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GEONORDESTE, Ano XXIV, n.1, 2013.
O COM-VIVER DE TEMPOS-ESPAOS:
TERRITRIOS E REPRESENTAES ENTRE OS VEREDEIROS DO PARQUE
NACIONAL GRANDE SERTO - VEREDAS
THE COM-LIVE FROM TIME-SPACE: TERRITORIES AND REPRESENTATIONS
VEREDEIROS BETWEEN NATIONAL PARK GRAND SERTO -VEREDAS
El COM-VIVIR DE TIEMPO-ESPACIO: TERRITORIOS Y REPRESENTACIONES
ENTRE LOS VEREDEIROS PARQUE NACIONAL GRAND SERTO -VEREDAS
Geraldo Incio Martins
Doutorando em Geografia UFU, Bolsista Fapemig. Rua Santa Edwirges, 115, apt 402, Bairro: Finnotti - Uberlndia/MG
Angela Fagna Gomes de Souza
Doutoranda em Geografia UFU, Bolsista Fapemig. Membro do Grupo de Pesquisa Opar/Unimontes
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sociedade e Cultura/UFS
Rua: A, n. 55, Bairro: Aeroporto - Aracaju/SE
RESUMO
A fim de analisar a construo e a representao do territrio entre um grupo de camponeses da
regio Norte de Minas Gerais, os veredeiros, que escrevemos este texto. O morador da beira da
Vereda o veredeiro. O veredeiro tem um modo de vida peculiar, sua casa, suas reas de cultivos
sempre esto ligados Vereda. Dela se retira alm dos alimentos cultivados, a palha do buriti, a
seda e troncos. A escolha destes sujeitos para a nossa pesquisa se deu, sobretudo, porque a partir de
1989, com a criao do Parque Nacional Grande Serto Veredas PARNA-GSV, seus territrios foram sobrepostos, criando limitaes expresso de suas territorialidades. Os veredeiros
encurralados so proibidos de realizar suas atividades habituais como o cultivo da terra. Deste modo, vivem entre - territrios, de um lado, o cartesianismo dos limites impostos pelo PARNA-
GSV assegurado e legitimado pelo Estado, de outro, a luta frequente para permanecer nos territrios
de vida e trabalho.
Palavras chave: Territrio, Representao, Veredeiro, Norte de Minas Gerais, Conservao da
Natureza.
ABSTRACT
In order to analyze the construction and representation of the territory between a group of peasants
from the northern region of Minas Gerais, the veredeiros, we write this text. The resident of the
edge of the footpath is veredeiro. The veredeiro has a peculiar way of life, their home, their areas of
cultivation are always connected to the footpath. It withdraws beyond the food grown, Buriti straw,
silk and trunks. This choice of subject for our research was mainly because from 1989, with the
creation of the National Park Grande Serto Footpaths PARNA-GSV, their territories were superimposed, creating limitations to the expression of their territoriality. The veredeiros trapped are prohibited from performing their usual activities such as cultivation of terra. Deste way live
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among - territories, on the one hand, the Cartesian limits imposed by PARNA-GSV secured and
legitimized by the state on the other, the struggle often to remain in the territories of life and work.
Keywords: Territory, Representation, Veredeiro, North of Minas Gerais, Nature Conservation.
RESUMEN
Para el anlisis de la construccin y representacin del territorio entre un grupo de campesinos de la
regin norte de Minas Gerais, los veredeiros, escribimos este texto. El residente de la orilla de la
acera es veredeiro. El veredeiro tiene una peculiar forma de vida, su casa, sus reas de cultivo estn
siempre conectados a la acera. Se retira ms all de los alimentos cultivados, paja Buriti, la seda y
los troncos. La eleccin de este tema para nuestra investigacin se debi principalmente a partir de
1989, con la creacin del Parque Nacional Grande Serto Senderos PARNA-GSV, sus territorios se superponen, creando limitaciones a la expresin de su territorialidad. Los veredeiros atrapado tienen prohibido realizar sus actividades habituales, tales como el cultivo de terra. Deste manera
viven entre - territorios, por una parte, los lmites impuestos por cartesianas PARNA-GSV
garantizado y legitimado por el Estado, por otro, la lucha a menudo a permanecer en el territorio de
la vida y el trabajo.
Palabras clave: Planificacin, Actuacin, Veredeiro, Al norte de Minas Gerais, Conservacin de la
Naturaleza.
1 INTRODUO
Assim como o mundo tem uma geografia, tambm o homem interior tem sua
geografia e esta uma coisa material. (ARTAUD, 1983. p. 93).
Os homens necessitam de objetos sociais, culturais e fsicos para os representarem. Toda
ao humana ganha uma representao, uma leitura terica. O territrio tambm uma leitura
destas relaes, uma forma de conhecer e pensar o mundo, , portanto, representado, representativo
e representante. As representaes se fazem no cotidiano, a partir do cotidiano, no intricamento de
escalas.
Nas prticas humanas o processo representativo que singulariza os espaos. So elas que
do consistncia ao territrio. A natureza do territrio est intimamente ligada aos processos que
levam a sua construo. A fim de analisar essa construo e a representao do territrio entre um
grupo de camponeses da regio Norte de Minas Gerais, os veredeiros, bem como as rupturas
impostas pela conservao da natureza a partir da criao do Parque Nacional Grande Serto
Veredas, que escrevemos este texto.
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De sada, dois pontos devem ser esclarecidos, a definio do campons veredeiro e a nossa
escolha em desenvolver este trabalho sobre os seus territrios. O morador da beira da Vereda o
veredeiro. O veredeiro tem um modo de vida peculiar, sua casa, suas reas de cultivos sempre esto
ligados Vereda. Dela se retira alm dos alimentos cultivados, a palha do buriti, a seda e troncos.
O veredeiro mido ele quer o frescor das Veredas e de suas terras. O povoamento vai beirando
onde tem gua, onde tem Vereda. Todo povoamento na beira d gua, (RIBEIRO, 2010. p. 62).
