisa mais cinzenta, sabe?” (MARCOS). Por tudo isso, o sujeito utilizou-se da ideia de

“refúgio” para se referir ao teatro. Um refúgio que ele afirmou não ter encontrado

novamente na vida adulta, em especial no início de sua vida profissional, com as

dificuldades de inserção no mercado de trabalho: “Eu tinha dificuldade de encontrar

outro refúgio depois de semana inteira cansando, apanhando, ralando. [...] Eu acho que

é uma coisa que não tem mais na minha vida, mas que, de alguma forma, você tem que

achar de volta” (MARCOS).

Refletindo sobre a necessidade de resgatar esse local de pertencimento, o sujeito

acentuou como muito positivo o fato de estar ali, naquele momento da roda de conversa,

resgatando memórias e identificando-se com as falas de outros sujeitos, que compartilham

uma identidade comum, ainda que não tenham feito teatro na mesma época.

A ideia do teatro como um local de pertencimento que faz falta na vida adulta

foi resgatada por outros ex-alunos no decorrer desta roda. Foi o caso de Bernardo (28

anos, economista e auditor), que contou que, embora em seu trabalho lide com muitas

pessoas diferentes e esteja sempre em diferentes lugares, sente bastante falta da

diversidade encontrada no ambiente teatral e da qualidade da união em torno de um

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objetivo comum que ali se estabelece. Assim como outros participantes tanto desta roda

de conversa quanto daquela realizada com alunos, o participante mencionou a oração do

teatro como síntese dessa coletividade, tão característica do fazer teatral: “acho que só

o teatro conseguiu me proporcionar esse tipo de experiência. Não acho que vou

encontrar em outro lugar. Pelo menos não em uma profundidade tão forte”

(BERNARDO).

Outro ponto em comum entre a fala de Bernardo e os depoimentos de outros

alunos e ex-alunos diz respeito ao impacto de apresentar sua primeira peça. O sujeito

observou que o momento dos aplausos do público, quando tinha seus 13 ou 14 anos, o

marcou de maneira muito significativa. Naquele instante de reconhecimento, sentiu que

queria continuar a fazer teatro. Anos depois, viu-se novamente tomado de emoção ao

apresentar sua última peça na escola, rememorando tudo o que ali vivenciara. Neste

ponto, sua fala também faz lembrar a de alguns alunos que, durante a primeira roda de

conversa, teceram relatos sobre a intensidade dos sentimentos propiciados pelo teatro:

“O teatro [...] me proporcionou muito sentimento que eu não tinha em outros lugares [...]

me proporcionou vivências e histórias e momentos, sentimentos que eu vou levar pro

resto da minha vida” (BERNARDO).

O participante também expressou agradecimentos aos membros do primeiro grupo

teatral da escola, tendo em vista o histórico de luta para legitimar o espaço da atividade –

um espaço que o marcou como pessoa e onde “se descobriu”: “vocês proporcionaram

isso pra gente” (BERNARDO). Depois dele, outros sujeitos também agradeceram aos

“pioneiros”, expressando uma ampliação na perspectiva de importância de pertencer

àquele espaço, um dia conquistado por outros alunos, com quem compartilham uma

identidade comum.

A ex-aluna Isis (21 anos, estudante de Engenharia de Alimentos), na sequência,

também realçou a empatia decorrente dos processos de construção coletiva como ponto

crucial nas transformações que o teatro pode propiciar. Nesse contexto, ela rememorou

processos de criação conjunta de cenas e músicas, em que tudo era feito coletivamente,

“errando e acertando juntos” (ISIS). Nesses processos criativos, ela destacou que não

raro era surpreendida com ideias muito interessantes trazidas por colegas, que eram

totalmente diferentes das suas, e nas quais ela nunca teria pensado. Ainda a respeito dos

processos de criação, a entrevistada salientou a “descoberta” da própria criatividade

como desdobramento importante do fazer teatral: “saber que pode vir uma criação de

dentro de você, uma coisa nova, é incrível” (ISIS).

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Assim como outros participantes, Isis também aludiu à necessidade de buscar,

ainda hoje, o sentimento que tinha nas aulas de teatro da escola. Nessa procura, fez teatro

em outro local, e se disse bastante entusiasmada com a possibilidade de cursar uma

disciplina ligada ao instituto de Artes na universidade onde estuda.

Clarice (22 anos, estudante de Psicologia), na sequência, também destacou a falta

que o teatro faz em sua vida e como isso a chateia, ainda hoje. Contou que, depois de

sair da escola, encontrou diversas outras atividades de que gosta, porém nunca mais teve

a sensação de reconhecimento que experimentava no teatro ao final de um trabalho.

Refletindo sobre sua identidade, disse que sempre gostou de “dramatizar e se expressar”,

mas que nunca havia encontrado um lugar onde pudesse “depositar isso”, sendo aceita, e

com “algum propósito maior” (CLARICE). No teatro, encontrou esse lugar de aceitação,

onde podia ser do jeito que era, sem receber olhares de reprovação. Foi, em sua

percepção, a primeira vez em que se sentiu bem fazendo algo, pois, assim como Maria,

também se “sentia meio desdotada” (CLARICE). Nesse sentido, o teatro, como ela

colocou, foi importante para sua autoestima.

A participante também afirmou que muito do que desenvolveu no teatro será

levado para a vida a toda, sendo inclusive aproveitado em sua atuação como profissional.

Como exemplo, destacou a empatia, desenvolvida tanto pelo caráter coletivo do fazer

teatral quanto por conta da oportunidade de se entrar em contato com muitas histórias.

Histórias, essas, daqueles com quem se trabalha junto e também das peças que são

montadas. A ex-aluna considerou que esse processo de entrar em contato com tantas

histórias e pessoas favorece o desenvolvimento de um “olhar mais apurado pelo outro”

(CLARICE). Outro ponto desenvolvido pelo teatro, em seu entender, foi o senso de

responsabilidade, assim como Álvaro já havia mencionado. A aluna recordou-se de

cobrar que colegas de seu grupo assumissem o compromisso com o teatro de modo mais

engajado, tomando para si a responsabilidade por aquilo que haviam escolhido fazer.

A questão da responsabilidade foi retomada, na sequência, por Luana, que pediu

a palavra novamente, para acrescentar algumas reflexões sobre assuntos levantados por

outros participantes. Ela contou que, apesar de ser bastante responsável, no teatro

compreendeu a importância de ser cobrada por um compromisso assumido. Isso

contribuiu para o desenvolvimento de uma relação de respeito na relação professor-

aluno, que a ex-aluna carrega até hoje para sua vida profissional: “eu aprendi muito a

respeitar as pessoas”. Mesmo em situações de desrespeito vivenciadas em sua carreira,

com “chefes complicados”, e tendo inclusive já sofrido assédio moral por mais de uma

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vez, Luana conseguia manter uma perspectiva de respeito pelo outro, pensando: “eu

vou respeitar essa pessoa [...] Do meu jeito eu vou conseguir lidar com essa situação”

(LUANA).

Ainda comentando sobre dificuldades enfrentadas ao longo de sua trajetória, em

especial na vida profissional, a participante comentou que antes de sua mudança de

carreira, mencionada anteriormente, chegou inclusive a ficar doente por conta do

trabalho. Contudo, teve forças para superar a situação e se reconstruir – e atribui muito

dessa força à sua experiência com o teatro, durante a adolescência:

[...] no meio do furacão que eu vivia quando eu entrei no teatro, eu consegui

encontrar a força que eu precisava pra ir em frente e isso só aumentou. [...] O

teatro, com certeza, foi uma das molas propulsoras pra eu ter essa força que

eu tenho certeza que eu tenho. (LUANA)

Essa força que Luana atribui a si própria está relacionada a importantes questões

levantadas por outros participantes: não ter medo do próprio ridículo, autoaceitação e

abertura para mudanças. A respeito desse último tópico, a ex-aluna teceu uma

observação relevante dentro do recorte desta pesquisa: “o teatro dá pra gente essa

oportunidade da gente entender que a vida é uma inconstância eterna e que está tudo

bem se reinventar desde que a gente seja fiel a nossa essência verdadeira” (LUANA).

Essa apreciação vai ao encontro daquele que é justamente um dos pressupostos desta

pesquisa: identidade é metamorfose em busca de emancipação (CIAMPA, 1987).

Entender o teatro como uma experiência transformadora foi a tônica também da

fala de Ana (23 anos, auditora e economista): “tem uma palavra pro teatro e pra esse

momento que a gente está aqui hoje que é a ‘transformação’. Pra mim, o teatro foi

transformação. Na minha vida inteira, foi transformação” (ANA). Ela se recordou de

um espetáculo em que interpretava uma menina vítima de bullying, e contou que na vida

real passava por problema similar, na escola, por conta de sua baixa estatura. As

apresentações dessa peça foram de grande importância para a ex-aluna: emocionada, ela

relatou que muitos dos colegas que costumavam zombar dela vieram pedir-lhe desculpas

após assistir ao espetáculo.

O próprio processo de montagem foi bastante significativo para a participante. Ela

contou que, durante a fase de construção das personagens, foram realizadas dinâmicas de

autoconhecimento, em que os atores partilharam situações reais de bullying sofridas por

cada um – vivência que a fortaleceu e a fez chegar a importantes compreensões sobre o

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teatro, quais sejam: a força da coletividade, a afirmação da individualidade e o viver

em sociedade:

[...] a gente foi se emocionando, a gente foi aprendendo que cada um tem o

seu jeito e que o teatro traz o “nós somos”, mas o teatro traz o “eu sou”. Eu

posso ser o que eu quiser no teatro. Eu vou ter o meu lugar no teatro. E a

gente tem o nosso lugar na sociedade, na nossa vida, no nosso trabalho, na

nossa família. (ANA)

Essa segurança em si mesma que o teatro ajudou a desenvolver tem reflexo até

os dias de hoje, em sua vida profissional: quando a querem “botar para baixo, falando

um monte de coisa ruim no trabalho”, ela se mantém firme em suas convicções e

autoconfiante: “eu sei o que eu sou. [...]. Então eu acho que a transformação que o

teatro trouxe [...]é uma transformação que eu vejo em várias fases da minha vida”

(ANA).

Ainda sobre a identidade profissional, a entrevistada contou que, à época de

decidir sobre qual carreira seguir, desejava ser atriz. Contudo, não tinha apoio familiar:

“minha família inteirinha não deixava, porque achava que eu ia virar uma prostituta se

eu fizesse Artes Cênicas” (ANA). Seguindo orientação do pai, optou por Economia.

Ainda assim, em relato que se assemelha ao de Rodrigo sobre a busca por “outros

possíveis”, Ana procurou manter, na identidade profissional que estava sendo construída,

o sentido social, de coletividade e altruísmo, despertados pela vivência teatral: “Eu tive

uma aula [...]sobre liberalismo e a minha professora falou [...] que a maioria dos

economistas eram liberais e eu falei assim: ‘Eu não vou ser! Eu vou pensar nas pessoas.

Eu vou ser diferente’” (ANA).

Ao concluir seu depoimento, Ana também se referiu à identidade comum entre os

participantes da roda de conversa e resumiu a experiência teatral de um modo em que se

pode vislumbrar a construção, via experiência, de um entendimento crucial a esta

pesquisa, conforme exposto na Introdução – o teatro como o local do encontro consigo

mesmo a partir do encontro com o outro:

[...] é um sentimento que a gente tem aqui dentro de que nós somos juntos,

nós nos encontramos em um ambiente, estar aqui nesse palco é muito

emocionante e o teatro é “nós somos” e o teatro é “eu sou”, “eu posso ser”.

“Eu posso ser o que nós somos”. (ANA)

Na sequência, a ex-aluna Gabrielle (19 anos, estudante) também explorou a

questão da autoconfiança como contribuição do teatro para a construção identitária, ao

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afirmar: “Eu sempre fui eu mesma. [...] E muito disso veio do teatro” (GABRIELLE). A

participante atribui o desenvolvimento dessa segurança ao fato de ter encontrado, no

teatro, pessoas autênticas, que não têm medo ou vergonha de ser quem são – panorama

bastante diferente do que ela via na escola e também na própria sociedade, onde existe a

expectativa de determinados comportamentos: “tudo é quadradinho. Você tem que ser

alguma coisa, você tem que se portar assim” (GABRIELLE).

A diversidade encontrada no ambiente teatral foi também fundamental para que,

ali, ela conhecesse e aprofundasse os laços afetivos com aqueles que até hoje são seus

melhores amigos. Neste ponto, seu depoimento se assemelha bastante aos de muitos

alunos da roda de conversa anterior, que revelaram ter construído no teatro seus mais

fortes laços de amizade. Outro ponto em comum entre a fala de Gabrielle e depoimentos

colhidos na primeira roda foi a questão da comunicação. Para a participante, esse talvez

tenha sido o ponto que mais fez diferença em sua vida. Ela afirmou que, diferentemente

da maioria de seus colegas, não tem problemas em falar em público.

Gabrielle também enfatizou, assim como outros ex-alunos, a noção de

responsabilidade desenvolvida no teatro. Contou que, recentemente, ao participar de

uma apresentação em um festival de dança, foi muito elogiada por seu comprometimento

com os ensaios. Para ela, não existe outra possibilidade de postura em um trabalho

coletivo: “Eu me comprometi a fazer. Como é que eu não vou? Como é que vou ficar

faltando em ensaio? [...] Eu não aprendi assim, sabe? Eu aprendi a ir. Eu aprendi a estar

lá [...] Muda muito a vida da gente” (GABRIELLE).

Esse senso de responsabilidade, além do empenho e do engajamento, também

apareceu no depoimento de Isabela (28 anos, engenheira de alimentos). Em um relato

emocionado, a entrevistada afirmou reiteradamente: “eu vivo o teatro todos os dias. Todos

os dias” (ISABELA). Em sua fala, a vida profissional e o ambiente de trabalho ganharam

destaque. Ela contou que constantemente repete às pessoas com quem trabalha aquilo que

aprendeu no teatro: “Se preparem, busquem, pratiquem, ensaiem [...] Não façam um

trabalho pela metade, faça um trabalho extraordinário” (ISABELA).

Comovida, a participante comparou o ambiente teatral, propício à manifestação

da diversidade e da individualidade ao mundo empresarial, que hoje é cenário de sua

vida profissional: “lá fora, a gente é muito cobrado, muito cobrado. E a gente não pode

ser quem a gente é. Se a gente for quem a gente é, você não vai pertencer à sociedade, à

empresa” (ISABELA). Em sua narrativa, observa-se claramente a distinção entre o já

mencionado mundo da vida – palco das relações interpessoais pautadas pela ação

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comunicativa – e o mundo sistêmico – aquele marcado pela racionalidade técnica e

instrumental (HABERMAS, 2003). A ex-aluna expôs que em seu ambiente de trabalho

não se identifica com os pares, tampouco se sente livre para ser quem é – ou “ser-para-

si” (conceito que, como já colocado, será retomado em capítulo posterior). Nesse

contexto, fez menção à identidade comum entre os participantes da roda, que ali estavam

reunidos por motivos que em nada se ligam aos valores preconizados pela sociedade de

mercado:

[...]trabalho em uma grande empresa, mas lá fora é tudo diferente. Eu sempre

sinto que lá não é o meu lugar, porque eu nunca vou poder ser quem eu nasci

pra ser, entendeu? Porque não tem pessoas como a gente. Tem pessoas que

querem fazer a diferença, só que de uma outra maneira. E, aqui, eu vejo que

a gente está aqui porque a gente está de coração, entendeu? [...] E, de verdade,

todos os dias eu falo do teatro na minha vida. Isso é impressionante.

(ISABELA)

A aluna também mencionou a coletividade como importante aprendizado

decorrente da vivência teatral: "saber viver em grupo é o que a gente precisa saber viver

lá fora. Nada mais é que um reflexo” (ISABELA). Ressaltou, porém, que apesar da

transferência desse aprendizado para vida em sociedade, o teatro é o local onde se pode

fazer as coisas de um modo diferente. Esse “fazer diferente” proporcionado pelo teatro

inclui, para ela, inclusive um processo de “desconstrução do que você é”, por meio da

vivência, em cena, de situações que não fazem parte do repertório pessoal.

Por esses motivos, a experiência de fazer teatro, no entender de Isabela, favorece

o autoconhecimento, o enxergar a vida de um modo diferente. Ela acredita que nunca

seria “a Isabela que fala, que é extrovertida não tivesse feito o teatro” (ISABELA). Trata-

se, para a participante, de uma vivência fundamental ao processo educativo, pois os

aprendizados dela decorrentes são essenciais à vida:

Todo mundo fala assim: “Você tem que aprender sobre geografia e história,

matemática, pra passar no vestibular”. Mas não. O teatro te ensina a viver,

porque lá fora não é fácil. Não é história, geografia, não é matemática que vai

fazer a diferença na sua vida depois quando você parar de estudar. É o teatro.

(ISABELA)

A não valorização e a não compreensão da importância do teatro – e da arte, em

geral – também foram abordadas por Larissa (22 anos, estudante de Biologia). Assim

como os participantes da primeira roda de conversa, ela mencionou que, na escola,

costumava ouvir que fazer teatro era “perda de tempo”. Contudo, para ela, nunca foi

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penoso estar no teatro. Pelo contrário: era uma alegria e um sentimento sempre buscado.

Emocionada, a participante narrou que, apesar de ter optado por seguir carreira em

Biologia, a arte continua sendo parte de sua identidade. Para ela, na verdade, a arte faz

parte da própria identidade humana e não pode ser encarada como algo desconectado

da vida. Prova disso, em sua percepção, é que os aprendizados construídos no teatro

contribuem para o desenvolvimento pessoal e profissional de muitos presentes ali à roda

de conversa.

[...] a arte é algo que resgata a nossa essência [...] por mais que isso seja

desprezado na sociedade hoje [...] As pessoas pensam muito no intelectual, no

conhecimento e esquecem da parte [...] emocional, do coletivo, de despertar

essa… a arte mesmo [...]As pessoas que passaram aqui no teatro estão sendo

muito bem-sucedidas por conta daqui, então não é algo que está à parte,

separado. A arte não é isso. A arte faz parte da gente. (LARISSA)

Larissa contou que começou a fazer teatro na escola por ter sido fortemente

impactada por uma experiência como espectadora em um espetáculo apresentado por

alunos no colégio. Ela se lembrou de que sua primeira peça já foi desafiadora: primeiro,

porque seria destinada a um público infantil, o que não era exatamente o que ela esperava;

segundo, pelo próprio processo de construção de personagem, que exigiu que ela “se

transformasse” em uma criança. E os desafios continuaram a aparecer em todos os

processos a partir de então. Mais tarde, já no Ensino Médio, participou de um espetáculo

cujas cenas foram construídas coletivamente, pelos próprios alunos. Como não havia

textos escritos para serem previamente memorizados, o processo foi, para a ex-aluna,

especialmente desafiador e enriquecedor do ponto de vista identitário, pois demandou o

engajamento da criatividade.

[...] era uma coisa que a gente tinha que criar, então foi um processo bem

difícil e eu acho que aí entra um ponto muito importante pra nossa identidade,

porque é a gente construir algo do zero, basicamente. Deixar a nossa

criatividade fluir ali no momento e dar o nosso melhor para que aquilo fique

bom. (LARISSA)

Outra reflexão da participante acerca da construção da identidade muito pertinente

ao recorte desta pesquisa diz respeito ao que ela mesma identificou como sendo “uma

dualidade do teatro”: ao mesmo tempo em que cada aluno contribui com suas próprias

características para o desenvolvimento de um trabalho, pode também se reinventar e

construir “um novo eu” (LARISSA).

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Essa autorreinvenção, que pode ser notada no depoimento de tantos alunos e ex-

alunos, ficou também evidente na fala de Valentina (18 anos, estudante de Jornalismo).

A participante contou que, quando começou a fazer teatro, era extremante tímida. A esse

respeito, disse que seus pais, após a apresentação de sua primeira peça, comentaram que

ela havia passado todo o tempo olhando para chão. O fato a marcou muito, pois, anos

mais tarde, depois da apresentação de outro espetáculo, seu pai elogiou o fato de ela ter

olhado para a plateia. Valentina enxerga aí uma evolução conquistada por conta do

autoconhecimento propiciado pelo teatro.

Esse conhecimento sobre si mesma foi, para a participante, crucial na escolha de

sua profissão: ela acredita que jamais teria optado por Jornalismo, carreira que exige

ampla capacidade de comunicação, se não houvesse feito teatro. Destacou que, mesmo

em seu curso universitário, há muitos alunos tímidos, e que constantemente é chamada

para apresentar seminários e fazer gravações – algo que aquela menina que um dia mal

conseguia olhar para uma plateia nunca conseguiria.

Ainda a respeito do autoconhecimento, retomou a questão já levantada por outros

participantes sobre a existência de padrões de comportamento esperados dentro da

escola. Revelou que costumava tentar “ser outra pessoa”, para poder se “encaixar” e ser

amiga de pessoas com quem, na verdade, não se identificava. Assim como outros

participantes também relataram, ao entrar no teatro, “descobriu” quem “realmente era”,

ao conhecer pessoas “que faziam parte dessa tribo dos artistas meio loucos”

(VALENTINA). Ao comentar sobre esse sentimento de pertencimento a um grupo onde

existe diversidade, a entrevistada destacou o fato de o teatro proporcionar o contato com

pessoas que, de outra maneira, sequer se conheceriam, como, por exemplo, estudantes de

séries distintas. Nesse contexto, Valentina também mencionou a construção de

profundos laços de amizade e o sentimento de família entre participantes do grupo de

teatro.

A questão do grupo, do fazer coletivo, é para Emma (27 anos, professora de

fotografia e cinema) a maior contribuição do teatro em termos de construção da

identidade. Em seu relato, ela abordou tanto o aspecto “individual” do fazer teatral quanto

o “social”. No que tange ao individual, sua percepção difere da maioria dos participantes

das rodas de conversa: ela afirmou nunca ter “entrado” muito nos personagens que

interpretava e que por isso não percebe influência do teatro nesse sentido; também não

considera o momento da apresentação, os aplausos e o reconhecimento do público como

os maiores ganhos em termos identitários, pois considera esses aspectos muito ligados ao

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“ego”. Em seu entender, o âmbito relacional do teatro é aquele de maior relevância: o

fazer teatral, em especial quando existe uma situação de apresentação e, portanto, de

exposição, favorece o estabelecimento de situações de solidariedade, de ajuda mútua,

de novas relações e de confiança no outro.

Essa fala de Emma levou Isis a pedir novamente a palavra para encerrar a roda de

conversa, expondo uma analogia que acabara de lhe ocorrer. Por coincidência, a analogia

apresentada pela participante assemelha-se muito a uma ideia já colocada no início desta

tese: a relação entre o fazer teatral e um exercício similar àquele conhecido como “queda

livre”, exposto na Introdução. Na dinâmica relatada por Isis, um participante deve, de

olhos fechados, tombar seu corpo em direção a uma roda de colegas, confiando que quem

estiver ali irá protegê-lo de uma queda. Ela contou que participou de uma brincadeira

assim na faculdade e que notou a dificuldade das pessoas em confiarem umas nas outras.

A dinâmica, para ela, representa a essência do fazer teatral: “[...] é tipo isso que o teatro

construiu em mim. Eu tenho que confiar no outro. Se eu não confiar, como que eu vou

acreditar naquilo que eu estou fazendo? Como que eu vou construir com todo mundo

junto ali?” (ISIS).

Isis também aproveitou para comentar que se identificara com a fala de Marcos,

sobre a falta do teatro e a sensação de estar voltando a ter dificuldades para falar em

público, agora que não participa mais do grupo teatral. Em seu comentário, podemos

entrever uma ideia bastante explorada por Ciampa (1987), como será visto no capítulo 5

– o indivíduo é aquilo que faz. Ao falar sobre seu afastamento do teatro, colocou: “sinto

que eu preciso me conectar de volta, senão eu vou voltar a ser uma coisa...Voltar a ter

um resquício de uma coisa que eu não quero mais ter, sabe?” (ISIS).

Essa necessidade de reestabelecer a conexão com aquilo que confere sentido à

própria identidade é bastante pronunciada no relato de Fábio, conforme será visto a seguir.

2.1.1 - DESTAQUE DE UMA ENTREVISTA

Em entrevista concedida após o término da roda de conversa com ex-alunos, Fábio

falou com maiores detalhes sobre sua trajetória pessoal, que envolveu um processo de

metamorfose profissional profundamente relacionada à experiência com teatro iniciada

durante a adolescência.

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O participante, que se identificara com o teatro a ponto de cursar faculdade de

Artes Cênicas por alguns anos, acabou se afastando desse universo, para investir na

carreira de advogado: “de repente, eu me vi dentro de um mundo de negócios,

trabalhando na parte financeira. Fui gerente tributário de grandes empresas

multinacionais” (FÁBIO). Nessa época, quando apareciam oportunidades esporádicas

para criar alguma cena ou pensar em um roteiro de peça teatral para a escola onde

estudara19, sentia-se como que se reconectando consigo mesmo. Por isso, teatro é, para

Fábio, religião, na acepção da palavra: “Religião de ‘religare’. Religar. É você se

reconectar com aquilo que você é [...] Teatro, pra mim, é uma forma de religião, de eu

me reconectar com a minha essência”.

Como advogado, apesar de financeiramente bem-sucedido e de reconhecido pela

competência profissional, sentia-se absolutamente perdido, sem poder dar vazão àquilo

que considera sua essência: a criatividade. Nesse contexto, constantemente se

perguntava: “‘o que eu fiz hoje que realmente provocou a diferença em mim e em outra

pessoa? Nada. Simplesmente fiquei na frente de um computador, trabalhando em

planilhas’. Era legal, era bacana, mas não era o suficiente pra mim”.

O sofrimento psíquico foi tanto que acabou por se manifestar fisicamente, por

meio de um processo grave de adoecimento: “descobri que eu estava com câncer, que

não era maligno ainda, mas que podia virar e que não tinha jeito: eu ia ter que passar

por pelo menos seis meses de quimioterapia”. Ciampa (1987) compara o movimento da

identidade à expressão “morte-e-vida”, como será mais bem explicado no capítulo 5. No

caso de Fábio, foi preciso uma situação limítrofe – a doença, que o fez encarar a

possibilidade da própria morte – para superar o fetichismo da personagem “advogado

bem-sucedido” e deixar (re)nascer a identidade de ator. Assim, ao se deparar, pela

primeira vez, com a perspectiva de finitude da própria existência, o sujeito se deu conta

de que era preciso ser-para-si, reconectando-se àquilo que dava sentido à sua existência.

Era preciso, portanto, um processo de metamorfose em busca de emancipação:

[...] a gente vive em um mundo que a gente cresce e as pessoas acham que

existem certos caminhos que a gente deve seguir e somente aqueles caminhos,

né? Mas não. A gente não é limitado. [...] E não tem problema nenhum em ser

tudo o que você pode ser, porque a gente é ser humano, a gente é espírito e a

gente não tem limite. A sociedade impõe limite pra gente, mas a gente tem que

aprender que a gente não pode se limitar, a gente tem que quebrar essas

barreiras. Se reinventar, quando é necessário. Se encontrar, quando é

necessário. Se reencontrar, como foi o meu caso. (FÁBIO)

19 O entrevistado, já ex-aluno, participou de alguns processos de criação de espetáculos encenados no IEI,

a convite da pesquisadora.

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Uma vez curado, Fábio fez cursos de dublagem, algo que sempre desejara. Hoje,

trabalha como dublador e tem sua própria escola de inglês. Ainda atua como advogado,

porém não está ligado a nenhuma empresa. O participante fez questão de frisar que, por

incrível que pareça, sua maior remuneração, atualmente, vem do trabalho com dublador

– profissão estritamente ligada ao modo de fazer teatro pelo qual se apaixonara quando

adolescente.

Diante de sua própria trajetória, o participante concluiu:

Então, pra mim, o teatro, além de tudo que foi dito pelas outras pessoas e por

mim mesmo na primeira parte, é a vida mesmo. É a vida mesmo, no sentido

literal, porque assim como a gente precisa de ar pra respirar, eu preciso de

teatro, de criatividade, de interpretação pra viver senão eu me afasto da minha

essência e não sou eu. Eu sou outra pessoa. Eu sou um zumbi. Eu sou

simplesmente um ser dentro de uma carcaça sem espírito. (FÁBIO)

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CAPÍTULO 3

OUTROS QUINTAIS

Após a realização e a análise das rodas de conversa até aqui apresentadas, algumas

ponderações importantes à continuidade da pesquisa emergiram. Em Justificativa, foram

ressaltados os motivos que levaram à opção por selecionar, como sujeitos desta pesquisa,

alunos e ex-alunos de teatro da própria pesquisadora. Dentre essas razões, destaca-se a

continuidade dos estudos iniciados no Mestrado, em que constam descrições detalhadas

dos processos teatrais vivenciados na escola abordada em ambas as pesquisas.

Contudo, se tal encaminhamento, por um lado, pode ser considerado favorável ao

desenvolvimento da tese, uma vez que oferece a oportunidade de aprofundamento

investigativo, por outro pode suscitar alguns questionamentos. A proximidade com os

sujeitos investigados não daria margem, contraditoriamente, a certo afastamento do

próprio objeto de estudo? Em outras palavras: estariam os afetos envolvidos (da

pesquisadora com relação aos sujeitos e vice-versa) impossibilitando um distanciamento

analítico condizente com as finalidades científicas da pesquisa? Estariam as perguntas

feitas aos sujeitos – e o fato de serem apresentadas a eles pela própria professora de teatro

– induzindo respostas? O próprio fato de os sujeitos terem aceitado participar da pesquisa

(em especial no caso de ex-alunos, muitos dos quais há anos não voltavam à escola onde

haviam estudado) já não seria, em si, uma evidência de que para estes entrevistados existe

algo de significativo na vivência teatral vivenciada naquele espaço? Ademais, o enfoque

em uma única escola – e, portanto, em um expressivo recorte regional, cultural e

socioeconômico – não seria, de certo modo, redutora dos resultados da pesquisa?

De todos esses questionamentos, emergiu a ideia de buscar outras vozes, em

outros rincões. Ainda que as rodas com alunos e ex-alunos continuem como principal

grupo de referência para a análise de dados, tornou-se imperativo olhar para além de nosso

reduto. Visitar outros quintais. Fazer as mesmas perguntas a outros sujeitos, com

vivências teatrais distintas, que não tenham sido alunos da pesquisadora e que, em comum

com os primeiros entrevistados, tenham apenas o fato de terem feito teatro durante a

adolescência. Para tanto, foram realizadas quatro novas entrevistas, cujos conteúdos serão

expostos a seguir.

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3. 1 - DEPOIMENTOS

Nesta seção, são apresentados relatos de quatro sujeitos adultos, não alunos da

pesquisadora. Em suas narrativas, eles refletem sobre a experiência teatral que tiveram

quando adolescentes e sobre os impactos de tal vivência em questões identitárias. Vale

destacar que três dos entrevistados (Bela, Gisele e Caio) têm perfil socioeconômico

distinto dos alunos e dos ex-alunos participantes das rodas apresentadas nos capítulos

anteriores – elas estudaram em escolas da rede pública e, ao narrar suas histórias,

destacaram ser provenientes de famílias com baixo poder aquisitivo. A outra entrevistada

(Dorinha) tem perfil similar ao dos demais entrevistados. Como se verá,

independentemente de questões socioeconômicas, as narrativas desses sujeitos se

assemelham, em aspectos diversos, às falas de alunos e de ex-alunos anteriormente

apresentadas.

3.1.1 - “O TEATRO ME REINICIOU COMO SER HUMANO.”

Bela (35 anos, professora de administração) iniciou seu depoimento contando que

sua mãe se descobriu homossexual quando a estava esperando, aos cinco meses de

gravidez. De modo que a entrevistada foi criada por duas mulheres. Quando criança, a

situação nunca foi considerada por ela um problema. Contudo, no início de sua

adolescência, o quadro se modificou: quando Bela tinha de 11 para 12 anos, sua mãe, que

era policial, assumiu a cantina da escola pública onde a filha estudava, como forma de

garantir uma renda extra à família, e colocou sua companheira para trabalhar no local.

Volta e meia, a mãe, em horários livres, também ia ao colégio, para ajudar no trabalho da

cantina. Como frequentemente ambas as mulheres eram vistas ali, não demorou para que

os alunos descobrissem que Bela tinha duas mães. A partir de então, a menina passou a

sofrer severo processo de bullying na escola: “[...]com bilhetinhos colados nos meus

cadernos, coisas escritas na lousa e por aí vai. Inclusive de alguns alunos não comprarem

na cantina, e falarem [...]: ‘ah, não posso comprar na cantina porque isso pega’”.

As agressões tiveram um forte impacto na autoestima e na autoimagem da

entrevistada, que passou a vivenciar um conflito identitário: no desejo de ser aceita pelo

grupo, passou a considerar que talvez os colegas tivessem razão e que sua vida e também

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sua própria sexualidade seriam afetadas por conta do contexto familiar. Bela, que até

então era uma aluna estudiosa, que costumava tirar boas notas, viu seu rendimento escolar

cair drasticamente, e passou a ter muita dificuldade de socialização: “eu comecei a entrar

em um ciclo de depressão[...] comecei a tirar péssimas notas, já não rendia mais, e fui

ficando cada vez mais introvertida, com muita vergonha, cada vez mais calada”. O

quadro depressivo foi percebido pela mãe, em especial quando Bela lhe perguntou se,

quando crescesse, haveria alguma chance de gostar de meninos, ou se, por ter duas mães,

teria obrigatoriamente de se relacionar com mulheres. “Isso foi bem ali naquela fase de

comecinho de adolescência. [...] Aí ela viu que estava se encaminhando pra uma coisa

talvez um pouco mais grave, [...] refletindo na minha autoestima”.

Então, a mãe de Bela tomou duas atitudes: mudou-a de escola e a matriculou no

curso de teatro Fundação Cultural da cidade onde moravam. A opção pelo teatro foi uma

tentativa de inserir a menina em um grupo mais “aberto”: “Minha mãe sempre achou que

as pessoas que faziam teatro eram pessoas menos preconceituosas, mais libertas. Então

ela falou assim: ‘talvez nesse ambiente ela consiga refletir de uma maneira diferente’”.

Foi exatamente o que aconteceu. No teatro, a então adolescente viu-se em meio a um

grupo acolhedor, aberto às diversidades e desprovido de preconceitos com relação à

homossexualidade. O convívio com colegas e professor de teatro e as experiências

vivenciadas em cena e em contato com o público foram responsáveis por uma

metamorfose identitária, de caráter marcadamente emancipatório:

Ali, naquele grupo, eu fui conseguindo refletir sobre o que tinha acontecido

de uma maneira um pouco mais crítica, aquilo foi mudando a minha visão

sobre a homossexualidade da minha mãe, foi me fazendo compreender que

aquilo não era uma coisa que ia influenciar na minha vida pessoal, [...] foi

desmistificando alguns preconceitos.

O professor de teatro, com quem Bela acabou desenvolvendo um significativo

vínculo afetivo, era homossexual, e a entrevistada contou a ele sua história. A partir de

então, ele passou a abordar, com muita frequência, em esquetes e peças teatrais (algumas

das quais ele mesmo escrevia), a temática da homossexualidade e dos conflitos similares

aos que a adolescente havia enfrentado. Sem nunca expor aos demais alunos o que Bela

lhe havia confidenciado, e sem colocá-la para interpretar personagens vítimas de bullying

(o que hoje a entrevistada percebe como intencional, para que ela não revivesse no palco

o sofrimento pelo qual já havia passado na vida real), o professor a foi cercando de

situações com as quais ela podia se identificar. Desse modo, a adolescente teve a

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oportunidade de resolver, por meio de processos catárticos, a história vivenciada na escola

onde estudara. Na peça teatral que mais a marcou, por exemplo, os personagens que, no

início da trama, praticavam bullying contra um colega filho de um casal homossexual, ao

final se arrependiam e se desculpavam com a vítima das agressões. Bela destaca que,

como não havia tido a oportunidade de resolver os conflitos com os colegas de sua

primeira escola, o desfecho da peça oferecia a ela a possibilidade de, em seu imaginário,

“encerrar esse capítulo mal resolvido” de sua própria história. Ela considera fabulosa

essa possibilidade que o teatro oferece de vivenciar situações cotidianas, no universo

lúdico, de modo a controlar roteiros e suscitar reflexões críticas.

Além das experiências de encenar histórias análogas à sua, a entrevistada conta

que o contato com a plateia também foi fundamental para a superação dos problemas que

havia vivenciado em ambiente escolar. O grupo de teatro do qual ela fazia parte

frequentemente apresentava-se em festivais municipais e regionais e, nessas ocasiões, o

professor tinha o costume de promover conversas entre atores e público, ao final das

apresentações. Ouvir os comentários dos espectadores acerca dos contextos representados

foi significativo em seu processo de reconstrução identitária:

Essas experiências sempre foram muito produtivas e muito importantes

porque não era só eu encenar, mas era eu encenar essa situação e aí ouvir

várias histórias de pessoas que estavam passando por aquilo como eu passei,

ou várias pessoas se posicionarem, apoiando [...]Então, essas trocas [...] eram

tão importantes quanto aquilo que eu vivia no palco, porque era o momento

também de eu observar como as pessoas estavam vendo, como a população

enxergava aquela história

A vivência teatral foi, desse modo, a grande responsável por conseguir fazer com

que Bela superasse uma “profunda crise existencial”, por meio da resolução catártica dos

conflitos pessoais e da reflexão crítica desencadeada pela troca de experiências no contato

com plateia e colegas de grupo. Nesse sentido, o depoimento de Bela aproxima-se

bastante da narrativa da ex-aluna Ana, que, na roda de conversa com ex-alunos do IEI,

também relatou como a participação em uma peça sobre bullying a auxiliou a vencer

situações reais de exclusão que vinha vivenciando na escola.

Outro importante desdobramento da experiência teatral, para a entrevistada, foi

do ponto de vista da comunicação: a menina antes tímida e calada, cuja introversão fora

potencializada com o contexto de agressões vivenciado na escola, passou a falar melhor,

a se posicionar com muito mais segurança e a defender suas ideias. Tanto que, já no

Ensino Médio, Bela teve uma postura completamente diferente quando, mais uma vez,

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foi alvo de comentários maldosos de colegas de sua outra escola, a respeito da opção

sexual de sua mãe: “eu já me sentia muito mais empoderada e muito mais segura pra me

posicionar, pra lidar com aquilo e não deixar que aquilo me afetasse mais como

aconteceu lá atrás. E eu devo isso muito ao teatro”. Essa autoconfiança e

desenvolvimento do ponto de vista da comunicação são também, de acordo com a

entrevistada, fundamentais para que ela consiga, hoje, exercer sua profissão de

professora: “Eu nunca imaginei um dia que ia conseguir entrar numa sala de aula, com

40 alunos, e aquilo não me travar, de eu conseguir falar, de eu conseguir expor aquilo

que eu sei”.

A própria escolha profissional de Bela e a maneira como ela encara a profissão

também se relacionam à experiência teatral e, em especial, à figura de seu professor de

teatro. Proveniente de família humilde, ela a princípio trabalhava como atendente de loja,

porém alimentava o desejo de ter outra profissão, e tinha no professor que tanto a auxiliara

a superar o conflito vivenciado na adolescência uma significativa inspiração: “eu queria

poder fazer isso por alguém também. Eu queria entrar num coletivo em que eu pudesse

contribuir de alguma maneira e isso despertou muito a vontade de ser professora”. Hoje,

atuando na área docente, ela busca manter uma relação muito próxima com seus próprios

alunos, procurando conhecê-los, acolhê-los e auxiliá-los no que for preciso. Além disso,

a entrevistada – que, na área acadêmica, pesquisa a temática do assédio moral contra

mulheres, em ambientes educacionais – também atribui sua linha investigativa à

experiência teatral. Por todos esses motivos, Bela atribui um papel de grande relevância

ao teatro na construção de sua identidade:

O teatro me reiniciou como ser humano. [...] Foi preciso que esse processo

acontecesse, de preconceito, para que o teatro me reiniciasse, e que me

reconstruísse, porque se eu sou uma ativista hoje dessas questões, é graças a

esse processo. Então eu acho eu não seria nada do que eu sou hoje, não

pesquisaria nada que eu pesquiso hoje, se eu não tivesse vivenciado o que o

teatro me proporcionou.