Os veredeiros se fazem historicamente ligados aos Gerais1 e aos processos histricos de sua
ocupao. No entanto, eles representam um modo de vida especfico porque criaram estratgias
culturais para territorializar e sociabilizar o ambiente. Nas Veredas, terra que ao mesmo tempo
espao de cultivo e do extrativismo, forjam a gnese de uma territorialidade que complementada
pelo uso comum dos Gerais para a coleta de frutos, ervas, madeira, e tambm pela criao de gado.
A escolha destes sujeitos se deu, sobretudo, porque a partir de 1989, com a criao do
Parque Nacional Grande Serto Veredas PARNA-GSV, seus territrios foram sobrepostos,
criando limitaes expresso de suas territorialidades. Um fator a se somar a nossa escolha tem a
ver com a remoo destes camponeses para um Projeto de Assentamento de reforma agrria, o
PA So Francisco a partir de 2002.
Temos assim, de um lado, um grupo de camponeses que historicamente forjaram seus
territrios no intricamento da e/com a natureza, construindo as representaes de um homem e de
um modo de vida. De outro, a criao do PARNA-GSV, sofrendo rupturas do objeto de
representao, de seu territrio-veredeiro e de suas representaes. E, como diria Joo Guimares
Rosa, com isso tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legtimo leal, pouco sobra,
nem no sobra mais nada (...). E at o gado no grameal vai minguando menos bravo, mais
educado, (ROSA, 1994. p. 29.). A expresso do territrio veredeiro colocada em um segundo
plano.
O preservacionismo engendrado por intermdio da Unidade de Conservao centraliza o
controle do territrio e rompe com a legitimidade histrica dos veredeiros. E com isso, ignora todo
o processo histrico de relao com a natureza dos Gerais na formao dos territrios. Os
veredeiros encurralados so proibidos de realizar suas atividades habituais como o cultivo da
terra. Outras, como a queima dos Gerais para a solta do gado, criminalizada.
1Os Gerais para muitos sinnimo de Cerrados. Dentre as suas caractersticas destacam as terras de Chapadas, onde se
cria o gado a solta, territrio de uso coletivo para os veredeiros. Alm delas, as veredas, onde vivem (viviam) os
veredeiros, os tabuleiros e os resfriados. (Resfriado um termo tpico para caracterizar os solos que envolvem a Vereda. Segundo informaes de um dos entrevistados recebe este nome porque a parte mais fria dos Gerais)
compem o ambiente Gerais.
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Tais sujeitos encontram-se entre-territrios. De um lado, o cartesianismo dos limites
impostos pelo PARNA-GSV, assegurado e legitimado pelo Estado; de outro, a luta frequente para
permanecer nos territrios de vida e trabalho. As rupturas advindas deste processo, as formaes de
novas representaes sobre os homens e seus territrios carecem de anlises mais sistemticas. Esta
a proposta dos itens que se seguem.
2 ENTRE TERRITRIOS
Numa leitura dos escritos de Haesbaert (2004) fica claro que o territrio um conceito
ambguo e polissmico. Isso quer dizer que necessrio o rigor metodolgico ao fazer a anlise.
Neste item pretendemos abrir a discusso a respeito do conceito de territrio. No pretendemos,
porm, fazer uma formulao terica ampla. O intuito pensar um conceito que responda e consiga
explicar os atributos simblicos e funcionais requisitados pelos veredeiros na configurao de seu
territrio.
Isto necessrio, sobretudo, porque quando comeamos a pesquisa nos deparamos com dois
problemas. De um lado, nas disciplinas e textos lidos sempre vamos uma anlise do territrio, suas
correlaes e implicaes2. Formulaes tericas que ora faziam um regaste histrico do conceito
na Geografia Poltica e outras que faziam reflexes sobre o territrio do cotidiano, sobretudo, os
territrios de conflito. Ora, de outro lado, teoricamente, o conceito estava formulado, mas nas
imerses em campo, no conseguamos perceber de fato como o territrio se constitua
concretamente.
Aliado a questo terica, a diversidade histrica e geogrfica uma questo singular para a
anlise que pretendemos esboar. Primeiro, a pesquisa situa na regio onde os pastos carecem de
fechos, o serto norte mineiro, como descrito por Rosa (1994). Com efeito, aquele sentido de
territrio ligado estabilidade, s fronteiras no tem operacionalidade. Isso, se situarmos a escala de
anlise em populaes rurais como as veredeiras, onde at a propriedade privada da terra s
comeou a efetivar depois da segunda metade do sculo XX. Ou, como sublinha Lins (1983), nestes
sertes o Estado uma abstrao.
2 Estas questes foram percebidas durante a realizao da nossa pesquisa de mestrado.
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A segunda questo nos veio a partir da leitura dos escritos de Haesbaert (2004). Ela est
ligada diretamente com a primeira proposio. O territrio tem uma dupla existncia. Uma que
ontolgica como uma realidade efetivamente existente. E outra epistemolgica, ou seja, existe
como recurso conceitual formulado e utilizado pelo pesquisador (HAESBAERT, 2004, p. 42). A
questo a se pensar que esta existncia material no pode se distanciar da conceitual. Na verdade,
a existncia conceitual s ganha operacionalidade se comprometida diretamente em compreender
como o ser humano interage e modifica o material. Digamos, pois, que o territrio nasce, portanto,
desta relao.
De sada, necessrio dizer que as prticas humanas no recortam a realidade de modo a
assegurar apenas a leitura do econmico, cultural e poltico. Diramos mais, as relaes humanas na
apropriao do espao o intrincamento de todos os elementos que compem a vida cotidiana,
(HAESBAERT, 2009). Com efeito, o territrio formado pela sociedade, que transforma
(humaniza) a natureza, controlando certas reas poltica e economicamente; processualidade
histrica e relacional, (SAQUET, 2007, p. 51). Sendo assim, o territrio significa natureza e
sociedade; economia, poltica e cultura, (SAQUET, 2007, p. 24).