Assim, por meio do teatro, e em especial na relação com o outro – outro-colega,

outro-plateia, outro-professor e outro-personagem –, Bela encontrou um outro eu, mais

autoconfiante, autônomo e emancipado. Para ela, “o teatro tem um papel fundamental da

autocrítica, da reflexão, da experimentação” e, por isso, deveria ser oferecido em todas

as escolas, em especial durante o período da adolescência, crucial à formação da

identidade. A entrevistada compara o ambiente do teatro ao da sala de aula, considerando

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o primeiro “mais livre” e o segundo “muito fechado, muito quadrado”. A compreensão

de Bela sobre o teatro – assim como as de alguns alunos e ex-alunos de teatro do IEI,

participantes das rodas de conversa – dialoga com o conceito habermasiano de mundo da

vida, aludido nos capítulos anteriores:

As nuances da vida, dessa formação, que é muito mais ampla, do aluno, não

aparecem nessa caixinha quadrada dentro da sala de aula. [...] eu acho que o

papel fundamental do teatro na escola nesse sentido é de formação do

indivíduo, sobre o caráter dele, sobre as questões sociais, as relações com o

outro, e isso você não proporciona dentro de uma sala de aula.

3.1.2 - “O TEATRO ME AJUDOU A ME ENXERGAR CAPAZ.”

Dorinha (27 anos, arquiteta) fez teatro dos 11 aos 26 anos, em diferentes espaços

de educação não formal: escola de teatro, grupo teatral universitário e espaço cultural.

Refletindo a respeito do impacto, em termos identitários, que a experiência lhe

proporcionou, especialmente durante a adolescência, ela considera que é hoje uma pessoa

diferente do que seria se não houvesse feito teatro.

Fui uma criança muito tímida e travada socialmente. O teatro me ajudou

muito a me soltar e conseguir me relacionar de maneira mais fluida. Além

disso o teatro me aproximou de um viver cultural que eu imagino que não teria

sozinha. De estar ligada em movimentos culturais, peças e eventos que estão

acontecendo na minha cidade, além de conhecer espaços e grupos.

A entrevistada também destacou que o teatro modificou a maneira como se vê e

como os outros a veem:

O teatro me ajudou a me enxergar capaz. A sensação de apresentar uma peça

muitas vezes vinha de um lugar de "eu consegui", e isso era muito bom para a

minha autoestima. Em relação a visão dos outros, como eu sempre fui uma

pessoa bem quieta e introspectiva, as pessoas frequentemente se espantavam

quando eu dizia que fazia teatro. Penso que a forma como elas me viam

mudava depois disso. Outro dia, em uma conversa com a minha irmã sobre a

nossa adolescência ela disse que ela me via como "a pessoa do teatro",

querendo dizer que essa atividade me definia bastante naquela época, que eu

me doava bastante para isso.

Questionada sobre os motivos pelos quais o teatro, em sua opinião, desencadearia

as metamorfoses identitárias por ela mencionadas, Dorinha respondeu que acredita serem

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vários os motivos. Dentre eles, ressaltou a qualidade das relações estabelecidas com o

outro-colega e o sentimento de pertencimento ao grupo – questões também levantadas

por outros sujeitos da pesquisa e fundamentais do ponto de vista da socialização,

conforme será retomado no capítulo 6.

Para mim uma coisa que influenciou bastante foi o fato de as relações pessoais

serem muito diferentes no teatro e na “vida real”. No teatro você tem a

oportunidade de brincar, encostar, conversar e trocar de forma geral com

pessoas que não necessariamente você conhece. Às vezes você conheceu a

pessoa naquele mesmo dia e já estão fazendo uma cena ou exercício que

envolve olhar nos olhos e estar presente juntos. Isso acaba possibilitando uma

intimidade que para mim sempre foi muito difícil de conseguir fora daquele

ambiente. Por ser muito fechada, sempre foi difícil me abrir, me colocar

disponível e vulnerável, e o teatro me possibilitava esse exercício (que depois

consegui levar para a minha vida fora dali). Além disso, a sensação de

pertencimento (ao grupo, à escola, ao teatro) também me sustentou bastante

no sentido de criar uma identidade.

A entrevistada também considera que, de certo modo, sua trajetória de vida

continua sendo impactada pela experiência teatral vivenciada na adolescência:

Tenho grandes amigos que fiz no teatro e outros que fiz através destes amigos,

portanto, em termos de relacionamento, minha vida foi bastante impactada

pelo teatro. Já na minha vida profissional, o impacto aconteceu de forma mais

subjetiva e indireta, através da bagagem artística que o teatro me

proporcionou.

3.1.3 - “TENHO CERTEZA QUE COM O TEATRO MINHA VIDA TERIA SIDO OUTRA.”

A narrativa de Gisele (39 anos, bibliotecária) é, ao mesmo tempo, diferente e

similar às das dos demais entrevistados. Diferente porque ela teve de abandonar o curso

de teatro que frequentava durante a adolescência, fato que a frustrou sobremaneira. De

modo que a entrevistada, em sua narrativa, acentua que o teatro fez grande falta em sua

construção identitária. Similar porque, ao discorrer sobre os aspectos que, em sua opinião,

fariam dela uma pessoa diferente daquela que é hoje, caso houvesse dado continuidade à

experiência teatral, Gisele citou pontos bastante mencionados por outros entrevistados,

em especial no que diz respeito a habilidades comunicativas. Ou seja, aquilo que a

entrevistada destaca como faltando em sua identidade, pela falta do teatro, coincide com

o que muitos sujeitos salientam como principais consequências da vivência teatral:

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Minha tia trabalhava no Instituto de Artes da Unicamp, no setor de limpeza.

Meu maior sonho era fazer faculdade de Artes Cênicas lá. Dos 13 aos 15 anos,

eu fiz teatro no Castro Mendes e adorava. Ia ser o papel principal em uma

peça que estávamos montando, mas minha mãe me fez largar o curso. Achava

que teatro era coisa de gente louca, de vagabunda e de prostituta. Fiquei

arrasada. Pela pouca vivência que tive, pude perceber que o teatro é algo

motivador, ele dá vida a outra vida, te inspira. Fico muito triste por não ter

dado continuidade. Hoje realmente eu seria outra pessoa. Eu fiquei arrasada.

Hoje eu tenho certeza de que tudo seria diferente na minha vida se tivesse

continuado. Eu sou uma pessoa com muita dificuldade para falar em público;

morro de vergonha. Tenho uma amiga que é professora, super desenvolta e

que sempre me diz que sou enrustida. Sou mesmo. Fui muito podada. Tenho

certeza que com o teatro minha vida teria sido outra. Eu seria mais solta,

menos travada. Eu lembro que quando fazia teatro havia umas dinâmicas de

se jogar no chão, gritar. Hoje eu nunca faria isso. Teatro é muito maravilhoso,

muito importante. Pra mim, teatro é uma forma de expressar inquietações,

uma forma de poder fazer um mundo melhor, proporcionando aos

espectadores um momento de reflexão ou de diversão. Por isso, sempre

estimulo minha filha e não vejo a hora de ela poder começar a fazer teatro.

3.1.4 - “AQUILO ME FASCINOU... A MAGIA DO TEATRO, A POSSIBILIDADE DE SER OUTRO.”

Caio (46 anos, ator e professor de teatro) começou a se interessar pelo universo

teatral na escola, aos 13 anos, quando assistiu a uma montagem de O cavalinho azul, de

Maria Clara Machado. A partir de então, teve vontade de fazer aulas de teatro, porém era

muito tímido e sua mãe era contra.

Minha família sempre foi muito simples, nunca tinham assistido teatro, acho

que nem sabiam o que era isso. Depois, com o tempo, a família virou a maior

fã. Mas no começo achavam que não tinha necessidade de fazer teatro.

Falavam: “ah, vai estudar informática, vai estudar inglês”.

Três anos depois, Caio foi fazer aulas de Desenho no conservatório de sua cidade,

onde viu um cartaz da mesma peça que havia assistido em seu colégio. Pediu informações

a uma pessoa que ali trabalhava, e descobriu que o conservatório estava montando o

espetáculo e que procuravam por alguém alto (como ele) para participar. Foi convidado

a fazer um teste e acabou entrando para o elenco. A experiência foi impactante para o

então adolescente, que, assim como outros entrevistados, descobriu no teatro novas

possibilidades, outras maneiras de ver o mundo e um espaço para se expressar e

ganhar confiança: “Aquilo me fascinou... a magia do teatro, a possibilidade de ser outro.

Achava minha vida muito boba. Vivia muito fechado no meu mundo. No teatro era onde

eu conseguia me expressar, me soltar”.

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A partir de então, Caio participou de aulas, oficina e curso técnico. Tornou-se ator

e professor de teatro. Tomando por base sua própria vivência quando adolescente e

também o desenvolvimento de seus alunos, acredita no teatro como um instrumento de

emancipação porque “[...] o aluno passa a se conhecer, se perceber, enxergar do que é

capaz, que pode ir daqui ali sozinho. Acho que o teatro ajuda muito a adquirir

autoconfiança”. Ele revela uma série de impactos do teatro em processos educacionais,

muito similares a questões levantadas por outros sujeitos:

O teatro é muito importante na escola, primeiro para o desenvolvimento

pessoal, para o aluno se autoconhecer, saber quem é ele, descobrir que tem

um mundo à volta dele, e descobrir esse mundo. Vejo por mim... quando eu fui

buscar [o teatro], não sabia que tinha esse mundo lá fora, passei a me

conhecer, saber minhas limitações, vencer minha timidez. Eu era muito

tímido. Foi extremamente importante na minha vida.

Caio destaca que algumas crianças e adolescentes começam a fazer teatro

seguindo indicação psicológica. Ele emociona-se ao falar de seus alunos, porque, em

muitos deles, enxerga sua própria história de transformação identitária:

Quando o aluno chega e a mãe conta que a psicóloga pediu para ele fazer

teatro porque acha que vai ajudar, meus olhos brilham, porque esse aluno sou

eu. Quando eu percebo que ele está mudando, e ele percebe, isso é muito

gratificante.

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ENTREATO

“Grandiosa é a experiência de ‘teatrar-se’.”

Paulo, ex-aluno De Teatro do IEI

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CAPÍTULO 4

CENAS, HISTÓRIAS E MEMÓRIAS:

UMA MIRADA AFETIVA E VISUAL

“Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de Oh.”

Guimarães Rosa (Primeiras Estórias)

O leitor é agora convidado a uma imersão visual em memórias afetivas do

universo teatral da instituição onde estudam ou estudaram os participantes da pesquisa.

Como afirmaram muitos deles nas rodas de entrevista apresentadas nos capítulos 1 e 2, é

difícil explicar com palavras todo o sentimento proporcionado pela experiência teatral.

De fato. Assim é o teatro. Arte do efêmero. Acontece naquele breve instante de relação

entre o ator e seu público. No encontro do “eu” com o outro. Breve instante que condensa

uma vastidão de emoções: as do ator, as de seus companheiros de cena, as do público, as

dos personagens. E não se repete. É a arte do agora. Um agora, contudo, que por tão

intensamente vivido e sentido não raro transmuta-se em “para sempre”. Para sempre nas

lembranças, nas histórias contadas... e, como os caminhos desta investigação já parecem

apontar, nas identidades daqueles que viveram a experiência.

Os estudantes enxergam a última noite da peça como um momento de pesar e

tristeza; será a mesma escola de sempre amanhã, de volta às lições em sala de

aula [...] Os alunos tendem a se lembrar desses eventos mais do que quase

qualquer outra coisa sobre a escola. (HARGREAVES, 1990, p. 152)

Com essa perspectiva, acreditamos que todos os esforços para fazer o leitor

imergir – ainda que superficialmente – na experiência teatral vivenciada pelos sujeitos da

pesquisa sejam válidos. Este capítulo se presta a esse fim. Ele se apresenta como um

“respiro”, um entreato entre as rodas de conversa e sua análise teórica, apresentada nos

capítulos subsequentes. As imagens e os depoimentos20 expostos a seguir não têm outra

intenção senão a de buscar aproximar o leitor da emoção despertada pela vivência teatral,

aspecto que se foi mostrando tão significativo no decorrer deste estudo.

20 Neste capítulo, são apresentados trechos dos depoimentos em questão. A íntegra dos textos pode ser

conferida no ANEXO D.

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É importante lembrar que as narrativas aqui apresentadas não foram escritas com

o intuito restrito de responder às questões da pesquisa. Foram elaboradas

voluntariamente, a partir do questionamento “o que o teatro significa para você?” –

lançado em grupo de rede social composto por pessoas que, de algum modo, fizeram parte

da trajetória do teatro do IEI no decorrer de 20 anos de histórias. São palavras, portanto,

escritas por alunos e ex-alunos (e também alguns familiares e funcionários), para quem a

experiência teatral, de algum modo, deixou marcas. Histórias e memórias que dizem

muito sobre o objeto desta pesquisa. Mais, talvez, do que a análise que a elas se sucederá.

E se palavras não bastam para exprimir a avalanche de sentimentos provocada

pela experiência teatral, talvez algumas imagens auxiliem a captar fagulhas da intensidade

dessa emoção. Portanto, ao passar os olhos sobre as fotos a seguir, é importante manter

em perspectiva que elas mostram mais do que cenas ou aparatos visuais de cenários,

figurinos e iluminação: retratam adolescentes, em sua escola... expondo-se, descobrindo-

se, enfrentando-se, superando-se. Construindo-se.

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ATO II

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CAPÍTULO 5

TEATRO COMO METAMORFOSE E EMANCIPAÇÃO

“O senhor... mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as

pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas

vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me

ensinou. Isso que me alegra montão.”

(Guimarães Rosa, 1956, Grande Sertão Veredas).

Metamorfose e emancipação são as categorias que norteiam as reflexões

apresentadas neste capítulo. Categorias imprescindíveis para a compreensão do conceito

de identidade que, segundo já anunciado na Introdução, é entendida por Ciampa (1987)

justamente como metamorfose em busca de emancipação. O enunciado, que é um dos

pressupostos centrais desta tese, será aqui explicado com maior detalhamento, do ponto

de vista da Psicologia Social. Não podemos perder de vista, porém, que esta é uma tese,

acima de tudo, sobre teatro. É ele – e, mais especificamente, seus efeitos na formação de

indivíduos – nosso principal objeto de estudo. Paralelamente, também não se pode

esquecer – e nem seria possível – que esta é uma tese escrita por alguém do teatro. Nesse

sentido, não temos a pretensão nem o objetivo de esgotar, em nossa análise, toda a

complexidade das questões que envolvem os processos de construção identitária. O olhar

que aqui se lança à psicologia é, por conseguinte, um olhar “visitante”: parte do teatro,

bebe em outra fonte e volta ao teatro para enxergá-lo sob a ótica de processos de formação

identitária. Neste movimento, nosso ponto de partida e chegada é o teatro. É a partir dele

que nos aproximamos tanto do conceito de identidade quanto do entendimento acerca de

metamorfose e emancipação.

5.1 - DO TEATRO À PSICOLOGIA E VICE-VERSA: EM QUE SHAKESPEARE NOS AUXILIA A

COMPREENDER ALGUNS FUNDAMENTOS

Nesta seção, abordaremos o conceito de identidade a partir da perspectiva de

Ciampa (1987). Como já colocado, o autor defende que identidade é metamorfose em

busca de emancipação – um dos pressupostos de nossa investigação. Até aqui, temos nos

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referido a processos de metamorfose identitária, inclusive apontando indícios desses

processos nas narrativas dos sujeitos entrevistados. Evidentemente, quando falamos em

metamorfose, tratamos de transformações, e é nesse sentido que se têm dado nossos

apontamentos. Contudo, cumpre fazer, agora, um aprofundamento teórico, para que

melhor sejam esclarecidas as questões conceituais apontadas – porém pouco explanadas

– em capítulos anteriores, de cunho mais empírico.

Nesse aprofundamento não perderemos de vista nosso principal objeto e ponto de

partida – o teatro. A escolha de Antonio da Costa Ciampa (1987, 1989) como um dos

referenciais vem bem a calhar: para falar de identidade, ele recorre ao universo teatral.

Em sua obra mais difundida – A Estória de Severino e a História de Severina –, o autor

discute o tema da identidade partindo da narrativa de duas figuras – uma ficcional, outra

real. A primeira é Severino, personagem central do poema dramático Morte e Vida

Severina, de João Cabral de Melo. A segunda, sujeito da pesquisa de Ciampa (1987), foi

chamada pelo autor de Severina, pois sua trajetória guarda similaridades com a do

personagem de João Cabral. A partir da análise de falas do poema dramático e de trechos

do relato autobiográfico de Severina, o estudioso demonstra como as identidades de seus

personagens vão se metamorfoseando à medida que experimentam diferentes relações

sociais. Além de respaldar-se em uma obra dramática para expor seu conceito de

identidade como metamorfose, o pesquisador estabelece outros paralelos com o universo

teatral, apoiando-se, para tanto, na obra de Constantin Stanislavski, e apresentando a

identidade sob a forma de personagem, como será visto mais adiante.

Para iniciar a exploração da teoria de Ciampa e inspirados no movimento que o

próprio autor faz, ao partir do universo dramático para falar de identidade, buscamos no

teatro – mais especialmente na dramaturgia –, exemplos que nos auxiliam a compreender

melhor a questão identitária. Identidade que se quer humana, como veremos. E, para nos

aproximarmos do conceito tendo por base o campo teatral, recorremos a William

Shakespeare, considerado por Harold Bloom o próprio “inventor do humano”, tamanha

sua capacidade de compreender o homem em sua essência. Para o estudioso, fomos

praticamente reinventados por Shakespeare, já que a ele devemos boa parte de “nossas

ideias sobre o que constitui o humano autêntico” (BLOOM, 2001, p. 42-43).

Muito antes de a Psicologia levantar a questão da identidade – a bem da verdade,

séculos antes do próprio nascimento da Psicologia como ciência –, Shakespeare, em seus

textos, já apresentava reflexões que em muito se aproximam de concepções que, mais

tarde, seriam consideradas fundamentais ao entendimento do conceito. A compreensão

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do caráter transitório da vontade humana – e, portanto, da metamorfose do homem –

figura entre as principais: “Shakespeare cria maneiras diversas de representar a mudança

no ser humano, alterações essas provocadas não apenas por falhas de caráter ou por

corrupção, mas também pela vontade própria, pela vulnerabilidade temporal da vontade”

(BLOOM, 2001, p. 26).

Gêmeos com o mesmo nome21, personagens femininas que se travestem de

homem22, antagonistas dissimulados23... é difícil pensar em alguma obra shakespeariana

que não traga, como parte importante da trama, questões relativas à identidade. No que

tange à autotransformação do homem, nenhum outro escritor, na opinião de Bloom (2010,

p. 67), se compara a Shakespeare “no evidenciar uma psicologia de mutabilidade” A ideia

de metamorfose identitária pode ser entrevista em muitas das obras do bardo: está no

temeroso Macbeth e na intransigente e determinada Lady Macbeth, que, após

assassinarem o rei Duncan, metamorfoseiam-se, respectivamente, em rei implacável e

rainha atormentada. Está no valoroso Otelo, que se converte em assassino, ao acreditar

que sua casta esposa lhe é infiel. Está em Lear, que só se percebe humano ao perder tudo

o que tinha. Está, inclusive, na não metamorfose (ou não ação) prolongada de Hamlet,

que, justamente por evitar metamorfosear-se em príncipe que vinga a morte do pai,

afunda-se na melancolia e flerta com a loucura. E está, de certa forma, no célebre

monólogo de Jacques, em Como gostais, no qual a associação do homem ao ator, da

identidade a personagens, da vida ao teatro, também já se anunciava nas reflexões do

bardo:

O mundo inteiro é um palco,

E todos os homens e mulheres são meros atores;

Eles têm suas saídas e suas entradas,

E um homem em seu tempo representa muitos papéis,

Seus atos se distribuem por sete idades.24

21 Alusão aos personagens Drômio e Antífolo de Éfeso e Drômio e Antífolo de Siracusa, da peça Comédia

dos erros. 22 Alusão às personagens Rosalinda (Como gostais), Viola (Noite de reis), Pórcia, Nerissa e Jéssica (O

mercador de Veneza) 23 Iago (Otelo), Ricardo III (Ricardo III), Rei Cláudio (Hamlet), Aarão (Tito Andrônico), Lady Macbeth

(Macbeth). 24 Como gostais, Ato II, Cena VII, William Shakespeare.

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Este último exemplo, além dos paralelos mencionados, enseja análises diversas

(sobre a própria transitoriedade da vida e a similaridade entre os papéis desempenhados

pelos homens no decorrer de sua existência) que escapam ao escopo da pesquisa. De todo

modo, não restam dúvidas de que a concepção de homem, para Shakespeare, dialoga com

as ideias de Ciampa, em especial no tocante à “inesgotável plasticidade do ser humano”

(CIAMPA, 1987, p. 35). Tendo isso em vista, seguiremos com a explanação do conceito

de identidade, voltando a recorrer ao dramaturgo, oportunamente.

5.1.1 - “MAS O QUE HÁ EM UM NOME?”

Ciampa (1987) inicia suas reflexões sobre o fenômeno da identidade, abordando

o aspecto que, em geral, primeiro aparece quando se dá a conhecer um indivíduo: seu

nome. O que diz um nome sobre uma identidade? De certo, o nome nos identifica. Somos

chamados por um nome, muitas vezes antes de nascermos. Depois de um tempo, salvo

exceções, passamos também a nos identificar com esse nome, de modo que também nos

chamamos por ele, ao dizermos “eu me chamo...”. Aquilo que os outros nos atribuem é

por nós interiorizado, tornando-se nosso. Como explica Ciampa (1989, p. 63), “antes que

eu ‘me chamasse Fulano’, eu ‘era chamado Fulano’, ou seja, nós nos chamamos da forma

como os outros nos chamam. Nós nos ‘tornamos’ nosso nome”. E aqui, um ponto que

merece atenção: o primeiro dado de nossa identidade nos é dado por outros.

Ciampa (1987) pontua que esta é a tendência: predicarmos a nós mesmos aquilo

que os outros nos atribuem. Evidentemente, no decorrer da vida, essas atribuições e

predicações vão se tornando mais complexas. Predicamo-nos atribuições com as quais

muitas vezes sequer nos identificamos. Relembrando algumas narrativas de sujeitos

entrevistados, podemos claramente perceber esse processo: a adolescente que teme não

se interessar por meninos, já que os colegas lhe dizem que ela será homossexual; o bom

aluno que cursa Medicina, porque a família assume que ele será médico.

Mas não nos adiantemos; por ora, voltemos à questão do nome. Dizíamos que nos

identificamos com ele (ou com a forma como nos chamam). Severino, personagem de

João Cabral de Melo Neto, inicia sua jornada apresentando-se à plateia e dizendo que é

Severino. Não tem outro nome de batismo. Contudo, como há muitos outros Severinos

em sua região, ficou conhecido como o “Severino de Maria”. Nome e filiação. Se um

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nome não diz muito sobre uma individualidade, sua ascendência começa a defini-la, no

sentido de definir uma posição social, localizando-o em uma família. É a família quem

nos dá um nome e um sobrenome. Nome, que nos diferencia dos demais membros daquele

grupo; sobrenome, que nos iguala, diferenciando-nos de outras famílias. E aí, para

Ciampa (1987, p. 138, grifo do autor), reside um dos pontos de destaque sobre a

identidade: “ela é a articulação da diferença e da igualdade”.

Entretanto, existem indivíduos com mesmo nome e sobrenome; o que não

significa, evidentemente, que têm a mesma identidade. Portanto, “está claro que o nome

não é a identidade; é uma representação dela” (CIAMPA, 1987, p. 132). A primeira das

muitas representações que compõem a identidade. E representações carregam a

expectativa de como devem ser representadas: Fábio, um de nossos ex-alunos, afirmou

que era conhecido na escola por seu sobrenome (o mesmo de sua tia, que ocupava cargo

diretivo no colégio); assim, o sobrenome carregava o peso de determinadas expectativas,

fazendo com que o sujeito se sentisse “como se fosse uma vitrine [...] tinha que ser sempre

o certinho, o que tirava a nota mais alta”.

Aqui, amparados na teoria de Ciampa, voltamos a Shakespeare. Mais

especificamente, a Romeu e Julieta, um dos exemplos dramatúrgicos de maior

contundência no que diz respeito àquilo que um nome encerra – ao que diz e não diz sobre

alguém. Julieta inicia uma das cenas mais célebres da peça – e também de todo o teatro

ocidental –, suspirando no balcão de seus aposentos pelo amor proibido que acabara de

lhe arrebatar o coração. Absorta em seus pensamentos, não percebe que é observada, de

longe, pelo jovem Romeu, que por ela também suspira. “Romeu, Romeu... por que és

Romeu?”25, pergunta-se a jovem. O nome do amado é justamente o que impede a

concretização de seu amor. Nome aqui, evidentemente, atrelado à condição familiar: o

nome de Romeu carrega o sobrenome inimigo – é um Montecchio. E é sobre essa

condição que Julieta reflete: “Somente teu nome é meu inimigo. Tu és tu mesmo, sejas ou

não um Montecchio. Que é um Montecchio? Não é mão, nem pé, nem braço, nem rosto.

Oh! Sê qualquer outro nome pertencente a um homem”26.

Ambiguidade: nome que supostamente nada representa (não é a identidade); nome

que tudo impede (justamente por ser a representação dela). Nada diz sobre a pessoa de

Romeu e, no entanto, é exatamente o que impossibilita a relação. Tivesse Romeu qualquer

outro nome, continuaria sendo ele mesmo; mas tendo exatamente este, é tudo o que não

25 Romeu e Julieta, Ato II, Cena II, William Shakespeare. 26 Idem.

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pode ser: “Mas o que há em um nome? O que chamamos rosa, com qualquer outro nome

exalaria o mesmo perfume. Assim, Romeu, se Romeu não se chamasse, conservaria essa

cara perfeição que possui sem o rótulo”27.

Entretanto, “o nome é mais que um rótulo ou etiqueta: serve como uma espécie

de sinete ou chancela, que confirma e autentica nossa identidade. É o símbolo de nós

mesmos” (CIAMPA, 1987, p. 131). Por isso, para os jovens amantes, é a causa do

sofrimento de agora, das separações que já se anunciam, e será o motivo da tragédia

iminente. A única solução é recusá-lo, abdicá-lo, retirá-lo, extirpá-lo: “Romeu, despoja-

te de teu nome; e pelo teu nome, que não faz parte de ti, toma-me toda inteira”28. Nome

que não é parte, mas é. Tomar por inteiro implica tomá-la também pelo nome. Mas Julieta

também se dispõe a renunciá-lo: “jura-me somente que me amas e não mais serei uma

Capuleto”29.

Súplica plausível e ao mesmo tempo inviável a de que Romeu seja outro nome: se

o nome não é a identidade, como já colocado, bastaria despojar-se dele (que agora já é

um dado incompatível com a identidade que os amantes reivindicam para si) para que a

identidade desejada seja assumida. Todavia, não é possível separar o objeto de sua

representação. O nome de Romeu – e em especial seu sobrenome – o representa; não se

pode dissociá-lo de um suposto “Romeu essência”. Seu nome já o representava antes

mesmo de ele nascer; mais tarde, ele próprio assimilou a representação.

[...] se estabelecermos uma distinção entre o objeto de nossa representação e

a sua representação, veremos que ambos se apresentam como fenômenos

sociais, consequentemente como objetos sem características de permanência,

não sendo independentes um do outro. Não podemos isolar de um lado todo

um conjunto de elementos – biológicos, psicológicos, sociais, etc. – que podem

caracterizar um indivíduo, identificando-o, e de outro lado a representação

desse indivíduo como uma duplicação mental ou simbólica, que expressaria a

sua identidade. Isso porque há como que uma interpenetração desses dois

aspectos, de tal forma que a individualidade dada já pressupõe um processo

anterior de representação que faz parte da constituição do indivíduo

representado. Por exemplo, antes de nascer, o nascituro já é representado como

filho de alguém e essa representação prévia o constitui efetivamente,

objetivamente, como “filho”, membro de uma determinada família;

posteriormente, essa representação é assimilada pelo indivíduo de tal forma

que seu processo interno de representação é incorporado na sua objetividade

social como filho daquela família. (CIAMPA, 1989, p. 65, grifo do autor)

27 Idem. 28 Idem. 29 Idem.

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Mas a súplica de Julieta encontra eco no desejo de Romeu: “Chama-me somente

Amor e serei de novo batizado”30. É como se o personagem de Shakespeare dialogasse

com o que Ciampa afirma: viver é metamorfosear-se; é negar aquilo que nos nega – se o

amor o faz sentir como um não Montecchio, então o Montecchio o nega. Portanto, para

metamorfosear-se, é preciso negar este sobrenome. Assim, Romeu quer romper com a

representação. Quer deixar de repor a identidade que lhe é pressuposta.

De fato, como o próprio Ciampa (1989, p. 66) esclarece, a representação prévia

não basta: uma vez nascido, o indivíduo se constitui filho “[...] na medida em que as

relações nas quais esteja envolvido concretamente confirmem essa representação através

de comportamentos que reforcem sua conduta como filho”. O mesmo ocorre com tantos

outros papéis que vamos assumindo no decorrer da vida. Há uma pressuposição de

identificação, que se concretiza na medida em que os comportamentos pressupostos são

repostos.

Neste ponto, reside uma ideia fundamental ao entendimento do conceito de

identidade: se a identidade pressuposta é continuamente reposta, passamos a enxergá-la

como um dado, e não como um processo contínuo de “dar-se”. Ao compreender a

identidade como simples dados que caracterizam o sujeito, deixamos de considerar o

caráter histórico da produção da identidade, pressupondo o indivíduo como um ser

sempre idêntico a si mesmo.

[...] uma vez que a identidade pressuposta é reposta, ela é vista como dada —

e não como se dando num continuo processo de identificação. É como se uma

vez identificada a pessoa, a produção de sua identidade se esgotasse com o

produto [...] Daí a expectativa generalizada de que alguém deve agir de acordo

com o que é (e consequentemente ser tratado como tal). De certa forma, re-

atualizamos através de rituais sociais uma identidade pressuposta que assim é

reposta como algo já dado, retirando em consequência o seu caráter de

historicidade, aproximando-a mais da noção de um mito que prescreve as

condutas corretas, reproduzindo o social. (CIAMPA, 1987, p. 66, grifos do

autor)

A conduta “correta”, socialmente esperada, para um Capuleto, seria afastar-se dos

Montecchio, e vice-versa. Para a sociedade, Julieta sempre foi uma Capuleto, Romeu

sempre foi um Montecchio; presume-se que continuem a sê-lo. Porém, para os

protagonistas, essas representações já não os representam. Não há unidade entre o

subjetivo e o concreto. Na perspectiva de Dubar (2005), que será retomada no capítulo

posterior, poderíamos afirmar que a “identidade para si” já não corresponde à “identidade

30 Idem.

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147

para o outro”. Ao entender a identidade como simples dados que caracterizam o sujeito,

deixamos de considerar o caráter histórico da produção da identidade, pressupondo o

indivíduo como um ser sempre idêntico a si mesmo.

Mas Julieta quer seu Romeu-ação, não estático, não seu nome; quer a ação de

abdicar ao próprio nome para poder assumir a identidade de amante. E aqui chegamos a

um ponto crucial ao conceito de identidade, na concepção de Ciampa (1987, p. 135): a

atividade – “o indivíduo não mais é algo: é o que ele faz”. Ainda assim, esse “[...] fazer é

sempre uma atividade no mundo, em relação com outros” (p. 142). Daí a dificuldade de

Romeu e Julieta em concretizarem a metamorfose desejada, em busca da identidade

visada.

Os jovens protagonistas, na obra shakespeariana, sabem da inviabilidade de seu

amor nas condições objetivas que lhes estão dadas: para vivê-lo, seria preciso transformar

também a identidade dos outros em seu entorno – os familiares. Tentam, então, fugir

dessa realidade, criando para si outro mundo: em seus planos, casar às escondidas, e viver

longe de todos seria a viabilidade de concretizar a metamorfose desejada – de

supostamente inimigos para amantes.

Assim, Romeu e Julieta, intersubjetivamente transformados pela paixão, almejam

romper com a contradição entre o que desejam e a concretude de sua condição. Procuram

– malogradamente, dado o desfecho trágico que os aguarda – o que Ciampa (1987, p. 146)

define como “ser-para-si”: “a unidade da subjetividade e da objetividade, que faz do agir

uma atividade finalizada, relacionando desejo e finalidade, pela prática transformadora

de si e do mundo”. Esse é o movimento da metamorfose em busca de emancipação. Em

seção subsequente, veremos que o indivíduo emancipado é aquele com autonomia de

pensamento e ação. Trata-se, portanto, de uma concepção que dialoga com o

entendimento de Ciampa (1987, p. 143, grifo nosso), para quem a identidade pode ser

entendida como a “mesmidade de pensar e ser”.

Logo, o indivíduo que consegue, em seu processo identitário, agir e pensar de

forma autônoma, superar oposições entre subjetividade e condições objetivas, vivencia o

processo identidade-metamorfose-emancipação. Quando o indivíduo não rompe com a

contradição entre pensamento e ação, repõe continuamente uma identidade que lhe é

pressuposta, porém com a qual ele não mais se identifica subjetivamente. Nesse processo,

fica preso ao que Ciampa chama de “identidade-mito”: ao invés da mesmidade (unidade

de pensamento e ação), vive “[...] o mundo da mesmice (da não mesmidade) e da má-

infinidade (a não superação das contradições)” (CIAMPA, 1987, p. 146, grifos do autor).

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148

Quando vivenciamos uma metamorfose, negamos o que, em nós, nos nega. Um

movimento de morte em busca de vida – daí a escolha de Ciampa pelo poema de João

Cabral como ponto de partida para a exposição de sua tese. O real movimento da

identidade, para o psicólogo, se traduz na expressão “morte-e-vida”. Romeu e Julieta

levam a cabo esse entendimento – em face da morte do amante, já não há qualquer

condição de concretização do amor; não há mais possibilidade de vida. A metamorfose

não se concretizou da forma como gostariam. Contudo, se para ficar juntos era preciso

mudar o mundo ao redor, suas trágicas mortes foram capazes de fazê-lo: já não há mais

espaço para inimizades entre Capuletos e Montecchios.

Com vistas a não nos desviarmos demasiadamente dos objetivos desta pesquisa,

encerramos por aqui nossa alusão a Romeu e Julieta, mesmo certos de que muitas outras

analogias com o conceito de identidade poderiam ser estabelecidas a partir do enredo e

das falas da peça. Ficam como ideias para pesquisas posteriores. As relações que os

jovens apaixonados nos auxiliaram a estabelecer até aqui servem de base para

compreendermos os fundamentos do sintagma identidade-metamorfose-emancipação. Há

mais pontos cruciais ao conceito, porém, que merecem especial atenção. Dentre eles,

destacamos a ideia de identidade como personagem. Ideia esta que, por sua estreita

ligação ao escopo da pesquisa, será retomada quando adentrarmos um de nossos eixos

temáticos: o outro-personagem. Antes, contudo, convém um aprofundamento na

categoria emancipação.

5.2 - TEATRO E EMANCIPAÇÃO

Para abordarmos o conceito de emancipação, retomamos aqui outro pressuposto

fundamental à pesquisa: o teatro é uma atividade potencialmente emancipadora. Mas que

emancipação é essa de que falamos? Os sujeitos desta pesquisa – e, mais importante,

sujeitos da experiência e, portanto, por ela transformados – nos auxiliam a entender o

conceito de forma direta, clara e sensível: “quando a gente faz teatro [...] a gente expande

os nossos possíveis”. Esse enunciado, de um participante da roda de conversa com ex-

alunos, de certa forma resume aquilo que compreendemos como emancipação: expandir

os possíveis; tomar consciência de que existem possibilidades outras, além das velhas

conhecidas; outras possibilidades de pensamento e ação; outras possibilidades de ser.

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Quando falamos em emancipação, falamos em ampliação de perspectivas, que facultam

aos indivíduos agir no mundo com autonomia e protagonismo.

Como bem coloca Gohn (2010, p. 41), o cidadão emancipado é aquele que dispõe

de “[...] autonomia do pensar e do fazer”. Com base nesse entendimento, em pesquisa de

Mestrado (HANSTED, 2013), afirmamos que o teatro, na educação, tem o potencial de

desenvolver os sujeitos como cidadãos emancipados, com autonomia de pensamento e

ação. Compreendemos, portanto, que a emancipação está ligada à capacidade do

indivíduo de lançar diferentes olhares sobre a realidade e construir novas realidades. É

exatamente este exercício que o teatro proporciona: alargar as possibilidades de reflexão

e ação – a tal expansão dos possíveis, de que falava nosso sujeito. Ou, utilizando termo

de Dubar (2005, p. 141), retomado no capítulo subsequente, a abertura do “campo do

possível”.

Essa expansão de horizontes, viabilizando novas perspectivas identitárias, pode

também ser notada em outros enunciados de participantes da pesquisa: na reflexão da

aluna Clara, sobre a possibilidade de desenvolver diferentes olhares a respeito de

realidades distantes das suas; na narrativa da ex-aluna Sara, que utilizou a imagem de

novas camadas sendo acrescentadas aos sujeitos, no exercício de viver vários

personagens; nas palavras da aluna Valéria, ao afirmar que interpretar papéis diferentes

“[...] abre um leque do que você pode ser na sua vida”; na visão do ex-aluno Álvaro, ao

dizer que “vivenciando [...] outras personalidades, você alarga a sua. [...] Você se torna

cada vez maior”. Cabe, ainda, destacar uma fala da aluna Catarina em que a autonomia

de pensamento e de ação, fundamentos da emancipação, se revelam de forma explícita:

“O teatro fez eu expandir muito os meus horizontes de como pensar, de como agir com

as pessoas”.

Autores como Desgranges (2011), Japiassu (2009), Pupo (2011), Souza (2005) e

Viganó (2006) corroboram a compreensão de que o teatro, em processos educacionais,

tem a potencialidade de favorecer processos de emancipação. Para eles, a formação da

consciência crítica dos alunos está entre as principais contribuições que o teatro pode

fornecer à formação dos alunos, em especial na sociedade contemporânea, marcada por

uma “espetacularização”31 que tende a condicionar a percepção e a sensibilidade dos

31 Em Sociedade do Espetáculo, Guy Debord faz uso do termo “espetacular” para descrever a maneira como

se organiza a sociedade contemporânea. Em seu entendimento, vivemos em uma época em que a evolução

do sistema econômico capitalista, cujo alicerce é a produção da mercadoria vinculada à tecnologia,

transforma todo e qualquer movimento da vida em representação, em espetáculo (SOUZA, 2005).

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indivíduos à massificação imposta pelos meios de comunicação. Sousa (2005) destaca

que a arte, por ser espaço de encontro entre o individual e o coletivo, o subjetivo e

compartilhado, facilita o reconhecimento de similaridades e diferenças entre os

indivíduos e o estabelecimento de diferentes relações com o espaço e o tempo. Assim,

oportuniza-se a compreensão do caráter efêmero e, por conseguinte, transformável da

realidade – o que equivale a dizer que a arte viabiliza que se lancem novos olhares sobre

o mundo e que se construam diferentes mundos em uma mesma obra de arte. Os autores

supracitados – Desgranges (2011), Japiassu (2009), Pupo (2011), Souza (2005) e Viganó

(2006) – convergem no sentido de entender que essa capacidade de dirigir diferentes

olhares para a realidade e construir novas realidades é condição central para o processo

de emancipação, “uma vez que permite que se subverta a barbárie instaurada na sociedade

contemporânea, em que a estetização de tudo o que nos cerca tende a aniquilar nossa

capacidade crítica” (HANSTED, 2013, p. 58).

A respeito da construção de outros mundos, Marcuse (1977, p. 21, grifos do autor)

indica que “a verdade da arte reside no seu poder de cindir o monopólio da realidade

estabelecida [...] para definir o que é real”. O mundo fictício, em seu entendimento, pode

ser compreendido não como aparência de realidade, ilusão ou fantasia, mas como

verdadeira realidade, ainda mais real que a realidade cotidiana. Isso porque, ao

transcender a realidade dada, pode apresentar o mundo de modo mais verdadeiro, em sua

essência. Uma maneira comprometida com a emancipação humana. Para o autor, o mundo

da arte tem a função de comunicar verdades, e só o faz porque nos aliena da existência

alienada. Como explicam Chaves e Ribeiro (2014, p. 16), ao abordar a teoria de Marcuse,

“a arte aliena os indivíduos de sua existência funcional e suscita outra sensibilidade,

imaginação e razão, o que pressupõe um grau de autonomia da realidade dada”.

A experiência com teatro, em suas especificidades de linguagem artística – que

serão exploradas no decorrer deste e do próximo capítulo – demanda tanto daqueles que

se colocam como atores quanto dos espectadores um exercício da autonomia: “[...]

autonomia para elaborar fatos da cena e da vida. Autonomia crítica e reflexiva.

Autonomia interpretativa” (DESGRANGES, 2011, p. 154). Autonomia, esta, que

evidentemente é crucial à formação para a cidadania e que, portanto, deveria ser

preocupação central de todo processo educativo. Gohn (2010) entende autonomia como

instrumento de formação do cidadão, ou seja, a autonomia o torna capaz de ser e agir, ler

a realidade para além do senso comum, compreender criticamente a sociedade

globalizada. Trata-se, portanto, de um valor primordial à construção de “[...] uma

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sociedade onde haja mudanças e emancipação sociopolítica e cultural dos indivíduos e

não a formação de redes de clientes usuários, não emancipatórias” (GOHN, 2010, p. 41).

O teatro, de acordo com Viganó (2006), pode contribuir de modo fecundo para

essa formação da autonomia. Ao ponderar sobre a contribuição da atividade teatral para

a formação de crianças e adolescentes, a autora dialoga tanto com as preocupações

expressas por Gohn quanto com o entendimento de que o teatro expande nossos possíveis:

Acredito que a prática teatral é capaz de contribuir para a manutenção de uma

experiência humana repleta de significados, ao fazer com que os indivíduos se

envolvam em ações não mediadas pelo valor de troca e de uso, nem pela lógica

da eficácia. Ao mesmo tempo, quando o teatro não se prende a valores

predeterminados nem a padrões de sucesso ou talento, possibilita o exercício

da liberdade, ao criar um espaço concreto para a expressão de ideias e atitudes

que podem determinar a escolha de novos caminhos possíveis. (VIGANÓ,

2006, p. 136, grifo nosso)

Em nossa pesquisa, conhecer a trajetória de vida de sujeitos que fizeram teatro

quando adolescentes nos permitiu justamente desvelar os novos caminhos possíveis que

a experiência artística lhes propiciou. Novos caminhos em aspectos diversos: escolhas

profissionais (não necessariamente ligadas à área artística), modos de se relacionar com

os outros, capacidade comunicativa, autoconhecimento, leitura de mundo. Esses e tantos

outros aspectos levantados por nossos entrevistados revelam que a ampliação de

possibilidades propiciada pela experiência de fato se traduziu em caminhos diferentes

daqueles que provavelmente seriam traçados, caso não tivessem tido contato com o teatro.

Para além dos exemplos de trajetórias pessoais revelados nos capítulos anteriores,

podemos citar uma narrativa exposta por Pronsato (2014), na qual uma entrevistada, hoje

adulta, reflete sobre a experiência de participar, quando adolescente, de um projeto social

de dança e capoeira (que também incluiu alas de teatro) destinado a crianças e jovens de

baixa renda. Em sua fala, vemos claramente que a vivência artística a ajudou a ampliar

perspectivas, a construir novos mundos, a escolher novos caminhos possíveis:

O que posso dizer do projeto é que serviu como uma formação: formação de

caráter, de personalidade, me estruturou como pessoa, como eu vejo hoje as

pessoas. Foi a base para tudo, para formar quem eu sou hoje. Porque o lugar

[em] que eu vivia era um lugar sem esperança, todo mundo pobre, todo mundo

bebe, todo mundo engravida com 12 anos, todo mundo usa droga, todo mundo

bebe, então, ninguém estuda...é normal. Então, se eu seguisse esse mesmo

caminho eu ia estar fazendo jus ao meu destino e aí o projeto mudou tudo isso...

[...] No começo era só capoeira e dança. Depois teve teatro, depois teve

percussão, artesanato...foi enriquecendo e a gente conheceu outro mundo. Era

outro mundo! (PRONSATO, 2014, p. 221)

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Esse alargamento do repertório sobre maneiras de ser e agir no mundo

correspondem a uma formação para a cidadania que, acreditamos, é fundamental ao

desenvolvimento de processos identitários de cunho emancipatório. Afinal, como coloca

Ciampa (1987, p. 127), não se pode compreender a identidade do ponto de vista

meramente acadêmico: “[...] é sobretudo uma questão social, uma questão política”. Para

o autor, que enfatiza o caráter sócio-histórico da formação do indivíduo, a emancipação

sempre ocorre na direção de uma identidade humana: à razão, interessa a autoconservação

da espécie; quando prevalece a desrazão, a razão interesseira, a irracionalidade do mundo

capitalista, essa autopreservação está ameaçada. Caminha-se, assim, na direção da

desumanização do homem: “em vez de proprietário das coisas, estas é que o têm como

propriedade; [...] em vez de trabalhar [...] com seus instrumentos, estes é que trabalham

com o homem como ferramenta, instrumentalizando-o” (CIAMPA, 1987, p. 227). O que

se observa é uma realidade paradoxal: o mundo que desumaniza é o mundo humano, já

que produzido pelo homem; homem que se faz homem justamente porque produz um

mundo humano, e que, ao mesmo tempo, se torna não homem, ao se tornar produto do

mundo desumanizador. Trata-se de uma contradição que precisa ser superada, rompendo

com a já mencionada má-infinidade, ou seja, com a constante reposição daquilo que nos

nega. Somente dessa forma pode prevalecer o interesse da razão, “[...] restabelecendo a

verdadeira infinitude humana” (CIAMPA, 1987, p. 228).

Uma metamorfose que constitui emancipação, dentro dessa perspectiva

identitária, é aquela que permite ao sujeito ser-para-si; é aquela que o liberta da má-

infinidade de uma reposição identitária que já não condiz mais com aquilo que ele é – ou

agora é. Neste ponto, vale recordar uma passagem da narrativa da ex-aluna Ana, ao contar

sobre uma de suas primeiras aulas na faculdade de Economia: “[...] minha professora

falou [...] que a maioria dos economistas eram liberais e eu falei assim: ‘Eu não vou ser!

Eu vou pensar nas pessoas. Eu vou ser diferente’”. Essa entrevistada – assim como outros

sujeitos da pesquisa – atribui à experiência teatral a consciência sobre a coletividade e o

altruísmo. Para o ex-aluno Rodrigo, esta é exatamente a função social do teatro: cuidar

da sociedade. Por isso, em sua ótica, quem faz teatro tem a “[...] responsabilidade social

de [...] falar: “Olha, meu amigo, tem um outro jeito de fazer relação e de construir

coletivo, que não é esse que está dado, que não é esse que está colocado pela sociedade”.

Evidentemente, não se trata de defender, de modo simplista e ingênuo, que o teatro

(ou quem o faz) possa combater, no aspecto individual ou coletivo, todas as mazelas do

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mundo desumanizador a que Ciampa (1987) se refere. Uma análise dialética nos leva a

considerar que a arte, como produto da sociedade capitalista, está também sujeita a

processos de instrumentalização, em que a cultura se converte em mercadoria. Então, ao

invés de emancipação, dá-se a padronização, a estandartização. Para utilizar os temos de

Adorno (1986), ao invés de um processo de individuação, ocorre uma pseudo-

individuação, ou seja, “o envolvimento da produção cultural de massa com a auréola da

livre-escolha ou do mercado aberto, na base da própria estandardização” (p. 123).

Marcuse (1977, p. 31), por outro lado, ao analisar a dimensão estética, considera

que, apesar de as estruturas socioeconômicas exercerem influência sobre os processos de

produção e circulação de obras de arte, não são capazes de determinar por completo sua

forma e conteúdo: “A arte tem sua própria linguagem e ilumina a realidade através desta

outra linguagem. Além disso, a arte tem sua própria dimensão de afirmação e negação,

uma dimensão que não se pode ordenar relativamente ao processo social de produção”.

Para o autor, a arte é autônoma das relações sociais, já que as transcende. Uma

transcendência capaz de romper com a consciência dominante e de revolucionar a

experiência. Aí reside seu potencial emancipador.

Dentre os motivos que nos levam a afirmar que o teatro pode contribuir com

processos de emancipação está, portanto, o fato de ser uma linguagem artística. O fazer

artístico possibilita ao indivíduo a reflexão e o questionamento de si próprio, da realidade

e das relações, sob a ótica da imaginação e da sensibilidade. Permite, ainda, reorganizar

essas reflexões e questionamentos para expressá-los a partir de uma linguagem específica.

Linguagem, esta, que une o concreto e o simbólico, e que, ao fazê-lo, extrapola as formas

cotidianas de comunicação. Assim, “ao olhar e reinterpretar o mundo, as interações, a

sociedade e as pessoas com os olhos da sensibilidade, o indivíduo alarga seu

entendimento sobre si próprio, a vida, as relações sociais e o universo circundante”

(HANSTED, 2013). De modo que a experiência artística permite que se transfira para o

cotidiano o mesmo olhar sensível, reflexivo e crítico vivenciado no fazer e no apreciar

artístico. Se essa experiência é vivenciada em ambiente educacional, em idade crucial à

formação identitária, pode ter consequências duradouras na vida dos alunos.

As particularidades do teatro como linguagem artística específica também

carregam, em si, a potencialidade de contribuir para processos emancipatórios. Isso

porque o teatro (em especial quando se trata de processos colaborativos, como é caso do

trabalho teatral desenvolvido no IEI) privilegia um contato com o outro e consigo mesmo

que permite ao sujeito ampliar suas perspectivas. O contato com o outro, como visto nas

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rodas de conversa, tende a ser pautado pelo compartilhamento de ideias, pela construção

conjunta e pela convivência com divergências. Já o contato consigo mesmo, como

também se pode depreender das falas dos sujeitos desta pesquisa, viabiliza a exploração

sensível e criativa dos próprios sentimentos e recursos expressivos. Nesses processos,

alargam-se as capacidades de ouvir, conviver com o diferente, dialogar, se expressar.

A ampliação significativa da capacidade de comunicação, ponto bastante

recorrente nas falas dos entrevistados, é condição primordial à emancipação. Um sujeito

capaz de se posicionar, seguro para expressar suas ideias, com autonomia e voz própria,

é, certamente, um sujeito emancipado. A relação entre o processo emancipatório e o

desenvolvimento no campo da comunicação tem centralidade no entendimento de

Habermas (2003), como apontado no capítulo 1. Gradiski (2012, p. 13) assinala que

Jürgen Habermas, em sua teoria da ação comunicativa, entende que “[...] o sujeito que

detém competência linguística, torna-se capaz de agir na vida da comunidade de maneira

livre, numa atividade discursiva contínua, mediante a qual ele é também um co-produtor

de seu mundo”.

Além disso, naquela que talvez seja a principal especificidade do teatro – o

encontro com o outro-personagem, sobre o qual falaremos na sequência –, o sujeito tem

a oportunidade não apenas de conhecer, mas de viver, em si próprio, outros pontos de

vista. Assim, “ao olhar o mundo – e ‘agir’ sobre ele – sob óticas tão diversas, amplia-se

o próprio ponto de vista e alarga-se o repertório de atuação na vida real” (HANSTED,

2013, p. 245).

Alves (1997), em pesquisa sobre identidade e adolescência, aponta a escola como

importante mediadora de políticas que podem viabilizar tanto a emancipação quanto a

colonização – esta última, historicamente, preponderante no projeto de educação tecido

em território nacional. A autora compreende que o adolescente, no decorrer do processo

de socialização, “vai sendo colonizado ao internalizar os conteúdos culturais, sendo

impedido de construir uma identidade firmada no dinamismo de personagens que se

sucedem marcados pela possibilidade da autonomia” (ALVES; COBRA, 2013, p. 136).

Nesse processo, revelador de como a ordem sistêmica vai, progressivamente,

promovendo a colonização do mundo da vida, o jovem tende a viver uma contradição:

frente à oportunidade de se tornar “autor” de si mesmo, de conferir outros significados à

identidade que lhe é atribuída, acaba, muitas vezes, sendo mero “ator” (aqui, no sentido

pejorativo do termo), ao “reproduzir o determinado, o ditado socialmente por papéis

cristalizados e previamente definidos” (ALVES, 2017b, p. 3).

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155

Em narrativas expostas na presente pesquisa, observamos que o teatro, exatamente

por oferecer a oportunidade da vivência de diferentes papéis, muitas vezes favorece o

rompimento com a submissão a homogeneizações. Nesse processo, como será mais bem

desenvolvido na seção subsequente, o adolescente “encontra-se”. Pode ser “ele mesmo”.

Por tudo isso, quando oferecida na escola, a atividade teatral tem a possibilidade de atuar

como política de identidade favorecedora da emancipação.

5.3 - O OUTRO-PERSONAGEM: QUANDO A METAMORFOSE DA CENA ENGENDRA A

METAMORFOSE DA VIDA

Nesta seção, adentramos aquela que é especificidade basilar do fazer teatral: a

representação dramática ou, como aqui a denominamos, o contato com o outro-

personagem. Esse contato, no teatro, é singular. Diferentemente da literatura, por

exemplo, em que também nos envolvemos com o personagem e podemos nos imaginar

em seu lugar, o teatro demanda que nos coloquemos fisicamente na pele desse outro.

Diverso do cinema ou da televisão, no teatro vivemos o outro-personagem na presença

do outro-espectador, para com ele dialogarmos, em tempo real. Somos todos – atores e

público – intérpretes da obra, vivenciando juntos uma experiência criativa. Sobre o

contato com outro-espectador e as decorrências dessa relação para a formação da

identidade, falaremos com mais detalhes no capítulo seguinte. Aqui, interessa-nos

compreender como a metamorfose dos palcos – aquela em que somos convidados a nos

assumir como o outro-personagem – pode atuar como catalizadora de verdadeiras

metamorfoses, na vida dos sujeitos. Em outras palavras, queremos entender como a

vivência do outro-personagem, na cena, pode engendrar um outro-eu, fora dela.

Chamamos, nesta tese, de outro-eu, aquele outro que descubro que posso ser, a partir do

exercício teatral: um outro que melhor me representa, sujeito emancipado, de perspectivas

ampliadas, com potencial para alcançar a unidade de pensamento e ação.

Nas rodas de conversa anteriormente apresentadas, vimos que a vivência de

diferentes personagens foi destacada, por diversos sujeitos, como um dos grandes

propulsores de transformações identitárias. Transformações, essas, cujos contornos são

diferentes para cada entrevistado: um descobre que precisa parar de “representar” na vida

real, outro leva para a vida o que constrói para o personagem, outro tem sua experiência

como leitor transformada, outro percebe que pode ser o que nunca imaginou, outro “se

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cura” pelo personagem, outro se torna mais empático... De qualquer modo, por mais

diversas que possam ser as decorrências do encontro com o outro-personagem, subjaz a

todos os comentários o sentido emancipatório das transformações apontadas – um sentido

que decorre do exercício de olhar o mundo a partir de outros olhos.

E para que esse olhar seja efetivo, no sentido de convencer o outro-espectador de

que “somos” este outro-personagem, o que buscamos? Verdade. Autenticidade.

Organicidade. Um rei em Shakespeare, um Arlequim na Commedia del’arte, uma

personagem realista em Tchekov. Seja qual for a linguagem cênica, se não acreditamos

na verdade do outro-personagem, ele será apenas o outro, fora de nós. Até mesmo para

criarmos o efeito de distanciamento crítico no teatro épico32 de Brecht, o processo de

estudo da personagem passa por uma fase prévia de identificação. Como coloca

Lazzaratto (2008, p. 107), “o gesto artístico do ator se concretiza plenamente quando na

maior artificialidade encontramos a maior organicidade”.

Assim, a metamorfose que almejamos vivenciar nos palcos só será, de fato,

metamorfose, se for autêntica, orgânica. Só desse modo somos capazes de convencer o

público – e a nós mesmos – de que somos outro. E para chegarmos a esse convencimento,

é preciso ver o outro em nós. Ou trazê-lo para dentro de nós. De modo que, ao buscarmos

a identidade, deparamo-nos com a alteridade. Lazzaratto (2008), como já mencionado na

Introdução, defende que o ator, no exercício pleno de seu ofício, não interpreta

personagens, mas manifesta heterônimos. Quando atinge esse estágio de criação, dá-se a

metamorfose poético-orgânica – um nível de encontro com o outro-personagem em que

“as instâncias operacionais da criatividade, as associações, o pensamento estruturador e

ordenador, a tensão psíquica [...] são ativados em máxima potência” (LAZZARATTO,

2008, p. 223). Nesse estado criativo, em que o ator é, a um só tempo, o eu e o outro,

ocorre uma ampliação de si próprio:

O Eu se dilata, deixa pra trás suas características pessoais, mesquinhas que o

apequenam. Ele se potencializa, encontra e dialoga com outros eus e com

outras coisas e ao mesmo tempo sente que faz parte daquilo. Sente que tudo

aquilo também é seu. Reconhece-se no exercício da alteridade.

(LAZZARATTO, 2008, p. 71, grifos nossos)

32 “Teatro épico” foi o nome dado “[...] a uma prática e a um estilo de representação que ultrapassam a

dramaturgia clássica, ‘aristotélica’, baseada na tensão dramática, no conflito, na progressão regular da ação”

(PAVIS,1999, p. 130, grifo do autor). É, portanto, um teatro que, ao contrário do teatro dramático, não

busca o envolvimento catártico do público e, sim, a sua reflexão sobre a encenação apresentada. Desgranges

(2011, p. 46) explica que, enquanto o teatro dramático aborda questões relacionadas à vida privada (como

família e relações amorosas), “o teatro épico trata da vida pública, levando para o palco questões da esfera

e do interesse da coletividade (a política, os negócios, a guerra)”.

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Aqui, já podemos entrever uma importante relação entre a metamorfose do palco

e as transformações identitárias de cunho emancipatório: ao viver o encontro com o outro-

personagem, assumindo essa verdade do outro, que passa também ser a sua, o indivíduo

se percebe ampliado. Nesse processo, expandem-se suas perspectivas, seus olhares, suas

possibilidades de ser. Essa percepção alargada de si próprio decorre do que Lazzaratto

(2008, p. 187) chama de “duplo contágio” entre o ator e o personagem: “Há uma troca de

materiais poéticos entre essas duas energias. Nesse lugar de encontro há uma troca de

substâncias essenciais. Substância que se interpenetra na outra gerando uma dilatação de

ambas”. O perceber-se dilatado, em cena, pode então ampliar também a percepção sobre

si próprio, fora dela. Se na cena o indivíduo pode ser “maior”, fora dela também é possível

sê-lo. O “eu dilatado” a que Lazzaratto se refere pode, desse modo, engendrar a

metamorfose no outro-eu, para além do contexto teatral.

Para que não se perca de vista a perspectiva educacional na qual se insere este

estudo, vale, neste ponto, destacar um entendimento sobre educação que se alinha ao

escopo desta pesquisa, uma vez que dialoga com a ideia do engendramento do outro-eu,

acima exposta, e com a perspectiva de identidade como metamorfose. Defendendo a

educação como transformação, um processo de contínua reinvenção do próprio eu, Rocha

(2016, n.p, grifos do autor) coloca:

[...] a transformação remete a uma mudança de lugar, ao deslocamento dos

pontos de vista: cada nova perspectiva instaura, por sua vez, uma nova

"verdade". O deslocamento ou a mudança de perspectivas não traz apenas

novos conhecimentos ou novas apreensões para um "eu" que permaneceria o

mesmo, mas instaura um novo eu. [...] quem aprende a tocar violino se torna

de fato um outro.

De modo análogo, quem faz teatro também se torna um outro. Ou outros. Cada

novo personagem se configura como uma oportunidade de deslocamentos ou mudanças

de perspectivas. Talvez, em processos educacionais, como é o caso daqueles aqui

expostos, não se chegue, com parte considerável dos alunos, àquele nível de organicidade

a que se refere Lazzaratto (2008), em que existe um encontro profundo entre o eu do ator

e o eu do personagem, a ponto de abrir espaço à manifestação de heterônimos. Contudo,

ao menos na escola onde estudaram os entrevistados das rodas de alunos e ex-alunos,

existe sempre a busca por um encontro autêntico. Nos processos empreendidos junto com

os estudantes para a criação de personagens, e durante todo tempo de ensaios para os

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espetáculos, a perspectiva de que é preciso convencer o público – e que este

convencimento passa necessariamente por uma busca interna e externa e pelo

autoconvencimento – é mantida. A própria dinâmica das aulas, mesmo quando não

vinculadas a processos de montagens teatrais, baseia-se, em grande parte, em jogos

improvisacionais, dentre os quais jogos teatrais de Viola Spolin33, e “joguexercícios”

propostos por Augusto Boal34. Em situação de jogo, o aluno é estimulado a agir com

espontaneidade e, portanto, a estar em cena de forma convincente, não caricata.35

Em um dos depoimentos apresentados no capítulo 4, uma ex-aluna menciona “a

internalização quase espiritual de determinado personagem” experimentada no viver

teatral. A expressão “internalização espiritual” não é utilizada em aulas nem em processos

de montagem de espetáculos – trata-se de uma construção da própria ex-aluna a partir de

sua experiência pessoal com o outro-personagem. Tal construção – e também a maneira

como muitos entrevistados se referiram aos processos de construção de personagem,

afirmando, por exemplo, ter “entrado” no personagem, sentido o que que ele sente, vivido

outras realidades em si mesmo – de certa forma evidencia que existe, nos processos

desenvolvidos no colégio em questão, a perspectiva da autenticidade, do buscar viver,

com verdade, a verdade do outro-personagem.

Vale, neste ponto, retomar uma citação de Hazlitt, presente no capítulo 1: “O

homem é um animal que finge – e nunca é tão autêntico como quando interpreta um

papel”. Como visto, alguns de nossos entrevistados afirmaram reconhecer-se como

pessoas autênticas a partir da experiência com teatro. Houve sujeitos, inclusive, que

relataram se sentir desconfortáveis quando são considerados mentirosos ou “fingidos”

pelo fato de fazerem teatro. Em sua percepção, o que ocorre é um processo inverso – a

experiência teatral os faz se sentir seguros e livres para serem quem são, dizerem o que

pensam, agirem com autenticidade.

33 “Os jogos teatrais foram inicialmente sistematizados como proposta para o ensino de teatro pela norte-

americana Viola Spolin. Durante o jogo teatral, os alunos improvisam de acordo com regras previamente

estabelecidas, buscando a solução de desafios de atuação. Concentrados na solução de diferentes problemas

cênicos a cada exercício, os estudantes vão se apropriando, intuitivamente, das técnicas teatrais”

(HANSTED, 2013, p. 153). 34 Boal (2011, p. 87) utiliza a palavra “exercício” para se referir a “todo movimento [...] que ajude aquele

que o faz a melhor conhecer e reconhecer seu corpo”, e a palavra “jogo” para designar as atividades que

“[...] tratam da expressividade dos corpos como emissores e receptores de mensagens”. O exercício,

portanto, é para o autor uma espécie de monólogo, uma introversão, enquanto o jogo é um diálogo, uma

extroversão. Boal (2011) explica que essa divisão é apenas didática e que as atividades por ele apresentadas

são, na verdade, “joguexercícios”, pois, na prática, ambas as práticas se mesclam. 35 A metodologia de trabalho com teatro no IEI, incluindo aulas e processos de montagem de espetáculos,

é detalhadamente descrita em Hansted (2013).

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Tendo em vista tudo o que até aqui foi exposto, podemos entender do seguinte

modo tal percepção dos sujeitos: ao representar, no palco, consciente e deliberadamente

assumo o outro, que está em mim – sou e não sou eu. Assumo o “fingimento”. Ele é a

premissa da representação. Aliás, quando assumimos um personagem, em geral não o

pensamos como uma representação, fingimento. Buscamos sua verdade, sua

autenticidade – para nós e para o outro-espectador. Queremos, naquelas poucas dezenas

de minutos de uma apresentação, dar a conhecer quem ele é. O exato oposto de quando

fingimos na vida, não nos querendo dar a conhecer. No palco, vivemos, na desobrigação

de sermos nós mesmos (mas ao mesmo tempo sendo), uma experiência de autenticidade.

A perspectiva da autenticidade na cena relaciona-se ao conceito de “fé cênica”,

desenvolvido Constantin Stanislavski, na busca de um método realista de interpretação

(muito embora, no colégio em foco, não se trabalhe unicamente com tal linguagem

cênica). O termo “fé cênica”, cunhado por Stanislavski e bastante utilizado também por

Eugênio Kusnet (1992, p. 11), refere-se ao “estado psicofísico que nos possibilita a

aceitação espontânea de uma situação e de um objetivo alheio como se fossem nossos”.

Em outras palavras: acreditar na situação do outro-personagem e vivê-la, com verdade,

organicamente. Kusnet (1992, p. 33) propõe, inclusive, que o diretor teatral, para facilitar

a aquisição da fé cênica, deve motivar os atores a utilizar a primeira pessoa do singular

ao falar dos objetivos de seu personagem: “Em vez de dizer: ‘O objetivo do personagem

é vingar a sua honra’, diga: ‘Eu quero vingar a minha honra’”.

Essa verdade almejada no encontro com o outro-personagem tem muita relação

com o conceito de identidade que embasa esta pesquisa. Tanto que é da seguinte forma

que Ciampa (que, a propósito, recorre a Stanislavski para melhor apresentar suas ideias)

descreve o que é preciso que aconteça para a concretização do processo de metamorfose:

[...] poderíamos ver aqui um diretor de teatro insistindo com um ator para que

este viva a personagem que está representando. Não basta apenas agir como a

personagem; é necessário pensar, sentir, acreditar como ela: ter a fé e a

convicção que caracterizam a personagem. É preciso ingressar no seu mundo,

conhecê-lo, migrar para esse mundo e nele viver como o mundo! Não é só

outra personagem, também é outra peça teatral; é outra personagem e outra

história. Não basta simular, caricatura. É necessário identificar-se com ela e

com seu drama. (CIAMPA, 1987, p. 107, grifos do autor)

O autor associa o processo de metamorfose identitária ao ofício do ator: o

indivíduo, para concretizar o processo de transformação de sua identidade, é como o ator,

que precisa assumir sua personagem para agir com verdade. Assim, no processo de

metamorfose, o indivíduo “assume sua nova personagem; identifica-se com ela; torna-se

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a personagem. [...] Atinge o ponto que torna qualquer ator um ator convincente e digno

de admiração: espontaneidade” (CIAMPA, 1987, p. 116). Do contrário, é como o ator

que age sem verdade: “Representa uma personagem, mas sem assumi-la, sem com ela se

identificar” (CIAMPA, 1987, p. 106). Tal compreensão vai ao encontro das colocações

de Lazzaratto (2008), para quem o ator, em seu trabalho, não deve operar apenas na

dimensão comparativa do “como se”. Não basta, por exemplo, agir como se fosse Hamlet;

é preciso ser Hamlet. Se o ator agir a partir do “como se”, “seu trabalho no máximo

parecerá, se assemelhará a algo, nunca adquirirá o estatuto de existência, de realidade”

(LAZZARATTO, 2008, p. 2019).

Conforme também se depreende do que foi exposto e já enunciado em seção

anterior, para Ciampa a identidade se apresenta sob a forma de personagem. Somos, em

seu entender, personagens de uma narrativa por nós mesmos criada; de modo que nos

tornamos, ao mesmo tempo, autores e personagens de uma história coletivamente

construída (CIAMPA, 1989). Uma história na qual desempenhamos papéis diversos, a

depender das relações sociais estabelecidas a cada momento.

Embora, em meios teatrais, estejamos habituados a utilizar os termos “papel” e

“personagem” como sinônimos, Ciampa (1987) faz uma distinção entre eles: papel, em

sua teoria, refere-se a uma atividade previamente padronizada. Podemos dizer que existe

o papel de professor, o de aluno, o de mãe, o de filha e assim por diante. Contudo, essas

determinações, por si só, não são suficientes para se conhecer a identidade de alguém.

Existe uma infinidade de professores, alunos, mães, filhos... Ademais, quem é professor

pode também, em situações diversas, ser aluno; o aluno pode assumir função de professor;

a mãe é também filha; a filha pode tornar-se mãe. A mãe pode ser professora; a filha,

aluna. Diante de cada relação social estabelecida, comportamo-nos de acordo com os

papéis que nos cabem. Cada um deles representa uma parte de nossa identidade, mas não

a esgota. Por isso, Ciampa explica que, quando se quer saber quem é alguém, é a

personagem que quer ser conhecida. E, mais uma vez, o autor recorre ao universo

dramatúrgico para exemplificar suas colocações:

[...] no poema do Severino há dois coveiros bem distintos; ora, o papel de

ambos é o mesmo. Há duas ciganas; também o papel é o mesmo. Entretanto,

podemos falar de duas personagens distintas em ambos os casos; isto é questão

de identidade. A identidade, então assume a forma personagem, ainda que esta

seja chamada pelo nome próprio, por um apelido, por um papel, etc.

(CIAMPA, 1987, p. 134, grifo do autor)

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Se digo a alguém que meu papel é o de Rosalinda, esse alguém, a menos que

conheça a peça teatral de que ela faz parte, só conhecerá a personagem se eu lhe contar o

que ela faz, ou, muito melhor, se assistir à apresentação. Podemos ir além: se outra atriz

interpreta, em outra montagem, o mesmo papel, certamente sua Rosalinda será diferente

da minha – cada qual com seu jeito de falar, de se mover, de olhar... de agir. Assim como

para Ciampa a atividade é questão central no entendimento da identidade, os personagens,

no palco, também se dão a conhecer por suas ações: “o que importa mesmo é a ação que

o ator descreve em cena. O conjunto de ações é que faz do trabalho de ator algo potente

e comunicador” (LAZZARATTO, 2008, p. 107). Salgueiro (2011, p. 45, grifos do autor),

ao relacionar ideias do teatro à formulação da ideia de pessoa, chama a atenção para esse

caráter ativo da personagem:

[...] ela é ação, ação vista e reconhecida pelo outro (neste caso, o espectador,

aquele que vê, confirma e reconhece a personagem). A arte dramática refere-

se à ação. A própria palavra drama, [...] originalmente significava ação, ação

culminante [...]: se a personagem só existe na ação e a ação ocorre em um

tempo e um espaço, [...] podemos afirmar que toda personagem é

contextualizada; isto é, para se entender, e consequentemente, criar uma

personagem, é necessário determinar que ação ela realiza e em que

tempo/espaço (contexto) essa ação ocorre.

Tal entendimento em muito se assemelha às ideias de Ciampa (1987), para quem

a ação tem, como visto, centralidade nos processos identitários. O indivíduo é o ele que

faz, e o que ele faz se modifica tanto no transcorrer de sua vida quanto em cada relação

estabelecida. Por isso, a descrição de um sujeito por meio de proposições substantivas

(como “ele é professor”, “ela é advogada”, “ele é lavrador”) reduz a complexidade da

questão identitária, já que traz a noção de uma personagem substancial, de identidade

imediata e imutável. Noção, esta, que oculta a ideia de uma personagem ativa, que se

traduz por proposições verbais.

[...] a identidade é posta sob a forma de personagem. [...] personagens

traduzíveis por proposições substantivas refletem uma concepção de

identidade como traço estático de que o indivíduo é dotado. [...] a visão

cotidiana e pragmática de personagem substancial oculta o fato de que uma

personagem se constitui pela atividade, sendo traduzível por proposições

verbais. (O papel é uma atividade padronizada previamente.). (CIAMPA,

1987, p. 136, grifo do autor)

A descrição da identidade como um dado, produto visto como independente de

seu processo de produção, pode facilmente levar à taxação, à rotulagem, ou melhor, ao

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estigma, desencadeando o que Ciampa (1987) chama de “fetichismo da personagem”,

termo baseado na forma como Marx (1980, p. 80) se refere ao “caráter misterioso que o

produto do trabalho apresenta ao assumir a forma mercadoria”. Assim, o fetichismo da

personagem pode ser compreendido como “algo que exerce poder sobre o indivíduo,

mantendo e reproduzindo sua identidade, mesmo que ele esteja envolvido em outra

atividade” (CIAMPA, 1987, p. 140). O fetichismo da personagem oculta o caráter de

metamorfose da identidade, uma vez que desencadeia o processo já mencionado

anteriormente: dificulta que o indivíduo atinja a condição de “ser para si”, gerando o que

Ciampa denomina de “identidade-mito” – uma identidade presa ao mundo da mesmice e

à má-infinidade.

As narrativas de alguns ex-alunos entrevistados neste estudo, como apontado no

capítulo 2, são representativas desse processo. Para Fábio e Rodrigo, por exemplo, o fato

de constantemente tirarem boas notas na escola originava a expectativa de que a

identidade de “bom aluno” fosse sempre reposta. Fazer teatro profissionalmente não

condizia com o futuro esperado de um bom aluno. Para ambos, a identidade-mito pairava

sobre suas identidades, e a metamorfose desejada invertia-se em não metamorfose, por

meio do mecanismo de pressuposição/reposição. Contudo, tanto para Fábio quanto para

Rodrigo, a experiência teatral vivenciada na adolescência – e vivências posteriores,

teatrais, políticas e mesmo profissionais – havia engendrado profundas transformações

subjetivas. E ambos, já adultos, concretizaram a metamorfose que há anos se anunciava.

Essa concretização do processo de metamorfose identitária exige o rompimento

com a má-infinidade – um processo que, como já colocado, demanda negar aquilo que

nos nega. Como pontua Larrosa (2002b, p. 61), em reflexões sobre Nietzsche e a

Educação: “[...] para se chegar a ser o que se é, há que combater o que já se é”.

A expressão “ser o que se é” faz lembrar que não foram poucos os sujeitos que

afirmaram ter, no teatro, encontrado a si próprios, ou ser o teatro o local onde eles podem

ser “eles mesmos”. A aparente contradição – justamente na arte em que não sou eu, já

que vivo o outro, encontro-me a mim –, a este ponto da reflexão, não causa qualquer

estranheza. Afinal, o encontro com o outro-personagem demanda um encontro profundo

comigo mesmo, em que me (re) descubro, ampliado. O entendimento de Ciampa sobre

essa percepção do “ser quem se é” em muito se relaciona ao potencial do teatro de

favorecer a descoberta de um outro-eu, a partir do encontro com o outro-personagem: “‘o

ser o que é’ implica o seu desenvolvimento concreto; a superação dialética da contradição

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que opõe Um e Outro fazendo devir um outro outro que é o Um que contém ambos”

(CIAMPA, 1989, p. 71).

Voltando ao campo educacional, mais uma vez lembramos a posição de Rocha

(2016, n.p.), que, a partir do pensamento de Nietzsche, defende uma concepção de

educação que entende o “tornar-se quem se é” como “não a capacidade de atualizar uma

essência, mas a capacidade de ser, a cada momento, aquele que nos tornamos”.

Tal entendimento dialoga com as ideias de Lois Holzman, que, ao lado de Fred

Newman, desenvolveu a “terapia social”, um método terapêutico coletivo centrado na

performance, em que, por meio de improvisações, os pacientes são estimulados a agir

para além daquilo que são, desenvolvendo novas formas de ser e estar no mundo:

A atuação é um modo de ir além de “quem nós somos” e criar algo novo...

Particularmente em ambientes educacionais nós somos frequentemente

relacionados muito mais a “quem nós somos” e raramente encorajados e

apoiados a atuarmos para além de nós mesmos ou a fazermos o que não

sabemos. Com isso, deixamos de continuamente criar “quem estamos nos

tornando”. Nós acabamos ficando tão amedrontados de experimentar outros

papéis que desistimos de criar novas formas de atuação para a nossa pessoa.

Então a gente agarra-se a uma identidade como “aquele tipo de pessoa” -

alguém que faz determinadas coisas (e as faz de modo muito particular) ... Aí,

qualquer coisa que fuja disso faz com que a maioria de nós – porque

esquecemos que somos também o que estamos nos tornando – pense logo que

não poderia se tratar de “quem nós somos” ou que aquilo não seria

“verdadeiro”. Criar ambientes para que crianças e adultos possam atuar pode

(re)iniciar o seu crescimento. Participar da criação de um “palco” para a

atuação e atuar nele [...] é como nós podemos ir além de nós mesmos para

criar novas experiências, novas habilidades, novas capacidades intelectuais,

novos relacionamentos, novos interesses, novas emoções, novos desejos,

novos objetivos – o que é, no fundo, a essência do aprendizado e do

desenvolvimento humanos. (HOLZMAN, 2005 apud JAPIASSU, 2005, p. 6-

7, grifos do autor)

Esse processo de “agarrar-se” a determinada identidade, descrito por Holzman,

aproxima-se da noção de fetichismo da personagem abordada por Ciampa, ao mesmo

tempo em que remete a questões identitárias apontadas por muitos dos sujeitos

entrevistados – em especial quando se referiam à escola como um local onde se sentiam

taxados, e ao teatro como ambiente onde descobriam que podiam ser mais que os rótulos

que os definiam. Essa descoberta pode ser entendida justamente como decorrência do

encontro com o outro-personagem, o que possibilita aos estudantes atuar para além

daquilo que são.

A utilização sistemática de recursos teatrais com finalidades terapêuticas, como é

o caso da terapia social – e como também se observa nas práticas de Jacob Levy Moreno

– tem forte ligação com o potencial emancipatório de expansão dos possíveis,

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característico do fazer teatral, e com a perspectiva de metamorfose identitária. Para

Holzman e Newman (2012, p. 187, grifo nosso), teatro e terapia podem ser “[...]

transformadores, porque ambos são oportunidades para as pessoas experimentarem a vida

de novas maneiras, de maneiras diferentes daquelas em que fomos socializados”. Na

psicologia psicodramática de Moreno (2007), existe a finalidade do desenvolvimento da

espontaneidade e da tomada de consciência por meio da ação. Ainda que distinta da

terapia social, a metodologia de Moreno visa que o sujeito aja, sinta, descubra e veja as

coisas por si mesmo, podendo alcançar “[...] a capacidade de desempenhar naturalmente

seus papéis, formar relações que reflitam sua identidade e, assim, vislumbrar novos

horizontes” (CONSERVA, 2014, p. 39, grifos nossos).

Como assinalado em capítulos anteriores, o caráter “terapêutico” do fazer teatral

foi abordado por muitos entrevistados, ainda que os sujeitos não utilizassem essa

nomenclatura. Para diferentes indivíduos, e de diferentes maneiras, o teatro representou

a possibilidade de superação, alívio ou mesmo escape de problemas pessoais das mais

diversas ordens, como depressão, ansiedade e até mesmo luto. Apesar de não existir, na

escola onde estudaram os alunos e ex-alunos da pesquisadora, a intencionalidade de se

trabalhar a partir de uma perspectiva terapêutica (por isso mesmo fizemos questão das

aspas no termo “terapêutico” quando falando sobre os efeitos apontados pelos sujeitos da

pesquisa), compreendemos que o teatro, muitas vezes, acaba, ainda que incidentalmente,

desencadeando esse tipo de consequência. E isso ocorre exatamente porque oportuniza

ao sujeito o encontro com o outro-personagem e, a partir desse encontro, o alargamento

de si próprio e a construção de um outro-eu.