Concordamos com Saquet (2007), o territrio e a sua produo, envolve dialeticamente a
cultura e a natureza, a poltica e a cultura. Estes elementos so indissociveis das prticas humanas,
e se o homem um animal territorializador, elas so indissociveis das praticas territoriais, porm
variam de acordo com os grupos sociais. O desafio pensar como isso se faz em cada grupo social,
e no nosso caso em especfico, os veredeiros, para que possamos entender os seus territrios.
Haesbaert (1997, p. 128) destaca que podemos tambm definir territrio, pelo menos em
seu sentido mais tradicional, pelo isolamento e a sensao de exclusividade que ele manifesta o que
muito ntido nos grandes sertes. Mas esta relao complexa e, s vezes, contraditria. E,
como afirma Haesbaert (1997), ao pensar as dinmicas dos Gerais, sem fechos, sem cercas ou
fronteiras (um controle socialmente produzido, como na definio de territrio de Sack (1986),
onde ficaria o territrio? (HAESBAERT, 1997, p. 128). Essa forma de apropriao do espao
forjada de acordo com o prprio movimento da sociedade que ali habita.
Conforme aponta Costa (2006), o Norte de Minas uma regio de sntese. Isso porque ela
est situada no encontro de duas formaes vegetais, cerrados e caatinga. Fator que exige uma
dinmica de apropriao diferenciada. uma regio de sntese porque no seio das grandes fazendas
se encontraram lado a lado, a criao de gado e o cultivo da terra, fazendeiros e camponeses. E,
mais ainda, nas terras destes Gerais ocorreu o encontro de ndios, ex-escravos, o vaqueiro e
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colonizadores. no encontro destas culturas, de formas diferentes de pensar e sentir o espao, que
se concretiza o territrio Norte mineiro. Formaram, portanto, o sertanejo, e as suas matizes mais
sutis, como os veredeiros (COSTA, 2006).
Com efeito, um territrio que contm outros mltiplos territrios, recortado por mltiplas
territorialidades. Embora, tenha a mesma matriz de formao, medida que os homens foram
habitando estes espaos, eles forjaram formas diferentes de se habitar a natureza e de se produzir a
partir dela. Isso quer dizer que territrios com mltiplas caractersticas foram sendo forjados e
vivenciados. E deste caldo cultural que uma gama variada de etnicidades ecolgicas surgem
(COSTA, 2006). Esta formulao nos ajuda a entender o sujeito que habita o territrio Norte
mineiro. Contudo, a escala de anlise ainda ampla, uma vez que em cada rinco das cercanias dos
Gerais, cria-se uma forma diferenciada de se apropriar da natureza. Temos com isso, um territrio
do ponto de vista regional com a mesma formao histrica, porm heterogneo devido s prprias
singularidades da natureza em que ele foi constitudo e das relaes sociais nele presentes.
3 O VEREDEIRO, SEUS TEMPOS-ESPAOS
Com os apontamentos feitos anteriormente, ficou aclarado que o veredeiro possui, ao
mesmo tempo, caractersticas comuns ao sertanejo Norte mineiro e se diferencia dele pelas regras e
modelos de apropriao da natureza. Neste item, demonstraremos as suas singularidades, as formas
de apropriao do ambiente Vereda. Quer dizer, seu territrio tem formao peculiar, envolve ao
mesmo tempo, numa intricada relao com outros sujeitos, sobretudo, os donos de fazenda dos
quais eram posseiros, de onde uma gama de poderes simblicos se concretiza. Alm, claro, da
relao direta com a natureza dos gerais e das veredas - e com o tempo-espao. E, como define
Haesbaert (1997, p. 129), mesmo que a ocupao rarefeita e sem delimitaes claras, eram terras
que j se constituam em territrios.
O territrio veredeiro um conjunto complexo de relaes historicamente configuradas pelo
uso da natureza e pelas relaes polticas, culturais e econmicas estabelecidas nos entremeios e nas
bordas do latifndio. A caracterstica principal a conjugao de espaos que se complementam
econmica e socialmente, cada qual com suas temporalidades. Neste caso, o prprio tempo social
tributrio do tempo da natureza na qual o veredeiro est envolvido.
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Como o territrio veredeiro um conjunto complexo com caractersticas ambientais e
sociais diferentes, diferente tambm a intensidade e a qualidade do uso que se faz destes
territrios. A figura 1 a seguir retrata o que denominamos de complexo-Gerais ou complexo de
territrios veredeiros.
Figura 1: Perfil (esquemtico) transversal do complexo Gerais - Norte-Sul
3.
Fonte: Pesquisa de campo- Chapada Gacha, 2009. Org. MACHADO, Henrique Amorim, 2011.
A figura 1 mostra, com uma reduo de escala e, por isso, de detalhes, os Gerais, ou melhor,
o complexo de elementos paisagsticos dos Gerais. Complexo pela diversidade de ambientes e
formas que nele esto contidas. Complexo porque tem os usos humanos diversificados com formas
de apropriao e de territorializao forjadas pelos veredeiros tendo como base esta conjuno de
elementos.
Neste sentido, vemos a organicidade do territrio veredeiro devido a efetiva integrao do
homem e suas nuances como as identidades e representaes - natureza, suas lgicas e
temporalidades. Neste caso, preciso dizer que os seres humanos fazem a sua vida, a sua histria e
a histria geral. Mas no fazem a histria em condies por eles escolhidas, determinadas por sua
vontade, (LEFEBVRE, 1974, p. 71) por isso, preciso constru-la.
O veredeiro sempre pertenceu s Veredas, ele s existe em relao a ela. Neste caso, a
Vereda demarca a biografia dos homens que as habitam, por isso, tornaram-se territrio, o abrigo
afetivo e a casa de morada do homem tambm o espao de sua reproduo material. [A] cultura,
a tradio e a histria mediam (...) o modo como as pessoas e os lugares esto ligados, o modo
3 A figura foi elaborada tendo como base o territrio que hoje pertence ao PARNA GSV.
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como s pessoas usam a territorialidade e o modo como elas valorizam a terra (SACK, 1986, p.