No encontro com o outro-personagem, cada ator não apenas constrói voz e corpo

do personagem de maneiras próprias; as intenções, as motivações, a subjetividade que

cada intérprete confere a seu personagem também são únicas, exatamente porque

dependem de seu próprio material poético, de seu arcabouço interno de experiências e

sensibilidade. É a partir dessa subjetividade que ele interpreta os dados que o material

dramático oferece. Posso ser Hamlet fingindo-me de louco para Ofélia, ao conversar a

sós com ela; posso fingir-me de louco não para ela, mas porque sei que estamos sendo

vigiados; posso assumir que, de fato, estou enlouquecendo. Diferentes pontos de vista

resultam em diferentes ações.

Mas não em qualquer ação. Em especial dentro de uma perspectiva realista de

interpretação, “nenhuma ação física deve ser criada sem que se acredite em sua realidade

e, consequentemente, sem que haja um senso de autenticidade” (STANISLAVISKI,

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1989, p. 2). Ciampa compreende que, para a Psicologia Social, as três principais

categorias de estudo sobre o homem são: atividade, consciência e identidade. De modo

análogo, Lazzaratto (2008, p. 20, grifo nosso) destaca:

O que faz uma ação existir é a força do pensamento de quem faz, no caso do

ator daquele que atua, e da força do pensamento de quem percebe. Pensamento,

percepção e ação [...], o tripé que nos mantém de pé nesse terreno artístico.

Não à toa, Ciampa resgata ideias de Stanislavski para melhor explicar a metáfora

da personagem e explicitar seu conceito de metamorfose. Para o mestre russo, o “estado

criador geral” – concebido como articulação entre o “estado criador exterior” e o “estado

criador interior” – é aquele que deve ser buscado pelos atores. Ora, se o que se quer na

construção da identidade é a mesmidade entre ser e pensar, subjetividade e objetividade,

articular um estado criador exterior (no plano das ações) a um interior (no plano das

ideias) corresponde exatamente a articular pensamento a ação. Sobre o estado criador

geral, Stanislaviski (1983 apud CIAMPA, 1987, p. 192, grifo nosso) coloca: “nessas

horas, um artista criador sente sua própria vida na vida do seu papel e a vida de seu papel

idêntica à sua vida pessoal. O resultado dessa identificação é uma metamorfose

miraculosa”.

Ao apresentar a identidade sob a forma de personagem, Ciampa acentua que as

alusões ao universo teatral se prestam unicamente ao efeito de analogia, e ressalva que

sua intenção não é reduzir a realidade social à do teatro. Tampouco tencionamos, aqui,

distorcer o conceito de identidade do autor, restringindo-o ao contexto dos palcos. Nosso

objeto de estudo, contudo, leva-nos a buscar algo além do paralelo entre o conceito

identitário e a vivência do palco. Ou seja, a partir do entendimento de Ciampa,

procuramos explicações para como a metamorfose vivenciada no palco pode catalisar

processos de metamorfose identitária. Assim, diante de tudo o que foi até aqui exposto,

consideramos o contato com o outro-personagem como um dos principais propulsores de

metamorfoses identitárias. Ao agir como o outro-personagem, o ator – e também o aluno-

ator, no contexto desta pesquisa – sabe que é preciso acreditar nessas ações, que a priori

não são suas. O exercício de viver, em cena, a unidade entre pensamento e ação,

subjetividade e objetividade, facilita ao sujeito encontrar meios de, na vida, viver a

mesmidade de ser e pensar – exatamente o movimento da metamorfose em busca de

emancipação.

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5.3.1 - SER É SER AÇÃO

Toda a discussão a respeito da centralidade da ação (em congruência com o

pensamento), tanto para a construção, com autenticidade, de um personagem, quanto

como condição para o processo de metamorfose de sentido emancipatório, nos leva tecer

algumas considerações a respeito da importância do teatro como experiência – e

experiência essencialmente corporal. O colocar-se no lugar do outro-personagem

demanda um exercício de empatia que vai além do imaginar-se na posição de outrem:

exige que também se aja, fisicamente, como outro. Tal entendimento, em especial quando

se trata de contextos educacionais, pode ter consequências significativas para a

construção e a reconstrução identitária.

“Ao ator, basta ‘ser’”, coloca Lazzaratto (2008, p. 186). De fato. Quando

verdadeiramente entregue à situação da cena, o ator simplesmente é. É aquele outro. E

ser, como temos visto, é agir. Uma reflexão que já aparece em Shakespeare, quando

Hamlet se questiona entre ser – viver, ser aquele outro-eu, o eu que age em conformidade

aos pensamentos – e não ser – a não ação, não metamorfose, e, no caso do célebre

monólogo a que nos referimos, a morte. Curioso é notar que na mesma obra em que a

questão da metamorfose identitária – ou, melhor colocando, a não metamorfose – assume

quase o papel de protagonista, Shakespeare demonstra, já em seu tempo, valorizar a

naturalidade no ofício do ator, a qual exige congruência entre ação e pensamento. Hamlet,

em discurso a atores sobre como devem encenar a peça por ele escrita, aconselha:

Acomoda o gesto à palavra e a palavra ao gesto,

tendo sempre em mira não ultrapassar a modéstia da natureza,

porque o exagero é contrário aos propósitos da representação,

cuja finalidade sempre foi, e continuará sendo,

como que apresentar o espelho à natureza,

mostrar à virtude suas próprias feições,

à ignomínia sua imagem

e ao corpo e idade do tempo a impressão de sua forma.36

Stanislavski, ao conceber seu método de preparação de atores e construção de

personagens, dedica especial atenção à questão das ações físicas. Para o fundador do

Teatro de Arte de Moscou, as ações são catalisadoras das emoções. Nesse sentido, “[...]

36 Hamlet, Ato III, Cena II, William Shakespeare.

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encontrar a verdade física de um papel é melhor, para nutrir sua verdade interior, do que

forçar os sentimentos” (LEWIS, 1995, p. 12, grifo do autor). A relevância das ações, no

trabalho do ator, não se reduz à estética realista ou a um método específico de atuação.

Ela é realçada por uma série de outros autores, como Luís Otávio Burnier (apud

FERRACINI, 1998, p. 86), para quem “a ação física é a poesia do ator”.

Assim como Stanislavski, outros criadores, utilizando-se de termos diferentes

– desenhos do movimento em Meierhold; plástica, em Vakhtângov;

atmosferas em Tchékhov; harmonia global em Craig; frases corporais em

Dalcroze; hierarquização das parte do corpo em Decroux; gestus e os

materiais registrados nos “livros de direção” de Brecht; precisão da linguagem

em Artaud; partitura em Grotóvski, Schechner e Barba; visual e acoustic

scoreem Bob Wilson; forma plasmável em Peter Brook – buscam definir e/ou

modelar fisicamente elementos palpáveis, controláveis e reproduzíveis no

trabalho com o ator. (BONFITTO, 2016, n.p., grifos do autor)

Trabalhos com teatro em contextos escolares, como no caso abordado neste

estudo, não costumam contemplar – nem é seu objetivo – a abordagem específica dessas

metodologias. Não obstante, a menção a elas nos traz a dimensão da importância da

corporeidade no encontro com o outro-personagem. De modo que, ainda que não haja, no

trabalho com não atores (ou alunos-atores), um treinamento aprofundado nesta ou naquela

técnica corporal, não se pode perder de vista que o fazer teatral exige uma atenção especial

à maneira como nosso corpo se comporta. Lazzaratto (2008) recomenda ao ator

compreender as coisas por meio de seu corpo – e este é um entendimento que pode e deve

ser base de qualquer trabalho teatral, mesmo em contextos não profissionais.

O ator, mesmo o ator-pesquisador [e aqui acrescentamos: mesmo o aluno-ator,

estudante da educação básica] deve iniciar sua viagem sob o signo do fazer.

Pois é a prática que corporifica a experiência, que ativa suas memórias, que faz

com que seu corpo transpire seus vícios e renove sua potencialidade.

(LAZZARATTO, 2008, p. 110)

Portanto, iniciar a viagem teatral sob o signo do fazer significa conceber o teatro

como uma experiência, corporalmente vivenciada. Por isso, Lazzaratto (2008, p. 252)

defende que, para haver a manifestação do heterônimo, no corpo do ator, é preciso “[...]

conquistar a experiência. Uma experiência legítima, como nos diz Peter Brook. A

experiência não intermediada por pensamentos previamente estabelecidos. Experiência

como correspondência entre o mundo interior e o mundo exterior”.

Ideia congruente é desenvolvida por Desgranges (2010), que reflete sobre a noção

de arte como experiência, capaz de superar as barreiras do lógico-racional. Em seus

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apontamentos, o autor chama atenção para a etimologia da palavra “experiência”:

proveniente do latim experiri, seu radical periri está também em periculum, ou seja,

perigo. Além disso, a raiz indo-europeia per remete a travessia. De modo que experiência

sugere colocar-se em risco, embrenhar-se no desconhecido, um processo que, como

Desgranges (2010, n.p.) explica, “[...] não tem nada de irracional e muito menos de

confusão, mas que se afasta da razão instrumental e instaura o prazer de um procedimento

que se contrapõe ao modo meramente operacional de ver, sentir e pensar o mundo”. Essa

reflexão em muito se equipara aos comentários de sujeitos que destacaram o prazer

encontrado no fazer teatral e a enorme gama de sentimentos despertados pela vivência

artística. Relaciona-se, também, ao entendimento do teatro como prática ligada ao mundo

da vida, em oposição ao mundo sistêmico, fazendo lembrar as vezes em que esses

conceitos, desenvolvidos por Habermas (2003), despontaram na apresentação dos dados

coletados.

Vale, neste ponto, retomar a concepção de Larrosa (2002a) sobre a experiência, já

mencionada na Introdução: é experiência não aquilo que simplesmente acontece, mas

aquilo que marca, aquilo que fica do que acontece. Nesse sentido,

[...] fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos

alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. [...] “fazer”

significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente,

aceitar, à medida que nos submetemos a algo[...]. Podemos ser assim

transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso

do tempo. (HEIDEGGER, 1987, p. 143 apud LARROSA, 2002a, p. 25)

É interessante associar a construção “fazer uma experiência” (que evidentemente

remete à ação) à expressão “fazer teatro”, tão largamente utilizada por aqueles que são

sujeitos dessa experiência. A ideia de que a arte teatral é, de fato, feita por aqueles que

dela participam encaixa-se com precisão às palavras de Hedeigger. O teatro é essa

experiência que fazemos, que padecemos, porque exige entrega, sacrifícios; é uma

experiência “que nos tomba e nos transforma”. Como visto nos depoimentos colhidos nas

rodas de conversa, algumas transformações ocorrem “de um dia para o outro” e outras,

“no transcurso do tempo” – para alguns entrevistados, a mudança iniciada no teatro só se

efetivou como metamorfose anos mais tarde.

Viver uma experiência teatral é vivê-la corporalmente. É experimentar, em nosso

corpo, outras corporeidades e, por conseguintes, outros modos de ser. É compreender,

fisicamente, a importância de unidade entre pensamento e ação. A atividade

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desempenhada no palco não necessariamente é distinta daquela que realizamos no dia a

dia. Porém, na cena, ela muitas vezes é vivida com maior potência, maior organicidade,

maior verdade. Essa vivência da ação, em cena, muitas vezes acarreta maior consciência

a respeito de como nos comportamos, corporalmente, em outros contextos. Um

aprendizado que não é privilégio de atores profissionais; afinal, a linguagem do teatro é

a da própria vida:

A linguagem teatral é a linguagem humana por excelência, e a mais essencial.

Sobre o palco, atores fazem exatamente aquilo que fazemos na vida cotidiana,

a toda hora e em todo lugar. Os atores falam, andam, exprimem ideias e

revelam paixões, exatamente como nós em nossas vidas no corriqueiro dia-a-

dia. A única diferença entre nós e eles consiste em que atores são conscientes

de estar usando essa linguagem, tornando-se, com isso, mais aptos a utilizá-la.

Os não-atores, ao contrário, ignoram estar fazendo teatro, falando teatro, isto

é, usando a linguagem teatral. (BOAL, 2011, p. IX)

Quando Boal afirma que atores, por estarem cientes da utilização da linguagem

teatral, tornam-se “mais aptos a utilizá-la”, refere-se também a seu uso fora dos palcos.

Ou seja, aprendem a desempenhar tudo aquilo que fazem em cena (falar, andar, exprimir

ideias, revelar paixões), de modo mais consciente e acurado, também em seu cotidiano.

Assim, têm a oportunidade de estabelecer uma nova relação com seus corpos e, com isso,

se expressar melhor, tanto verbal quanto não verbalmente. Por isso, na exposição de seu

método de trabalho com atores e não atores, Boal insiste na importância da

“desmecanização” dos corpos. Para o diretor, de tão habituados a repetir sempre os

mesmos gestos e expressões, acabamos por mecanizar nossos corpos, privando-nos de

experimentar outras alternativas possíveis: “É como se vivêssemos dentro de escafandros

musculares: seja qual for a emoção que sentirmos dentro dessa vestimenta, nossa

aparência exterior será sempre a do escafandro” (BOAL, 2011, p. 60). Um ator (ou não

ator) que conhece seu corpo tem ciência de que inúmeras são as possibilidades de utilizá-

lo. Sabe que não precisa andar, falar, rir, sentar, chorar sempre da mesma maneira.

Permite explorar-se para compreender como seu personagem agiria e reagiria às mais

variadas situações. Amplia, desse modo, seu próprio repertório de maneiras de agir,

movimentar-se, exprimir-se, comunicar-se.

Muitos dos enunciados em que os sujeitos da pesquisa relatam uma ampliação de

possibilidades identitárias a partir do exercício de viver diferentes papéis associam-se

justamente a essa maior conscientização corporal e exploração dos recursos expressivos.

Neste ponto, vale lembrar as colocações do ex-aluno Rodrigo (capítulo 2), que, ao

descrever a dificuldade vivenciada para realizar determinado movimento em sua primeira

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peça, afirma que era um adolescente “absolutamente tapado fisicamente”, sem “o menor

conhecimento do próprio corpo”, e que o teatro lhe abriu “outros possíveis de percepção

do próprio corpo”. Em alguns depoimentos enviados via redes sociais (expostos no

capítulo 4) também se observa menção direta às possibilidades de nova relação com o

próprio corpo, experimentadas a partir da vivência teatral. O ex-aluno Álvaro, por

exemplo, afirma que o teatro lhe proporcionou “uma atenção especial à linguagem

corporal e à [...] própria instalação corporal no mundo”. Larissa destaca que no teatro

podia “aprender a tentar adivinhar algo sem que alguma palavra fosse dita, a usar

apenas o corpo para expressar um sentimento”.

Esse aprendizado de novas possibilidades de expressão dos sentimentos

aproxima-se, evidentemente, da ideia do teatro como espaço de liberdade, tão

amplamente mencionada pelos entrevistados. Aqui, cumpre retomar a narrativa da ex-

aluna Maria (capítulo 2), que, ao se lembrar de como saía fisicamente exausta das aulas

de teatro – pois ali era um espaço onde era permitido “se passar” –, pondera sobre a

importância dessa exploração de possibilidades corporais diversas, em especial durante a

adolescência. Liberdade essa absolutamente ligada, em nosso entendimento, à percepção

dos sujeitos de que no teatro eles podem ser eles mesmos, o que em geral lhes é vedado

em outros espaços escolares – ou, para usar as palavras da entrevistada Bela, na “caixinha

quadrada” da sala de aula.

De fato, como bem observa Hernandez (2001), prevalece nas escolas uma cultura

do não movimento. Muito embora o corpo seja o veículo de ação e expressão do indivíduo

sobre o mundo, o movimento corporal costuma ficar restrito a momentos específicos,

como aulas de educação física e recreio. No restante do tempo, o aluno deve permanecer

sentado, olhando para frente e em silêncio. O “bom comportamento” muitas vezes é

associado ao não movimento e o que define alunos como indisciplinados não raro é

exatamente a movimentação excessiva.

De modo que podemos entender que muitas vezes a escola, ao normatizar o não

movimento, contribui de modo contundente para o aprisionamento dos corpos nos

escafandros musculares da metáfora de Boal (2011). Se retomarmos a ideia de Ciampa

sobre a centralidade do conceito da atividade na manifestação do ser, chegaremos à

imediata compreensão de que reprimir o movimento do corpo – e, portanto, sua ação

sobre o mundo –, é uma forma de inibir a expressão identitária. Afinal, “o indivíduo age

no mundo através de seu corpo [...] É o movimento corporal que possibilita às pessoas se

comunicarem, trabalharem, aprenderem, sentirem o mundo e serem sentidos”

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(HERANDEZ, 2001, p. 69). Corpos aprisionados, “adestrados”, impedidos de explorar o

espaço, descobrir possibilidades, expressar-se, são corpos, literalmente, sem ação. E sem

ação, quais as possibilidades de construção da identidade?

Hernandez (2001, p. 79) lembra: “Nós somos nosso corpo. Toda educação é

educação do corpo. A ausência de uma atividade corporal também é uma forma de

educação: a educação para o não-movimento – educação para a repressão”. Repressão da

identidade emancipada, poderíamos acrescentar. O teatro, na educação, não raro

representa exatamente o contrário dessa educação para a repressão: tem a potência de

oferecer ao aluno um espaço onde a exploração do movimento de variadas formas não só

é permitida como também estimulada; onde se compreende o corpo como instrumento

primeiro de expressão e comunicação; onde um mesmo corpo é convidado a assumir

diferentes formas para dar vida a outros corpos (os dos personagens). Trata-se, por

conseguinte, de uma educação do corpo para a liberdade e, em consequência,

potencialmente emancipatória.

5.4 - O OUTRO-EU: HUMANIDADE, ALTERIDADE, IDENTIDADE

“Em conversa com um dos nossos diretores, ele me perguntou:

— E se eu lhe propusesse o papel de um simples objeto e não de

um ser humano, por exemplo, o papel de uma cadeira? – você o aceitaria?

Eu respondi:

— Se essa cadeira tem amor por outra cadeira; se nutre a esperança

de um dia se tornar uma poltrona. Se essa cadeira tem medo de

morrer queimada num incêndio, então eu aceito o papel porque,

nesse caso, a sua cadeira terá a vida do espírito humano. Do

contrário, você não precisa de um ator – ponha uma cadeira

verdadeira e que os seus atores falem com ela”.

(KUSNET, 1992 apud SALGUEIRO, 2011, p. 56)

“O teatro não pode desaparecer porque é a única arte em que a humanidade enfrenta a si mesma.”

(Arthur Miller)

Não foram poucas as vezes, no decorrer deste estudo, em que nos deparamos com

a questão do humano, seja na perspectiva teórica, seja nos dados colhidos por meio de

entrevistas e rodas de conversa. O caráter humano da arte é assunto sobre o qual uma

série de autores e artistas, de distintos modos, já se manifestaram. Elliot Eisner (1972

apud KOUDELA, 1992, p. 18), por exemplo, afirma: “O primeiro valor da arte reside, a

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meu ver, na contribuição única que traz para a experiência individual e para a

compreensão do homem”. Para Fátima Ortiz (apud AGUIAR, 2013, p. 7), “o teatro é o

último reduto onde o ser humano pode se reconhecer humano”. Vygotsky (1976 apud

GUIMARÃES, 2000, p. 78), ao analisar a obra de arte, afirma que o signo artístico tem

como função “trazer ao círculo da vida social os aspectos mais íntimos da experiência

humana”. Lev Vygotsky, a propósito, tinha grande interesse na arte teatral, e era próximo

de Stanislavski, com quem costumava trocar ideias a respeito da emoção no trabalho

artístico (CEBULSKI, 2014).

Segundo Vygotsky (1932), o ator não precisa experimentar determinadas

situações para poder sentir uma emoção e reproduzi-la no teatro. As emoções

são construídas socialmente e estão dispersas por todas as situações e lugares

percebidos via sentidos do sujeito, que é ator na sociedade em que vive e ator

no palco. O sujeito compreende o significado das emoções e quando e como

ele as “utiliza” ou as sente. Assim, o ator percebe e constrói seus esquemas de

comportamento de acordo com as situações e experiências vividas por outros

e os transporta para sua atuação no palco. (OLIVEIRA; STOLTZ, 2010, p. 86-

87, grifo do autor e itálicos nossos)

Não restam dúvidas de que o teatro trabalha com material humano; é ele seu ponto

de partida e de chegada. Para chegar a ser outro, tenho de encontrar, em minha

humanidade, o que há de humano no outro. Só assim posso tocar o que há de humano no

outro-espectador. De modo que o teatro constrói identidade porque é essencialmente

humano. As máscaras? Humana. A representação? Humana. Fingimento? Não queremos.

Almejamos a verdade de nossos personagens, convencer o público e a nós mesmos de

que somos outro. E para chegarmos a esse convencimento, é preciso ver o outro em nós.

Não no sentido de reduzi-lo ao que já somos, mas nos abrindo à possibilidade de sermos

mais, ao acolhê-lo em sua diversidade. No encontro com outro-personagem, o ator não

submete o outro a si mesmo, ao seu “eu apequenado” (LAZZARATTO, 2008), mas

permite-se interagir com ele, ampliando-se nesse processo.

Reconhecendo o outro, posso então reconhecer a mim mesmo. [...] Ao trazer à

tona o diálogo com o outro, a capacidade libertária de imaginação e criação, a

resolução de problemas concretos que conduzem à produção de um discurso

simbólico, o teatro abre fronteiras para novas possibilidades de experiência

humana e liberta a obra de arte de qualquer caráter funcionalista. Parte, ao

contrário, para um encontro do homem com a sua condição de artífice na

construção de mundos e de ator consciente do processo histórico. (VIGANÓ,

2006, p. 36-37, grifos nossos)

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Esse caráter demasiado humano, tão próprio do teatro, guarda relação com a ideias

nietzschianas que, por sua vez, remetem à ideia de identidade como metamorfose:

[...] as naturezas ativas, bem-sucedidas, não agem segundo a sentença

“conhece-te a ti mesmo”, mas como se pairasse diante delas o mandamento:

quer um si mesmo, e assim te tornarás um si mesmo. O destino parece ter-lhes

deixado sempre ainda a escolha; enquanto os inativos e contemplativos

meditam de como, daquela vez e de uma vez por todas, ao entrarem na vida,

escolheram. (NIETZSCHE, 1981, § 336, grifo do autor e itálico nosso)

Rocha (2016, n.p) explica que a escolha a que Nietzsche se refere diz respeito à

“[...] possibilidade de constantemente se reinterpretar, se reinventar, diferir de si mesmo”.

Assim como o autor, compreendemos que nos tornamos quem somos não por

manifestarmos uma essência imutável, “[...] mas pelo encontro com a alteridade, pela

forma como assimilamos as experiências, como assimilamos a diferença, como nos

transformamos no embate com as circunstâncias” (ROCHA, 2016, n.p., grifo nosso).

A recorrente alusão à alteridade suscita algumas questões, em especial nesta tese,

que versa sobre processos de construção identitária: sendo a identidade algo que diz

respeito ao indivíduo – e, portanto, ao eu –, e a alteridade o que diz respeito ao outro –

àquilo que é estranho ao eu –, seriam esses dois processos incompatíveis? Em outras

palavras, estaria a alteridade em oposição à ideia de identidade, como se costuma muitas

vezes postular? Mais que isso: ao buscarmos, neste estudo, elementos que apontam para

a construção da identidade, estaríamos diante de um contrassenso, ao nos aproximarmos

tanto e tantas vezes da ideia de alteridade? Muito pelo contrário. Os caminhos deste

estudo nos levam a compreender, na prática e também no âmbito teórico, que a alteridade

é constitutiva da identidade e a ela fundamental. Afinal, “[...] é só a partir da alteridade

do Outro, de sua irredutível diferença, que chegamos a nós mesmos” (MALDONATO,

2005, p. 487). Exatamente por isso, chamamos, aqui, de outro-eu aquele em que posso

me tornar a partir do encontro com o outro. É um movimento emancipatório de construção

da identidade, uma vez que

[...] contempla a “loucura” de uma viagem que “do Mesmo vai em direção ao

Outro que nunca retorna ao Mesmo”. Esta multiplicidade não é um relativismo

indiferente, mas um diálogo que se torna mais autêntico quanto mais evidentes

forem as diferenças: diferenças necessárias, que nos identificam e que são a

premissa para uma reversão da dependência e da heteronomia em autonomia

absoluta. (MALDONATO, 2005, p. 490, grifos do autor)

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Essas ideias estão em consonância com a filosofia de Emmanuel Levinas (1980),

para quem a alteridade oportuniza uma ressignificação da relação entre o Eu e o Outro,

em que há a superação de relações de posse e dominação. Levinas (1980) utiliza-se da

imagem do rosto do Outro, em oposição ao olhar, para expressar seu entendimento sobre

a alteridade. O olhar aprisiona, submete e reduz a realidade do Outro ao egoísmo do Eu.

Quer transformar o Outro em um idêntico e não tolera a diferença. O rosto do Outro, por

sua vez, é um espaço de compartilhamento, um convite a uma relação face a face, em que

o absolutamente Outro – e, portanto, distinto do Eu – pode se revelar tal como é. Desse

modo, como coloca Maldonato (2005, p. 489, grifo do autor), a alteridade estabelece “[...]

um encontro que não é comunhão, mas separação”. O acolhimento da realidade do

Outro, a partir do rosto, engendra uma relação de hospitalidade, em um movimento de

transcendência. Trata-se, desse modo, como esclarece Rocha (2016, n.p.), de “dar ao

Outro o direito de ser”. Assim é a ética da alteridade, para Levinas: instauradora da

própria humanidade, ao passo que nos aproxima do Outro, de suas particulares e

necessidades próprias – que não são as nossas –, em relação de acolhimento, convívio e

responsabilização.

Voltando ao âmbito teatral, encontramos relações entre as ideias de alteridade,

humanidade e expansão do eu no entendimento de Lazzaratto (2008). Afirma ele que,

quando o ator entra integralmente em contato com materiais poéticos dos mais diversos

autores, está tocando matéria humana:

[..] o que é da humanidade é pertencente a todo indivíduo da humanidade, seja

ele um Shakespeare ou um cidadão comum que trabalha como sapateiro. Um

Goethe ou um ator que transpira nos tablados. Os materiais poéticos desses

autores, ou qualquer outro material poético, na verdade são o “outro” que meu

eu dilatado, meu euzão trava contato profundo. O ator que se lança assim em

seu fazer, exercita a alteridade. (LAZZARATTO, 2008, p. 165, grifo nosso)

Não por acaso, a teoria da identidade de Ciampa (1987) tem na ideia de alteridade

um dos seus principais fundamentos. Para o autor, a forma como nos apresentamos é

sempre uma representação de nossa identidade. Representação esta que, de acordo com

Ciampa, apresenta-se em um tríplice sentido: no primeiro sentido, eu represento porque

me apresento sempre como representante de mim; no segundo sentido, ao me representar,

desempenho papéis e, ao fazê-lo, represento um outro, que sou eu mesmo (aquela parte

de mim que estou sendo parcialmente), porém ao mesmo tempo me nega (oculta partes

de mim que não estão contidas nessa representação); no terceiro sentido, represento

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enquanto re-apresento, ou seja, reitero, reponho, no presente, a apresentação de mim e,

nesse processo, impeço que se expresse um outro “outro”, que também sou eu. Quando

deixamos de representar nesse terceiro sentido, expressando o outro “outro”, que também

somos nós, negamos aquilo que nos nega, e aí se dá a metamorfose identitária. “Dizendo

de forma diferente: essa expressão do outro outro que também sou eu consiste na

metamorfose da minha identidade, na superação de minha identidade pressuposta”

(CIAMPA, 1987, p. 180, grifo do autor).

Esse processo de negação da negação, permitindo a expressão desse “outro que

também sou eu”, é compreendida por Ciampa como “alterização” da identidade. Nesse

movimento, ao eliminarmos a identidade pressuposta, deixando de repô-la,

desenvolvemos uma identidade em constante metamorfose, em que toda a humanidade

em nós contida se concretiza. Isso permite que nos apresentemos sempre como diferentes

de nós mesmos, deixando de repor aquilo que foi cristalizado em momentos anteriores.

Esse movimento de alterização, que Ciampa (1987, p. 183) define como “tornar-se outro”

é, como temos afirmado, exatamente o exercício do teatro.

Não por acaso, como visto na roda com ex-alunos, a reflexão de que o teatro

possibilitou uma abertura a mudanças foi recorrente. Também não por acaso, a afirmação

do caráter humanizador do teatro foi do mesmo modo uma constante entre os sujeitos. No

teatro, arte da alteridade por princípio, vivemos o desprendimento, a desobrigação da

reposição da identidade que nos é pressuposta. Vivemos, na vivência do “outro-

personagem”, a constante metamorfose, constante representação do outro “outro” – ou,

invertendo o termo utilizado por Ciampa (1987), vivemos a constante “boa infinidade”.

O outro “outro”, neste caso, não somos nós, mas ao vivê-lo, ao buscá-lo, em nós,

percebemos que também podemos sê-lo. De modo que no momento em que somos este

outro, somos nós mesmos, ampliados, dilatados:

Quando estou no espaço cênico realizando o meu ofício “sou” Hamlet, “sou”

Édipo, “sou” João Grilo, “sou” Fausto, “sou” Jocasta, “sou” Lady Macbeth,

“sou” Alaíde, “sou” Blanche, “sou” qualquer personagem escrito por outrem,

mas em mim manifestado em um procedimento de duplo contágio. O duplo

contágio acontece no encontro entre mim e o “personagem”. [...] Eu fatalmente

me torno “outro” sem em nenhum momento deixar de ser. Porque estou

dilatado, meu espaço interior se configurou de outra forma. [...] Não sou mais

o mesmo. [...] Eu mudo minhas configurações, aspectos de minhas substâncias

são conformados de um outro jeito. Mas eu, em nenhum momento perco a

referência de mim mesmo, porque quem está no comando da ação é o euzão,

aquele que se sabe múltiplo. Ele não se acovarda diante da expansão dos seus

limites. (LAZZARATTO, 2008, p. 187, grifos do autor)

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Um “eu” que não se acovarda mediante a expansão de seus próprios limites – que

nada mais é que a expansão dos possíveis – é um “eu” emancipado, mais livre para ser.

Não à toa, foi constante a menção à ideia de liberdade por parte dos sujeitos entrevistados.

Liberdade para sermos outros, em nós. Daí resulta, em nosso entender, a ampliação do

leque de possibilidades de ser. É significativo, aqui, atentar para a afirmação de Levinas

(2009, p. 96), para quem a essência do ser é “expansão em lugar, em mundo, em

hospitalidade”.

Retomando o tríplice sentido que Ciampa atribui à representação e considerando

uma situação de apresentação teatral em ambiente escolar, entendemos que ocorre ali uma

superposição de representações. O que era tríplice se multiplica. No primeiro sentido, o

aluno, ao se apresentar diante do público (composto, no caso, por colegas, professores e

familiares), representa apresentando-se como representante de si, mas não só: já neste

primeiro sentido, ocorre uma superposição – ele não se apresenta somente como

representante de si, mas como representante de um papel na peça teatral (um rei, um

coveiro, um mendigo, um elfo... infinitas são as possibilidades). No segundo sentido, ao

se representar, representa-se no papel de aluno-ator, mas vivendo a vida de seu

personagem. Ou seja: representa um outro, que é ele mesmo (aluno no papel de ator), mas

que ao mesmo tempo não é (o personagem que vivencia). Se ele de fato se entrega a essa

representação com a organicidade de que vimos falando, logo este outro que não é ele

(seu personagem) se sobrepõe, e aquele espectador – que até então só conhecia o aluno

em seu papel de aluno – enxerga a personagem, para além do colega conhecido. E se

considerarmos, ainda, que o aluno criou seu personagem acessando seu “euzão” de que

fala Lazzaratto na citação anterior, ele está, ainda no segundo sentido, representando um

outro que, no fundo, é ele mesmo (ou contém muito dele). E então, da próxima vez em

que este aluno-ator se encontra com seu espectador (em situações cotidianas da vida

escolar), muitas vezes já não há a expectativa da reposição de uma identidade de aluno

velha conhecida. Ele já se mostrou de formas diversas. Sabe-se múltiplo. Agora, sente-se

livre para experimentar novos modos de ser. Ser outro-eu.

******

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Para encerrar esta seção e também todo o capítulo, recorremos à interessante

fábula sobre a descoberta do teatro, descrita por Boal (2011), que encerra muitas das

ideias até aqui desenvolvidas.

Diz a lenda que há dezenas de milhares de anos, Xuá-Xuá, fêmea pré-humana que

apreciava a companhia de Li-Peng (macho pré-humano) viu seu corpo se transformar.

Estava grávida de Li-Peng, porém nenhum dos dois sabia o que estava acontecendo.

Envergonhada e assustada com as transformações de seu ventre, que inchava cada vez

mais, Xuá-Xuá afastou-se de Li-Peng. Quando deu à luz um menino – chamado na lenda

de Lig-Li-Lé –, ainda mais surpresa com tudo aquilo por que seu corpo passava, Xuá-Xuá

supôs que aquele pequeno corpo fosse uma parte de si mesma, vivendo fora dela. Uma

parte que só poderia ser ela mesma, já que de dentro dela havia saído e dela dependia para

se alimentar e sobreviver. Com o passar do tempo, contudo, aquela pequena parte de si

passou a não obedecer a todos os seus comandos. Era como se tivesse vontade própria.

Certo dia, enquanto Xuá-Xuá dormia, o pai (que até então se mantivera afastado,

observando tudo de longe), aproximou-se do menino e o levou consigo. Não compreendia

a relação de Xuá-Xuá com o pequeno e queria relacionar-se com ele a seu modo. Ensinou-

o a caçar, nadar, pescar. Para Li-Peng, estava claro que ele e o filho eram duas pessoas

diferentes, justamente porque não se sabia pai de Lig-Li-Lé. Não poderia supor que havia

ligação entre as brincadeiras que costumava fazer com Xuá-Xuá e o aparecimento do

pequeno. O menino era o outro, e Li-Peng era ele mesmo. Xuá-Xuá, ao acordar e não ver

aquela parte de si, tão amada, ao redor, desesperou-se. Alguns dias depois, pai e filho

retornaram. A mãe, então, tentou recuperar a pequena parte de si mesma, mantendo-a

novamente perto dela. Porém, Lig-Li-Lé recusou – estava feliz na companhia de Li-Peng,

que lhe ensinava coisas que a mãe desconhecia. E assim, com a recusa do filho, Xuá-Xuá

teve de reconhecer que aquele pequeno corpo, muito embora tivesse saído dela, tinha seus

próprios desejos, sentimentos e vontades. Era outra pessoa. O reconhecimento da

existência do outro, naquele que julgava ser ela, obrigou-a a olhar para si mesma e a se

identificar como uma só, mulher e mãe. Mãe de um outro. Ela agora se identificava e

identificava outros.

[...] ao perder o filho, Xuá-Xuá encontrou-se a si mesma e descobriu o teatro.

[...] Agia e se observava: era duas pessoas em uma só – ela mesma! Era espect-

atriz. Como somos todos espect-atores. Descobrindo o teatro, o ser se

descobre humano. O teatro é isso: a arte de nos vermos a nós mesmos, a

arte de nos vermos vendo! (BOAL, 2011, p. XX, grifos do autor e negritos

nossos)

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CAPÍTULO 6

TEATRO COMO ESPAÇO DE SOCIALIZAÇÃO

A socialização, processo fundamental à construção identitária, é a categoria

central deste capítulo. A questão do reconhecimento, decorrente do processo de

socialização, e amplamente mencionada pelos sujeitos da pesquisa, também é aqui

desenvolvida. Permeando as reflexões apresentadas, exploramos os eixos temáticos

outro-colega e outro-espectador, que despontaram, nos depoimentos apresentados, como

grandes propulsores de metamorfoses identitárias. Portanto, enquanto no capítulo anterior

dedicamo-nos à análise do encontro do sujeito consigo mesmo (ou com o outro, dentro

de si, por meio do encontro com o outro-personagem), aqui voltamos nossa atenção para

questões de ordem relacional, em que o sujeito entra em contato com aquele outro que

não é ele mesmo, mas seu colega de grupo e seu espectador.

Evidentemente, diversos pontos já explanados se interpenetram com aqueles que

serão aqui expostos. No que tange ao encontro com o outro-espectador, não se pode

dissociá-lo da vivência do outro-personagem. Afinal, em situação de apresentação, ambos

ocorrem simultaneamente.

A interação social na atividade teatral acontece em diversas dimensões. [...]

Uma, contudo, é muito peculiar: há uma espécie de diálogo entre ator e

plateia, por meio do qual o ator aprende a conduzir os gestos, as palavras, o

olhar. A reação da plateia, para onde ela olha, se boceja ou dorme, se ri nas

horas “certas” ou “erradas”, configura para quem está no palco uma

resposta às suas ideias e conceitos sobre o ser humano, sobre seu caráter,

fragilidades, sua força. Diferentemente da televisão, na qual a distância entre

o ator e a plateia é maior e este não pode, imediatamente, perceber, sentir, ver,

a reação de quem o assiste. No teatro há um aprendizado de uma linguagem

própria desta arte, que expressa o sentimento de quem assiste, seja via calor

do aplauso ou pela emoção que parece se concretizar e emanar da plateia ao

palco, e vice-versa. (OLIVEIRA; STOLTZ, 2010, p. 87, grifos nossos)

De modo que, ao vivenciar o encontro com o outro-espectador, o aluno tem a

oportunidade de aprimorar a relação com o outro-personagem e transformar a própria

relação com o outro-eu. Ademais, dessa comunicação palco-plateia, a priori estabelecida

no plano do sensível, derivam as experiências de reconhecimento que, em especial no

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caso do teatro em contexto escolar, transformam a maneira como o aluno se percebe e,

consequentemente, sua autorrelação, como veremos adiante.

Do mesmo modo, quando falamos, no presente capítulo, sobre o encontro com o

outro-colega – relação que, inicialmente, pode ser considerada não específica do teatro,

já que o fazer coletivo não lhe é exclusividade –, não se pode perder de vista sua ligação

com o outro-personagem. Em cena, o ator (e também, evidentemente, o aluno-ator que

conhece e domina a “regras do jogo” cênico) dá vida a seu personagem, emprestando-lhe

corpo, voz e emoções e, ao encontrar o outro-colega imerso na mesma fantasia, com ele

se comunica no plano do sensível. Nesse encontro, criam juntos – para si mesmos e para

aqueles que assistem a eles – uma espécie de realidade paralela. Essa corrente de

comunicação ator-ator, quando ambos estão disponíveis para o jogo, é fluida e

incrivelmente potente para aqueles que contracenam. Da própria interação com o outro-

colega, na cena, muitas vezes emergem formas de interação que um ator, sozinho, ao

pensar sobre seu papel e ações, dificilmente criaria de forma tão orgânica. Pode ser um

olhar, um gesto carregado de significação, um tom de voz que surge em resposta a uma

fala dita de determinada maneira... Sutilezas... Cumplicidade entre parceiros de cena que

se encontram neste plano da fantasia e que muitas vezes aproximam, fora da cena, colegas

que antes pouco se conheciam. Assim, a cumplicidade experimentada entre personagens,

no jogo da cena, é muitas vezes transferida para o plano da realidade, não como uma

reprodução da relação estabelecida entre os personagens, mas como um estreitamento dos

laços de amizade ou camaradagem. Uma vez tendo estabelecido com meu parceiro de

palco uma comunicação tão carregada de significados no plano da fantasia, crio com ele

uma ligação afetiva diferenciada – estreitada na relação intragrupo –, já que preciso dele

não apenas na cena, mas em muitos outros contextos, dada a natureza essencialmente

coletiva do fazer teatral.

Em se tratando de contextos educacionais, essa coletividade pode assumir

diferentes contornos, a depender do modo como os trabalhos teatrais são desenvolvidos.

É possível que situações em que os alunos não participem de processos decisórios e

criativos em aulas e produções, e que não se reconheçam como um coletivo, não sejam

tão propícias ao estabelecimento daquela qualidade de vínculo que pudemos constatar

entre sujeitos desta pesquisa, e que será explorada neste capítulo. Daí a importância de se

ressaltar o viés colaborativo dos processos teatrais desenvolvidos na instituição em foco.

Como já destacado em pesquisa de Mestrado (HANSTED, 2013), a metodologia ali

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empregada, no que tange ao trabalho colaborativo, se assemelha ao modo de trabalho

adotado por diversas companhias de teatro profissionais na contemporaneidade.

Como explica Fischer (2010), nos grupos que desenvolvem processos

colaborativos existem diferentes funções (ator, diretor, dramaturgo etc.), porém todos

colaboram para as criações dramatúrgicas e cênicas, partilham um plano de ação comum,

pautam-se por princípios democráticos e responsabilizam-se por contribuir com o todo e

para o todo. Para que um grupo desenvolva um trabalho dessa natureza, “[...] espera-se

que todos os seus integrantes participem dele de maneira engajada, que as relações entre

eles estabelecidas sejam igualitárias e que todos se sintam livres para expressar suas

ideias e opiniões” (HANSTED, 2013, p. 51, grifos do autor).

Não há dúvidas de que os grupos exercem influência central sobre o

comportamento dos indivíduos e que a construção da identidade é indissociável da

experiência do coletivo: “[...] responsável pela construção da identidade, o grupo é a

célula-base por meio da qual o indivíduo adquire valores, introjeta normas, condutas,

adquire necessidades” (CAPITÃO; HELOANI, 2007, p. 52). Assim sendo, a inserção em

grupos que desenvolvem processos colaborativos, pautando-se por valores democráticos,

favorece processos de socialização de sentido emancipatório.

6.1 - SOCIALIZAÇÃO: EM QUE A TEORIA DE DUBAR NOS AUXILIA A COMPREENDER O

ENCONTRO COM O OUTRO-COLEGA E COM O OUTRO-ESPECTADOR

Para abordar a categoria Socialização, apoiamo-nos, fundamentalmente, em

Dubar (2005). Em A Socialização: construção das identidades sociais e profissionais, o

autor explora criticamente teorias diversas de identidade e socialização e, a partir delas,

elabora seu próprio conceito de identidade social. Na explanação de sua teoria

sociológica, Dubar chama a atenção para o fato de ela introduzir a subjetividade no núcleo

dos processos sociais, ponto que a distingue de outras abordagens. Para o autor, a

produção da identidade se dá na articulação de dois processos, concomitantes e

heterogêneos: um biográfico (a “identidade para si”) e um relacional (a “identidade para

o outro”). Em outras palavras: a construção da identidade é compreendida como resultado

da articulação entre a identidade atribuída pelos outros e a identidade construída na

trajetória dos indivíduos.

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Portanto, a socialização é “um processo de construção, desconstrução e

reconstrução de identidades” relacionadas a diferentes campos de atividade (em especial

profissionais) com que cada sujeito se depara ao longo da vida e “das quais deve aprender

a tornar-se ator” (DUBAR, 2005, p. XIX) Esse enfoque, visivelmente, se relaciona a

ideias apresentadas no capítulo anterior, sobretudo ao entendimento do caráter não

estático da identidade e da centralidade da ação do sujeito na construção identitária.

O processo de identificação de uma pessoa – entendida como “ator social” – se dá

pela articulação de dois eixos: um “sincrônico”, associado a um contexto específico de

ação, em situação e espaços definidos; e outro “diacrônico”, relativo a uma trajetória

subjetiva e ao modo como o indivíduo interpreta sua história pessoal. Na articulação entre

esses dois eixos é que se formam as maneiras como cada sujeito se define, ao mesmo

tempo como “ator de um sistema determinado e produto de uma trajetória específica”

(DUBAR, 2005, p. XX). Tal dualidade torna complexa a dinâmica das identificações.

Inúmeras são as combinações possíveis entre as definições “oficiais”, atribuídas pelos

outros, e as identificações “subjetivas”, reivindicadas pelo próprio sujeito e submetidas

ao reconhecimento dos outros.

Mediante os dados colhidos em entrevistas e rodas de conversa, podemos afirmar

que a experiência com o teatro, tanto em contextos formais quanto não formais de ensino,

pode afetar significativamente ambos os eixos de identificação. Ao se inserir em um

grupo de teatro37, o aluno se vê em um novo contexto externo, não raro diferente daqueles

com os quais estava habituado – o que, portanto, se relaciona ao eixo sincrônico. Ao

mesmo tempo, nesse ambiente diverso, o sujeito tem a oportunidade de reinterpretar sua

própria trajetória, o que significa um impacto no eixo diacrônico. A narrativa de Bela

(exposta no capítulo 3) é um exemplo bastante claro de como o teatro significou uma

redefinição identitária, na medida em que propiciou uma mudança tanto nas condições

objetivas (expressas no contato com pessoas e situações diversas) quanto nas subjetivas

(a transformação na maneira de encarar sua própria história).

Na teoria sociológica defendida por Dubar (2005), não há distinção entre uma

suposta identidade individual e uma identidade coletiva; o que existe é uma identidade

social, em que se articulam duas transações: uma “interna” ao sujeito e uma “externa”,

estabelecida entre o indivíduo e as instituições com as quais ele se relaciona. Nesse

37 Vale lembrar que o teatro, no IEI, é oferecido em caráter curricular apenas para o 7.º ano do Ensino

Fundamental. Para as demais faixas etárias (de 5.º ano do Fundamental ao 3.º ano do Ensino Médio, à

exceção do 7.º ano), as aulas de teatro são extracurriculares, tendo, portanto, caráter opcional.

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contexto, “identidade para si” e “identidade para o outro” são inseparáveis. Não sabemos

quem somos a não ser pelo olhar externo – a identidade para si passa, necessariamente,

pelo outro e por seu reconhecimento. Mais uma vez, a alteridade interpela nossos

caminhos investigativos, de modo que aqui podemos entrever uma interessante relação

entre a teoria de Dubar e o entendimento de Maldonato (2005, p. 480), autor que postula

a identidade como

[...] fundamentalmente plural. Poderia ser definida como uma identidade

relacional, que só se dá no encontro com o outro: o outro que olha, que narra e

que pode explicitar minha identidade, restituindo-a a mim como forma de uma

história de vida narrada.

Eu chego a mim desde o Outro [...] nenhuma identidade de si pode se dar

consigo. [...] porque apenas a partir da alteridade do outro, de sua irredutível

diferença no contraste, chego a mim mesmo. (MALDONATO, 2005, p. 487)

Essa indivisibilidade entre identidade para si e para o outro é complexa e

problemática, visto que “[...] contamos com nossas comunicações para nos informarmos

sobre a identidade que o outro nos atribui... e, portanto, para nos forjarmos uma identidade

para nós mesmos" (LAING, 1971 apud DUBAR, 2005, p. 135, grifo do autor). Dubar

pondera que a incerteza caracteriza nossas comunicações com os outros. Por mais que

tentemos imaginar o que pensam a nosso respeito, nunca estaremos certos de que a

identidade para nós mesmos coincide com a identidade que nos é atribuída por terceiros.

Por isso, a identidade nunca está dada a priori, mas está sempre em processo de

construção e reconstrução.

Aqui, conjecturando, a partir das narrativas de nossos sujeitos de pesquisa, vemos

que o contato com o outro-espectador e com o outro-colega muitas vezes transforma a

identidade que os outros nos atribuem ou coloca em xeque o que imaginávamos ser nossa

identidade para o outro. Podemos citar como exemplos o aluno tido como “bobo” que, ao

participar de peças, passou a ser visto como disciplinado; ou então a aluna que não se

destacava em nenhuma atividade e que, portanto, se considerava “desdotada”, e que

passou a ser vista – e a se ver – como talentosa, a partir de elogios de estudantes mais

velhas que a ela assistiram em cena. Esse tipo de experiência, evidentemente, engendra

processos de reconstrução identitária. À medida que se modifica a ideia que determinado

indivíduo tem sobre o que é sua identidade para o outro, transforma-se também sua

identidade para si. Em suma, “identidade para si” e “identidade para o outro” (DUBAR,

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2005) fazem parte de um mesmo processo, que possibilita a noção de identidade, e que

compõe o próprio processo de socialização.

Do ponto de vista do processo relacional, ou seja, no engendramento da identidade

para o outro, somos submetidos a “atos de atribuição” – aqueles que visam definir que

tipo de homem ou mulher somos. As identidades atribuídas pelo outro podem ser de

natureza numérica ou genérica. As numéricas são aquelas que nos tentam definir como

ser único (como, por exemplo, RG, CPF, ou mesmo o nome que nos é atribuído); as

genéricas nos classificam como pertencentes a determinados grupos, classes ou

categorias. Os processos de atribuição não podem ser analisados independentemente dos

sistemas de ação no qual o sujeito está inserido e resultam das relações de força entre os

atores envolvidos. Nesse processo, utilizam-se categorias – cuja legitimidade pode

sempre ser questionada – que se impõem, coletivamente, sobre os indivíduos, como

definições “oficiais” sobre sua identidade. Dubar (2005, p. 139, grifos do autor) atenta

para o fato de que esse processo “[...] leva a uma forma variável de rotulagem, produzindo

o que Goffman denomina identidades sociais ‘virtuais’ dos indivíduos assim definidos”

Como visto durante a roda de conversa com ex-alunos, a questão dos rótulos pelos quais

eram reconhecidos durante a vida escolar foi bastante mencionada. Evidentemente, essa

questão aproxima-se da ideia de fetichismo da personagem, desenvolvida por Ciampa

(1987), citada no capítulo anterior.

Já do ponto de vista biográfico, a identidade para si decorre de “atos de pertença”

– aqueles que exprimem que tipo de homem ou mulher queremos ser. Trata-se de uma

pertença reivindicada pelo próprio sujeito; por isso, Dubar fala em “identidade predicativa

de si”. De modo que esse processo diz respeito “[...] à interiorização ativa, à incorporação

da identidade pelos próprios indivíduos” (DUBAR, 2005, p.139). Ela se liga à trajetória

social a partir da qual o indivíduo constrói sua identidade para si, também denominada

por Goffman (1963) como identidade social “real”. Nos atos de pertença, também se faz

uso de categorias, as quais, diferentemente daquelas que são impostas nos atos de

atribuição, devem, sobretudo, ter legitimidade para o próprio indivíduo e para o “grupo

de referência” – aquele a partir do qual o sujeito define a identidade predicativa de si.

Dubar (2005, p. 139) alerta para a relevância do grupo de referência, ao dizer que, apesar

de ele poder ser diferente do grupo ao qual o sujeito “pertence ‘objetivamente’ para

outrem [...], é o único que importa ‘subjetivamente’ para o indivíduo. Sem essa

legitimidade ‘subjetiva’, não é possível falar de identidade-para-si”.

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Aqui, uma observação importante: a análise dos dados levantados por meio das

entrevistas e das rodas de conversa evidencia que o grupo de teatro, muitas vezes, se torna

um grupo de referência para os alunos que dele fazem parte. Ali, muitos estudantes

encontraram aquilo que gostariam de ser (profissional ou pessoalmente), construindo,

portanto, suas identidades visadas.

Diversos participantes salientaram que, antes de fazer teatro, não se sentiam

pertencentes a nenhum grupo no ambiente escolar. Alguns recordaram, inclusive, que

eram reconhecidos por determinados rótulos, com os quais eles próprios não se

identificavam. Na realidade, não se identificavam com nenhuma das categorias

comumente utilizadas para definir a identidade dos alunos, o que gerava um sentimento

de não pertencimento e, consequentemente, de não saber “quem se é”. Afinal, o

pertencimento é constitutivo do processo de socialização:

A socialização é, enfim, um processo de identificação, de construção de

Identidade, ou seja, de pertencimento e de relação. Socializar-se é assumir seu

pertencimento a grupos (de pertencimento ou de referência), ou seja, assumir

pessoalmente suas atitudes, a ponto de elas guiarem amplamente sua conduta

sem que a própria pessoa se dê conta disso. (PERCHERON, 1974 apud

DUBAR, 2005, p. 24, grifo nosso).

Entrar para o grupo de teatro significou, nas palavras dos próprios sujeitos,

encontrar sua própria “tribo”; ou, utilizando os termos de Dubar, encontrar um grupo de

referência que, ao mesmo tempo, era grupo de pertencimento. Pertenciam ao grupo e

identificavam-se com ele. Nas palavras de uma ex-aluna, em depoimento exposto no

capítulo 4, “existia ali um sentimento de pertencimento”. Sentimento não restrito ao

universo da escola em foco, como se depreende do relato de uma das entrevistadas não

alunas da pesquisadora (capítulo 3): “[...] a sensação de pertencimento (ao grupo, à

escola, ao teatro) também me sustentou bastante no sentido de criar uma identidade”.

Desse modo, o teatro apresenta-se como uma atividade em que se podem

vislumbrar possibilidades outras de identificação – como alguns dos sujeitos levantaram,

encontraram-se no grupo dos “sensíveis”, dos “artistas”, dos “loucos”, daqueles que

“veem o mundo de forma diferente”. No encontro com o outro-colega em um ambiente

favorável à redefinição de classificações identitárias, os rótulos tendiam a cair por terra,

abrindo espaço para a identificação a partir de novos referenciais e para a construção de

laços entre indivíduos que antes provavelmente sequer se conheceriam, pois eram

considerados de grupos distintos. Identidade para si e identidade para o outro se

construíam, mutuamente.

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Para Dubar (2005, p. 137-138, grifo do autor), “[...] é pela e na atividade com os

outros, o que implica um sentido, um objetivo e/ou uma justificação, uma necessidade

[...], que um indivíduo é identificado e levado a endossar ou a recusar as identificações

que recebe dos outros e das instituições”. Nesse contexto, é interessante realçar que

muitos entrevistados atribuíram o forte sentimento de pertencimento ao fato de que os

participantes do grupo de teatro se unem em torno de um objetivo comum. Assim,

encontrando-se com o outro-colega em uma atividade em que se partilha um mesmo

propósito, o sujeito tende a sentir identificado com esse outro, e vice-versa.

Pertencimento, reconhecimento e construção de uma identidade comum de grupo

decorrem desse encontro.

Outro ponto importante para o qual Dubar chama a atenção na apresentação de

sua teoria é que, embora sejamos identificados pelos outros, podemos recusar tal

identificação e nos definirmos de outra maneira – uma definição, contudo, que também

será submetida ao reconhecimento ou não dos outros. Isso significa que não existe

correspondência necessária entre o processo biográfico e o relacional, podendo haver

“desacordos” entre a identidade para si e a identidade para o outro. Desse desacordo,

derivam “estratégias identitárias”, que visam diminuir o desvio entre a identidade para si

e a identidade para o outro. Tais estratégias podem ser “externas” ou “internas” ao

indivíduo. Nas transações externas (também chamadas “objetivas”), a identidade para si

é acomodada à identidade para outro. Nas transações internas (ou “subjetivas), procura-

se assimilar a identidade para o outro à identidade para si. É na articulação entre ambas

as transações que se dá a construção das identidades sociais.

A construção da identidade para si, no teatro – e em especial no teatro em ambiente

escolar –, em geral começa com o encontro com o outro-colega e culmina no encontro

com o outro-espectador. Antes de haver uma abertura ao público dos processos

desenvolvidos no teatro – em geral uma apresentação de espetáculo –, muitas vezes as

identidades visadas só são possíveis dentro do próprio grupo de teatro. Fora dele, aos

olhos dos demais alunos da escola, os participantes continuam a ser classificados a partir

de categorias “velhas conhecidas”.

Quando, todavia, os alunos de teatro se apresentam para a comunidade escolar,

cada qual assumindo seu outro-personagem, abre-se a possibilidade de se transformarem

as identidades virtuais: os que se apresentam – ao menos durante o momento da

apresentação – já não se enquadram em categorias como “nerds”, “esportistas”, “bons

alunos”, “populares”, etc. Mostram-se outros. São mais que os rótulos que os

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predefiniam. Estão, em frente ao outro-espectador e junto ao outro-colega (que também

se coloca no lugar de seu outro-personagem), expandindo seus possíveis. Abre-se, então,

a possibilidade de reconhecimento do ator a partir da identidade para si que ele reivindica.

Esse processo pode ser compreendido, na perspectiva de Dubar, como uma transação

objetiva – aquela em que a identidade para si é acomodada à identidade para o outro.

Tal problemática supõe a concepção e a análise da transação “objetiva” como

uma confrontação entre demandas e ofertas de identidades possíveis e não

simplesmente como produtos de atribuições de identidades pré-construídas.

Essa transação supõe, portanto [...], que o processo de categorização pelo qual

se constroem as identidades oferecidas ao indivíduo seja redefinido. Ela deve

se conceber como uma negociação verdadeira entre os demandantes de

identidade em situação de abertura de seu campo do possível e os

fornecedores de identidade em situação de incerteza quanto às identidades

virtuais a propor. Essa negociação identitária constitui um processo

comunicativo complexo, irredutível a uma “rotulagem” autoritária de

identidades predefinidas com base nas trajetórias individuais. Ela implica fazer

da qualidade das relações com o outro um critério e um elemento importantes

da dinâmica das identidades. (DUBAR, 2005, p. 141, grifos do autor e negritos

nossos)

Em vista disso, em situação de apresentação teatral, os alunos, na posição de

atores, são os “demandantes de identidade” aos quais Dubar se refere na citação

mencionada. Estão, como o autor coloca, em “situação de abertura de seu campo do

possível”. Afinal, o encontro com o outro-personagem, conforme visto no capítulo

anterior, tem a potência de ampliar exponencialmente a percepção sobre si próprio. Além

disso, o próprio ato de se apresentar diante do outro-espectador, expondo-se – ainda que

sob a “máscara” do personagem –, coloca o ator em um contexto de vulnerabilidade e

abertura. Nesse processo, podemos entender o outro-espectador como “fornecedor de

identidade”. Como na citação anterior, ele está em situação de incerteza no que diz

respeito às identidades virtuais a partir das quais pode definir aquele que se apresenta.

Afinal, ao apresentar-se, o ator é ao mesmo tempo o conhecido (aquele mesmo colega,

muitas vezes definido de acordo com determinados rótulos), vivenciando um outro-

desconhecido (o personagem) e, portanto, mostrando-se de novas formas. Esse processo

pode acarretar, então, negociações identitárias pautadas pelo reconhecimento, em que a

identidade para o outro, antes limitante e recusada pelo aluno-ator, agora se aproxima da

identidade para si por ele reivindicada.

Claro que nem sempre o olhar supostamente transformado do outro-espectador,

durante uma apresentação, será mantido em contextos externos ao teatro. Para alguns de

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nossos entrevistados, tal manutenção ocorreu – como, por exemplo, para Ana, a aluna que

deixou de sofrer bullying após apresentação teatral em que o tema era abordado; ou para

Amanda, que ampliou seu círculo de amizades porque os alunos do teatro passaram a ser

admirados pelos demais estudantes. Para outros, não – Rodrigo, por exemplo, disse que

fazer teatro não fez com que ele parasse de sofrer bullying na escola. Não obstante, mesmo

nesta última situação, é interessante notar que, apesar da continuidade da identidade

virtual atribuída por parte de alunos não pertencentes ao grupo teatral, o sujeito contou

que fazer teatro o colocou em um “lugar de proteção”. Tal afirmação decorre da

experiência de pertencimento vivenciada no grupo de teatro. E este pertencimento, sim,

estende-se para fora do contexto de aulas de teatro; afinal, as relações sociais ali

estabelecidas, como vimos, costumam ser de fortes laços de amizade.

No grupo de teatro, são todos demandantes e fornecedores de identidade, abrindo

seus campos dos possíveis para si e para o outro (neste caso, o outro-colega). Ali, o aluno

vive a experiência do pertencimento e do reconhecimento, havendo, portanto, condições

objetivas de ser para si, na perspectiva de Ciampa (1987), abordada no capítulo anterior.

Talvez por isso ex-alunos entrevistados tenham afirmado não haver encontrado, em

nenhum outro local, o que experimentaram no teatro. Talvez, também pelo mesmo

motivo, alguns tenham expressado como essa vivência faz falta em suas vidas e como

têm buscado, em outros contextos e ambientes, sentir novamente o que no teatro

costumavam sentir.

Todo esse processo de socialização vivenciado no teatro é potencializado quando

ocorre em ambiente escolar. Acerca da importância da escola na construção da identidade,

Dubar (2005, p. 147, grifos nossos) reflete:

[..] é nas e pelas categorizações dos outros – e principalmente dos parceiros de

escola (seus “professores” e seus “colegas”) – que a criança vive a experiência

de sua primeira identidade social. Esta não é escolhida, mas conferida pelas

instituições e pelos próximos, com base não somente nos pertencimentos

étnicos, políticos, religiosos, profissionais e culturais de seus pais, mas também

em seu desempenho escolar. A escola elementar constitui, desse modo, um

momento decisivo para a primeira construção da identidade social [...] É assim

se “aprendemos a ser o que nos dizem que somos” [...] , se devemos construir

para nós, através de todas as relações frente a frente, [...] um “saber sobre o

que somos no fundo de nós mesmos”.

Na adolescência, provavelmente a experiência de construção da identidade social

não seja exatamente a primeira, como aquela a que Dubar se refere, fazendo menção à

infância. Contudo, não deixa de estar entre as primeiras da vida do sujeito. Além disso,

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por se tratar de fase fundamental à conquista da autonomia, a construção – e, sobretudo,

neste caso, a reconstrução – da identidade social, vivenciada neste período da vida, em

ambiente escolar, também afeta esse “saber o que somos no fundo de nós mesmos”. Neste

ponto, mais uma vez, cumpre lembrar as afirmações dos entrevistados, quando disseram

que no teatro “se descobriram”, “se encontraram”. Trata-se, claramente, de um processo

que acarreta impactos duradouros.

Dubar (2005, p. 330) destaca que as primeiras experiências de socialização

também fornecem “[...] as referências culturais a partir das quais os indivíduos terão de

identificar seus grupos de pertencimento e de referência, interiorizar seus traços culturais

gerais, especializados, opcionais e individuais [...], antecipar suas socializações

posteriores”. Podemos depreender, então, como a experiência de fazer teatro – atividade

que tem na socialização seu alicerce – pode gerar consequências identitárias que se

refletem na trajetória dos indivíduos, mesmo que muito tempo se tenha passado desde a

época de escola.

Dessa dualidade entre identidade para o outro conferida e identidade para si

construída, mas também entre identidade social herdada e identidade escolar

visada, se origina um campo do possível no qual se desenvolvem já na infância,

na adolescência, e no decorrer da vida, todas as estratégias identitárias.

(DUBAR, 2005, p. 147)

Os relatos de grande parte dos entrevistados revelaram influências significativas

em suas trajetórias pessoais e profissionais, a ponto de alguns optarem por seguir carreira

no teatro. Outros descobriram vocações em áreas que lidam com a Comunicação e outros,

ainda, embora em campos bastante diversos do universo teatral ou mesmo em áreas não

ligadas à comunicação, procuram preservar a identidade construída no teatro em sua

atuação como profissionais.

Ao analisar a identidade profissional – tópico que não nos cabe aprofundar nesta

tese – Dubar (2005, p. 148) afirma que a confrontação com o mercado de trabalho acarreta

as mais importantes implicações identitárias. A saída do sistema escolar e a entrada no

mercado de trabalho constituem, para o autor, “[...] um momento essencial da construção

de uma identidade autônoma”. A experiência com teatro em ambiente escolar, durante

adolescência – e, portanto, em fase imediatamente anterior à saída do sistema escolar –,

oportuniza ao sujeito a conquista da autonomia e contribui para a futura atuação

profissional. Afinal, como o próprio Dubar (2005, p. 148) reconhece, “ [...] o conjunto

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das escolhas de orientação escolar [...] representa uma antecipação importante do status

social futuro”.

A experiência do pertencimento, amplamente vivenciada no teatro, tende a

impactar de modo singular a construção da identidade social dos participantes,

modificando aqueles que poderiam ser os rumos de suas trajetórias caso não houvessem

vivenciado a experiência. Afinal, a socialização é compreendida por Dubar (2005, p. 93-

94, grifo nosso) como

[...] um processo biográfico de incorporação das disposições sociais oriundas

não somente da família e da classe de origem, mas também do conjunto dos

sistemas de ação atravessados pelo indivíduo no decorrer de sua existência.

Sem dúvida, ela implica uma relação histórica de causa entre o passado e o

presente, entre a história vivida e as práticas atuais, mas essa causalidade é

probabilista: exclui toda determinação mecânica dos momentos seguintes por

um "momento" privilegiado. Quanto mais os pertencimentos sucessivos ou

simultâneos forem múltiplos e heterogêneos, mais se abrirá o campo do

possível e menos se exercerá a causalidade de uma probabilidade determinada.

O teatro, na educação, por todos os motivos que vêm sendo explanados, representa

esse “momento privilegiado” para muitos alunos – um momento que não apenas marca a

vida escolar, mas impacta a “trajetória vivida”. Por trajetória vivida, Dubar (2005)

entende a modo como os acontecimentos biográficos que um indivíduo julga

significativos são por ele subjetivamente reconstruídos. É na trajetória vivida que se

constroem as identidades reais às quais os sujeitos aderem. Como vimos, o teatro, ao

menos para os sujeitos desta pesquisa, constitui momento biográfico altamente

significativo. Ele é parte importante de sua trajetória vivida e, portanto, responsável pela

construção da identidade que esses sujeitos reivindicam para si. Os encontros com o

outro-colega e com o outro-espectador traduzem-se em condições concretas de também

serem reconstruídas as identidades virtuais a eles atribuídas. Desse processo, resultam

pertencimentos múltiplos e heterogêneos, expandindo os possíveis dos envolvidos.

6.2 - RECONHECIMENTO: ASPECTOS DA TEORIA DE HONNETH, EM DIÁLOGO COM

ACHADOS DA PESQUISA

O teatro apresenta-se ao aluno como oportunidade de vivenciar o reconhecimento

do outro de maneiras muito significativas: na forma de elogio, tanto de colegas quanto de

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espectadores, por conta de performances na cena; na valorização de ideias apresentadas

ao grupo em processos de criação; no agradecimento de colegas que recebem seu auxílio;

no sentimento de pertencimento ao grupo, por saber-se importante nas funções que

desempenha, seja como ator, seja como contrarregra. O reconhecimento vivenciado no

teatro, portanto, é tanto aquele em que o sujeito é reconhecido como diferente quanto

aquele em que é aceito como “igual”: diferente no sentido de especial, único em suas

habilidades e contribuições para o grupo; igual no sentido de partilhar com o grupo

determinadas características, que fazem do sujeito um membro daquele coletivo.

O outro-colega e o outro-espectador são aqueles de quem o aluno-ator recebe o

reconhecimento, de maneiras diversas. Parece redundante afirmar que no teatro o aluno

vivencia o reconhecimento do outro-espectador. Afinal, fazer teatro pressupõe a relação

palco-plateia, e nela se inscreve, na maior parte dos casos, e em especial em ambientes

escolares, a própria busca pelo reconhecimento do espectador – em forma de aplausos,

risos ou lágrimas (quando almejados na cena), congratulações, elogios, etc. Porém, o que

chama atenção nos depoimentos de nossos entrevistados não é exatamente a existência

desse reconhecimento, mas seu impacto nos processos identitários relatados. Como visto,

a sensação de ouvir os aplausos do público após a primeira apresentação de teatro foi

rememorada por muitos sujeitos como experiência profundamente marcante, que os

impulsionou a querer continuar fazendo teatro na escola, e, em alguns casos, também fora

dela. O saber-se aceito deste modo – “repentinamente”, imediatamente após a

apresentação de um trabalho que demandou esforço individual e coletivo, além de

coragem para se expor ao julgamento do outro – faz desta uma experiência intensa, que

sem dúvidas acarreta consequências positivas para o modo como o sujeito se relaciona

consigo mesmo.

Mas não só isso. A exposição ao julgamento do outro e o ulterior reconhecimento

foram responsáveis, em muitos dos casos relatados, pela superação do receio do olhar

externo. A maior facilidade para se comunicar, que tantos entrevistados relataram como

uma das principais metamorfoses identitárias, decorre exatamente desse encontro com o

outro-espectador, que tantas vezes possibilita que se vivencie, de modo intenso, o

sentimento de aceitação social. Neste ponto, não podemos deixar de lembrar que o

reconhecimento do outro-espectador, em ambientes escolares, muitas vezes extrapola o

âmbito teatral, sendo transferido para outras situações (quando, por exemplo, o aluno é

parabenizado por colegas ou professores, em sala de aula, por seu desempenho nos

palcos), transformando a maneira como o sujeito é visto e se vê.

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O reconhecimento do outro-colega, com quem o aluno se relaciona fora e dentro

da cena, também despontou em nossa pesquisa como importante fator na constituição

identitária dos sujeitos. Nesse contexto, diversas situações apontadas pelos entrevistados

podem ser destacadas, como, por exemplo, momentos de criação coletiva (em que as

contribuições de cada um são valorizadas), oportunidades de exercer funções de

contrarregragem e outros auxílios aos colegas em situações de apresentação (e o

consequente agradecimento e reconhecimento do outro-colega) e o próprio momento da

roda de oração, em que os participantes do grupo se sentem reconhecidos como parte de

um todo, cada qual igualmente importante e particularmente essencial em suas funções e

características individuais. Por esses e outros motivos, a ligação com o outro-colega

favorece o estabelecimento de vínculos afetivos duradouros, em que o aluno se sente

aceito e acolhido.

Ao abordar essas e outras situações, os participantes frequentemente se referiram

a aspectos bastante relacionados à teoria do reconhecimento, de Axel Honneth (2003),

conforme apontado na exposição dos dados colhidos. Dentre esses aspectos, destacam-

se: as relações solidárias e igualitárias que se estabelecem nos grupos teatrais; a

associação do teatro às ideias de casa e família; os sentimentos de amizade e amor

estabelecidos entre membros dos grupos teatrais; a conquista da autoconfiança; a

elevação da autoestima; a possibilidade de autorrealização; e a própria experiência do

reconhecimento, tanto com relação a cenas apresentadas quanto à vivência de situações

diversas fora da cena. Vale aqui, portanto, apresentar algumas ideias de Honneth, não

com o objetivo de esgotar sua teoria, mas de melhor compreender as colocações dos

entrevistados e, nesse sentido, ampliar nosso entendimento sobre as potencialidades do

teatro nos processos de construção e reconstrução identitária.

A importância do outro na construção da identidade, que tanto temos destacado

nesta tese, é central no entendimento de Honneth. O autor resgata colocações de Mead,

para quem um ponto crucial na formação da identidade humana é o fato de que, quando

um sujeito se coloca na perspectiva normativa de um parceiro de interação, assume

referências axiológicas morais desse parceiro, de forma a aplicá-las na relação prática

consigo mesmo. A partir desse entendimento, Honneth (2003, p. 134, grifo nosso)

pondera:

[...] se o mecanismo de desenvolvimento da personalidade consiste em que o

sujeito aprende a conceber-se a si mesmo desde a perspectiva normativa de seu

defrontante, então, com o círculo de parceiros de ação, o quadro de referência

de sua auto-imagem prática deve também se ampliar gradativamente.

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O teatro, em especial em processos educacionais e durante a adolescência, como

temos visto no decorrer deste estudo, é um meio bastante propício à ampliação do círculo

de parceiros de atuação e, por conseguinte, dos quadros de referência dos alunos.

Exatamente por isso, atua como catalisador de processos de metamorfose da identidade,

no sentido de expandir possibilidades, (re)construindo a maneira como os sujeitos se

veem. Como visto, a construção de uma autoimagem positiva destacou-se como uma das

consequências identitárias do fazer teatral mais mencionadas nas rodas de conversas e

entrevistas.

Honneth (2003) ainda enfatiza a importância da dimensão intersubjetiva da

identidade baseado nas ideias de Hegel, para quem a consciência de si mesmo só é

adquirida quando o sujeito aprende a perceber suas ações a partir da perspectiva de

outrem. Nessa perspectiva, Honneth (2003, p. 272) postula: “[...] os indivíduos se

constituem como pessoas unicamente porque, da perspectiva dos outros que assentem ou

encorajam, aprendem a se referir a si mesmos como seres a que cabem determinadas

propriedades e capacidades”. A citação faz lembrar muitos dos comentários de

entrevistados desta pesquisa, que afirmaram ter, no teatro, descoberto capacidades e

propriedades pessoais. Como, por exemplo, o caso de Maria, que contou que, antes de

passar pela experiência de reconhecimento no teatro, se via como “desdotada”. Essa

autoimagem foi reconstruída pela experiência de ter sua atuação reconhecida, na interação

com o outro-espectador – situação que ilustra o entendimento de que “[...] uma pessoa só

pode se sentir ‘valiosa’ quando se sabe reconhecida em realizações que ela justamente

não partilha de maneira indistinta com todos os demais” (HONNETH, 2003, p. 204, grifo

do autor).

Perceber-se capaz ao ter suas capacidades socialmente reconhecidas é

fundamental na construção da identidade, afetando a maneira como o indivíduo se

percebe, se relaciona consigo mesmo e refere-se a si próprio como sujeito. A relevância

desse assentimento social é tanta que Honneth (2003, p. 220) afirma existir uma “[...]

dependência constitutiva do ser humano em relação à experiência do reconhecimento:

para chegar a uma autorrelação bem-sucedida, ele depende do reconhecimento

intersubjetivo de suas capacidades e de suas realizações”.

Assim, no entendimento de Honneth, indivíduos e também grupos sociais só

formam sua identidade quando há reconhecimento intersubjetivo no âmbito privado do

amor, nas relações jurídicas e na solidariedade social. Essas três formas de

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reconhecimento acarretam autorrelações práticas: “está inscrita na experiência do amor a

possibilidade da autoconfiança, na experiência do reconhecimento jurídico, a do auto

respeito e, por fim, na experiência da solidariedade, a da autoestima” (HONNETH, 2003,

p. 272). A cada nova forma de reconhecimento, amplia-se a percepção do sujeito acerca

de suas propriedades e, por conseguinte, seu grau de autorrealização.

Experiências de desrespeito a qualquer uma das três formas de reconhecimento

(amor, direito e solidariedade) desencadeiam uma ruptura nas autorrelações, gerando

processos de luta pelo reconhecimento. Na teoria de Honneth, é por meio da luta pelo

reconhecimento intersubjetivo que se dá a inserção dos indivíduos e grupos na sociedade.

Como destacado no capítulo 2, a teoria da luta por reconhecimento de Honneth se mostra

no processo vivenciado por ex-alunos participantes do primeiro grupo de teatro para a

consolidação da atividade na escola em foco. Essa vivência teve impactos significativos

– apontados na descrição da roda de conversa com ex-alunos – na construção identitária

dos sujeitos, que rememoraram com detalhamento diversas situações relativas a esse

histórico.

Não obstante, entendemos que as maiores relações entre os dados colhidos na

pesquisa e as ideias de Honneth relacionam-se não exatamente à luta pelo reconhecimento

– já que esta, como visto, decorre de situações de desrespeito, o que em geral é o oposto

das experiências relatadas pelos entrevistados –, mas às formas de reconhecimento em si

e suas consequências para a construção da identidade. Afinal, autoconfiança,

autorrespeito e autoestima revelam-se importantes impactos do fazer teatral nos processos

de metamorfose relatados pelos participantes. De modo que experiências com teatro, em

contextos educacionais, abrem a possibilidade de se vivenciar as três formas de

reconhecimento a que Honneth se refere (no amor, no direito e na solidariedade).

Os estreitos vínculos de amizade a que os sujeitos desta pesquisa se referiram

diversas vezes nas rodas de conversa, entrevistas e depoimentos escritos podem ser

compreendidos como experiências de reconhecimento no âmbito privado do amor, já que

“por relações amorosas devem ser entendidas aqui todas as relações primárias, na medida

em que elas consistam em ligações emotivas fortes entre poucas pessoas, segundo o

padrão de relações eróticas entre dois parceiros, de amizades e de relações pais/filho”

(HONNETH, 2003, p. 159, grifos nossos). A constante associação do teatro ao amor e às

ideias de casa e família, portanto, guardam relação com essa forma de reconhecimento,

caracterizado por sentimentos especiais de estima mútua, aceitação e encorajamento

afetivo. O reconhecimento no âmbito do amor pressupõe saber-se estimado mesmo na

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ausência da outra pessoa, o que possibilita o desenvolvimento da autoconfiança e,

consequentemente, da autonomia.

Esse desenvolvimento da autonomia – primordial ao processo de emancipação –

está, evidentemente, ligado ao reconhecimento da autonomia do outro. Nesse sentido,

trata-se de um desenvolvimento que não ocorre apenas no âmbito privado do amor, mas

também no campo do direito. Como já destacado em Hansted (2013), um grupo de teatro

que desenvolve processos colaborativos pode ser compreendido como uma pequena

sociedade, um coletivo que se autolegisla – e, nesse sentido, favorável ao

desenvolvimento de princípios democráticos. É o que coloca também Neelands (2009, p.

182, grifos do autor), ao se referir a trabalhos com teatro em escolas:

Ao trabalhar em conjunto, [...] os jovens têm a oportunidade de enfrentar as

demandas de se tornar um grupo social autogestor, autogovernante, e

autorregulador, que “co-cria” artisticamente e socialmente, e de começar a

modelar esses ideais da polis ateniense (autonomous, autodikos, autoteles)

para além de suas salas de aula.

Em processos coletivos dessa natureza, em especial quando se trabalha com a

produção de uma peça teatral, o comprometimento individual evidentemente afeta de

modo direto o trabalho de todos, e o aluno de teatro logo compreende que é

imprescindível assumir uma “[...] postura ativa e responsabilizar-se pelo bem coletivo.

Entende que a vida em sociedade pressupõe direitos e deveres, e que tanto uns como

outros devem aplicar-se a todos os integrantes do grupo, indistintamente” (HANSTED,

2013, p. 53-54). Trata-se de um entendimento também partilhado por Neelands (2010,

n.p., grifos nossos), para quem o teatro escolar guarda relações com o trabalho de certas

companhias profissionais, que desenvolvem projetos baseados em acordos sociais entre

os membros, que se unem para realizar algo que terá grande relevância em suas vidas:

A escola é uma comunidade e o teatro é uma prática viva dentro dele. O teatro

que os jovens fazem é muitas vezes baseado nos interesses, necessidades e

aspirações partilhadas dentro da comunidade escolar [...] É frequentemente

baseado em um acordo social que estabelece que todos os que estão presentes

são potenciais produtores – todos podem ter uma chance de ser atores e/ou

público [...] O reunir-se para fazer teatro é também muitas vezes visto como

um importante meio de fazer os alunos mais conscientes de si mesmos como

uma comunidade viva. O teatro pode oferecer aos jovens um espelho de quem

somos e quem estamos nos tornando. O teatro pode ser um gerador para a

mudança social, fornecendo o espaço para imaginarmos a nós mesmos e como

vivemos de forma diferente.

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Esse acordo social entre os membros de um grupo de teatro assemelha-se à

compreensão de Honneth acerca do reconhecimento no campo do direito, fundamental ao

desenvolvimento da relação de autorrespeito. Para o autor, quando são adotadas “normas

sociais que regulam as relações de cooperação da coletividade, o indivíduo em

crescimento não aprende só quais obrigações ele tem de cumprir em relação aos membros

da sociedade; ele adquire, além disso, um saber sobre os direitos que lhe pertencem”

(HONNETH, 2003, p. 136-137, grifo nosso). As relações de cooperação dentro do grupo

de teatral, como visto, foram bastante mencionadas pelos sujeitos entrevistados.

Além disso, foi também muito destacada, pelos sujeitos da pesquisa, o sentimento

de identidade coletiva e o orgulho pelas realizações comuns, pontos também enfatizados

por Honneth, em especial no campo do direito. Saber-se parte de um coletivo valorizado

para a sociedade na qual se insere – como ocorre com o grupo de teatro, quando recebe o

reconhecimento da comunidade escolar – contribui para uma autorrelação prática que se

traduz em “[...] um sentimento de orgulho do grupo ou de honra coletiva; o indivíduo se

sabe aí como membro de um grupo social que está em condição de realizações comuns,

cujo valor para a sociedade é reconhecido por todos os seus demais membros”

(HONNETH, 2003, p. 209).