219).
Estar no territrio, ter um territrio traz a sensao de segurana, de abrigo. O territrio,
porm, s possvel depois da apropriao sistemtica das tramas do tempo-espao. A partir disso,
uma tessitura fina construda a fim de permitir que esse territrio seja uma condio do existir
humano. No h homem sem territrios. O contrrio tambm no pode ser dito. No h veredeiros
sem as Veredas, as Veredas, como ambientes naturais existem, mas como elemento simblico, sem
aquele que cria as significaes, elas so apenas Veredas.
Pensar o espao, represent-lo socialmente, territorializ-lo, forjar territrios. Neste
processo, as relaes de poder ganham forma, as identidades se configuram, o territrio ganha
concretude social enquanto produo humanamente estabelecida. O territrio como uma sntese da
apropriao histrica do espao geogrfico requer, portanto, uma leitura da relao espao-tempo,
da sobreposio de tempos. O tempo e o espao como amlgamas de relaes dialticas, como
processos em devir, so componentes essenciais para que se possa compreender o territrio,
ontolgico epistemologicamente.
O indivduo, mais do que aprender o territrio, assimila-o e cria-o mediante prticas e
crenas de natureza social (RONCAYOLO, 1986, p. 270). Aspectos psicolgicos e culturais se
juntam, so construdos ou transmitidos para que numa combinao justaposta, o territrio combine
apropriao, poder e representao.
Embora o complexo Gerais seja fundamental na reproduo do campons, na maioria das
terras, sobretudo nas chapadas, a produo agrcola inviabilizada, a no ser com o intenso
processo tcnico cientfico de interveno no solo como na expanso da agricultura mecanizada a
partir da dcada de 1970. Assim, as Veredas so os territrios de produo da vida humana, devido
s atividades produtivas que so efetivadas em suas terras.
Desta forma, seres e ambientes naturais integram a vida cultural na conformao de
territrios. necessrio que os nomes dos lugares representem os homens que os habitam e que os
homens consigam nestes lugares da natureza refletir suas identidades, desenhadas e contornadas por
uma geografia que integra natureza e cultura, sem opor, termos e relaes. Tais territrios
revelam uma trama singular que conjugara e sobrepe tempos e espaos mltiplos. Isso acontece
porque as pessoas no habitam somente as Veredas ou os Gerais funcionalmente por meio de
territrios forjados historicamente, elas so tambm territrios simblicos e funcionais. Roux (2004,
p. 46) escreve que compreende-se desde ento que habitar o territrio uma arte stil, uma religio
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no sentido primeiro do que religa, que pede para dar sentidos aos gestos mais profanos. Neste
sentido, os Gerais e as Veredas se tornam prximos aos veredeiros. Na verdade, os geralistas e
veredeiros aparecem como derivados, para qualificar um espao de dentro do serto, (SANTOS,
2008, p. 80).
As Veredas e os seus recursos so a fonte primeira da territorializao. No meio de tantas
terras em que no se consegue produzir, a no ser com intenso processo tcnico cientfico de
interveno no solo, as Veredas so os territrios de produo da vida humana, devido s atividades
produtivas que so efetivadas em suas terras. E os homens que as habitam como so, antes de tudo,
camponeses, tem conhecimento das Veredas como terra de trabalho, seu ciclo produtivo uma
cosmoviso de tempo e espao. E como sugere Moura (1986, p. 9), o conhecimento campons
profundo e j existia antes daquilo que convencionamos chamar de cincia.
Dois pontos devem ser esclarecidos, a disperso espacial dos veredeiros no territrio e a
forma de organizao espacial. Jacinto (1998), em sua pesquisa de mestrado com estes veredeiros
quando ainda viviam na rea pertencente Unidade de Conservao, afirma que as famlias se
encontram espalhadas pelo territrio.
Aqui encontramos pequenos agricultores, residindo prximos aos cursos da gua, utilizando-se dos cerrados e suas vrias formaes como reas comunais, onde se cria gado a solto, coletam-se frutos e plantas medicinais e, antes da criao do
Parque Nacional, costumava se caar [...]. Aparentemente, no h comunidades, ou povoados. Existe, porm, uma
organizao e um padro de ocupao espacial, que trazem muitas semelhanas
com os bairros rurais. Ou seja, existe uma unidade de agrupamento que constitui grupos rurais de vizinhana, ligados pelo sentimento de localidade, por laos de
parentesco, pelo trabalho da terra, por trocas e reciprocidades. (JACINTO, 1998, p.
43- 44).
As populaes veredeiras constroem seus territrios na interao do espao social com o
espao fsico. Por isso, rios e Veredas tornam-se referncias, casa de moradas e espaos ideais para
a territorializao humana. Deste modo, o nome do rio tambm de um conjunto mais prximo
(distncias relativas!) de casas e unidades domsticas, e tambm, algumas vezes, o nome de uma
fazenda (JACINTO, 1998, p. 44). Com isso, torna-se difcil afirmar que h uma comunidade
veredeira, homognea e inserida em um territrio determinado. O que de fato existiu, foram
pequenos ncleos familiares territorializados onde h Veredas e terras de cultivos. O territrio
vasto, isto talvez nos indique de onde surge a expresso para determinar o meio ambiente
circundante: os Gerais com suas Veredas. Gerais porque vasto, geral.
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Com efeito, o elemento gua o elemento propiciador territorializao, sobretudo, devido
a sua escassez, cada famlia buscava nas terras pertencentes a uma fazenda a fonte de gua para
estabelecer suas moradias. E ali estabelecia sua residncia. E como o fazendeiro sempre escolhia as
melhores fontes de gua para o gado e, alm disso, sempre havia a possibilidade da invaso dos
cultivos pelo gado, tais moradores de favor buscavam por terras mais distantes da sede da fazenda
que, em geral, eram mais prximas ao rio So Francisco. Constitua assim a territorializao dos
Gerais (PIERSON, 1972a).