Contudo, as relações de cooperação dentro do grupo teatral e o sentimento de

pertencimento ao coletivo não se restringem apenas a essa esfera do reconhecimento, em

que cada qual se sabe parte de um todo. Afinal, tal dimensão não abarca a

individualização, ou seja, não considera a contribuição específica de cada parte desse

todo. Nas relações estabelecidas no teatro, o saber-se parte compreende também saber-se

estimado por suas propriedades e realizações únicas – como fica claro nos depoimentos

de diferentes sujeitos, ao destacar que o teatro é um espaço propício à valorização de cada

membro do coletivo em suas individualidades. É o caso de Juliana, ex-aluna, que em

depoimento exposto no capítulo 4, coloca: “Eu encontrava conforto no teatro com

amigos e professores que não me julgavam pelos meus hobbies, inclusive sentia que eu

era valorizada por alguma das minhas ‘manias estranhas’ para a construção de uma

cena ou ideia, por exemplo”. Em relações dessa natureza, os sujeitos tendem a se estimar

entre si de modo simétrico, o que favorece o engendramento da solidariedade.

Na relação interna de tais grupos, as formas de interação assumem nos casos

normais o caráter de relações solidárias, porque todo membro se sabe

estimado por todos os outros na mesma medida; pois por "solidariedade" pode

se entender, numa primeira aproximação, uma espécie de relação interativa em

que os sujeitos tomam interesse reciprocamente por seus modos distintos de

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vida, já que eles se estimam entre si de maneira simétrica.” (HONNETH, 2003,

p. 209, grifo nosso)

A narrativa de Yasmin (capítulo 1), que afirmou compreender que no teatro todos,

independentemente do papel assumido em determinada peça, são igualmente importantes

– e como aprendeu a transferir para vida esse aprendizado –, é bastante representativa

dessa estima simétrica a que Honneth (2003, p. 210) se refere: “estimar-se simetricamente

nesse sentido significa considerar-se reciprocamente à luz de valores que fazem as

capacidades e as propriedades do respectivo outro aparecer como significativas para a

práxis comum”. O autor postula que relações dessa natureza podem ser consideradas

solidárias, uma vez que favorecem não apenas a tolerância com a particularidade

individual do outro, “[...] mas também o interesse afetivo por essa particularidade: só na

medida em que eu cuido ativamente de que suas propriedades, estranhas a mim, possam

se desdobrar, os objetivos que nos são comuns passam a ser realizáveis” (HONNETH,

2003, p. 211, grifo nosso). Tal consideração remete à ideia de alteridade desenvolvida por

Levinas (2005), para quem o outro é o estranho a mim. Nesse sentido, podemos considerar

que a hospitalidade da qual fala Levinas (mencionada no capítulo anterior) guarda estreita

ligação com a ideia de solidariedade.

Saber-se aceito e estimado em suas particularidades pode ser considerado um dos

principais motivos pelos quais tantos sujeitos afirmam terem, no teatro, encontrado o

espaço onde podem ser “eles mesmos”. A estima simétrica estabelecida entre os colegas

de um mesmo grupo, aliada à experiência do reconhecimento em situações de

apresentação, no encontro com o outro-espectador, são responsáveis, em grande parte,

pelo sentimento de autoestima, que tantos sujeitos relataram como contribuição ímpar do

teatro no processo de metamorfose identitária.

[...] vai de par com a experiência da estima social uma confiança emotiva na

apresentação de realizações ou na posse de capacidades que são reconhecidas

como “valiosas“ pelos demais membros da sociedade; com todo o sentido, nós

podemos chamar essa espécie de auto-realização prática, para a qual

predomina na língua corrente a expressão “sentimento do próprio valor”, de

“auto-estima” [...] Na medida em que todo membro de uma sociedade se coloca

em condições de estimar a si próprio dessa maneira, pode se falar então de um

estado pós-tradicional de solidariedade social”. (HONNETH, 2003, p. 210,

grifos do autor)

Partindo do entendimento de Hegel, Honneth (2003, p. 154) aponta a

solidariedade como a “forma mais exigente de reconhecimento recíproco”, uma vez que

ela pressupõe, entre todos os membros de uma coletividade, o respeito por cada qual em

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sua particularidade individual. De forma que a solidariedade “se apresenta como uma

síntese dos dois modos precedentes de reconhecimento, porque ela partilha com o

‘direito’ o ponto de vista cognitivo do tratamento igual universal, mas com o ‘amor’, o

aspecto do vínculo emotivo e da assistência” (HONNETH, 2003, p. 153). O fazer teatral

é bastante benéfico ao estabelecimento de relações dessa natureza, em que existe tanto o

vínculo do afeto quanto o tratamento de todos como iguais. É o que costuma ocorrer, no

entender de Hargreaves (1990, p. 152, grifos nossos), quando se montam peças teatrais

em ambientes escolares:

Individualmente, atores podem ser excelentes e ser reconhecidos por isso. Mas

o sucesso de poucos não gera um senso de fracasso no resto, como geralmente

acontece na sala de aula. Aqueles com contribuições menores compreendem

perfeitamente bem que eles não poderiam ser as “estrelas” do show, mas eles

sabem que tiveram uma contribuição que é essencial à toda a empreitada e que,

portanto, sabidamente tem o seu valor. Uma peça, assim, confere aos

participantes dignidade [...]. Cada um faz uma contribuição, a execução

competente de cada um desperta um sentimento de valorização. Solidariedade

e dignidade são desenvolvidas simultaneamente.

Honneth (2003, p. 211) ressalta que apenas as relações sociais no campo da

solidariedade “podem abrir o horizonte em que a concorrência individual por estima

social assume uma forma isenta de dar, isto é, não turvada por experiências de

desrespeito”. Essa concorrência individual por reconhecimento poderia ser acirrada em

atividades teatrais, ainda mais particularmente durante a adolescência, e em contextos

escolares. Apresentar-se ao público, assumir papéis (dos mais diversos tamanhos) em

uma peça, expor-se continuamente ao olhar crítico do outro (tanto em apresentações,

quanto nas próprias aulas), ter suas performances, cenas, criações e ideias debatidas (e às

vezes não aceitas) pelo grupo – situações como essas, corriqueiras no trabalho com teatro,

poderiam resultar em relações de competição e servir de estímulo à vaidade e ao

egocentrismo. Mas o que as narrativas apresentadas nesta tese testemunham é o exato

oposto: para muitos dos entrevistados, no teatro não há competição; cada qual (do

protagonista ao contrarregra) se sente individualmente valorizado em suas

particularidades e funções. Quando algum membro apresenta certa dificuldade (seja para

dizer uma fala, como no caso da aluna Joana, seja para executar determinado gesto, como

o ex-aluno Rodrigo), os demais se mobilizam para auxiliá-lo – e tal mobilização deixa

marcas significativas na construção identitária. Não à toa, o “eu seguro minha mão na

sua” da roda de concentração é destacada por muitos como representação máxima do que

é o próprio teatro.

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Evidentemente, quando afirmamos a potencialidade do teatro em favorecer o

reconhecimento no campo da solidariedade, consideramos, em especial, processos de

trabalho que se pautam por princípios colaborativos. Assim sendo, cabe aqui destacar que

Honneth circunscreve as relações solidárias ao campo da “comunidade de valores”.

Processos de natureza colaborativa – como os desenvolvidos na escola na qual estudaram

grande parte dos sujeitos desta pesquisa – costumam ser regidos por valores de

participação, igualdade e liberdade, como já destacado em pesquisa anterior (HANSTED,

2013). Fazer teatro, nesses termos, demanda comprometimento e disponibilidade, em

diversos aspectos: “para construir o conhecimento, para assumir responsabilidades na

construção do espetáculo e para trocar com o outro, na cena e fora dela. Dessa forma,

respeito mútuo, dignidade, tolerância e solidariedade vão sendo também construídos

como valores” (HANSTED, 2013, p. 245). Se no estudo precedente destacamos tais

valores como parte da contribuição do teatro, em contexto escolar, à formação da

cidadania, na presente pesquisa compreendemos que eles são fundamentais aos processos

de construção da identidade dos alunos.

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CONCLUSÃO

Iniciamos esta pesquisa com uma hipótese: o ensino de teatro, durante a

adolescência, poderia impactar processos identitários, de modo a favorecer o processo de

emancipação dos indivíduos. Suposição, esta, baseada em estudos empreendidos durante

pesquisa de Mestrado e em experiências pessoais vivenciadas no decorrer de duas décadas

de docência na área. Contudo, não poderíamos apresentá-la, a priori, como tese.

Que o teatro “faz bem”, “é bom” e “muda a vida” certamente muitos professores

da área já escutaram de seus alunos. Mas em que medida afirmações como essas de fato

revelam impactos sobre a identidade dos estudantes? Somente um estudo aprofundado

acerca dos processos de construção da identidade, como o que nos propusemos a

apresentar neste trabalho, poderia fornecer alguma pista.

Desde o início, tínhamos a perspectiva de que algumas outras questões, também

cruciais à pesquisa, não seriam respondidas apenas a partir de estudos conceituais. No

caso de o teatro de fato influenciar processos de construção da identidade, quais seriam

as principais transformações? Como ocorreriam? Teriam elas sentido emancipatório?

Seriam essas transformações comuns a adolescentes diferentes? Para responder a essas

questões, não bastaria uma análise teórica; qualquer conclusão nesse sentido seria mera

especulação retórica. A fim de respondê-las de modo genuíno, julgamos imprescindível

dar voz aos próprios sujeitos da experiência – adolescentes que fazem teatro –, buscando

desvelar, em suas narrativas, pontos comuns, ideias recorrentes, fragmentos

emancipatórios e outros elementos que pudessem esclarecer os questionamentos.

Havia ainda, desde o princípio do trabalho, uma questão-chave que possivelmente

não seria respondida apenas dando voz aos próprios adolescentes e cruzando os dados

obtidos com uma base teórica no campo da identidade: seriam duradouros os impactos

identitários? Em outras palavras: em longo prazo, o fazer teatral da adolescência

continuaria reverberando, de modo a influenciar as representações que os indivíduos têm

e buscam para si, seus relacionamentos pessoais, suas escolhas profissionais e até mesmo

suas metamorfoses posteriores? Ou, parafraseando Desgranges (2013, p. 25), uma

questão permaneceria “[...] tão insondável quanto inquietante: o que terá ficado na alma

daqueles meninos, após anos de experiência com o teatro?”. Isso somente o tempo poderia

dizer... ou, então, a oportunidade de escutar sujeitos adultos, que tivessem feito teatro

durante a adolescência, dispostos a discorrer sobre suas experiências e trajetórias de vida.

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Desses questionamentos nasceu esta pesquisa; e das possibilidades para a busca

de respostas, derivaram seus encaminhamentos. O desenrolar dos estudos, desde a

investigação empírica até a análise teórica dos dados colhidos, confirmou,

reiteradamente, nossas suspeitas iniciais; de modo que aquela que era nossa hipótese

agora se apresenta como tese: o teatro, em contextos educacionais, pode contribuir para

a construção da identidade dos alunos, tendo em vista o forte potencial emancipatório que

a atividade encerra.

Não há dúvidas de que ocorreram metamorfoses em indivíduos que, a partir da

experiência com o teatro, modificaram suas escolhas profissionais, superaram crises

existenciais, passaram a gostar de si mesmos, modificaram a forma como se relacionam

com os outros ou se descobriram capazes de expressar suas opiniões – apenas para citar

alguns dos exemplos de mudanças significativas que nossos sujeitos expuseram durante

as rodas de conversa e as entrevistas. Decerto, trata-se de metamorfoses que expressam

fragmentos emancipatórios. Metamorfoses que permitiram, aos sujeitos, superar

estigmas, ressignificar a autoimagem, estabelecer uma autorrelação positiva,

(re)conectar-se com aquilo que lhes confere sentido à existência, vislumbrar novas

perspectivas projetivas com relação ao futuro, redefinir trajetórias.... E tantas outras

formas de expansão dos possíveis.

Esses impactos, reveladores do processo de identidade-metamorfose-

emancipação, são comuns aos diferentes perfis de entrevistados com que trabalhamos.

Adolescentes e adultos, independentemente de estarem fazendo teatro hoje ou de terem

vivido essa experiência há mais de 10, 15 ou 20 anos, apresentaram narrativas bastante

similares em diversos pontos. Por certo, os adultos nos auxiliaram na compreensão de

como, em longo prazo, o fazer teatral pode contribuir para a construção de trajetórias de

vida. Além disso, como era de se esperar, esse grupo refletiu com maior maturidade

acerca dos próprios processos de formação da identidade. As narrativas dos adolescentes,

por sua vez, evidenciaram a intensidade com que esses sujeitos vivenciam as experiências

propiciadas pelo teatro – embora muitos deles não tenham encontrado termos assertivos

para explicar a “avalanche” de sentimentos que o fazer teatral lhes desperta. Ainda assim,

do ponto de vista das percepções existenciais e dos processos emancipatórios, as reflexões

de ambos os grupos são notavelmente análogas.

Se pensarmos, isoladamente, nas características do fazer teatral, especialmente em

modos de trabalho colaborativos, como aqueles desenvolvidos na escola onde se deu a

experiência teatral da maior parte dos sujeitos, talvez não cause surpresa essa

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correspondência entre os depoimentos de sujeitos de idades distintas. Contudo, à luz de

fatores como o grau de maturidade emocional, a experiência de vida, o próprio caráter

seletivo e fragmentado da memória, e, em particular, os diferentes contextos sócio-

históricos nos quais cada grupo teve sua experiência teatral (adolescentes imersos na

cultura digital e adultos que vivenciaram sua adolescência em uma época anterior), as

semelhanças entre as narrativas chamam a atenção e podem até ser consideradas

surpreendentes. Uma comparação mais aprofundada entre as percepções dos dois grupos

etários, levando em conta os fatores já mencionados, não caberia no escopo desta

pesquisa, mas fica como possibilidade de continuidade do trabalho.

Os pontos em comum entre as narrativas apresentadas nas rodas de conversa dos

capítulos 1 e 2 também coincidem com as questões mais recorrentes nas falas dos

entrevistados não alunos da pesquisadora, expostas no capítulo 3. Dentre essas

semelhanças, destacam-se: o modo como diferentes sujeitos descrevem o perfil de seus

respectivos grupos de teatro; as causas apontadas para os processos de metamorfose; e as

consequências identitárias do contato com a linguagem artística. No que diz respeito às

características do grupo de teatro apontadas tanto por alunos quanto por não alunos da

pesquisadora, sobressaem a diversidade, o acolhimento, a ausência de preconceitos e a

abertura à discussão de ideias. No tocante às causas de metamorfose identitárias comuns

às diferentes narrativas, figuram o contato com a plateia, as possibilidades de

experimentação e de extravasamento oferecidas pela linguagem teatral e a vivência de

diferentes situações e papéis. Já no que tange às consequências identitárias, diversos são

os pontos em comum: superação de problemas pessoais, reflexão crítica, empatia,

autoconfiança, autoconhecimento, desconstrução de ideias pré-concebidas, sensação de

pertencimento, resgate da autoestima, construção de autoimagem positiva, superação de

identidade estigmatizada, escolha e atuação profissional e maior facilidade de

comunicação.

Todas essas questões, em nosso entender, estão fundamentalmente atreladas ao

fato de o fazer teatral constituir espaço privilegiado para o exercício da alteridade. As

relações estabelecidas com o que chamamos de outro-personagem, outro-colega e outro-

espectador são, como visto nos capítulos 5 e 6, os grandes favorecedores de metamorfoses

identitárias de cunho emancipatório. Desses encontros, emerge a possibilidade do

encontro com o que denominamos outro-eu: sujeito emancipado, de perspectivas

ampliadas, com potencial para alcançar a unidade de pensamento e ação. Tendo em vista

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a relevância que esses “outros” adquiriram no decorrer desta investigação, consideramos

importante, a título de conclusão, destacar algumas reflexões acerca de cada um deles.

O encontro com o outro-personagem e o consequente exercício de enxergar o

mundo com outros olhos figuram como uma oportunidade singular de ampliação das

“ofertas de identidades possíveis” (DUBAR, 2005, p. 108). Afinal, na busca interna e

externa do outro-personagem, que tanto tem de nós mesmos, em geral passamos a nos

conhecer melhor e ampliamos o nosso repertório sobre maneiras de ser e estar no mundo.

Liberdade, autoestima, superação de problemas pessoais, autoconhecimento e

emancipação são decorrências desse encontro. Liberdade, porque o aluno, seja em

apresentações ao público externo, seja em improvisações dentro das próprias aulas, ao

viver um personagem ou uma situação cênica com a verdade sobre a qual discorremos no

capítulo 4, tem a possibilidade de se redescobrir de formas variadas. Despoja-se, nesse

jogo, da obrigação de ser “ele mesmo” – ou agir do modo como os outros (no caso, seus

colegas de escola), estão acostumados a vê-lo agir. Daí advém a sensação de que é

possível ser diferente do que sempre foi, ou até ser “ele mesmo”, como muitos colocaram.

Autoestima, porque no espaço cênico, o aluno não apenas pode ser diferente do que

costuma ser, como também tende a ser elogiado quando consegue transfigurar-se,

metamorfoseando-se em sua personagem. De modo que o teatro, em especial na

adolescência, é uma oportunidade para que o estudante vivencie o reconhecimento

intersubjetivo de suas capacidades. Além disso, esse reconhecimento pode se transferir

para diferentes contextos, visto que membros da comunidade escolar, como professores

e demais alunos, passam a reconhecê-lo em outras situações – por exemplo,

parabenizando-o em sala de aula pelo desempenho apresentado no palco. Superação de

problemas, pois ao engajar-se na situação da cena, o aluno vive, momentaneamente, outra

realidade. Suas questões pessoais, seus problemas particulares, suas preocupações

corriqueiras, não cabem neste outro universo, que, como visto no decorrer da

investigação, por vezes chega a ser “terapêutico”. Autoconhecimento, porque, ao buscar

a autenticidade da cena, engajado corporal e mentalmente na situação do outro-

personagem, o sujeito percebe que pode agir de maneiras diferentes, falar de maneiras

distintas, ser de outras formas. E, finalmente, emancipação, já que, ao vivenciar, em cena,

a unidade entre pensamento e ação, subjetividade e objetividade, o sujeito pode encontrar

meios de, na vida, viver a mesmidade de ser e pensar – que, como observado, constitui

exatamente o movimento da metamorfose em busca de emancipação.

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O encontro com o outro-colega, com quem o aluno se relaciona fora e dentro da

cena, também despontou em nossa pesquisa como importante fator na constituição

identitária dos sujeitos. Nesse sentido, em especial durante a adolescência e em contexto

escolar, o teatro potencializa a metamorfose de sentido emancipatório por favorecer

processos de socialização, oferecendo aos alunos a oportunidade de vivenciar uma

significativa experiência de grupo. Grupo que, não raro, torna-se para os participantes um

grupo de referência, em que muitos constroem suas identidades visadas, já que ali

encontram aquilo que desejam ser, tanto do ponto de vista pessoal quanto profissional.

Grupo de pertencimento, no qual os sujeitos sentem que, finalmente, encontraram sua

“tribo”, seu “lugar no mundo”, para além dos rótulos que antes os aprisionavam. Grupo

propício à construção de uma autorrelação positiva, já que muitas vezes privilegia a

experiência do reconhecimento. Grupo favorável ao estabelecimento de fortes vínculos

afetivos, não apenas porque ali se exercita a escuta, o não julgamento, a valorização da

diversidade e a possibilidade do erro, mas por conta da própria especificidade do fazer

teatral: as relações da cena, em que os colegas se comunicam via linguagem artística e

em que se estabelecem formas de interação não cotidianas – e, por isso, extraordinárias –

muitas vezes aproxima os sujeitos envolvidos e facilita o estabelecimento de vínculos de

amizade e solidariedade, não raro também percebidos como extraordinários. Naquele

espaço, ele sabe que pode ser ele mesmo. Está em casa. Construiu para si uma nova

família.

E é neste e com este grupo que o indivíduo se encontra com o outro-espectador,

tendo a oportunidade de vivenciar outra experiência de reconhecimento contundente, uma

vez que implica a exposição àqueles que, até então, não fazem parte do processo criativo

– colegas de escola, professores, familiares. Um encontro que, em última instância,

representa a oportunidade de enfrentar o tão temido olhar externo, amplamente

mencionado pelos sujeitos da pesquisa. Dessa forma, o outro-plateia pode ser

generalizado como o outro que gera medo – medo da opinião, da crítica, do julgamento –

, e a experiência de reconhecimento, como a superação desses receios. Assim como no

encontro com o outro-colega, a comunicação com o outro-espectador muitas vezes

extrapola o plano da fantasia, em que ator e plateia interagem durante o ato teatral. Ver

um aluno em cena é vê-lo “outro” – e é percebê-lo “outro” também fora da cena. Nesse

processo, transforma-se o modo como o aluno é visto e também como se vê: aquele que

se considerava “desdotado” é agora reconhecido como talentoso; o “bobo”, como

disciplinado; o incapaz, como capaz. Ou seja, a partir de um processo relacional, que

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surge por meio da linguagem artística, a identidade para o outro é transformada, e, com

ela, também a identidade para si.

Os encontros com o outro-personagem, o outro-colega e o outro-espectador

ampliam as possibilidades identitárias do sujeito, viabilizando o encontro com o outro-

eu. Um encontro que também pode ser compreendido pelo viés da emancipação, visto

que a partir dele o indivíduo pode negar o que o nega, caminhar no sentido de maior

humanidade em si próprio e nas relações que estabelece, construir perspectivas futuras,

redesenhar seu modo de interagir consigo mesmo e com o outro, descobrir novos modos

de ser... ser-para-si. De modo que o teatro, arte que tem na metamorfose uma atividade-

chave, se apresenta, em contextos educacionais, durante a adolescência, como

possibilidade de significativas metamorfoses identitárias.

Diante de tudo o que até foi exposto, acreditamos que a potência e a contundência

dos processos emancipatórios verificados tenham estrita ligação com o fato de lidarmos

com um espaço de fazer-artístico-coletivo, em que cada componente da expressão (o

fazer, o artístico e o coletivo) tem fundamental significância. Fazer, porque, como visto,

a ação ocupa lugar central nos processos de construção da identidade. Artístico, porque a

arte carrega em si as possibilidades de humanizar, transcender, lançar novos olhares sobre

a realidade e construir diferentes mundos. E, finalmente, coletivo, já que é no processo de

socialização, e evidentemente, na coletividade, que nos construímos.

Considerando o teatro como nosso principal objeto de estudo, podemos, a partir

de tudo o que foi estudado, afirmar que os fragmentos emancipatórios ocorrem porque

falamos de um espaço de fazer-teatral-coletivo: teatral, porque as especificidades desta

forma artística (como a construção de papéis, a relação palco-plateia e a colaboração

própria do teatro) foram, como confirmado pelos depoimentos de muitos participantes,

determinantes na deflagração de processos emancipatórios. E se levarmos em conta que

o teatro já implica a coletividade como fundamento, chegamos à conclusão de que é o

próprio fazer teatral que promove metamorfoses identitárias de caráter emancipatório.

Metamorfoses que já se evidenciam – e são percebidas pelos sujeitos da experiência –

durante a própria adolescência; e, que, em longo prazo, contribuem de variadas maneiras

para a construção de trajetórias de vida, impactando, inclusive, processos de reconstrução

da identidade mesmo muitos anos depois da experiência vivenciada em contexto escolar.

Entendemos, ainda, que o espaço físico e a faixa etária que caracterizam o recorte da

pesquisa também potencializam a contundência das construções identitárias verificadas;

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afinal, escola e adolescência são, respectivamente, espaço e período cruciais para o

processo de socialização.

Ao falar sobre identidade, teatro, contextos escolares, trajetórias de vida,

adolescência e outros assuntos abarcados pela complexidade das perguntas que nos

propusemos a responder, concentramos nossos esforços na articulação entre as temáticas,

a fim de estabelecer pontes que nos auxiliassem na elucidação de nosso problema de

pesquisa. Isso posto, buscamos restringir nossas explanações aos aspectos essenciais e

mais relevantes à investigação. Certamente, existe muito mais a ser explorado e

aprofundado em cada um dos assuntos abordados neste estudo e também na articulação

entre eles. Ciampa, Dubar, Honneth decerto têm muito mais a nos ensinar acerca de

identidade, socialização e reconhecimento do que aquilo que aqui se apresenta. A

importância do teatro em contextos educacionais é assunto que merece atenção e envolve

diversas questões não abarcadas em nosso recorte. As particularidades da adolescência

como fase crucial à construção da identidade são apenas superficialmente mencionadas

em nossa pesquisa. Cada uma dessas questões originaria, por si só, uma tese específica, e

ainda assim o assunto não se esgotaria. De todo modo, que as ressalvas não se apresentem

como desculpas: esperamos que nosso recorte, mesmo abrindo mão de maiores

particularidades acerca de cada temática individualmente, possa, na articulação entre elas,

construir uma tese suficientemente embasada. Uma tese que evidencie a potência do

teatro para engendrar metamorfoses identitárias de sentido emancipatório.

Metamorfoses que, antes de chegarem a nós mesmos, passam pelo outro. Afinal,

no teatro, saímos de nós, para nos encontrarmos – um exercício de alteridade em direção

à identidade. Melhor dizendo: na prática da alteridade, (re)construo minha identidade. No

encontro com o outro, encontro-me a mim. E assim, o teatro, por ser teatro, transforma a

própria concepção simplista de identidade no sentido de “o que eu sou”. Ali, me descubro

outro, me descubro múltiplo... e descubro o outro, mais que a mim mesmo. Olho para fora

de mim. Cabe, agora, voltar à pergunta com que iniciamos a tese (“Afinal, o que é

teatro?”), para novamente respondê-la, de modo mais genuíno, a partir das palavras de

um dos sujeitos da experiência: “O teatro é ‘nós somos’ e o teatro é ‘eu sou’, ‘eu posso

ser’. Eu posso ser o que nós somos”.

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EPÍLOGO

— Como foi a aula hoje? – pergunto eu à minha filha, Alice, agora já com quatro

anos. E sua resposta rica em detalhes maravilha-me como outrora me maravilhavam seus

balbucios e caretas.

Então, refestelada na cadeira do escritório, com algumas rugas a mais e as olheiras

aprofundadas, travo a derradeira conversação entre os três papéis que coabitam meu palco

identitário.

— Bem, creio que este seja o fim da tese. – sugere a Mãe.

A Pesquisadora aflige-se:

— Fim? Mas ainda há tanto o que falar... – e lança um olhar agoniado à

Professora.

— Sinto muito. Não posso mais seguir com você. Mas preciso dizer que

acompanhá-la nesta jornada foi inspirador. Quantas e quantas vezes, ao longo desses anos,

tive a oportunidade de revistar minha própria trajetória... Reencontrar tantos ex-alunos,

saber de suas vidas, constatar que os laços uma vez estabelecidos continuam fortes

emocionou-me e renovou-me os ânimos.

— Sei bem disso. Aliás, foi um desafio manter meu olhar apartado do seu, fazer

minha voz predominar sobre suas emoções...

— Entendo. Mas se não fosse por mim, esta pesquisa seria outra.

— Tem toda razão. Foi sua experiência quem me impulsionou a seguir e guiou

minhas reflexões. Formamos um bom time.

— Sim. Mas agora, até motivada por tudo o que vivenciamos e refletimos juntas,

preciso de um pouco mais de espaço para me dedicar a outros projetos, com meus alunos.

— Está bem. Para mim também talvez seja melhor parar por aqui. Estou mesmo

precisando de um descanso...

A Mãe, finalmente, já cansada de silenciar em presença das outras duas, põe fim

ao diálogo:

— Muito bem. E agora basta. Alice me chama... e já não posso mais fazê-la

esperar.

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215

ANEXOS

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216

ANEXO A

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

TÍTULO DA PESQUISA “TEATRO, ESCOLA E IDENTIDADE: O MUNDO

INTEIRO É UM PALCO” (TÍTULO PROVISÓRIO)

Nome do(s) responsável(is)

Profª TALITHA CARDOSO HANSTED

PROF. DR. JOSÉ ROBERTO MONTES HELOANI

Programa de Pós Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da

Universidade Estadual de Campinas.

Número do CAAE:

Você está sendo convidado a participar como voluntário de uma pesquisa. Este

documento, chamado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, visa assegurar seus

direitos como participante e é elaborado em duas vias, uma que deverá ficar com você e

outra com o pesquisador. Por favor, leia com atenção e calma, aproveitando para

esclarecer suas dúvidas. Se houver perguntas antes ou mesmo depois de assiná-lo, você

poderá esclarecê-las com o pesquisador. Se preferir, pode levar este Termo para casa e

consultar seus familiares ou outras pessoas antes de decidir participar. Não haverá

nenhum tipo de penalização ou prejuízo se você não aceitar participar ou retirar sua

autorização em qualquer momento.

Justificativa e Objetivos:

No Brasil, o espaço dedicado a atividades teatrais em instituições de ensino é, de

modo geral, ainda incipiente. Nesse sentido, entendemos que estudos que valorizam e

incentivam o teatro em seus projetos pedagógicos podem contribuir tanto para a

ampliação do debate sobre o tema como para a elaboração de trabalhos teatrais adaptados

a outras instituições de ensino. O objetivo da pesquisa é investigar o papel do teatro na

escola e sua contribuição para a construção da identidade dos alunos. O estudo busca

compreender se, como e por quê a atividade teatral pode impactar a construção identitária,

de modo a influenciar as imagens que os indivíduos têm e buscam para si próprios, seus

relacionamentos pessoais e escolhas profissionais.

Procedimentos:

Durante o estudo, serão realizadas rodas de conversa entre sujeitos que integraram

e/ou integram grupos teatrais escolares. Cada participante será convidado a refletir sobre

a contribuição da experiência teatral para a construção de sua trajetória e identidade. Cada

voluntário participará de apenas uma roda de conversa. Alguns participantes poderão ser

também convidados a participar de entrevistas individuais semiestruturadas, para

discorrer com maior detalhamento sobre tópicos abordados na roda. Estima-se que tanto

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217

as rodas de conversa quanto as entrevistas terão duração de aproximadamente duas horas.

Todos os procedimentos serão registrados em vídeo, para uso exclusivo da pesquisadora.

Benefícios:

Não são previstos benefícios diretos aos participantes. Entretanto, espera-se que os

resultados deste estudo sejam usados em benefício de outros sujeitos, uma vez que a

pesquisa visa contribuir com novos conhecimentos para o aprimoramento da prática do

teatro na escola básica e com a elaboração de políticas públicas de valorização dessa arte

nas escolas.

Desconfortos e riscos:

A participação neste estudo não acarreta riscos físicos ou psicológicos.

Acompanhamento e assistência:

Não se aplica

Sigilo e privacidade:

Os dados pessoais serão mantidos em sigilo e permanecerão sob a guarda da

pesquisadora, sendo destruídos após cinco anos. Os resultados gerais obtidos na pesquisa,

bem como as imagens coletadas, serão utilizados apenas para alcançar os objetivos do

trabalho, expostos acima, incluindo apresentações em atividades acadêmicas, publicações

e eventos científicos de áreas afins.

Ressarcimento e Indenização:

Uma vez que a natureza da pesquisa e o método adotado não oferecem riscos de

qualquer natureza, não está previsto nenhum tipo de ressarcimento aos participantes, que

ficam também isentos de qualquer ônus financeiro. Entretanto, todos terão direito à

indenização por eventuais danos decorrentes da pesquisa.

Contato:

Em caso de dúvidas sobre a pesquisa, você poderá entrar em contato com a

pesquisadora Talitha Cardoso Hansted, pelo telefone (19) 997727409 ou e-mail

[email protected].

Em caso de denúncias ou reclamações sobre sua participação e sobre questões éticas

do estudo, você poderá entrar em contato com a secretaria do Comitê de Ética em

Pesquisa (CEP) da UNICAMP das 08:30hs às 11:30hs e das 13:00hs as 17:00hs na Rua:

Tessália Vieira de Camargo, 126; CEP 13083-887 Campinas – SP; telefone (19) 3521-

8936 ou (19) 3521-7187; e-mail: [email protected].

O Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).

O papel do CEP é avaliar e acompanhar os aspectos éticos de todas as pesquisas

envolvendo seres humanos. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), tem

por objetivo desenvolver a regulamentação sobre proteção dos seres humanos envolvidos

nas pesquisas. Desempenha um papel coordenador da rede de Comitês de Ética em

Pesquisa (CEPs) das instituições, além de assumir a função de órgão consultor na área de

ética em pesquisas

Consentimento livre e esclarecido:

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218

Após ter recebido esclarecimentos sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos,

métodos, benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar,

aceito participar dos seguintes procedimentos:

( ) Roda de conversa e, caso convidado, entrevista individual.

( ) Apenas roda de conversa.

Declaro estar recebendo uma via original deste documento assinada pelo pesquisador

e por mim, tendo todas as folhas por nós rubricadas:

Nome do (a) participante: _____________________________________________

Contato telefônico: __________________________________________

e-mail (opcional): __________________________ Data: ____/_____/______.

________________________________________________________________

(Assinatura do participante ou nome e assinatura do seu RESPONSÁVEL LEGAL)

Responsabilidade do Pesquisador:

Asseguro ter cumprido as exigências da resolução 466/2012 CNS/MS e

complementares na elaboração do protocolo e na obtenção deste Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido. Asseguro, também, ter explicado e fornecido uma

via deste documento ao participante. Informo que o estudo foi aprovado pelo CEP perante

o qual o projeto foi apresentado e pela CONEP, quando pertinente. Comprometo-me a

utilizar o material e os dados obtidos nesta pesquisa exclusivamente para as finalidades

revistas neste documento ou conforme o consentimento dado pelo participante.

______________________________________________Data: ____/_____/______

(Assinatura do pesquisador)

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219

ANEXO B

TERMO DE ASSENTIMENTO

Você está sendo convidado a participar como voluntário de uma pesquisa para

desenvolvimento do projeto intitulado “Teatro, Escola e Identidade: o mundo inteiro é

um palco”, de autoria de Talitha Cardoso Hansted, doutoranda da Universidade Estadual

de Campinas.

O objetivo da pesquisa é investigar o papel do teatro na escola e sua contribuição para

a construção da identidade dos alunos. O estudo busca compreender se, como e por quê

a atividade teatral pode impactar a construção identitária, de modo a influenciar as

imagens que os indivíduos têm e buscam para si próprios, seus relacionamentos pessoais

e escolhas profissionais.

Você está sendo convidado porque é ou foi aluno de teatro da pesquisadora, e sua

reflexão sobre a contribuição desta experiência para a construção de sua trajetória e

identidade é de fundamental importância para o desenvolvimento deste projeto.

Sua participação é voluntária, e caso você decida não participar, nada mudará em seu

tratamento ou nos relacionamentos dentro da escola. Além disso, se você mudar de ideia

e desistir de participar, não haverá qualquer problema.

Durante o estudo, serão realizadas rodas de conversa entre alunos que integraram

e/ou integram grupos teatrais escolares. Cada voluntário participará de apenas uma roda

de conversa. Alguns participantes poderão ser também convidados a participar de

entrevistas individuais semiestruturadas, para discorrer com maior detalhamento sobre

tópicos abordados na roda. Se você aceitar participar da roda, mas não da entrevista,

também não haverá qualquer problema. Estima-se que tanto as rodas de conversa quanto

as entrevistas terão duração de aproximadamente duas horas. Todos os procedimentos

serão registrados em vídeo, para uso exclusivo da pesquisadora.

A pesquisa respeitará as normas estabelecidas no Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA).

A participação neste estudo não acarreta riscos físicos ou psicológicos.

A participação nesta pesquisa não implica em qualquer ônus financeiro, da mesma

forma que não haverá pagamento aos participantes. Todos terão direito a indenização em

casos de danos decorrentes das rodas de conversa e entrevistas.

Espera-se que os resultados deste estudo sejam usados em benefício de outros sujeitos,

uma vez que a pesquisa visa contribuir com novos conhecimentos para o aprimoramento

da prática do teatro na escola básica e com a elaboração de políticas públicas de

valorização dessa arte nas escolas.

Seus dados pessoais serão mantidos em sigilo e os resultados gerais obtidos na

pesquisa, bem como as imagens coletadas, serão utilizados apenas para alcançar os

objetivos do trabalho, expostos acima, incluindo apresentações em atividades

acadêmicas, publicações e eventos científicos de áreas afins. As imagens coletadas serão

armazenadas em arquivo de vídeo mp4, no computador pessoal da pesquisadora, com

cópia em HD externo, sendo que apenas a pesquisadora e seu orientador terão acesso a

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220

elas. Ressalta-se que os dados permanecerão sob a guarda da pesquisadora por cinco anos,

antes de serem destruídos.

Em caso de dúvidas sobre a pesquisa, você poderá entrar em contato com a

pesquisadora Talitha Cardoso Hansted, pelo telefone (19) 997727409 ou e-mail

[email protected].

CERTIFICADO DE ASSENTIMENTO

Eu,________________________________________________________________,

RG: _____________________________________, atualmente com ______ anos de

idade, entendi que: a pesquisa é sobre o papel do teatro na escola e sua contribuição para

a construção da identidade dos alunos; serão realizadas rodas de conversa entre alunos

que integraram e/ou integram grupos teatrais escolares; alguns participantes poderão ser

também convidados a participar de entrevistas individuais semiestruturadas, para

discorrer com maior detalhamento sobre tópicos abordados na roda. Levando isso em

conta, CONCORDO em:

( ) Participar das rodas de conversa e, caso convidado, também das entrevistas.

( ) Participar apenas das rodas de conversa.

Assinatura: _______________________________________.

Nome e assinatura dos pais/responsáveis:

_____________________________________________________________________

Nome e assinatura do pesquisador responsável por obter o consentimento: ___

___________________________________________________________________.

Campinas, _____ de ___________________________________de _____.

Obs: Será apresentado em duas vias (uma a ser entregue à criança/adolescente/família e outra que ficará

com o pesquisador responsável); a primeira página deve ser rubricada e a segunda assinada.

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221

ANEXO C

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222

ANEXO D

Depoimentos do capítulo 4, na íntegra:

1.

A experiência do teatro na escola transformou inteiramente a forma que vejo a vida. Existe uma potência

imensa na arte e no ato de pertencer a um espaço que trabalha a sensibilidade, a expressão criativa e a

empatia. É como um mergulho em nossas profundezas, que nos possibilita acessar riquezas internas antes

desconhecidas. Grande parte desse desbravar se dá na troca, ao presenciarmos a força dos olhares múltiplos

e da coletividade. Quando chegamos ao ponto mais fundo, juntos, emergimos até a superfície. Ali, é como

se fizéssemos contato e convidássemos todos para entrar na água - afinal, somos todos corpos performando

no mundo, compostos da mesma matéria, compartilhando da condição humana de experienciar a alegria e

a dor. Acho que é essa energia que o teatro nos proporciona: a experiência de que estamos profundamente

conectados, a força do olhar sensível à existência e a possibilidade de criarmos a partir do sonho.

(Lucas, 26 anos, Fotógrafo / Artista Visual - fez teatro no IEI de 2005 a 2010)

2.

Simples seria se fosse apenas memorizar um texto acompanhado de uma expressão corporal ensaiada e

articulada. Mas o teatro vai além, proporcionando muito mais que os olhos e ouvidos da plateia podem se

atentar. A arte, em suas diversas formas, manifesta-se no teatro como meio de educação (o mais abrangente,

em minha opinião) para aqueles que assim o encaram. Quando a cortina se abre, e o foco de luz invade o

campo de visão é que temos a dimensão do quão grandiosa é a experiência de teatrar-se. O palco nos dá a

oportunidade de experimentar inúmeras possibilidades, dá asas ao nosso imaginário e permite um vai e vem

entre realidade e ficção. O que nos pede em troca? Comprometimento, convivência, opinião crítica,

empatia, criatividade e trabalho em equipe. Dessa forma, não podemos encarar os ensaios somente como

finalidade para a grande estreia ou demais dias de espetáculos, e sim como exercício semanal (e na reta

final, diário rs) de crescimento individual e coletivo, onde direção, elenco e staff se unem em meio de

figurinos e cenários para encantar a todos que contemplam a peça, fruto de trabalho e dedicação de um ano

letivo. Há aqueles que, quando as cortinas se fecham, acreditem que o espetáculo se finalizou. Privilégio

foi o meu, que, ao fim de uma peça, sentado na plateia, percebi que o espetáculo ainda estava por começar,

e embarquei na deliciosa loucura de fazer parte do elenco do teatro do colégio Imaculada por seis anos.