O fazendeiro se torna o padrinho dos filhos dos moradores de sua fazenda. Em troca estes
moradores tm a proteo do fazendeiro e a terra de trabalho, mas em caso de uma disputa poltica
com outro fazendeiro, todos os seus protegidos entram no conflito. Os donos de terra se tornam
assim, por dizer, donos de homens por meio de um poder simblico e econmico. Criam-se, assim,
uma solidariedade, cuja caracterstica principal a sujeio do outro, o morador de favor, ao
poder econmico e poltico do fazendeiro.
O posseiro ou agregado no tinha a inteno de adquirir o ttulo das terras ocupadas. O
que de fato pretendiam era apenas promover uma pequena rea de cultivo. At mesmo porque este
sentido de propriedade s foi efetivado em algumas regies do Norte de Minas a partir das polticas
modernizantes da dcada de 1970. Uma famlia pode se instalar na zona onde ningum mora ou
mesmo comprar de um posseiro anterior o seu grosseiro abrigo e o direito a rea vizinha
(PIERSON, 1972b, p. 354). Isso acontecia, sobretudo, em terras mais distantes da sede da fazenda e
em terras de pequeno valor, porm, necessrio dizer que o valor neste caso no era monetrio, era
valor de uso, ou seja, pastagens naturais e fontes de gua, elementos essenciais para a grande
fazenda criadora de gado. A este respeito, Donald Pierson (1972b), complementa sua anlise:
Mesmo que o proprietrio lhe conhea a presena e no veja com bons olhos, no
provvel que a expulse ou mesmo construa cercas para dificultar-lhe o uso da terra.
Raramente se d tanto trabalho e despesas, especialmente em terra que provavelmente no usa e nem pensa em usar (PIERSON, 1972b, p. 354).
Alm disso, havia amplas propores de terras que no eram apropriadas, sobretudo no
intervalo entre uma fazenda e outra. As terras reivindicadas pelos fazendeiros e seus descendentes
estavam em rea de influncia dos rios de maior porte e suas reas de inundao. Com isso, tm-se
amplas cercanias do territrio adentro que no so legalmente apropriadas e que so comumente
consideradas e usadas em grande parte como propriedades comunais (PIERSON, 1972b, p. 355).
Assim, Gerais [...] embora mais para o interior, onde a terra na maior parte no tem dono,
sejam comuns os posseiros (PIERSON, 1972b, p. 357). O semi-despovoamento ou o
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povoamento esparso dos Gerais por estes veredeiros, segundo Bertran (1999, p. 48), lembra o
ndio. Cada ramo de ribeiro o galho sertanejo lembra um embrio de nao, de reino, de
famlias aparentadas em torno do [...] manancial dgua. A estratgia de locao espacial muito
parecida.
As Veredas tambm foram apropriadas cognitivamente e se transformam em territrios de
vivncias. nas Veredas que a vida se organiza. nelas e/a partir delas que todo um territrio
apropriado. Podemos mesmo entender neste contexto que o territrio uma terra-territrio, um cho
de morada. Uma convergncia entre elementos dos Cerrados, Veredas, capes e chapadas com a
vida sertaneja. Uma confluncia entre o cultivo da terra, extrativismo e a criao de animais. O
territrio do campons veredeiro absorve as caractersticas do meio que imprimem caractersticas
ao modo de vida.
4 REPRESENTAES, VEREDEIROS E CONSERVAO DA NATUREZA
Vimos que o territrio veredeiro , portanto, produto e meio da ao humana temporal e
espacialmente. E guarda em suas tessituras as memrias deste agir. Isso define os lugares e as
relaes do presente. Este territrio , portanto, parte desta memria em processo, ultrapassando-a
em formas, representaes e conflitos.
, nesse sentido, que ao se apropriar de um espao, concreta ou abstratamente (por
exemplo, pela representao), o ator territorializa o espao (RAFFESTIN, 1993, p. 143).
Representao e apropriao esto intimamente ligadas. As representaes oferecem as bases
concretas para tal apropriao. No h deste ponto de vista, representao estvel ou concretizada,
mas um intenso processo de construo de representaes. medida que lgicas do tempo-espao
mudam, mudam tambm e concomitante, as formas de apropriao, as representaes, os territrios
e as territorialidades.
As representaes no so, como nos conduz os escrito de Moscovici (1978), uma opinio
sobre. Muito pelo contrrio, so teorias, cincias coletivas sui generis, destinadas a interpretao
e elaborao do real (MOSCOVICI, 1978, p. 50). O processo representativo entendido como tal,
quem d concretude as coisas, sendo o comportamento impregnado de significaes. Elas
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enriquecem o que realidade para cada um de ns e determinam os dilogos possveis, valores e
sentimentos partilhados por um grupo no mesmo espao-tempo.
Quando representamos um objeto, no estamos a fazer uma cpia do real, ao contrrio, o
real que feito a partir de nossas representaes. O objeto , simultaneamente, conhecido e
smbolo do conhecedor. O que as representaes coletivas traduzem a maneira pela qual o grupo
se enxerga a si mesmo nas relaes com os objetos que o afetam (DURKHEIM, 1987, p. 26).
Representar ter uma percepo do objeto e tambm conceituar este objeto. neste
processo que se forma a dialtica da representao, a dialtica do objeto de representao. Primeiro,
a representao exprime, (...), uma relao com o objeto e que preenche um papel na gnese dessa
relao. Um de seus aspectos, o perceptivo, implica a presena do objeto; o outro, o esprito
conceitual, a sua ausncia (MOSCOVICI, 1978, p. 57). Mas, se a representao construda
atravs de conceitos e percepes, a percepo necessita do objeto, e sem ele torna-se impossvel a
sua existncia.
Para Lefebvre (1980, p. 53), o homem s representa-se no no-humano, no sub-humano (o
animal) e o sobre-humano (o possvel). Moscovici (1978, p. 63) sublinha que toda a
representao uma representao de alguma coisa. Representar algo, um objeto como querem os
autores citados ou no nosso caso, um territrio, conferir ao representado um carter significante.
De um modo bem particular, isso quer dizer que interiorizamos e fazemos das coisas representadas
nossa propriedade.4
O processo representativo social, poltico e psquico. preciso situar as representaes
como sugere Lefebvre (1980), em sua dialtica. tambm no processo dialtico que se estabelece
entre o vivido, concebido e o imaginado. Jovchelovitch (2002, p.79), aponta que os processos que
engendram representaes sociais esto embebidos na comunicao e nas prticas sociais: dilogo,
discurso, rituais, padres de trabalho e produo, arte, em suma, cultura. So nas nossas
impresses do mundo, a representao sobre ns, sobre a famlia, o trabalho e os afetos que
projetamos o territrio. Em suas tramas, em tessituras muitas finas, as representaes so nossas
imagens construdas sobre o mundo em todas as suas dimenses. Na medida em que as
representaes tm como fonte a prpria vida, o territrio se torna esta mediao das
representaes.
Quando pensamos no processo representativo, sobretudo, quando colocamos em anlise, os
processos de expropriao destas gentes das veredas engendradas pela criao do Parque 4 verdadeiramente um modo particular, porque culmina em que todas as coisas so representaes de alguma coisa (MOSCOVICI, 1978, p. 64).
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Nacional Grande Serto Veredas, algumas questes so importantes. A primeira delas, o prprio
ambientalismo, como discurso prtica, uma representao, de territrio e de natureza. Isto pode
ser evidenciado nos embates vividos pelos veredeiros aps a criao da Unidade de Conservao -
UC.
As polticas ambientais no Brasil tm como pano de fundo a conservao da natureza stricto
sensu. Isso quer dizer que antes de qualquer coisa, os seres humanos so degradadores por natureza.
Com isso, para efetivar a conservao no permitida a presena humana nos territrios. desta
linha de pensamento que surgem os Parques Nacionais, modelo importado dos Estados Unidos
quase sem nenhuma anlise crtica.
Temos, assim, uma mudana na representao de natureza e uma mudana na concepo de
homem. Com isso, a natureza passa a ser personificada como coisa. A partir das ideias iluministas
postulado que existe uma diferena fundamental entre o homem e a natureza. A natureza o reino
da necessidade causal, do determinismo. A humanidade ou cultura o reino da finalidade livre, das
escolhas voluntrias e racionais, (CHAUI, 2006, p. 105). Neste momento, a cultura torna-se
sinnimo de histria e a natureza uma mera repetio de acasos; a cultura sinnimo do agir
racional sobre esta natureza minimizada em relao ao humano.
Nesse sentido, com referncia as UCs e o sentido restrito de natureza representado por elas,
Diegues (2001) afirma que o modelo de conservacionismo Norte-americano espalhou-se
rapidamente pelo mundo recriando a dicotomia entre povos e parques. Sobretudo, para os pases
de Terceiro Mundo, o efeito disso foi devastador sobre as populaes tradicionais de
extrativistas, pescadores, ndios porque perderam as condies essenciais de suas existncias, os
territrios de representao (DIEGUES, 2001, p. 35). Alm disso, no se considerou nesta
importao de modelos as condies histricas, sociais e culturais da populao, e tambm se
negligenciou algumas condies geogrficas como a densidade do povoamento e os efeitos
climticos, mas, sobretudo as condies econmicas e sociais.
Aliado a estas condies, Diegues (2001, p. 37) situa outros pontos, como, por exemplo, os
conflitos fundirios, noo inadequada de fiscalizao e corporativismo dos administradores;
expanso urbana; profunda crise econmica e a dvida externa de muitos pases subdesenvolvidos
esto na base do que se define como a crise da conservao.
Portanto, as populaes atingidas tm as condies de reproduo debilitadas e esto
margem do processo de ampliao das Unidades de Conservao. De fato, o importante, a
conservao da natureza pela natureza. O PARNA-GSV foi pensado e institudo desta forma, como
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representao de uma natureza esttica e bucolizada, sem a presena do homem, por isso, o
primeiro efeito sobre os veredeiros foi a restrio de bens que do acesso a elementos culturais,
sociais e econmicos, ou seja, a natureza e os processos funcionais/simblicos de sua apropriao.
A criao do PARNA-GSV ocorreu em um perodo de transio poltica, da ditadura militar
para o governo democrtico. Ele se insere no debate dos processos de degradao ambiental que
crescia com a expanso da agricultura capitalista. E tambm, no debate internacional sobre a
questo ambiental. Com isso, a Fundao Pr - Natureza FUNATURA comea a fazer estudos
tcnicos cientficos para implantar uma Unidade de Conservao nesta regio em 1986. Finalmente
em 12 de abril de 1989, por meio do Decreto Federal n. 9.7658, o Parque Nacional Grande Serto
Veredas foi criado com uma rea de 83.368 hectares que abrange os municpios de Arinos, Formoso
e Januria, no Estado de Minas Gerais.
Conforme o Plano de Manejo do PARNA-GSV, esta Unidade de Conservao tem como
objetivo:
I. Conservar a paisagem dos Gerais, cenrio da obra de Guimares Rosa,
com destaque para as exuberantes veredas;
II. Preservar amostras representativas do Bioma Cerrado sobre solos arenosos
da regio do Espigo Mestre do rio So Francisco, tais como matas, veredas, carrascos, cerrados e ectonos associados;
(...)
XVII. Estimular o resgate dos aspectos histricos e culturais da regio,
estimulando sua preservao pelas comunidades locais;
VIII. Estimular o desenvolvimento regional integrado com base em prticas de
conservao, especialmente proteo de bacias, controle de eroso e reabilitao ecolgica, de educao ambiental e desenvolvimento turstico;
(FUNATURA, 2003, p. 169).