(Paulo, 24 anos, Médico Veterinário- fez teatro no IEI de 2006 a 2011)

3.

Foram anos suando embaixo dos holofotes. Fazer teatro na escola do 5o ano do fundamental II ao 2o ano

do Ensino Médio foi, para mim, uma experiência determinante para a formação da minha personalidade.

Posso atribuir ao teatro não apenas o desenvolvimento da oratória e expressão corporal, mas também

responsabilidade, organização e respeito. O teatro, quando eu era novo, foi uma lição: todo mundo ali tem

seu momento de aparecer, de falar mais alto. Foi o momento de descobrir os outros; o que um trabalho em

grupo consegue resultar. No fim do fundamental II, o teatro era para mim um compromisso. Ser staff e

atuar, quando necessário, em peças com crianças muito mais novas me ensinou a ter responsabilidade com

o que me comprometo. No primeiro e no segundo ano do Ensino Médio, foram os anos de

autoconhecimento. Mais maduro, pisar na madeira do palco diante do público era mais reflexivo do que

prático; isso porque eu estava dando vida a um personagem. Ao voltar a ser eu mesmo, limpando a bagunça

que os ensaios causavam, era possível entender o porquê eu estava ali, porque sempre estive ali durante

anos, com dificuldades em conciliar teatro e escola e ainda assim persistindo. Do apresentador do circo ao

rei dos elfos, por anos sendo outro alguém, eu me encontrei em um depósito bagunçado. E penso que parte

de mim ainda está lá, em alguma caixa de papelão perdida. Hoje, em outra fase da vida, o teatro persiste na

autoconfiança, na coragem, na argumentação, na postura, em não ter vergonha de sentir e mostrar meus

sentimentos. Tudo referente a sociabilidade para mim reflete muito o aprendido no teatro; lições que não

foram dadas a giz na lousa.

(Nathan, 19 anos, estudante de Arquitetura e Urbanismo - fez teatro no IEI de 2010 a 2016)

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223

4.

Desde criança, sempre fui muito apaixonada por teatro, principalmente musicais. Aos 5 anos de idade,

quando assisti ao musical “A Bela e a Fera” em São Paulo, vi um mundo completamente fascinante na

minha frente, no qual percebi que essas histórias me tocam profundamente e me dão uma paz interior

inexplicável. Comecei na dança aos 6 anos de idade, mas lembro que achava meio chato que não tinham

muito contexto as coreografias, então sentia falta das “histórias” por trás pra ficar mais interessante como

no teatro. Então, como eu amava muito dançar, lembro que eu passava a tarde toda dançando na sala,

criando histórias e coreografias dependendo do estilo de música que escutava. Confesso que minha família

nunca entendeu essa minha paixão por teatro e música, sendo que sempre ouvi que tinha a “doença dos

musicais” como uma forma de piada do meu hobbie, só porque tenho hábitos de tentar decorar as danças,

as músicas e as falas de um filme, peça ou desenho da Disney, por exemplo. Como acredito que já tinha

essa semente plantada em mim, sempre tive vontade de fazer teatro, mas morria de vergonha por ser uma

pessoa tímida que não gosta muito de ser o centro das atenções. Mas foi na sexta série, quando fazer teatro

era obrigatório na escola, que vi o quão mágico é fazer parte da história. Era como se eu me transformasse

e não fosse mais a “Juliana”, parecia que eu fazia parte de algo maior e mais importante do que aquela

realidade superficial de escola e provas. Então, com esse sentimento incrível, entrei no teatro sem medo e

simplesmente não consegui mais parar até o terceiro colegial. Algo que começou pela simples diversão e

estímulo à criatividade, se tornou algo tão importante para a minha construção como pessoa e quem eu sou

atualmente. Lembro que, quando entrei no terceiro colegial, meu pais me fizeram parar a dança para focar

melhor no vestibular e eles também queriam que eu parasse o teatro, mas briguei com unhas e dentes pra

continuar fazendo aulas pra manter a minha “saúde mental” em um ano tão estressante. Por mais exagerada

que essa última frase pareça, realmente acredito que foi o teatro quem me fez ser feliz em 80% do Ensino

Médio tendo em vista que eu me sentia péssima na sala de aula, já que a escola só valoriza os alunos

perfeitos para a Fuvest e Unicamp, aspirantes em medicina, advocacia e/ou engenharia. Eu encontrava

conforto no teatro com amigos e professores que não me julgavam pelos meus hobbies, sendo que inclusive

sentia que eu era valorizada por alguma das minhas “manias estranhas” para a construção de uma cena ou

ideia, por exemplo. Isso faz muita diferença na vida de qualquer pessoa, porque como eu sentia que nada

fazia sentido das matérias escolares na minha vida, achar algo com o qual eu me identificava dava um

propósito no meu dia a dia. Em poucas palavras, não me sentia uma inútil quando fazia teatro. Não me

importava por ser péssima em física/química/matemática, enquanto eu me entregava de corpo e alma para

algo que me fazia feliz. Além disso, realmente acredito que me tornei uma pessoa melhor depois do teatro,

quando vi que consegui superar a timidez e falar em público, amando fazer apresentações, nem que seja

pra vender uma campanha de refrigerantes. E por fim, outro aprendizado que tive naquele palco e que

realmente me conforta é que ninguém está sozinho. Todo Chicó tem seu João Grilo, todo deus grego tem

seu grupo de mortais, todo irmão de Siracusa encontra seu gêmeo de Éfeso. Basicamente é isso que eu mais

levo de valioso dos meus anos de teatro, que quando todos se unem com um único propósito, independente

se você for um palhaço, uma bailarina, um halterofilista ou um ventríloquo, é possível descobrir quem

matou o leão no final das contas e não há palavras que escrevam o quão satisfatório é apresentar esse circo

junto com o seu grupo.

(Juliana, 22 anos, Publicitária - fez teatro no IEI de 2009 a 2014)

5.

Gostaria de dar meu depoimento como mãe de aluna e integrante do grupo de teatro. Posso afirmar que o

teatro do Imaculada exerceu e exerce muitas transformações na vida da minha filha. Criar, emocionar,

interagir; solidariedade, trabalho em equipe, entrega, dedicação, compromisso. Nesses anos todos (a Laura

está no segundo ano EM e faz parte do teatro desde o quinto ano), posso dizer que ela cresceu, amadureceu,

aprendeu muito com esse grupo. Enfrentou desafios e fez grandes amizades. Aprendeu a confiar em si

mesma e se apaixonou pela arte. Nós, pais, temos imensa gratidão a esse trabalho que tanto agregou à vida

de nossa filha. Somos tomados por um enorme encantamento cada vez que assistimos aos espetáculos, que

ficam eternizados em nosso imaginário! Adorei a ideia do memorial do teatro do IEI, projeto mais do que

necessário, pois o teatro é fundamental na vida da gente!

(Roberta, Psicóloga, mãe de aluna)

6.

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Eu sempre achei incrível a ideia de interpretar personagens e apresentar histórias para as pessoas. Quando

entrei no Imaculada, em 2001, com 7 anos, eu não via a hora de ter aula com a “professora loira e alta que

dá aulas de teatro” rsrs. O Gustavo Silva (Prefeito de “Perfeitópolis") me falava que “ela não é tão alta

assim”, mas, aos olhos de uma criança, você era uma professora incrível, Tali, e eu morria de vontade de

ser sua aluna! Depois, na 6ª série tivemos nossas aulas como matéria na grade horária. Foi muito importante

para estimular nossa criatividade e a dicção, além de nos fazer sair da nossa zona de conforto e trabalhar

com outros colegas que não faziam parte do nosso “grupinho”. Eu sempre fui um pouco mais quietinha,

mas, com o teatro, eu sentia que podia ser ouvida e utilizar a interpretação como uma ferramenta de

comunicação. Quando veio a oportunidade de ser a Valentina em “Tá na Mira”, discutindo a questão do

bullying, me senti como uma peça importante na construção da consciência dos alunos em relação à

percepção dos sentimentos dos outros colegas. Acho que foi uma peça que mexeu com todos nós. Tenho

dentro de mim um desejo enorme de incentivar as pessoas a pensarem no coletivo, espalhar mensagens

boas e de conscientização. Acho que com a Valentina tive minha primeira realização neste aspecto. Depois

veio “Perfeitópolis” e os preparativos para “Sonho de Uma Noite de Verão”. Infelizmente tive que mudar

se colégio e cidade, mas tudo o que aprendi no teatro foi usado. Quando saí do Imaculada, levei comigo

todas as coisas boas que aprendi. Do teatro, levei a coragem de falar em público e com pessoas novas, a

capacidade de pensar um pouco “fora da caixa”, e de me expressar melhor. Hoje, trabalho com Auditoria.

Mexo com informações confidenciais, entrevisto clientes das mais diversas áreas e níveis hierárquicos. Uso

todos os dias a capacidade de ouvir, pensar e falar que aprendi no teatro. Ainda, por eu ser toda delicada,

sofro o bullying de ser vista como nova demais para o cargo que ocupo, se eu não tivesse tido a Valentina

na minha vida, eu acho que me deixaria abater mais pelas rotulações que as pessoas nos dão. De certa

forma, o teatro me ajudou a falar melhor com as pessoas e a criar uma capacidade de negociação,

possibilitando que eu possa impor, também, minha credibilidade. Em resumo, o teatro me ajudou a ser uma

pessoa menos tímida, melhor comunicadora e mais resiliente.

(Ana, 23 anos, Economista e Auditora - fez teatro no IEI de 2007 a 2010)

7.

Transformar em texto todo o significado do teatro em minha vida foi um desafio matutado por meses.

Meses. Qualquer pessoa próxima colocaria o motivo dessa demora - merecidamente - na conta da minha

tendência natural a procrastinar e desistir antes de começar. Em relação ao teatro, no entanto, não é assim:

eu simplesmente não podia começar a falar dele sem estar pronto para dedicar o tempo e a atenção que o

teatro e a Talitha merecem. Volto a 2007. Sexta série. No primeiro dia de aula, o André vê que teatro é uma

matéria obrigatória da grade curricular. Ótimo, quase uma segunda educação física - uma matéria divertida

que não envolve estudo, prova ou aulas cansativas. O André de 2007 realmente não sabia reconhecer o

valor das coisas. O de 2018 daria muito pra voltar pra 2007 e mergulhar com muito mais vontade nisso

tudo. Naquela época, o André da sexta série enxergava a Talitha como a professora linda que falava mais

alto que todas as outras e era um crush platônico de um bando de alunos. O André pós-faculdade e – talvez

– adulto olha pra trás e a enxerga como uma das maiores inspirações da vida dele. Isso porque o teatro, que

ela trouxe para a minha vida, teve diferentes significados ao longo dos anos. E fica praticamente impossível

descrevê-lo com uma só palavra ou frase quando sua trajetória de significados acompanha a do meu próprio

desenvolvimento. Em momentos de curiosidade e descobrimento, o teatro foi uma plataforma que me

permitiu ver mais de cima os lugares onde eu queria chegar. Numa das épocas mais difíceis da minha vida,

foi exatamente o refúgio que eu precisava. Quando a nuvem negra ia embora, ele era o laboratório perfeito

pra testar e exercitar todas as facetas possíveis e imagináveis de uma pessoa sempre em reinvenção. Era

como se dentro daquele auditório o André fosse constantemente clonado e modificado geneticamente, de

modo que cada clone fizesse transparecer mais alguma coisa boa sobre mim, que eu nem fazia ideia que

existia. O problema é que, ao criar o clone atual, a Talitha acidentalmente misturou os genes do André com

os de um pombo-correio. Por isso, André ainda sente, em pleno 2018, graves efeitos colaterais, como a

nostalgia e a vontade compulsiva de retornar àquele auditório.

Uma dessas teses que se vê na internet, sem embasamento ou autor conhecidos, diz que se alguém é seu

amigo por mais de sete anos, provavelmente será seu amigo para a vida toda. Afinal, as amizades, assim

como qualquer tipo de relação humana, vivem nas brechas da efemeridade: elas se desenvolvem, se

transformam e são ressignificadas à medida que nós nos desenvolvemos, nos transformamos e atribuímos

novos significados às coisas ao nosso redor. Acho que essa imagem da relação em permanente renovação

é a definição mais precisa da importância do teatro na minha vida: não importava o momento que eu

atravessava, onde estava minha cabeça, como eu me sentia ou como lidava com o que acontecia na minha

vida; o teatro sempre estava ali para me acolher e me mostrar o lado bom presente em cada uma das coisas

ao meu redor e até em mim mesmo. Assim, se o André de 2018 é, de alguma maneira, um ser humano

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melhor que o André de 2007, grande parte disso se deve ao teatro. E por isso, depois de mais de sete anos

de muitas transformações, com a certeza de ter nele um amigo para toda a vida, posso afirmar sem medo

das fontes duvidosas: a internet, dessa vez, estava completamente certa.

(André, Publicitário, 23 anos - fez teatro no IEI de 2008 a 2014)

8.

Fazer teatro foi, sem dúvida nenhuma, um dos aspectos mais importantes da minha formação na infância e

na adolescência. Foi onde encontrei meu lugar no mundo, encontrei algo que realmente gostava de fazer, e

que me sentia bem fazendo. Foi, em grande parte, pelo teatro que moldei minha identidade, meu jeito de

ser e lidar com o mundo. Criei laços incríveis, com pessoas reais e personagens que ficarão marcados para

sempre na minha história. Aprendi muito sobre o coletivo, sobre a convivência em grupo, a confiança, a

responsabilidade, o comprometimento e, acima de tudo, sobre como pode ser maravilhosa a vida permeada

pela arte. Foram muitos anos (seis, acredito eu) nesse universo, muitas e muitas horas de ensaios, e hoje,

olhando para trás, acredito que nenhuma delas tenha sido em vão. Hoje vivo uma vida distante desse

universo, mas que não seria possível sem que ele tivesse existido. E uma vida que apesar de suas alegrias,

tem um pouco menos de brilho sem o "alimento para a alma" que é o teatro. Até hoje não encontrei nenhuma

sensação que se equiparasse ao calor do palco, ao calor de sentir-se coberta de aplausos. A saudade é grande,

agridoce. Mas maior do que ela é a gratidão que sinto por ter tido a oportunidade de vivenciar aqueles anos.

(Clarice, 21 anos, graduanda em Psicologia - fez teatro no IEI de 2008 a 2013)

9.

Antes de entrar no teatro eu me apresentava junto com um grupo de dança. Posso dizer que sempre gostei

de palco, adorava a sensação de estar lá em cima e mostrar alguma coisa para quem assistia. 2014 foi um

ano complicado para mim. Entrei no Ensino Médio, mudando de escola (até o momento, tinha feito todo o

Fundamental I no mesmo colégio) e não conhecia praticamente ninguém. Eu sempre tive alguma

dificuldade em me relacionar em ambientes estranhos, sou extremamente fechada e tímida também. Vi no

teatro não só uma oportunidade de fazer mais daquilo que já amava de maneira diferente, mas também de

tentar encontrar alguns amigos na escola nova. O teatro fez exatamente isso. Me deu amigos para a vida

toda, me ajudou a realmente entrar no Ensino Médio e por consequência acabar conhecendo outras pessoas

que não participavam do teatro, mas eram amigos daqueles que faziam. Me lembro no segundo ano, quando,

nas aulas de oratória, a Talitha me disse que eu deveria “sorrir mais... não só nas apresentações, na vida!”.

Me disse também que quando entrei no auditório, que parecia que eu não gostava. Eu gostava, muito. Eu

amava estar no auditório, com todo meu coração. Foi uma oportunidade única, só tenho a agradecer.

(Marcela, 19 anos, estudante de História - fez teatro no IEI em 2014)

10.

Sabe daquelas situações inusitadas que mudam o rumo da vida do sujeito? Então estava eu, tranquilo na

minha vida extremamente tímida e antissocial, quando as professoras de português chamaram alunos e

alunas para ajudar a fazer um evento na escola. Éramos uns 20, eu na 8ª série, gente até o 3º colegial. Eu

achei de fazer qualquer coisa como colar umas poesias pelas paredes da escola, mas tinha um demônio loiro

naquele grupo, já atriz há uns tantos anos, que propôs fazer teatro. A ideia tenebrosa provocou-me o mesmo

pânico que entusiasmo nos colegas e professoras. Não encontrava maneira de me livrar daquela enrascada.

Até que houve um momento, uma reunião, ela não sabia o que fazer, como lidar com tanta gente para peças

com poucos personagens. Encontrou Geração Trianon, eram uns 16 para os cerca de 20 alunos e alunas.

Não me esqueço, ela disse algo como: "gente, não sei o que fazer... tem alguém que não está tão afim de

fazer?". Era o momento! Era a chance! Só que meu corpo parecia pedra, era impossível expor-me daquela

maneira. Um, dois, três saíram... eu fiquei... Naquele adolescêntico momento as trevas se instauraram em

minha consciência... pouco a pouco anuviadas com o fazer teatral, com a parceria dos colegas e com a

condução da Talitha. Naquele imaturo momento, o teatro deu-me outro lugar no mundo, outro lugar na

relação com as pessoas (ou colocou-me em relação), abriu portas e costurou afetos com linhas de eternidade

(aquela grega). O que aquelas profundas experiências de existir produziram não são contáveis nem

traduzíveis. Fiz muitas coisas da vida após aquilo (realmente muitas), todas elas marcadas por aquelas

tênues linhas que passaram a constituir meu corpo, ora de maneira mais sutil, ora de maneira mais evidente.

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Por ora fico por aqui... só um causo e uma reflexão dos inúmeros que me atravessaram ao longo desses

anos todos...

(Rodrigo, 35 anos, Ator e Médico - fez teatro no IEI de 1997 a 2001)

11.

Sempre gostei de teatro e das artes num geral, mas confesso que não fazia ideia do que me aguardava

quando me chamaram pra trabalhar canto com o grupo de teatro do colégio Imaculada. Cheguei de

mansinho e conheci um lugar mágico, onde coisas que eu jamais poderia ter imaginado, aconteceriam:

alunos de Ensino Médio fazendo uma peça impecável e muito melhor do que peças profissionais que já vi

por aí. Fui acolhida com muito carinho por todos e comecei a desenvolver um trabalho de música, canto e

dança com aqueles alunos. Montamos "O Auto da Compadecida" naquele ano de 2012 e foi uma sensação

inexplicável. As sextas-feiras passaram a ser um dia muito esperado e, mesmo quando começamos a nos

enfurnar do começo da tarde até de noite, era um prazer imenso estar ali, criar com eles, dividir com eles,

aprender com eles, pesquisar com eles, testar com eles. Lembro-me até hoje das rodas de oração antes da

peça ("eu seguro a minha mão na sua...") e da famosa roda de oração do último dia de peça (que eu ainda

não conhecia a fama, mas que seeeeeeeeempre demora mais do que o planejado, que sempre faz todo mundo

chorar, que todo mundo abre o coração, que os veteranos prestes a seguir a vida fora do mundinho do

colégio se despedem com muita dor no coração – e muitas vezes voltam nos anos seguintes pra ajudar em

outras peças, porque é muito amor – e que sempre atrasam o começo da peça nesse dia rs). Lembro de ouvir

cada depoimento emocionado com um quentinho no coração por quem falava e lembro especialmente de

ouvir um queridíssimo aluno dizendo "as palhacinhas que me perdoem, mas se não fosse a Gabi, não seria

a mesma coisa" e ali eu senti que meu trabalho tinha tocado alguém. Palhacinhas era um grupo de

personagens do qual eu fazia parte e com as quais eu trabalhei mais ativamente na música e na dança.

maravilhosas por sinal! Nunca mais enxerguei o "teatro de escola" da mesma maneira, pois confesso que

essa expressão sempre teve um sentido pejorativo pra mim, mas falo com orgulho quando divulgo qualquer

peça produzida pela Talitha e equipe, que é qualidade profissional. Parece puxação de saco, mas não é.

Continuei trabalhando com a equipe nas peças "Dionísio Sumiu", "A comédia dos erros", "Esse Trem vai

pra Onde?", alguns capítulos de "Teus Passos" – que contava a história de Madre Cândida – e algumas

outras pequenas participações em uma peça ou outra de outros anos (outras séries). Cada vez mais tendo

que me afastar pra assumir outros compromissos da carreira que queria seguir, mas digo que esse trabalho

me tocou e me transformou profundamente. Passei, ali, a acreditar novamente na juventude do nosso país,

pois nunca havia conhecido adolescentes como aqueles. Todos os que se envolvem ali transformam uns aos

outros, sem ao menos perceber e sem pedir nada em troca. Ainda depois de ter saído, faço questão de assistir

a todas as peças que tenho oportunidade e mais de uma vez, divulgo pra todos que conheço, pois sei que ali

terão uma experiência única...que começa sempre desde a fila e te leva, encanta e prende até o final. E

nunca recebi uma reclamação de quem aceitou a indicação e foi. Muito pelo contrário. Sempre muitos

elogios.

(Gabriela, 31 anos, Cantora e Atriz - participou do teatro no IEI, como preparadora vocal, de 2012 a

2014)

12.

Fazer teatro é... Como descrever em uma palavra algo que mudou a sua vida? Mesmo já tendo saído do IEI

há 7 anos, quando reencontro minhas amigas da escola o teatro costuma ser um assunto. Inclusive, conheci

uma das minhas melhores amigas, que tenho contato até hoje, nas aulas de teatro. Foi uma experiência

muito importante na minha vida que eu levo com muito carinho no coração. Eu costumo ir nas peças de

final de ano e cada vez me surpreendo mais. Lembro de quando as cortinas eram vermelhas, as poltronas

eram diferentes, e hoje em dia colocam até pessoas voando no espetáculo. Me emociono só de entrar

naquele auditório. Tenho uma lembrança muito boa em casa que é o DVD da principal peça que eu

participei, escrita pelos próprios alunos: “Manual de Sobrevivência do Adolescente”. Até o meu namorado

já assistiu rs. Ele foi comigo na peça de 2017 e achou incrível! Eu tinha falado para ele o quanto o teatro

do IEI é sensacional, mas ele não achava que seria tanto. Tivemos uma noite muito divertida, e para mim

bem nostálgica, e ele me disse que gostaria de ter tido a oportunidade de estudar em uma escola como o

IEI. Sou muito grata por isso e tenho muito orgulho. Gostaria que a arte fosse mais valorizada em nosso

país. Mas com certeza o teatro do IEI é um primeiro passo fundamental para darmos a devida importância,

acho legal que conheço pessoas que foram fazer artes cênicas na faculdade por causa do teatro. Acho que

consegui deixar claro o quanto esse teatro merece ter a história lembrada e ainda mudar a vida de muita

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gente que está por vir. Gostaria, para finalizar, de agradecer a Talitha, que é uma profissional incrível,

inspiradora e uma professora que me ensinou coisas que nenhuma aula é capaz de ensinar, que eu levo

comigo e vou, um dia, ensinar meus filhos.

(Laís, 24 anos, Farmacêutica - fez teatro no IEI de 2006 a 2011)

13.

Não sei se é possível definir em algumas palavras como "fazer teatro é..." a experiência que vivi ao longo

do tempo em que fiz parte do elenco, ou melhor, da família que foi o teatro do Imaculada. Espero, nesse

mero depoimento, poder transcrever todos (ou a maior parte) dos sentimentos que tive ao longo dos anos

no qual tive o prazer de dividir o palco com pessoas tão inesquecíveis durante o meu tempo de ensino

fundamental e médio. Tudo começou em uma sala perto da capela do Imaculada, em que uma professora,

a qual eu ainda não conhecia, ensinava aqueles meros alunos a realizar uma pequena peça para os demais

colegas de sala. Não passava de mais uma matéria, até então, que todos nós teríamos que fazer durante o

nosso período de escola. Mal sabia eu que depois de algum tempo, teria o prazer de conviver novamente

com essa profissional; essa amante do teatro, durante pelo menos mais seis anos da minha vida. E olha,

foram os melhores seis anos que vivi durante todo meu período naquela escola; não somente pelas pessoas

que conheci durante todo o tempo em que passei naquele auditório; mas, principalmente, pelo amor que

senti por aquele lugar. Não me refiro somente ao tempo em que passamos no palco durante as peças, mas

também pelo período em que não estávamos no palco; me refiro ao tempo em que passávamos nas salas do

auditório ensaiando as falas; ao tempo em que ficávamos até tarde da noite pintando os cenários para as

peças, ao tempo em que passávamos tirando medidas das fantasias, todos os exercícios feitos durante os

ensaios, as conversas trocadas nos camarins e, principalmente, todas as reuniões antes de cada peça em que

olhávamos uns nos olhos dos outros, com as mãos dadas, e dizíamos “Eu seguro minha mão na sua, para

que tudo aquilo que eu não posso e não quero fazer sozinho, possamos fazer todos juntos!". Esse nosso

lema define por si só o que é fazer parte desse teatro, não é um sonho que se vive, ou que se faz sozinho;

fazer parte desse teatro foi encontrar uma primeira família, pois passávamos mais tempo naquele auditório

do que em nossas casas, e não por obrigação, mas por puro amor e prazer de estar ali. Com isso, não há

como definir em uma frase o que foi fazer parte dessa família; não há como resumir todos os momentos

que vivi no auditório do Instituto Educacional Imaculada; a única certeza que tenho é que foram os melhores

e mais emocionantes anos da minha vida, nos quais eu conheci várias pessoas, cresci não somente no âmbito

profissional (e sim, levo lições que aprendi no teatro até hoje em minha vida profissional), mas

principalmente no pessoal, e graças a você, Talitha Hansted; a nossa mentora, nosso exemplo, a mãezona

dessa família toda. Por fim, sei que ficou meio longo esse depoimento, mas fazer teatro para mim, é isso e

muito mais que acabou por ficar indagado na emoção que é lembrar de todos os momentos vividos naquele

santuário. Posso dizer que tive o prazer de dividir o palco com todos aqueles que fizeram parte da minha

trajetória no teatro, e só tenho a agradecer por tudo, e dizer que tenho muita saudade disso.

(Matheus, 26 anos, Economista - fez teatro no IEI de 2006 a 2011)

14.

Hoje e em todos dias que apresento lembro de colocar a caneta na boca e projetar a voz para o infinito...

Lembro das dinâmicas, dos ensaios, da preparação e de como levávamos a sério o teatro e quanto isso foi

importante para mim! Talvez esse “eu” não existisse se não fosse o teatro, talvez o lado criativo e desinibido

ficasse de lado se eu não tivesse aprendido a cuidar dele! Que bom que eu escolhi fazer teatro, escolhi me

conhecer e ver o mundo e as pessoas de uma forma diferente! O teatro me deu vida ou a vida meu o teatro?

Saudades dos meus colegas de cena e da maravilhosa Mestre Talitha!!

(Isabela, 28 anos, Engenheira de Embalagens - fez teatro no IEI de 2004 a 2007)

15.

O teatro sempre significou muito para mim. Desde criança minha mãe me contava das peças que já havia

feito e de como era apaixonada pela arte, me levava em peças infantis como Chapeuzinho Vermelho, os

Três Porquinhos, Peter Pan, os clássicos... Amava muito entrar naquele mundo de fantasias. Até que vi

minha primeira peça no Imaculada, “Deu a louca no mundo da fantasia”, lembro direitinho o que eu senti,

fiquei alucinada com a história, os personagens, a produção, tudo era muito mágico e real para mim, tinha

certeza que queria fazer parte daquilo. Até que um dia, passaram nas salas avisando que poderíamos

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participar do teatro, lembro que só falei para os meus pais “vou fazer teatro”, independente da resposta eu

ia fazer de qualquer jeito. No dia que pisei naquele auditório me senti realizada, sempre quis fazer parte de

uma peça, meu sorriso não saia da cara. Treinava todos os dias para decorar as falas, para mim nada mais

importava, até que finalmente consegui meu primeiro papel em uma peça, o de Lua. Foi sensacional, nunca

tinha levado tão a sério um projeto em minha vida, depois disso tinha até decidido que queria ser atriz.

Depois desse ano fui ficando cada vez mais dependente e apaixonada pelo teatro, amava tudo. Porém, o

meu maior medo era fracassar, decepcionar, errar no que eu mais amava fazer. Por isso, tentava de tudo

para conseguir os papeis que eu queria, até um ano em que eu não consegui e isso só mostrou o quanto eu

não enxergava o que realmente importava, o amor pelo teatro, o que ele me proporcionava... Houve vários

momentos marcantes e ensinamentos que eu levarei para a minha vida inteira. O teatro me acolheu e me

criou, sem ele não seria nem metade de quem sou hoje. Só tenho o que agradecer por todos os momentos

dentro daquele auditório. Principalmente pela Talitha, pois sem ela essas experiências não seriam as

mesmas, tenho orgulho de falar que ela foi minha professora e que marcou muito a minha vida.

(Aurora, 18 anos, estudante de Pedagogia - fez teatro no IEI de 2010 a 2018)

16.

Interessante isso aparecer nesse momento. Justamente nessa semana em que pensei tanto sobre a

exploração, e exposição da minha subjetividade. Estou no segundo ano do doutorado e sou professora de

escola pública há oito anos. Pensava sobre como o excesso de leituras e tarefas acadêmicas não tem me

permitido escrever sobre mim, me expressar com as palavras (poemas, textos, sempre os fiz, sem expô-los,

mas com um valor subjetivo e pessoal enorme, de ir livrando as águas que transbordam). E a tarefa exaustiva

da escola (pública, sucateada, com difíceis condições de trabalho) não tem me permitido ler, ler literatura,

aquilo que sempre incentivamos os alunos a fazer. Enfim, contradições do trabalho, contradições

acadêmicas. Não é à toa que pensava sobre isso nesta semana, as águas não são aliviadas há um tempo. E

a proposta de escrita de depoimento me permitiu fazê-lo com menos culpa entre um texto e outro do

doutorado. Acredito que na escola, Ensino Fundamental e Ensino Médio, era isso que acontecia. O teatro

era o momento de fazer as águas rolarem, era o momento da subjetividade ser o mais importante, da

exposição do eu (do nós), da descoberta do eu que as contradições da escola não permitem tantas vezes. O

teatro era a fuga das contradições da escola, a transgressão tão importante para o crescimento e

amadurecimento do ser humano. Sou muito feliz de ter isso na minha história. Amigos incríveis que se

solidificavam de uma maneira incrível e inesperada nas aulas de teatro e montagem de espetáculo.

Aprendizado inenarrável conduzido pela professora fantástica que é a Talitha, e que até hoje me inspiram

no ser professora. Experiência que me fez ter certeza que a relação ensino aprendizagem é dotada de afeto

e só assim é possível ir além. Quanto afeto tinha em você, Tha, que chegava com a maior disposição do

mundo (que tanto admiro quando me vejo já chegando cansada na escola) para nos dar aula durante toda a

tarde. Nunca vi vídeos das nossas apresentações, mas me lembro e narro da experiência no teatro como

espetáculos de muito sucesso, maravilhosos e com muito comprometimento de todos (desafio! Se tratando

de um bando de adolescentes com milhões de coisas (ou nada – sic.) na cabeça). Isso se deve a você! Que

nos fazia acreditar nas nossas ações, nas nossas ideias, na nossa criatividade e no nosso poder de prática no

mundo! Ter construído essa experiência desta forma, dentro de mim, é o que imagino ter feito o teatro ter

tanta importância pra mim até hoje. Lembro que nas minhas formaturas tive a oportunidade de te agradecer

por tudo isso. Mas agora isso exponenciou. Obrigada!

(Rebeca, 30 anos, mestra em Educação Física e doutoranda em Educação - fez teatro no IEI de 2001 a

2005)

17.

Engraçado como essa oportunidade de parar e relembrar tudo que vivi naquele auditório marcado e

eternizado em minha vida veio quando eu mais precisava, como uma única forma de poder “voltar no

tempo”. Eis que me vejo em uma viagem no meu próprio passado, em meio a uma aula qualquer da

faculdade, em um dia qualquer, em que por acaso a professora mencionou a Grécia e o surgimento do teatro,

não veio em minha cabeça outra coisa senão o cheiro do carpete do auditório, a adrenalina de estar na coxia

há poucos segundos de entrar em cena, a energia de chegar até a beira do palco e se deparar com um mar

de gente te olhando, até dos erros cometidos durante as apresentações, e principalmente das broncas da

Tali, que só nos faziam mais fortes, e dos seus discursos e histórias, que nos davam a certeza de que

estávamos no lugar certo, e que a mágica do teatro transforma de verdade, cada um. Só tenho a agradecer

por ter tido a oportunidade de viver essa magia, foram apenas 4 anos, mas tenho a certeza que foram os 4

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anos mais especiais que vivi, se pudesse viveria de novo nem que fosse para ter o gostinho desse vigor

inexplicável que sentíamos quando o "eu seguro a minha mão na sua.." era pronunciado. Eu podia estar

enfrentando os maiores problemas no dia, cansada, estressada, mas era só pisar no auditório que parece que

tudo ficava para trás, me renovava, e quando tinha relaxamento? “Benzadeus”, Talitha!!! Em poucas

palavras, ou até mesmo em um grande texto seria impossível descrever o que é fazer teatro. É muito mais

que uma arte, é um universo repleto de energias e vibrações que nos deixaram aprendizados e memórias

para a vida toda, e com certeza inesquecíveis.

(Mariana, 19 anos, estudante de Direito - fez teatro no IEI de 2012 aa 2015)

18.

O teatro faz desenvolver empatia, o “colocar-se na pele de alguém” traz a possibilidade de ver o mundo

pelos olhos (e sentimentos) do personagem. Acho que é uma alavanca no relacionamento humano, cria

pessoas mais ricas, mais humanas, mais respeitosas. Inclusive capazes de conhecer-se melhor a si próprias.

O teatro, como forma artística, traz uma complexidade única e integra em si as várias outras formas de arte

sem estar em conflito com nenhuma delas. É um privilégio para mim ter tocado, ainda que com muita leveza

este universo. Quanto ao trabalho que você e todas estas pessoas que participaram dos trabalhos ao longo

dos anos no IEI desenvolveram merece muitos aplausos. Você fazia a mágica acontecer naquele palco.

Encantava, fazia os olhos brilharem. Eram crianças, adolescentes, mas naquele momento se sentiam

gigantes, deuses, bardos, rainhas, mercadores, retirantes... eram atores! Deixo meu abraço, minha amizade

e admiração. Espero que a experiência deles não se apague ao longo dos anos. Beijos!

(Sandra, Médica, mãe de ex-aluna)

19.

Tenho guardado na memória o que penso ter sido o grito mais alto que dei na vida. Na peça " O tempo não

para " fiz o papel de uma mãe aflita que gritava para impedir que a filha fizesse um aborto. Fiquei

emocionada de verdade, por isso o grito foi tão forte. No ano da montagem dessa peça meu pai estava

muito doente e eu me revezava entre os ensaios intermináveis (mas necessários) e as idas para Palestina,

para cuidar dele. Nunca me esquecerei.

(Nívia, professora de Ciências do IEI - participou do teatro no ano de 2008)

20.

"Isabela um diamante brilhante como o sol. Das longes terras distantes de Grão Mogol" (2002). Assim

começa a batalha contra a introversão, a timidez e o medo de falar e me expor ao público. Estava na 7ª série

e resolvi aceitar o desafio. Encontrei pessoas fabulosas nessa trilha, que me ajudaram a crescer durante esse

processo. A enxergar melhor o próximo e a limitação de cada um. A buscar sempre o melhor em cada fala,

em cada oratória, em cada movimento e em cada pensamento. A expectativa gerada em buscar o meu

máximo a cada aula, a cada semana, a cada ensaio, a cada ida ao auditório (que sonho poder entrar nesse

templo), a cada noite que antecedia uma apresentação, a cada uma das 3 batidas antes do início do

espetáculo... É bem difícil traduzir em palavras tantas sensações e sentimentos. Ainda mais agora, depois

de anos, podendo enxergar o quanto tais experiências ajudaram a moldar o que sou agora. Se consigo falar

em público sem tremer a voz, devo isso ao teatro. Se consigo controlar tiques nervosos e movimentos

repetitivos em situações de puro nervosismo, devo isso também ao teatro. Se me expresso de maneira

tranquila e controlo caras e bocas em assuntos delicados, também devo isso ao teatro. É impossível não

lembrar de amigos, situações, perrengues, choros, viagens, cortinas, figurinos, poesias, danças, coxias,

personagens e Talitha ao se falar de teatro, época maravilhosa e saudosa que vivi até 2005!

(Fernanda, 30 anos, graduada em Educação Física estudante de Engenharia Agrícola - fez teatro no IEI de

2002 a 2005)

21.

O teatro foi um grande motivador pra inspirar minha curiosidade, que aliás me lembro de perguntar “ué,

mas por que desejam merda?” e achar bem interessante a resposta. E a partir daí perco meu tempo vendo

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significados de ditados populares kk. Outra coisa brilhante do teatro é aprender e praticar o convívio em

grupo, reconhecer qualidades e enaltecer o trabalho de cada um.

(Augusto, 23 anos, estudante de Medicina - fez teatro no IEI de 2010 a 2011)

22.

Difícil falar da época do teatro do IEI sem me emocionar. Lembro que estava no 1º ano do Ensino Médio,

quando amigos do GVX me convidaram para assistir o ensaio que estavam fazendo para a peça “Geração

Trianon”. O ano era 1997. Fiquei maravilhado com aquilo e, de acompanhar os ensaios, passei a ajudar nos

bastidores. Criei laços de amizades incríveis e me apaixonei mais ainda pelo teatro. Fizemos depois uma

peça de comédia (não me lembro o nome), com cenas de paródias de programas de TV. Foi minha primeira

participação, como coadjuvante, experimentando estar num palco. Naquela época, o grupo de teatro recebia

apoio apenas dos pais, como dizíamos, "paitrocínio". Ensaiávamos numa das salas vazias do prédio

principal, sempre liderados pela maravilhosa Talitha, que mesmo ainda aluna do IEI, se mostrava uma

excelente professora, diretora e amiga. Em 1999, fizemos nossa primeira peça de drama, "Morte e Vida

Severina", um sucesso, replicado em outros colégios e igrejas. Foi a peça mais emocionante de que já

participei na minha vida. Essa peça abriu portas para o grupo, sendo que em 2000, eu já estando na

faculdade, continuei a participar e fizemos a peça "Plunct Plact Zum", meu primeiro papel de protagonista,

uma peça infantil, já com apoio da APM da escola. Nos anos seguintes, não pude continuar no grupo pelas

exigências da faculdade, mas essa vivência de teatro mudou minha vida de forma incrível. Quando criança,

eu era bem extrovertido, mas a entrada na adolescência me tornou tímido, inseguro e ainda sofri momentos

de bullying na escola. Minha vida começou a mudar com a entrada no GVX, que me apresentou os amigos

que me levaram ao teatro. No teatro, fiz amizades incríveis, ganhei autoconfiança, aprendi a enfrentar o

palco, a falar em público e me soltar, sentir, imaginar. Hoje trabalho como psicólogo, com mestrado em

neurologia, dou palestras em diversos congressos, escolas, ONGs, instituições e empresas, dou entrevistas

na TV, etc. E muito dessa autoconfiança devo ao teatro, à Talitha e aos meus amigos da época do teatro. É

a primeira vez que exponho essa minha história em público e fico feliz e honrado que seja como forma de

um eterno agradecimento a essa pessoa maravilhosa que a Talitha é.