Devemos observar dentre os objetivos do PARNA-GSV que no h nenhma referncia ao
humano, apenas aspectos amplos como o desenvolvimento regional, a educao ambiental e o
turismo. Quando da leitura dos documentos histricos que retratam a criao desta Unidade de
Conservao, por muitas vezes, tivemos a impresso de que ela estava se concretizando sobre um
vazio, onde s havia elementos naturais sem a presena humana. No tempo e no espao, as
perspecitvas se repetem. Os homens veredeiros ficam mais uma vez invisveis na tica dos
sujeitos que realizam as intervenes sobre o territrio dos gerais. Descosideram suas
territorialidades, impe lgicas que desestruturam o modo de vida e as representaes de territrio.
No caso do ambientalismo, a preocupao com a natureza strctu sensu, com valores inatos para
serem preservados. Neste caso, o homem desnecessrio porque no faz parte da natureza
idealizada.
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Se soubssemos, tnhamos derrubado todo aquele mato, queria ver ter parque5. Esta
passagem revela o sentido de injustia e de punio por ter assegurado a diversidade biolgica.
Apesar dos elementos naturais terem uma importncia na reproduo da vida, o PARNA-GSV torna
a relao homem/natureza marginal e contraditria. E faz isso pelo processo de criminalizao das
prticas dos sujeitos, como por exemplo, a queima dos Gerais para a solta do gado. Essa
marginalidade se explica, tambm, em parte, pelos processos de desapropriao que comeam a ser
engendrados, pois no podia mais mudar a roa, tinha que plantar no solo fraco, dando ou no6.
O prprio Gerais que oferecia o sentimento de liberdade, de largueza, se torna um
territrio da clausura, com fronteiras mais rgidas, politicamente demarcada e cuja principal
caracterstica o controle do Estado de tal territrio (HAESBAERT, 1997, p. 263). Isso tem um
duplo efeito. Primeiro, h uma sobreposio territorial que questiona a legitimidade do territrio
veredeiro, reivindicando a posse da terra e as tcnicas de apropriao da natureza. Segundo, se antes
eram as Veredas o elemento gerador da territorialidade, o territrio de representao de um modo de
vida, o parque personificado, tem a sua prpria temporalidade. A rigor, podemos afirmar que o
tempo das fazendas, originalmente substitudo arbitrariamente pelo tempo do parque.
Os desencaixes territoriais que estavam acontecendo pela expanso da agricultura
moderna na regio Norte de Minas como um todo, sobretudo com privatizao das terras comunais
pelo avano da propriedade capitalista, na rea do PARNA-GSV, so atomizados com as restries
ambientais. Neste caso, as perdas materiais se agravaram devido criminalizao da utilizao dos
recursos naturais. O fato de serem estes territrios ocupados historicamente e, a rigor, o fato de a
natureza e seus componentes serem parte integrante do modo de vida veredeiro, a sua metamorfose
o principal elemento de ruptura nos sistemas representativos. No podia mais plantar, nem gado
mais podia criar, as roas no davam mais porque no podia derrubar novas reas de cultivo 7.
Isso ocorre pelo modelo de Unidade de Conservao que escolhido para sobrepor os
territrios veredeiros, a proteo integral. Segundo o Sistema Nacional de Unidades de
Conservao da Natureza - SNUC no seu artigo sete, no pargrafo primeiro o objetivo das
Unidades de Proteo Integral preservar a natureza, sendo admitindo o uso apenas indireto dos
seus recursos naturais, com exceo dos casos previstos nesta Lei (BRASIL, SNUC, 2000, s/p).
A resposta dos idealizadores da Unidade de Conservao, a FUNATURA, revela que os
aspectos humanos e culturais no eram a preocupao central. Afinal, a existncia de outras
5 Depoimento do stimo veredeiro entrevistado PA So Francisco, Formoso, 2010.
6 Depoimento do sexto veredeiro entrevistado PA So Francisco, Formoso, 2010. 7 Depoimento do stimo veredeiro entrevistado PA So Francisco, Formoso, 2010.
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Unidades de Conservao que contemplariam necessidades humanas 8 e nenhuma que tem como
objetivo principal proteger os Gerais. Como disse o responsvel pela FUNATURA naquele
momento se formos sempre considerar que, para se criar uma unidade de conservao de uso
indireto (como parques nacionais, reservas biolgicas e estaes ecolgicas) no deva existir
pessoas em seu interior, onde que se encontraria tal rea? 9
H outras formas de se pensar, principalmente, a excluso dos veredeiros para a implantao
do PARNA-GSV. Em momento algum houve o envolvimento da populao, nem mesmo foram
informados do que estava acontecendo. Nas falas dos veredeiros ficam claras as estratgias
utilizadas: eles foram fazendo umas coisas, como se fosse para ficar ajudando o povo, ajudar l
onde que agente morava. Podemos apreender com isso que para obter informaes sobre o
conhecimento local, formas histricas de dominao foram utilizadas. Neste caso, elas foram
retomadas com outros contedos, traziam bolo, material escolar, utilizando a velha poltica do
favor para novos fins. As prprias condies econmicas em que viviam as populaes veredeiras
favoreceram este processo. Os favores oferecidos foram essenciais para suprir os mnimos vitais.
Este modelo de poltica de dominao social provm da prpria estrutura social na qual os
veredeiros estavam inseridos. Historicamente, esta dominao foi exercida pelo fazendeiro, chefe
poltico e econmico, ou seja, o coronel. A partir do momento que os ambientalistas recorreram as
estas prticas, comearam uma nova leitura, mas acabaram por impor um novo modelo de
dominao, agora no mais o da fazenda, mas o do ambientalista. Com referncia a forma territorial
deste processo, podemos dizer que a fazenda substituda pelo parque. E, do mesmo modo que o
fazendeiro expulsava o posseiro e/ou agregado quando no precisava mais de seus servios, o
ambientalismo o fez com os veredeiros. Com isso, a partir da materializao da Unidade de
Conservao foram forjadas novas relaes de poder. Quem passou a controlar este poder so os
homens e as mulheres que representam o ambientalismo.