(Iuri, 37 anos, Psicólogo - fez teatro no IEI de 1998 a 2000)

23.

Durante toda a minha trajetória no colégio eu sempre soube como o teatro fora importante pra mim. Mas

hoje, como ex-aluna e estando mais distante daquele auditório, eu posso dizer com segurança que participar

do teatro foi uma das experiências mais essenciais da minha vida até agora. Eu aprendi tanto com o teatro.

Pra mim, um dos ganhos mais significantes foi a capacidade de lidar com as pessoas e com o grupo. O

teatro é solidariedade, parceria e proatividade. Em muitos momentos de dificuldade – tanto durante ensaios,

apresentações e até fora das aulas – as pessoas do grupo não mediam esforços pra se ajudarem. Esse caráter

do teatro somou muito na minha personalidade. Eu aprendi a ser mais proativa, a tentar resolver as coisas

com mais independência, a confiar nas pessoas e a lidar com os problemas de forma mais madura. Mais

que isso, eu também fui conhecendo a personalidade de cada um dos integrantes do teatro e fiz amizades

que hoje eu sei que vou levar pro resto da vida. O teatro também me ensinou o que é humildade e que o

elenco é como um organismo vivo, no qual não existe função mais ou menos importante. Estar ali não é

sobre o que se faz, mas como se faz. É dar o seu máximo naquilo que lhe foi dado. E dar o máximo sem

ficar pensando a todo momento numa recompensa, num elogio. A Tali sempre foi muito precisa e sempre

teve o timing perfeito pra dar a "recompensa" a cada um no momento certo, sem inflar egos ou diminuir

ninguém. E eu sou muito grata por isso, me fez crescer demais, a me frustrar menos, a receber críticas, a

saber o meu lugar. Além disso tudo, tenho que falar dos ganhos práticos rsrs. Minha postura, minha fala,

dicção etc., melhoraram demais e hoje me ajudam muito no meu curso. Eu sei lidar muito bem com o

nervosismo e hoje encarar uma multidão não é um bicho de sete cabeças. O teatro moldou minha

personalidade e hoje com certeza eu sou uma pessoa melhor por causa dele.

(Mariana, 19 anos, estudante de Direito - fez teatro no IEI de 2009 a 2016)

24.

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E foi assim, quando de repente me encontrei e entendi que nada estava perdido para ser encontrado, estava

apenas despercebido dentro da minha própria essência. Essa foi a importância do teatro no IEI, sem perceber

que naquela época era meu início, meu meio e meu fim. E sem perceber que era o início de vários outros

inícios, que seria um legado para tantos outros, a ponto de poder dizer, 21 anos depois, que meu início no

teatro e o início do IEI no teatro são um só. No início, no meio e no fim. Afinal, tudo é cíclico! Tudo é

essência! Ela aparece como um sopro momentâneo, mas te acompanha eternamente e descobrimos que na

inocência da juventude, quando procuramos ser mais, é onde encontramos o que já era essencial, no início,

no meio e no fim. E foi assim e assim ainda é...

(Fábio, 35 anos, Ator e Dublador - fez teatro no IEI de 1997 a 2001, e em 2009)

25.

Recordo-me com clareza do dia em que apresentei a peça “O Patinho Feio.” A turma de 2011 era grande,

tiveram que adaptar a história adicionando mais alguns personagens para que todos pudessem ser

contemplados. O anúncio da escolha da peça e seu motivo eu me lembro bem: o grupo não era muito

receptivo com adversidades, e o conto do Patinho Feio seria um exercício de reflexão sobre julgar os outros

e fazer piadas cruéis com o diferente. Infelizmente, essa foi a minha primeira e última peça de teatro. Não

retornei aos palcos talvez por medo de não ser boa o suficiente, mas sempre cultivei grande apreço e

admiração pela arte de atuar. Fascina-me a ideia de deter a liberdade infinita de ser quem você quiser; poder

interpretar uma vilã dissimulada do século XX, uma mocinha renascentista ou até mesmo uma rainha pata

avó! Essa fluidez e ousadia que o teatro permite é incrível. Dentro de um ator cabem mil personagens além

dele mesmo, um ser multifacetado e alforriado das limitações do cotidiano. Pessoalmente, essa minha

paixão pelo atuar me incentivou a escrever histórias e declamar poemas, maneiras que encontrei de saciarem

minha fome pela fragmentação artística permitida pelo teatro (e também literatura). Sem sombras de

dúvidas, apesar da minha curta passagem pelos palcos, o teatro moldou quem eu sou. Se não tivesse

apresentado a peça do Patinho Feio, não teria acendido em mim o fogo ardente do mundo artístico e, com

certeza, não veria a realidade com a pespectiva dos artistas.

Sou grata ao teatro e evoco Dionísio no cotidiano.

(Laura, 17 anos, estudante - fez teatro no IEI em 2011)

26.

Minha experiência com o teatro do IEI, já como ex-aluna, ampliou meu conceito sobre o fazer musical. Ela

surgiu de um desafio, do honroso convite para compor a trilha musical de "O diamante de Grão-Mogol".

Eu nunca tinha composto nada, e a missão a princípio me pareceu impossível, dada a minha formação como

pianista e não como compositora. Mas eu fui em frente, motivada pelo carinho e admiração por este lindo

trabalho no colégio, que eu já havia acompanhado ao assistir peças anteriores. E então a música aconteceu,

e para mim foi uma emoção ver os alunos cantando e enriquecendo o que eu pude oferecer. A experiência

de ter participado do teatro me trouxe aprendizados que eu vou sempre levar comigo. Ela me fez ir além,

despertando em mim capacidades que eu nunca imaginava que eu teria. Ela me fez superar barreiras, dando-

me coragem e ousadia para enfrentar todos os desafios. O carisma e a liderança com que a Talitha coordena

este trabalho fazem com que as pessoas entrem em contato com o que há de melhor dentro delas. É como

se cada um de nós carregasse um tesouro dentro de si, e a Talitha nos ajudasse a descobri-lo. Para mim,

essa foi uma Experiência inesquecível!

(Fabiana, 39 anos, Musicista - participou do teatro no IEI, como preparadora vocal e compositora, de

2002 a 2004)

27.

Pisar naquele auditório e subir no palco era o momento de deixarmos todos os nossos problemas do dia-a-

dia daquela porta pra fora e focarmos na vida do nosso personagem. Fazer teatro é se sentir bem consigo

mesmo, é se sentir livre, é encontrar a nossa personalidade, é assumir um compromisso e aprender a ser

responsável, é construir laços de amizades, é respeitar cada diferença, é usar a nossa imaginação e

criatividade, é aprender de tudo um pouco. E assim, todo mundo tinha que contribuir e dar o seu melhor,

fazendo o possível e o impossível para que tudo acontecesse como o esperado. É por isso que o grupo do

teatro era nossa segunda família. Não existe teatro sem os personagens, sejam eles principais ou

coadjuvantes, sem os contrarregras, sem os responsáveis pelo cenário, pelo figurino, pelo som e pelas luzes,

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pelo texto, pela produção. E a Talitha sempre foi além disso. Além de querer montar uma boa peça, ela se

preocupava com a inclusão de cada aluno no grupo e não deixava ninguém se sentir sozinho. E o fato de

me sentir incluída, me trazia mais confiança porque existia ali um sentimento de pertencimento. Os

momentos mais marcantes que eu vivi no IEI foram dentro daquele auditório, estando eu na plateia ou no

palco. Se todos os adolescentes tivessem essa oportunidade de participar do grupo de teatro, teríamos

adultos melhores. E, no final de cada peça, ao pensar que eu não iria pisar naquele auditório ou subir naquele

palco tão cedo, trazia um aperto no coração. Mas ouvir os aplausos da nossa plateia e o sentimento de dever

cumprido faziam tudo valer a pena.

(Luísa, 21 anos, estudante de Direito - fez teatro no IEI de 2009 a 2011)

28.

Depois de 4 anos vivendo a experiência do teatro sob a orientação da professora Talitha, levo para minha

vida que teatro é crise. Crise, para os chineses, é uma palavra formada por dois caracteres: o primeiro

representa risco, perigo, e o segundo representa ponto crítico, oportunidade. A internalização quase

espiritual de determinado personagem, a preparação física de fantasias e maquiagem, o decorar das falas,

as horas destinadas aos ensaios e, principalmente, encarar um palco com toda essa bagagem, tudo isso é um

risco para todos os envolvidos na peça. Para alguns, os riscos são maiores, para outros, nem tanto. Contudo,

para todos, sem exceção, trata-se de um ponto crítico para novas oportunidades. Pode ser uma forma de ser

uma pessoa que você sempre quis ser, de extravasar sentimentos escondidos bem lá no fundo, de superar a

timidez e a ansiedade, de treinar a oratória, de aprender a ficar em silêncio e escutar o que o outro fala e de

falar a coisa certa quando for a sua vez. Listar todas as oportunidades que o teatro oferece é impossível,

elas são infinitas. De qualquer forma, todas elas são capazes de formar pessoas melhores, que farão do

mundo um lugar melhor.

(Bárbara, 22 anos, estudante de Medicina - fez teatro no IEI de 2009 a 2012)

29.

Eu seguro minha mão na sua, para que tudo aquilo que eu não posso e não quero fazer sozinho, possamos

fazer todos juntos! MERDA!!!” Quando penso nessa frase consigo me transportar imediatamente para os

meus 6 anos vividos no universo do teatro. Posso sentir a energia vinda da mão da pessoa do meu lado

esquerdo, posso sentir essa energia sendo transportada para a pessoa do meu lado direito, posso sentir a

energia fluindo nesse círculo de ansiedade pré-estreia. Posso ouvir a voz da maravilhosa pessoa, professora,

diretora e sonhadora Talitha dizendo cada palavra em seu tom firme e encorajador, e de toda a família teatro

IEI repetindo cada palavra como com coro, juntando todas nossas intenções, paixões e nervosismos em um

só. Dia de estreia! Finalmente chegou o dia! Uma tensão no ar, um estresse, um frio na barriga que não

acaba mais, um tal de procura e acha objetos cênicos, figurinos, atores, colaboradores etc. “Cadê o Willian?”

“Arruma o foco!” “Socorro esqueci meu pancake, alguém me empresta?” “Não gritem no camarim!” “

Cadê a gelatina azul” “Pessoal da coxia, estão fazendo muito barulho! ” “Gente, alguém viu minha flor?”

“Vamos pedir esfiha?” Frases eternizadas que em toda preparação eram faladas. Ritual feito, todos a postos,

“merda” sendo ouvida de todos os cantos. Começa a se ouvir o burburinho da plateia, o sinal toca pela

terceira vez. Vai começar, é agora! O foco não te deixa ver a quantidade de pessoas que está sentada ali,

pronta pra desfrutar de um espetáculo maravilhoso. De repente é possível ver a plateia transbordando de

expectativa, entrando no universo que a gente construiu por um ano inteiro! Todos os ânimos se acalmam

e o nervosismo vai embora. Palmas, palmas e mais palmas.... Mas já acabou? Quero mais! Foi muito rápido!

Lágrimas escorrendo dos nossos olhos, abraços e mais abraços, saudade do que mal terminou. E cada final

de peça tinha mais certeza que no próximo ano estaria ali também, porque eu queria mais. Queria mais

aprendizado para minha vida. Queria mais companheirismo, mais trabalho em grupo, mais ensaios. Queria

mais tudo que podia ser vivido ali. Uma infinidade de momentos e sentimentos das mais diversas naturezas,

passando por alegria, ansiedade, cansaço, exaustão, magia, estresse, broncas, amizades firmadas, diversas

personalidades vividas, amor etc. Driblar situações ruins para o bem maior, para fazer a peça acontecer da

maneira que todos nós sonhamos era obrigação de cada integrante dessa família louca, e por isso aprendi

como não deixar que todos esses sentimentos tomassem conta de mim e de qualquer outro ator. Teatro são

várias personalidades, várias idades, vários estilos de vida, várias identidades, várias funções, várias pessoas

unidas como um só, unidos para fazer a peça acontecer, unidos para nosso sonho se tornar realidade. E isso

é o que eu levo pra minha vida, o amor e amizade que vivemos com pessoas às vezes desconhecidas às

vezes muito bem conhecidas, unidas como uma família. Viver cada segundo intensamente, desfrutando

todos os aprendizados e toda a felicidade presente naquele nosso canto foi engrandecedor, foi maravilhoso,

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me trouxe uma alegria que não consigo nem descrever. Fazer teatro foi umas das melhores experiências da

minha vida, foi viver aqueles anos e levar pra sempre no coração todas as lembranças.

(Carolina, 22 anos, estudante de Medicina Veterinária - fez teatro no IEI de 2006 a 2013)

30.

Lembro como ontem o dia em que entrei no auditório do IEI assistir à peça “Sonho de uma Noite de Verão”

de Shakespeare. Entrei não apenas em um auditório, entrei realmente em um mundo diferente. Eu não

pisava mais em um piso normal, pisava em folhas secas. Eu não ouvia mais o barulho da rua e de pessoas

falando, ouvia uma música. Eu não mais via um auditório comum. Eu via uma floresta. Com elfos. Alguns

parados olhando o público entrar, outros tocando instrumentos e uma “elfa” no centro pendurada em um

tecido. Ela dançava lá em cima, e eu a admirava com meu olhar. A luz se apagou e peça começou. Fui

incorporada nesse romance ao mesmo tempo em que eu era apenas uma pessoa sentada na plateia. Toda

essa magia ficou dentro de mim por muito tempo e junto veio a vontade de fazer parte de tudo aquilo. E foi

a partir daquele dia que decidi entrar para o teatro da escola. Essa escolha não poderia ter sido melhor. Era-

se o tempo em que passava todas as tardes de sextas-feiras naquele mesmo lugar mágico que me cativou.

Lá podia eu ser quem eu quisesse... podia inventar um personagem e ser ele por um tempo. Podia também

aprender a improvisar uma cena, a tentar adivinhar algo sem que alguma palavra fosse dita, a usar apenas

meu corpo para expressar um sentimento, sem que minha face fosse vista. Podia dividir falas, risadas,

aprendizados. Lá fiz amizades e intensifiquei amizades que levo até hoje comigo. No teatro aprendi que

uma peça não se faz sozinho. Não dependia apenas da professora, dependia da colaboração e engajamento

de cada aluno. De todo e qualquer aluno. A peça dependia de quem trabalhava por trás do cenário até

aqueles que interpretavam os protagonistas. Todos faziam a peça acontecer. Aprendi também que o teatro

não se baseava apenas na atuação, mas também na observação. E acima de tudo, que teatro é construção. E

junto dela, a construção da nossa própria identidade. Não queríamos ser ou imitar o estilo de peças famosas

ou coisa do tipo. Tínhamos nossa própria identidade. Teatro do Instituto Educacional Imaculada. E que

teatro meus amigos, que teatro! E nos dias de apresentação? Era tudo emoção! Entrar no personagem e

transformar o auditório em um lugar completamente diferente, dentro de um tempo e de uma história

diferente. Frio na barriga e uma eterna gratidão de fazer parte daquela superprodução. Luz, câmera, ação.

Espera, já acabou?! Como é possível uma peça de quase 2h ter acabado tão rápido! Corre, corre, a luz vai

apagar e temos que estar todos no palco para o agradecimento. As palmas. Infindáveis palmas! Sorrisos que

davam câimbras, sorrisos que viravam choro de alegria e tristeza ao mesmo tempo. Assim como a emoção

era sempre muito forte, a certeza de que tudo valeu a pena também. Cada palma, cada sorriso, cada abraço

envolvido nos dava a certeza de que todo o esforço valia a pena, e mais do que isso, que queríamos repetir

e viver tudo aquilo de novo, mais uma vez. Sei que, para muitos, infelizmente, a arte não é de muito valor.

Para muitos, ficar as tardes de todas as sextas feiras era perda de tempo. Mas felizmente, para aqueles que

a valorizam, a valorizam muito e verdadeiramente. Não se deixam levar pelo o que o nosso país pensa a

respeito e nem como o nosso país a trata. Mas fazem aquilo que gostam e aquilo que, aos nossos olhos, é

essencial ao ser humano. Esse é o diferencial de quem faz as coisas com brilho no olhar. Com esse brilho

é que fazemos o que fazemos com excelência e que conquistamos olhares de outros, espalhando assim, essa

arte maravilhosa. Hoje, revendo fotos e vídeos das peças que participei, pude ver que a magia que me

invadiu aquele primeiro dia, ainda está presente aqui e suponho que nunca vai me deixar. Fico feliz em ter

estudado em uma escola que valoriza a arte e não poderia deixar de dizer obrigada! Obrigada Talitha

também, por ter tornado tudo isso possível e por ter espalhado esse brilho no olhar de cada um de nós. Fez

parte da minha história, fez parte da história de todos os que passaram pelo famoso teatro do IEI. Grandes

e eternas lembranças naquele palco, nas coxias, nos camarins e na quadra de esportes atrás do auditório.

“Eu seguro minha mão na sua, para tudo aquilo que eu não posso e não quero fazer sozinho, possamos fazer

todos juntos!”

(Larissa, 22 anos, Bióloga - fez teatro no IEI de 2010 a 2013)

31.

Apesar de muitos pensarem que no teatro a gente só trabalha a vida de um personagem, para mim o teatro

foi o início da descoberta de mim mesma, entrando em contato com a minha verdadeira essência, testando

meus limites, me abrindo para um mundo novo. Eu vi no outro parte de mim, eu entendi o tamanho da força

que havia em mim, em nós... no teatro eu, que sempre me entendia como alguém fora do padrão, com

dificuldades de aceitação social, me encontrei rodeada de amor, em um ambiente que me acolheu, que me

ensinou, que me fez crescer, me fez amadurecer, abstrair de um mundo que era só meu... O teatro foi

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definitivamente o primeiro encontro com meu verdadeiro propósito, e me acompanha até hoje na minha

jornada em direção ao propósito do outro, ajudando pessoas a viverem uma vida com mais significado, e

com uma ampla visão de mundo. No teatro não há fronteiras... aprendemos a lidar com a nossa

vulnerabilidade com maestria e gosto... para mim, no momento da vida em que nele entrei, ele me surgiu

como o meu primeiro renascimento, e me acompanha até hoje... daqui pra eternidade. Gratidão é o que

sinto por ter passado momentos tão maravilhosos com pessoas tão especiais, especialmente com você,

Talitha, por ter me acompanhado tão de perto nessa jornada! Você e todos que compartilharam esses

momentos comigo ficaram marcados, sem dúvidas, no meu coração! Fazer Teatro é aprender a se

conhecer!

(Luana, 28 anos, Coach, Empresária e Palestrante - fez teatro no IEI de 2003 a 2006)

32.

Fazer teatro é se descobrir. Além de encarar o personagem, é saber encarar a si mesmo. É sentir, se

emocionar, amar. É espontâneo, libertador e divertido. Fazer teatro é acender sentimentos e emoções que

tocam a alma. Uma coisa que não me arrependo na vida, é de ter feito teatro. Comecei com as aulas de

teatro na infância até a adolescência no Imaculada, e garanto que foi uma das experiências mais

enriquecedoras da minha vida. Fui mendiga, Cleópatra, Pitonisa, Contrarregra... Com o teatro, aprendi a

ser várias de mim mesma, aprendi a ter compromisso, aprendi a ir atrás daquilo que queria, aprendi a ouvir,

aprendi a me expressar. Com o teatro eu me diverti, fiz amigos, dei boas risadas, levei broncas, cresci,

evolui. Com o teatro, compreendi o amor pelo palco, e o respeito pelo mesmo, assim como o poder da arte,

e como ela pode ser um elemento de transformação do ser humano.

(Maria Gabriella, 20 anos, estudante de Direito - fez teatro no IEI de 2009 a 2012)

33.

Fazer teatro foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Sempre fui apaixonada por esse universo

lúdico onde tudo podia acontecer, tinha loucura para fazer teatro, mas como sempre tive problemas com

meu peso minha mãe preferia me encher de atividades esportivas e não levava em consideração meu

interesse pelo teatro. Aos 16 anos vi a oportunidade de me envolver com o teatro quando um grupo tinha

sido criado no Imaculada... eu não estava nele mas muito de meus amigos estavam e sabendo do dia, horário

e local das reuniões eu simplesmente apareci e fiquei ali no cantinho só observando com a desculpa de que

estava esperando meus amigos. Era a montagem de uma peça e estavam distribuindo personagens e

conversando sobre montagem do cenário... foi aí que vi minha chance... eles queriam alguns itens para

compor o cenário que ninguém do grupo tinha e alguns dele eu tinha... aproveitei a deixa e comecei a

oferecer o que eu tinha, no fim até o que eu não tinha eu falava que tinha pra me envolver.... Deixei meus

pais loucos mas arrumei tudo que precisavam e o principal... fazia parte do grupo... mesmo sem

personagem... sem falas, mas estava ali participando. Daí pra conseguir mais espaço e enfim atuar não

demorou muito. Eu sempre fui uma pessoa desinibida, mas muito confusa, era comunicativa em excesso.

E isso muitas vezes me atrapalhava. Tinha dificuldade em me concentrar, e o teatro me ajudou MUITO

nesse ponto. As atividades de improvisação, os exercícios que fazíamos para dicção foram me ajudando na

minha forma de comunicar com as pessoas. Depois que o teatro entrou na minha vida parece que tudo ficou

mais fácil, dificilmente me sinto desconfortável em ambientes diferentes do que sou acostumada. No meu

ponto de vista, o teatro devia ser obrigatório em todas as redes de ensino, se todos tivessem a oportunidade

de ter o contato com teatro a sociedade seria melhor pois todos teriam a possibilidade de se colocar no lugar

do outro... de sentir na pele ser de outro jeito e ajudaria a aumentar a empatia e o respeito entre as

diferenças. Melhorando o poder de comunicação que cada um tem, evitaríamos muitos problemas bobos

que tomam proporções grotescas nos dias de hoje. Hoje trabalho com contabilidade, mas aos fins de semana

uso o teatro para passar a homilia dominical na missa das crianças da minha comunidade, e meu maior

orgulho é ver que essa paixão pelo teatro já consegui passar pra minha filha e meu marido, que fazem os

teatrinho junto comigo.

(Amanda, 37 anos, Contadora - fez teatro no IEI de 1997 a 2000)

34.

“O teatro é entrega, dedicação, humildade, amor, respeito, é magia, é energia, é a troca, é o jogo, é o outro,

é o conjunto: é um todo” Tudo começou no sétimo ano, me vi encantada com aquele lugar, com os

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sentimentos que ali me traziam, com a responsabilidade adquirida. Durante todo o ano fiz questão de me

dedicar por inteiro, intensamente e quando acabou fiquei com o sentimento de quero mais...não pensei duas

vezes e no ano seguinte me inscrevi para participar. As segundas-feiras que passei no auditório eu fui

acolhida, pude ser eu mesma com todas as minhas inseguranças, problemas e desejos. Ali eu me sentia

confortável. No teatro aprendi a importância de trabalhar em conjunto, as peças precisam do esforço de

cada um ali dentro, da professora ao contrarregra. Foram meses de ensaios, correria atrás de figurino, testes

e mais testes. A cada dia um desafio novo e com cada um deles fui crescendo e amadurecendo. O grande

dia 16 de novembro de 2017!! Como explicar a emoção que senti nesse dia? Tremores, borboletas no

estômago. Vai dar tudo certo? E se eu esquecer alguma fala? Passou de tudo em minha cabeça...correria

pra cá e pra lá, chegou a hora e agora? Atrás das coxias com todo o grupo reunido de mãos dadas, senti

uma energia que até hoje não consigo descrever. “Eu seguro minha mão na sua, para tudo aquilo que eu

não posso e não quero fazer sozinho, possamos fazer todos juntos”! A cada palavra que a Tali dizia passava

um filme na minha cabeça, todo o esforço daqueles meses de preparação para aquela noite já tinha valido

a pena...toda aquela sensação se transformou em lágrimas, essas que rápido sequei para a primeira cena.

No palco estava à vontade, aquela energia tinha-se transformado em determinação para que pudesse

transmitir um pouco da alegria que estava sentindo para cada um que na plateia estava. E num piscar de

olhos a peça havia acabado e a melhor recompensa as palmas, os abraços... A magia do teatro me

acompanha diariamente e com certeza me acompanhará pra sempre! Obrigada, Tali, por me proporcionar

essa experiência, por me permitir ser eu mesma e, sabendo das minhas vulnerabilidades, me acolher! O

teatro mudou minha vida, sem essa experiência não saberia dizer o que seria da minha vida hoje!! Vou te

guardar pra sempre no coração!! Muitíssimo obrigada!!

(Gabriella, 14 anos, aluna de teatro no IEI)

35.

Infelizmente fiz apenas 1 ano de teatro no IEI, em 2009. Eu sou de Mogi Mirim e viajava todos os dias para

ir ao colégio, por isso não consegui ir nos anos anteriores. Sempre fiz aulas de teatro, no meu 3º ano do

Ensino Médio, com toda a pressão de vestibulares, a Talitha anunciou que faria um musical. Não teve jeito!

Tive que me virar, arrumar tempo pra poder participar, afinal foi uma peça de teatro musical que fez com

que eu me apaixonasse por teatro. Lembro que no primeiro dia estava muito nervosa e com muito medo.

Pensava que o grupo fosse uma "panelinha fechada" e que, como estava aparecendo só no meu último ano

eu não seria bem recebida. Estava muito enganada, todos me receberam de braços abertos. O grupo de

teatro do IEI sempre foi um espaço de total liberdade, todos podiam acrescentar alguma coisa, mérito da

Talitha, que nos ouvia e gostava de novas ideias (apesar das várias broncas!). Digo com toda certeza que

foi uma das minhas melhores experiências com teatro que já tive, me ajudou demais a enfrentar o ano difícil

que estava passando. Isso sem falar que “Perfeitópolis, o Musical” foi o maior sucesso! Agradeço muito a

todos os momentos que passei por lá, tenho muita saudade dessa época."

(Lara, 26 anos, advogada - fez teatro de IEI a 2009)

36.

Fazer teatro é, sem sombra de dúvidas, a maior contribuição para a construção da personalidade que tenho

hoje. Entrei nas aulas de teatro do colégio com 13 anos e me lembro que um dos dias mais felizes foi quando

meu nome foi sorteado e descobri que poderia participar do grupo. Até meus 17 anos, quando terminei o

colegial, participei de todos os ensaios, peças e ações pela escola possíveis. Além da desenvoltura para falar

em público, lidar com críticas e descobrir uma noção maior de expressão corporal, o teatro me fez perceber

as grandes amizades que podia construir. No modelo mais clichê de filme americano de High School, havia

certos grupos de pessoas que não se viam amigas de outros grupos. Mas era dentro daquele auditório que

essas barreiras desapareciam por completo. Éramos nós mesmos e descobrimos grandes amizades

inesperadas, que foram pra fora da escola com certeza. Sempre tive problemas pra me encontrar e me

encaixar, mas a certeza que sempre tive era do quanto amava estar em cima dos palcos, amava aquelas

pessoas e o quanto aprendi encarnando personagens e vivenciando cenas. Sempre levarei comigo todas

essas lembranças.

(Marina, 27 anos, Bacharel em Química e estudante de Arquitetura - fez teatro no IEI de 2004 a

2008)

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37.

Fazer teatro é descobrir em você outras qualidades. É um crescimento pessoal gigante, saber que é

possível vencer a timidez, falar alto e em público, assumir responsabilidades e compromissos, entrar no

personagem e até decorar longas falas. Fiz por pouco tempo, mas sou eternamente grata por desenvolver

em mim o interesse pela oratória e para melhor expressar-me.

(Thaís, 24 anos, cirurgiã-dentista e aluna de pós-graduação - fez teatro no IEI de 2006 a 2008).

38.

Fazer parte do grupo de teatro do colégio Imaculada foi uma experiência da qual colho os frutos até hoje,

tanto em minha vida profissional como no "eu por eu mesma". O teatro é além de uma atividade

extracurricular, mas um complemento a minha formação como indivíduo. Tive a oportunidade de, através

da vida que dávamos aos diferentes personagens, aprender o que é empatia. Os vínculos humanos que o

teatro cria me ensinaram muito sobre "me deixar ser". Exercitar a imaginação, a dicção, o corpo e a mente

vai além dos paradigmas da educação formal.... é sobre se conhecer e aprender ao mesmo tempo que muito

do que sou é porque somos (em grupo, em sociedade). Gratidão por essa oportunidade!

(Ana Paula, 21 anos, economista e internacionalista - fez teatro no IEI de 2009 a 2011)

39.

Fazer teatro é crescer emocionalmente, intelectualmente, psicologicamente e dramaticamente (rs) falando.

É autoconhecimento, autodescobrimento, é aprender a lidar com seus sentimentos e a enxergar a vida de

uma maneira mais simples. É ver a arte acontecer na sua própria vida, ou melhor, é viver a arte! O teatro

me ajudou a conhecer meus gostos pessoais, minhas preferências, meus limites, desejos e repulsas, me

ajudou a fazer amizades novas, a aprender a lidar com pessoas muito diferentes de mim mas que estavam

reunidas por um mesmo objetivo - ensaiar para fazer uma peça dar certo, e ser a melhor peça apresentada

até então. É dedicação, suor, treino de fôlego, de paciência, de dança, de argumentação (jurídica ou não, rs)

e, sobretudo, de organização pessoal. É aprender a lidar com seus pais, que muitas vezes não reconhecem

uma atividade que faz tão bem a você, mas que te exige tanto. Teatro é a experiência que falta você viver

para sentir que sua infância e adolescência realmente valeram a pena.

(Marina, 20 anos, estudante de Direito - fez teatro no IEI de 2009 a 2014)

40.

Fazer teatro foi uma experiência incrível. Tudo começou com um convite aos alunos para fazerem parte de

uma peça envolvendo os alunos do Ensino Médio. Na época eu estava na 7a série. A peça era "Morte e

Vida Severina", de João Cabral de Melo Neto. Talitha nos envolveu com sua experiência e suas técnicas

para que pudéssemos dar o nosso melhor. Como esquecer aquele grupo? Muitos ensaios, muitas

apresentações fora da escola e o envolvimento de todos. Depois vieram novas peças, novos grupos e

novas parcerias. "Plunct Plact Zum”, “Nossa Cidade”, “Pluft o Fantasminha”, “O Homem do

Princípio ao Fim"... Todos sempre com muita responsabilidade e comprometimento. Ter essa

experiência na escola marcou a minha vida. Consegui superar minha insegurança e aprendi a me

posicionar melhor diante das pessoas. A cada apresentação aquele friozinho na barriga e aquela

expectativa que davam lugar ao prazer da missão cumprida. Como era bom receber aqueles

aplausos ao final de cada espetáculo. Como era bom aprender sobre essa arte com você, Talitha!

Nossa eterna professora. Só tenho a agradecer por poder viver tudo isso. Levo comigo hoje muito

dessa vivência. Hoje sou professora de Ensino Fundamental I. Gosto de levar minhas experiências

para os meus alunos e sempre que possível gosto de fazê-los viver um pouco desse universo

maravilhoso que é o Teatro.

(Danielle, 32 anos, Professora - fez teatro no IEI de 1999 a 2003)

41.

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Eu me lembro até hoje quando abri a porta do teatro do IEI para realizar alguma manutenção na cabine de

som (na ocasião eu era funcionário do colégio), vi os alunos no palco reunidos, brinquei imitando o Silvio

Santos apenas para descontrair a galera. Na hora, todos riram como de costume, mas a Talitha Hansted,

com seu olhar artístico, na mesma hora disse... "Nooooooossa que legal isso!!!!!! Você toparia participar

da peça que estamos montando?". Confesso que na hora não levei muito a sério, mas ela me puxou pela

mão e as coisas foram acontecendo. No dia no meu aniversário lá estava eu, no palco, atuando na

peça "O Homem do Princípio ao Fim". Não poderia ter recebido presente melhor naquele ano, foi

uma das melhores experiências que tive em minha vida. Até hoje guardo com muito carinho as

recordações daqueles momentos onde tive a oportunidade de ver a mágica por de trás das cortinas.

(Celso, 28, Engenheiro Eletricista, ex-funcionário - participou do teatro do IEI em 2011)

42.

Hoje no ensaio falávamos sobre a escola tradicional ser um espaço que restringe muito os corpos, as

crianças. Falamos sobre formatos de aulas de artes, de teatro, sobre bibliografias e críticas... papo bom!

Mas daí fiz um depoimento pessoal que é uma possível resposta pra suas perguntas: Quando era criança

achava que não sabia nada, me considerava "desdotada". Daí veio o teatro e “pãns”! Me levou pra lugares

incríveis e me leva até hoje. Minha identidade de adolescente só era possível no teatro (e na boemia vá lá!),

de resto seguia desdotada, desajustada, dissonante. Mas no teatro era da hora demais! Segui né? Sigo!

(Maria, 30 anos, Atriz e Professora de Teatro - fez teatro no IEI de 2001 a 2005)

43.

Tive a honra de contribuir com um livro literário de minha autoria que foi adaptado para ser encenado por

esses alunos incríveis sob a sua competente direção! Muito obrigada por esse privilégio: literatura e teatro

são parceiros na reinvenção do mundo como o lugar do possível e do impossível!

(Renata, Coordenadora do Ensino Fundamental I e Escritora - autora de livro adaptado para o Teatro do

IEI)

44.

O teatro já fez parte da minha vida em tantos sentidos que cheguei a crer que ele fosse mesmo a minha vida

– fui fazer faculdade na área depois de anos no grupo amador do colégio. Aconteceu, então, comigo o que

vários outros aspirantes a ator também dizem experimentar: pareceu-me, quando já me vi “ator formado”

(aberração impossível), que o teatro que fazia antes da faculdade, o amador, era melhor do que o que fazia

depois. (Talvez “melhor” não seja a palavra, mas certamente mais vivo era.) As apresentações logo foram

definhando, os projetos minguando e os grupos se desfazendo; a vida dobrou a esquina e eu mudei de área;

hoje atuo como ex-ator. Mas resta-me na alma a impressão marcante daquele amadorismo intenso, daquela

entrega juvenil que me fez apostar todas as fichas numa carreira arriscada, mas excitante. Se eu disser hoje,

quando já não pratico mais a coisa, que aquilo tudo não serviu pra nada, mentirei. Além dos ganhos

acidentais, porém não menos importantes, que essa incursão meteórica no universo dos artistas me rendeu

– conheci nela meus melhores amigos, vivi as experiências mais significativas, encontrei aquela que seria

a minha esposa e a mãe dos meus filhos –, recebi dela algumas pérolas que só a prática teatral pode

distribuir: uma capacidade de escuta que não me deixa interferir na vida alheia sem antes compreender o

seu drama; um aprimoramento substancial na capacidade de leitura e entendimento de textos, que consertou

boa parte do analfabetismo funcional que eu herdara da escola (sim, da escola); certa tendência empática a

me colocar na situação do outro antes de formar um juízo de valor sobre ele; uma atenção especial à

linguagem corporal e à minha própria instalação corporal no mundo, o que às vezes me resolve problemas

aparentemente profundos mas, na realidade, tão simples quanto os de postura; e, talvez o mais importante

de tudo, um senso de veracidade (que funciona também como detector de falsidade) que alimenta meu

desejo pelo que é bom, belo e verdadeiro, e minha repugnância ao impostado, ao chavão e ao ideológico.

Tudo isso foi incrustado em minha alma pelo longo exercício de tentar viver como se fosse outro, e não

será extirpado dela facilmente. Agradeço a Dionísio e às musas – ou a quem quer que trabalhe na repartição

celeste de assuntos cênicos. Ao final da faculdade, por obrigações disciplinares, tive de escrever um

memorial dizendo, entre outras coisas, por que quis entrar no teatro. Escrevi que, mais do que qualquer

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outra coisa, entrei nele por vaidade – uma das verdades mais dolorosas que já assumi. No entanto, por

vaidade ou por farra, acabei entrando numa selva inquieta, onde a vida pulsa, transpira, dá o bote. Dei de

cara com algo que meu falecido diretor (Deus o tenha, Mario) chamava de “bicho-vida”. Vi a seriedade do

drama humano e me atraquei com ele. Amei-o, por assim dizer. Talvez por isso o teatro amador me pareça

mais vivo: a reação mais apropriada a esse encontro não parece ser a frieza acadêmica do profissional do

ofício, mas a entrega resoluta de quem ama. Mas isso – eu já deveria ter aprendido – Camões já ensinava

em 1500:

Transforma-se o amador na cousa amada, Mas esta linda e pura semideia,

por virtude do muito imaginar; que, como o acidente em seu sujeito,

não tenho logo mais que desejar, assim co’a alma minha se conforma,

pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada, está no pensamento como ideia;

que mais deseja o corpo de alcançar? e o vivo e puro amor de que sou feito,

Em si somente pode descansar, como matéria simples busca a forma.

pois consigo tal alma está liada.

(Álvaro, 29 anos, Editor de livros – fez teatro no IEI de 2006 a 2010)

45.

Quando eu entrei no teatro, eu era uma pessoa extremamente tímida. Tinha vergonha de tudo e de todos,

tanto que passei a minha primeira apresentação inteira olhando pro chão. É sério. Mas mesmo com toda a

timidez, eu me encantei por essa arte, que fez com que eu continuasse por todos os outros anos. O teatro

permitiu com que eu conhecesse um outro lado do meu. Assim como o das outras pessoas. Um lado que

não mostrava e não via nos corredores da escola. Assim, eu fui perdendo o medo de me expressar e de ser

quem eu realmente sou, mesmo através de algum um personagem. Também foi a melhor válvula de escape

que eu pude ter em momentos estressantes do Ensino Médio, em que eu podia esvaziar a minha cabeça de

todos os problemas e podia me dedicar a uma das melhores coisas do mundo, que é a atuação. Eu terminei

o teatro como uma pessoa totalmente diferente da que começou: mais comunicativa, mais expressiva, mais

comprometida e mais corajosa. Através de aprendizados que eu não teria em nenhum outro lugar e que,

com certeza, me beneficiaram na vida escola e também vão fazer efeito na minha carreira.

(Valentina, 19 anos, estudante de Jornalismo - fez teatro no IEI de 2010 a 2018)

46.

2017 para mim foi um ano muito ruim; minha irmã passou por uma cirurgia arriscada. Minha família evitou

ao máximo essa cirurgia e em casa sempre havia um “climão”. Porém (ironicamente), eu ficava muito feliz

nas segundas-feiras, porque sabia que eu passaria o dia inteiro no teatro. Após a cirurgia da minha irmã

(ocorreu tudo bem, graças a deus), começou a fase da recuperação, no começo de 2018, que foi outro choque

para mim. Até que a Talitha pediu para eu ser staff do Tempo de Antônio e é claro que aceitei. Me lembro

do primeiro dia que eu participei de um ensaio: estava com muita vergonha (até porque só tinha gente do

Ensino Médio); me lembro dela me apresentando e todos começarem a bater palma e a berrar; essa é uma

lembrança que eu nunca irei esquecer. Começaram os ensaios, e com toda aquela tensão, tristeza, “climão”

que estava acontecendo na minha casa, eles conseguiam me fazer pensar em outras coisas. E era muito

divertido. O Tempo de Antônio foi a peça em que eu consegui realmente entender a "Magia do Teatro" e eu

recomendo que todos sintam pelo menos uma vez.

(Letícia, 14 anos, aluna de teatro no IEI)

47.

Sempre me preocupei muito com a imagem que eu passava e quando entrei no teatro vi como as pessoas lá

não tinham vergonha de serem elas mesmas. Isso me inspirou a me redescobrir.

(Amelie, estudante, 18 anos, ex-aluna)

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48.

“Antes do teatro eu não sabia quem eu era. Ao interpretar personagens, descobri que era isso que eu fazia

na vida real, o que me ajudou a descobrir quem eu sou e a não ter vergonha de mim mesma.”

(Paula, 16 anos, aluna de teatro no IEI)

49.

No momento em que entrei no teatro não conhecia ninguém e tive muito medo de como seria aceita, mas o

ambiente do teatro torna as pessoas extremamente receptivas.

(Isabel, 15 anos, aluna de teatro no IEI)