O discurso ambiental multifacetado, est preocupado com os direitos da natureza mais
do que com os direitos do homem em ter um lar, um territrio. Propor uma Unidade de
Conservao propor outro territrio, diferente daquele antes existente. E, para que isso se
8 Depoimentos dos membros da FUNATURA concedido Andra Borghi Moreira Jacinto, durante a realizao de sua
pesquisa de mestrado (JACINTO, 1998, p. 30). 9 Depoimentos dos membros da FUNATURA concedido Andra Borghi Moreira Jacinto, durante a realizao de sua
pesquisa de mestrado (JACINTO, 1998, p. 30).
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concretize, preciso considerar as prticas sociais historicamente estabelecidas, contraditrias em si
mesmas pelo processo de criminalizao e do controle10.
Aqui mais uma vez, estamos em uma linha de raciocnio que apoiada por Lefebvre (1980, p.
54), segundo a qual, toda representao implica um valor (os valores da natureza- conservada e
vivida), seja os valores que o sujeito imagina o objeto ausente; (...). Para que algum objeto tenha
valor ou se deprecie, tem que estar representado. Com a imposio da natureza conservada o
espao, lugar e meio das representaes (LEFEBVRE, 1980, p. 71) ganha, portanto, outra
conotao. Suas tramas e dramas so atomizadas/ou rompidas.
As implicaes disso perpassam a organizao poltica, econmica e, sobretudo, as
expresses simblicas culturais. As intervenes de instituies exgenas, sobretudo, a
FUNATURA atomizam este processo, sobretudo, pelo sistema de controle e dependncia
reforados. Durante todo este perodo de enclausuramento, todas estas expresses sofreram
rupturas, mas o territrio poltico, aquele que envolve o controle, e o econmico, aquele tomado
como territrio primeiro de onde se retira a sobrevivncia, foram os mais atingidos.
Quando os veredeiros aceitaram a retirada para o Projeto de Assentamento So Francisco em
2002, o fizeram pelo sonho da conquista da liberdade. A liberdade significava sair dos sistemas de
coero impostos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis -
IBAMA e FUNATURA. O Projeto de Assentamento - PA So Francisco um novo espao, com a
apropriao humanamente construda transformar-se- em territrio. Todavia, quem dita os seus
contornos e expresses a criatividade humana e seu processo de significao.
Contudo, os processos de insegurana territorial continuam em processo. Com a expanso
do PARNA-GSV em 2004, parte do PA So Francisco, novo territrio veredeiro, foi atingido
novamente. A questo em aberto se novos processos de desapropriao no iro acontecer.
Os efeitos de todo este processo descrito, que os conhecimentos veredeiros, de certa forma,
esto sendo colocados em um segundo plano, sobretudo, pelas restries ambientais. Estamos,
portanto, diante de uma realidade nova, novas representaes territoriais so necessrias, cuja
ligao com as cidades, a utilizao de maquinrios e produtos qumicos na agricultura so os
indicativos.
10
Quando referimos ao termo criminalizao, estamos refletindo sobre a legislao ambiental imposta aos veredeiros
com a criao do PARNA GSV. Deste modo, o cultivo das Veredas, a queima dos Gerais, a caa e a pesca so
proibidas, o que compromete a prpria reproduo social.
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5 CONSIDERAES
A questo da natureza, da relao homem-natureza est contida, e base de todo processo
que forja um territrio, aliado aos processos histrico-sociais e econmicos. na apropriao
simblica e funcional da natureza que tessituras muito finas vo se estabelecendo. Os processos
ganham significao, o estranho torna-se ntimo, em suma, forja-se uma territorialidade. H uma
gama de solidariedades estabelecidas. A questo do reconhecer-se torna, tambm, o conhecer a
natureza, sociabilizando-a.
exatamente a relao homem-natureza, homem-territrio que a criao de Unidades de
Conservao, sobretudo, as de proteo integral, modificam. Isto porque os sentidos estabelecidos
so outros o da conservao da natureza em si, sem a historicidade dos processos sociais de
apropriao. A natureza torna-se externalizada ao Homem, o territrio normatizado,
instrumentalizado. O homem torna-se um estranho diante de sua prpria construo. E a esttica da
natureza sobrepe s gramticas da historicidade dos homens levando a rompimentos dos vnculos
territoriais, ou seja, a desterritorializao.
Isto coloca, de um lado, um grupo de homens e mulheres, sem a posse formal da terra, frente
a uma nova dinmica territorial, a conservao da natureza. Os conflitos se tornam intensos,
sobretudo, pelas restries legislativas impostas. As prticas tradicionais de agricultura e pecuria
so limitadas, e o uso das veredas, ambiente fundamental na formao do modo de vida, no mais
possvel. O territrio veredeiro torna-se outro, embora os homens continuem os mesmos.
Temos assim, dois processos simultneos e contraditrios. De um lado, os veredeiros com
suas prticas territoriais ligadas as veredas, cujo processo representativo d dinmica a vida social.
De outro, o Parque Nacional Grande Serto Veredas, tambm como um processo representativo, o
da natureza conservada. Com isso, temos a mesma natureza, mas com representaes diferenciadas,
e talvez, por isso, os surjam os conflitos pelo uso e apropriao.
No podemos deixar de mencionar que o encontro dos veredeiros com o ambientalismo
tambm matria-prima de novas representaes. Elas, porm, tm outra natureza, e se fazem
ancoradas no discurso globalstico de preservao dos recursos naturais. Aquele que tem como base
a separao do homem-natureza para que a preservao possa acontecer. Isto remete a novas
contradies, sobretudo, porque nega aos homens o direito a sua prpria natureza e suas
representaes.
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